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A possibilidade do movimento e a persistência da falha em O Lustre e A Maçã no Escuro, de Clarice Lispector

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

WILLIAM FERNANDES DE OLIVEIRA

A POSSIBILIDADE DO MOVIMENTO E A PERSISTÊNCIA DA FALHA EM O LUSTRE

E A MAÇÃ NO ESCURO, DE CLARICE LISPECTOR

PONTA GROSSA 2020

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WILLIAM FERNANDES DE OLIVEIRA

A POSSIBILIDADE DE MOVIMENTO E A PERSISTÊNCIA DA FALHA EM O LUSTRE

E A MAÇÃ NO ESCURO, DE CLARICE LISPECTOR

Dissertação apresentada para obtenção do grau de mestre pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, área de Estudos da Linguagem.

Orientadora: Profª. Drª. Keli Cristina Pacheco.

PONTA GROSSA 2020

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Ficha catalográfica elaborada por Maria Luzia Fernandes Bertholino dos Santos- CRB9/986 O48

Oliveira, William Fernandes de

A possibilidade do movimento e a persistência da falha em O lustre e A

maçã no escuro, de Clarice Lispector / William Fernandes de Oliveira. Ponta

Grossa, 2020. 110 f.

Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem - Área de Concentração: Linguagem, Identidade e Subjetividade), Universidade Estadual de Ponta Grossa.

Orientadora: Profa. Dra. Keli Cristina Pacheco.

1. Clarice Lispector. 2. Exílio. 3. Falha. 4. Nomadismo. 5. Literatura brasileira. I. Pacheco, Keli Cristina. II. Universidade Estadual de Ponta Grossa. Linguagem, Identidade e Subjetividade. III.T.

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AGRADECIMENTOS

À Evlin, por todo apoio, carinho, atenção e amor. Por ler o que escrevo e me aconselhar, também me incentivando. Por ser você, por cada detalhe, por tudo.

À Keli. Por ter sido minha orientadora nos últimos sete anos, pelas conversas, pelas aulas, leituras e ensinamentos; pela liberdade, confiança e apoio.

À Luzia e José, meus pais, por sempre acreditarem em mim. Sem vocês eu também não teria conseguido.

À Silmara, minha irmã, por sempre querer o meu melhor e por nunca desistir. Aos meus amigos, pelas conversas e por mostrarem que a vida é vida.

Aos professores Leonardo e Silvana, por contribuírem com meu trabalho nas bancas de defesa e de qualificação.

Aos professores do Mestrado, em especial aqueles com que tive mais contato: Keli, Daniel, Evanir e Rosana. Também à Vilma, por toda atenção e gentileza.

Aos colegas da pós-graduação, pelas conversas e aprendizado.

À Clarice Lispector e à literatura, por me mostrarem que sempre existe um caminho, por terem me acolhido com afeto.

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Bem aí, no simples fato de ter que edificar um ‘abrigo’ existe já algo mais do que a mera necessidade utilitária: o buscar um dentro, um interior, que proteja sua alma nascente, como se fosse alguém que tem que enfrentar a vida antes de haver acabado de nascer e sente a necessidade íntima, estranhável de esconder-se, de afastar-se da luz que logo tem que enfrentar: a luz que é também a lei. E ao edificar, tenta realizar seus sonhos. E sob os sonhos, alenta sempre a esperança. A esperança motora da história. E assim, nas ruínas, o que vemos e sentimos é uma esperança aprisionada, que quando esteve intacto o que agora vemos desfeito quiçá não era tão presente: não havia alcançado com sua presença o que consegue com sua ausência. E isto, que a ausência sobrepasse em intensidade e em força a presença, é o signo inequívoco de que algo tenha alcançado a categoria de “ruína”.

María Zambrano

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo a produção de uma leitura comparada entre dois romances de Clarice Lispector, a saber, O lustre (publicado pela primeira vez em 1946) e A maçã no

escuro (1961). Nesse sentido, pautamos nossas análises a partir de questões relacionadas ao

exílio e ao movimento como caráter nômade, passando pela temática da existência, da experiência e do testemunho. Dessa forma, temos, aqui, dada teorização de Jean-Luc Nancy (1996), em que o exílio é visto como condição da existência; algo que recai, então, na impossibilidade de dado indivíduo de se definir, posto que seu ato de existir, ou seja, seu exílio, não possui um ponto de partida ou de chegada, já que seu exílio independe de um banimento. Do mesmo modo, vemos na concepção de nomadismo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997), a possibilidade de um movimento que se estabelece em três momentos: a territorialização, a desterritorialização e a reterritorialização. Por considerarmos que essas perspectivas possuem uma familiaridade entre si, também construímos uma noção de fracasso do sujeito (seja em sua própria definição, em relação à linguagem ou mesmo em sua interação com o mundo ao seu redor), funcionalizada a partir do diálogo entre tais conceitos e as obras literárias acima citadas. Assim, articulamos essas noções com os romances, guardando um grande interesse em Virgínia e Martim, seus respectivos protagonistas. Nesse empenho, pensamos que é possível perceber movimentos contrários que apontam para uma mesma direção, que gira em torno do questionamento do sujeito, da linguagem e do mundo; estando pautada, a partir dessas três instâncias, a questão de uma falha persistente, posto que Virgínia, em O lustre, tenta entender o mundo a partir de sua linguagem, e Martim, do lado contrário, procura construir um mundo novo com uma linguagem inédita – e ambas experiências parecem ser incompletas.

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ABSTRACT

This dissertation aims to produce a comparative reading between two novels written by Clarice Lispector, namely, O lustre (first published in 1946) and A maçã no escuro (1961). In this sense, this analysis is based on issues related to exile and movement as a nomadic via, going through the themes of existence, experience and testimony. Thus, here a certain theorization by Jean-Luc Nancy (1996) is considered, in which exile is seen as a condition of existence; something that relies, then, on the impossibility of a given individual to define himself/herself, since his/her act of existing, that is, his/her exile, does not have a starting or ending point, for his/her exile does not depend on a banishment. In the same way, the conception of nomadism, by Gilles Deleuze and Félix Guattari (1997), is related to the possibility of a movement established in three moments: territorialization, deterritorialization and reterritorialization. As we consider that these perspectives are familiar with each other, we also build a notion of failure of the subject (either in his/her own definition, in relation to language or even in his/her interaction with the world around him/her), functionalized from the dialogue between such concepts and the literary works mentioned above. Thus, we articulate these notions with the novels, keeping a great interest in Virginia and Martim, its respective protagonists. In this effort, we think that it is possible to perceive opposite movements that point to the same direction, which revolves around the questioning of the subject, language and the world. The matter of a persistent failure is then based on these three instances, since Virginia, in O lustre, tries to understand the world according to her own language, and Martim, on the opposite side, seeks to build a new world with an unprecedented language - and both experiences seem to be incomplete.

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SUMÁRIO 1 Tentativas e caminhos ... 9 1.1 Sentidos de Clarice ... 15 2 Movimento e estagnação ... 30 2.1 Intensidade e velocidade ... 40 3 Exílio e silêncio ... 59 3.1 Falhas e distâncias ... 66 4 Linguagem e estranhamento ... 84 4.1 Aberturas ... 93 5 Indocilidade final ... 102 Referências ... 106

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1 Tentativas e caminhos

“Não há democracia sem literatura, não há literatura sem democracia. Sempre é possível não querer saber nem de uma nem da outra, mas ninguém deixa de passar sem elas sob qualquer regime; é possível não as considerar, nem uma nem a outra, como bens incondicionais e direitos indispensáveis. Mas não é possível, em caso algum, dissociá-las uma da outra. Nenhuma análise seria capaz disso. Cada vez que uma obra literária é censurada, a democracia corre perigo, e todo mundo está de acordo quanto a isso. A possibilidade da literatura, a autorização que uma sociedade lhe dá, o fato de levantar suspeitas ou terror a seu respeito, tudo isso vai junto – politicamente – com o direito ilimitado de fazer todas as perguntas, de suspeitar de todos os dogmatismos, de analisar todas as pressuposições, quer as da ética, quer as da política de responsabilidade”.

Jacques Derrida

O que se busca aqui não é capturar, limitar ou estriar a literatura. Intentamos, a partir dela, o movimento, sua intensidade, o turbilhão, a gravidade, o vento que modifica as areias do deserto; não somente, então, o deslocamento. Movimento da linguagem literária, intensidade da literatura. Turbilhão de percepções, sentidos, oportunidade de dizer, inventar, silenciar, reverberar a força centrífuga que nos joga para fora, ou força centrípeta que nos arrasta para o centro da noite, onde o silêncio e a ausência se fazem reconhecer. Ritmo nem sempre cadenciado, melodia sem intermezzo, talvez quebrada, mas nunca imóvel.

Esse procedimento que pressupõe a liberdade não deve ficar, no entanto, impreciso: neste trabalho, produzimos uma leitura comparada1 entre os romances O lustre (1946) e A maçã

no escuro (1961)2, ambos de Clarice Lispector (ucraniana-brasileira, a autora nasceu em Tchechelnik, em 1920, e faleceu em 1977, no Rio de Janeiro). Dentro desta proposição, aspiramos funcionalizar dada conceituação de falha3, que gira em torno de conceitos tais quais

1 Concordamos com Tania Franco Carvalhal (2006) que a literatura comparada é um meio, não um fim. Aqui, distanciamo-nos de questões que envolvam influência ou paternalismo literário, no sentido de pertencimento a um movimento ou escola. Intendemos, assim, uma leitura que se volta a apontar as diferenças, ou a demonstrar similaridades.

2Além destas obras, Lispector possui variados romances, a se destacar Perto do coração selvagem (1943), A paixão segundo G.H. (1964), e Água viva (1973); acrescentando-se inúmeros contos, reunidos em coletâneas tais quais Laços de família (1960), A legião estrangeira (1964) e Felicidade clandestina (1971); e também livros infantis (O mistério do coelho pensante (1967) e A mulher que matou os peixes (1968), como exemplos) e crônicas. 3 Operacionalizamos isso principalmente a partir da relação de Virgínia e Martim, protagonistas dos respectivos romances, com a linguagem – tanto a literária, que pensamos ser incorporada à subjetividade de ambos, e da realidade criada dentro da narrativa – e o mundo.

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exílio, nomadismo e estranhamento (que, pensamos, têm, ou podem estabelecer, um diálogo coerente com as supracitadas obras de Lispector).

Vejamos os romances: em O lustre, a protagonista é Virgínia, que é perscrutada por um narrador em terceira pessoa. Na narrativa, ela perambula pela realidade, seja de Granja Quieta, lar de sua infância (trata-se de uma fazenda em que sua família vivia), ou em uma cidade grande, paisagem de sua fase adulta. Seja onde for, parece estar constantemente à procura do mistério, como se pode atestar já nas primeiras páginas (quando, juntamente com seu irmão Daniel, encontra um chapéu boiando em um rio, algo que os intriga). E isso surge como uma busca constante que, ponderamos, expande a linguagem a qual o romance se forja.

Virgínia, ademais, na procura de entender o mundo, que era apresentado em forma de segredo, tentava alcançar “as coisas”. Fosse isso por pensamento ou palavras – maneira mesma de ela tentar alcançar o “mistério”, algo que a impulsiona na narrativa. Mas isso nem sempre era eficaz, a linguagem, como se pode atestar em passagens da narrativa, nem sempre bastava4.

Entre ser fluída, condição que lhe possibilitava caçar o “mistério” – da vida, da morte (que ganha um espaço significante na obra), das coisas, de si mesma –, e estar presa nessa busca interminável, Virgínia “vivia à beira das coisas” (LISPECTOR, 1982, p.12). E, por viver à beira das coisas, pode-se considerar que não necessariamente ela as enxergava propriamente. Pensamos, dessa maneira, que se trata de um romance em que a linguagem se sobrepõe à narrativa, que é construída linearmente, já que o enfoque, ao que parece, não está no narrado, mas no processo de busca da protagonista.

Já em A maçã no escuro podemos acompanhar Martim, indivíduo em fuga após tentar assassinar sua esposa, que se percebe destituído “da linguagem dos outros”. O que o leva ao descobrimento de um novo mundo – quase como um novo nascimento5. A partir desse posicionamento, o vemos como um corpo experimentando a nova realidade. Em seu percurso, Martim se abriga em um hotel abandonado, cuja figura do “alemão”, homem sem nome, ele

4 Pode-se defender a ideia de que O lustre busca dizer o indizível, mais uma forma de Clarice trabalhar os limites da linguagem: Virgínia está buscando as coisas, o mistério, o segredo, etc.; isso é sempre algo não nomeado, não-inteligível ou simplesmente silêncio.

5 Diante disso, podemos rapidamente mencionar a reflexão de Ailton Siqueira de Souza Fonseca, que considera A maçã no escuro o romance central de Clarice Lispector porque este tende a recuperar diversas facetas de sua escritura, recaindo na incompletude do homem moderno e constituindo-se em escritura de fruição, em que o corpo de Martim é a extensão do que se escreve: “Foi um livro escrito com prazer e senso de descoberta, uma narrativa ficcional na qual o protagonista regride até a era terciária, a um estágio anterior ao surgimento da palavra. Foi um romance escrito como quem faz escavação arqueológica: paciente, profundamente, delicadamente. Escavando, escrevendo e, ao mesmo tempo, aproximando-se da ‘coisa’, entendendo-a” (2007, p. 17).

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teme. Após sair do hotel, ele continua perambulando até chegar ao sítio de Vitória, mulher que lhe dá emprego. É nesse contato que ele se reconduz a uma realidade que, em alguns aspectos, lembrava-lhe sua antiga condição, de quando vivia com sua esposa.

E o escuro – potência daquele que se esconde ou quer esconder – é uma das paisagens que podemos encontrar decorrente dessa fuga. É o encontro, defendemos, de Martim com seu Éden, ainda que por breves momentos: sozinho andando sem rumo, considera que havia se forjado como um herói, pois havia se libertado das obrigatoriedades do mundo; em contrapartida, ele é incapaz de compreender sua linguagem. Além do mais, tanto quanto O

lustre, é este um romance de silêncio, mas refletimos que sua força vem daquilo que faz

reverberar. O que, em muitos casos, acaba sendo a própria ausência.

De outro modo, na postura que adotamos neste texto, se indicamos a persistência de uma falha já no título desta dissertação, apontamos essa temática como uma procura que é direcionada, aqui, muito mais no caminho percorrido que no resultado desta ação. Daí o sentido de não procurar a limitação, mas justamente pautar a leitura pelos gestos e lacunas que, ponderamos, compõem a construção dos romances, da linguagem e das personagens.

Trata-se, então, de uma busca pela liberdade mesmo que ela seja o fracasso. Não à toa Jacques Derrida escreve que não há democracia sem literatura, e vice-versa (1995, p. 47). Assim, buscamos a literatura como possibilidade. Apenas possibilidade, não “possibilidade disso ou daquilo”; qualquer estriamento poderia levar à limitação, no sentido de que pode levar a cerceamentos. E, no entanto, a delimitação (de tema, de postura, de abordagem) é necessária como garantia de que não a percamos de vista: delimitação, então, do que se espera ver, não do seu espaço. Vemos na literatura o salvo-conduto do direito de ir e vir, de se calar, da revolta, da crítica, da morte: há, inclusive, a possibilidade de se insultar a literatura, não gostar, não ler.

Travamos, dessa forma, um encontro com o vazio, como contemplação da ausência, do não-dito, também da tentativa de dizer; da falha, da insistência e de um novo fracasso. Pautamos nossa leitura a partir de fragmentos de variadas ferramentas, desde a astronomia, música, literatura, política, teorias, várias vozes, ecos.

E, ao mesmo tempo, essa aproximação nos impele e nos arrasta através da força gravitacional dessa galáxia chamada literatura. Chegar à exaustão do pensamento e ainda assim não poder recuar, embate sem fim com a esfinge, caminho que se espirala e ora nos deixa cada vez mais longe, ora nos carrega para o mesmo lugar. Procura eterna, círculo sem fim. E perceber o que isso afeta em nossa própria escritura, que se torna também espiralada, forma de

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acompanhamento do objeto de análise. Porque em verdade ainda não tocamos o objeto, precisamos vislumbrá-lo primeiramente, durante a manhã ver o ovo e ao mesmo tempo não vê-lo (como faz a narradora de “O ovo e a galinha”).

Assim, é o movimento que nos pauta, e buscamos, através do entrelaçamento de três palavras-conceitos com as obras literárias, que podem se desfazer e levar a outros percursos, o mote desta dissertação: nomadismo, exílio e estranhamento; e, permeando essas instâncias, a iminência de um fracasso incontornável, quer seja da linguagem, do ser ou do mundo – desse modo, nos apoiamos em autores tais quais Gilles Deleuze, Félix Guattari, Maurice Blanchot, Jean-Luc Nancy, dentre outros. Isso funciona como um turbilhão, isso nos remete a forças gravitacionais, o que ocasiona mútuas relações e afetos (já que acreditamos que a literatura é, também, um campo de afetos), que podem proporcionar outras palavras-conceitos. E desse modo uma coisa leva a outra, ou então retorna à anterior, que não é, nunca, o mesmo lugar.

Mas a que se direcionam, necessariamente, estas palavras-conceitos? São temas que abrangem os caminhos pelos quais este texto se forja, são agenciamentos, engrenagens de leitura. Podem tanto funcionar independentemente como em conjunto, mas não regem, aqui, os objetos de nossa análise, a não ser no sentido de que podem servir como forma de diálogo com as obras literárias escolhidas.

Podemos encontrar na figura do nômade, por exemplo, de acordo com Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997), não necessariamente o deslocamento, mas a intensidade; não o trajeto, nem o destino, mas a fluidez da areia do deserto: espaço, inicialmente, de territorialização, força de agenciamento que faz expandir o próprio território; posteriormente de desterritorialização, e, então, de uma nova reterritorialização, que constitui o nômade como força de resistência, como quebra da hierarquia e da regência do Estado (todos esses atos podendo ocorrer no mesmo espaço). Assim, o nomadismo funciona, para os filósofos franceses, em três momentos, que completam, por assim dizer, um ciclo.

Da mesma maneira, é o espaço aberto, antítese do estriamento do Estado, “a morada” nômade. Podemos entender, portanto, que esse espaço serve como ameaça ao que é estriado, e impõe certo tipo de intensidade, que não necessariamente se traduz em movimento, como resposta à figura hierarquizante do Estado. Daí a procura, pelo nômade, desse lugar não delimitado (ou procura, por ele mesmo, de expansão dessa área), não como forma de possuir, caso do sedentário, mas de ocupar: acreditamos, a partir de Deleuze e Guattari (1997), que o nomadismo surge como o aparecimento de uma tentativa nova, e a possibilidade iminente do fracasso é potência no hostil.

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Ou, na colocação do exílio como condição moderna, exílio como existência, para Jean-Luc Nancy (1996), um desenraizamento que não prescinde o território, uma procura interminável, a impossibilidade do retorno. Tanto porque, tal qual o nômade, o exilado pode ser visto, nessa visão, como o ser destituído que tem a si como asilo6, é aquele que sempre procura, mas não encontra.

Nessa forma de exílio, deixa de existir uma maneira de reapropriação como forma dialética que faria o exilado passar do negativo ao positivo (ser, por exemplo, banido de seu solo para posteriormente retornar ou encontrar um ponto de reconexão). Igualmente, na questão da existência, o foco passa a ser o movimento (ex, de existência), e não a paralisação (instância, segundo momento da palavra).

Daí que, se não há reapropriação possível, como faz entender o exílio dialético, o autor pensa o exílio como asilo. Onde, então, o ser que existe não pode ser capturado ou desapropriado de si próprio. E essa relação de hospitalidade no exílio (assim o termo “asilo”) é perpassada pela linguagem, pelo corpo e pelo ser-com, termo que, a partir de Heidegger, reflete a relação do homem com os outros; sendo esses espaços os lugares constituintes do asilo de ser. Nesse sentido, existir acontece em desapropriação porque isso não se dá como passagem para uma outra coisa nem como essência da existência.

E perceber nisso uma aproximação, uma força constante do estranho, não necessariamente como conceito – e considerando-se que a ausência, o silêncio e a noite parecem sempre carregar isso consigo, e que são imagens constantes aqui –, mas justamente como agenciamento. Nesse sentido, propomo-nos a pensar o estranhamento para além da narrativa, recaindo naquilo que a obra provoca (recorreremos, nesta parte, a ser desenvolvida no capítulo 4, ao conceito de estranhamento, de Viktor Chklovski, em conjunto com a ideia de fractabilidade da obra, de Jean-Luc Nancy (1997), e do texto plural, de Roland Barthes (1970)).

6 A si como asilo, a língua materna como asilo, nas considerações de Jacques Derrida (com comentários de Anne Dufourmantelle) na questão da ambivalência entre hospitalidade e hostilidade. “Derrida começa por dar direito a essa experiência do "sempre" como fidelidade ao outro e a si mesmo na língua. ‘Quaisquer que sejam as formas do exílio, a língua é o que se guarda para si.’ Ele cita Hannah Arendt que, à pergunta de um jornalista, ‘Por que você permaneceu fiel à língua alemã apesar do nazismo?’, respondeu: ‘O que fazer se, afinal, não foi a língua alemã que enlouqueceu?’. E disse mais: ‘Nada pode substituir a língua materna’”. (DERRIDA; DUFOURMANTELLE, 2003, p. 76). Ou aqui, em que fica demonstrada a ambivalência acima mencionada: “o estrangeiro é, antes de tudo, estranho à língua do direito na qual está formulado o dever de hospitalidade, o direito ao asilo, seus limites, suas normas, sua polícia, etc. Ele deve pedir a hospitalidade numa língua que, por definição não é a sua, aquela imposta pelo dono da casa, o hospedeiro, o rei, o senhor, o poder, a nação, o Estado, o pai, etc. Estes lhe impõem a tradução em sua própria língua, e esta é a primeira violência [...]” (DERRIDA; DUFOURMANTELLE, 2003, p. 15).

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Por isso o excesso da tentativa, o futuro como possibilidade, não como algo certo: saudade do que está por vir, indivíduos do futuro que ainda se assombram com a memória; aí podemos ver a metáfora do vidro, que não se deixa marcar e apenas faz escorrer a água da chuva. Nisso a queda das ações da experiência, o silêncio ante a barbárie, o fracasso da humanidade, um novo apagamento, pobreza de experiência, como reflete Walter Benjamin, pensador da modernidade:

Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie (1987, p. 115).

Benjamin considera que a experiência é intimamente conectada à linguagem. Daí o autor considerar, por exemplo, que há, na modernidade, atingida pela barbárie, uma pobreza de experiência, já que esse mesmo estado (o nazismo, a guerra) acaba por dificultar o compartilhamento em forma comunicativa. Isso, aliado ao constante crescimento da técnica (na arte, por exemplo, em que o romance toma o espaço da narrativa), vem a contribuir para a queda e fracasso da linguagem, que é, para o filósofo, o meio pelo qual a experiência pode se conectar ao âmbito histórico e espiritual7.

Por isso, ter aqui muito claro que esta dissertação nasce do fracasso da modernidade como razão8 e provavelmente a isso se direciona – não necessariamente estado de angústia: qual a consciência de se recusar, de dizer não, de ser Bartleby9? Tentamos entender a potência do fracasso como estado e alerta constante; ou, de outro modo, a procura do desejo, do corpo

7 Ou, como escreve Keli Pacheco (2009), em sua tese intitulada Lima Barreto/Roberto Arlt: a comunidade em exílio, em que considera, na citação que a seguir, dada fotografia de Lima Barreto, e a relaciona com a teoria da experiência, de Walter Benjamin: “Para Benjamin, o historiador deve construir uma experiência (Erfahrung) com o passado, articulando dois tempos (presente e passado) [...]. Seria então a fotografia um elemento que também pode ser relacionado à teoria da experiência de Benjamin, pois ela é vista como a imobilidade, ou impossibilidade, aquele já acontecido, o que nunca mais se repetirá; contudo a fotografia também pode se tornar a possibilidade, a entrada, a abertura, o céu daquilo que está por vir, do devir da história” (p. 29). A tese pode ser encontrada em:

https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/92401/268854.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Ao que tange à literatura, vemos também uma ambivalência entre imobilidade e possibilidade: a literatura pode ser tanto uma forma de mobilidade que conserva o segredo quanto uma forma de acesso à possibilidade de dizer; se é a voz que vem do corpo do morto (considerar a questão da morte do autor, pensada, por exemplo, por Giorgio Agamben (2007)), permite, através de lacunas, uma atualização quase infinita de leituras.

8 Conceito que Keli Pacheco cunha a partir da leitura de Lima Barreto e Roberto Arlt, em confluência com o pensamento de Walter Benjamin.

9 Nos referimos ao personagem Bartleby, de Bartleby, o escrivão, obra de Herman Melville (2017). Bartleby é um escrivão de um escritório que, gradativamente, e de forma mais intensa, se recusa a fazer o que é ordenado. Sua recusa chega a tal ponto que ele passa a não comer, o que o leva à morte.

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desejante – ou de sua ausência. Mas isso, talvez, como um encontro impossível com Eros: a consciência da impossibilidade, da fragmentação. E ainda assim de uma possível fractalidade (que indica um acesso aberto a uma presença, segundo Jean-Luc Nancy (1997)), e desse modo a teimosia do esforço. Por isso a possibilidade do movimento, a intensidade da tentativa. Isso não como palavras que surgem ao acaso: intendemos em operacionalizar essas palavras-conceitos, tomando o devido cuidado para que uma instância (a literatura) não fique subordinada à outra (teoria), e vice-versa.

Podemos agora, rapidamente, apresentar como se estrutura e se divide esta dissertação. Na seção a seguir, “Mobilidade e estranheza”, debatemos a fortuna crítica de Clarice, principalmente a que se alinha ao tipo de leitura que aqui intendemos em fazer. Na seção dois, “Movimento e estagnação”, operacionalizamos, a partir dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, o conceito de nomadismo (nisso incluídos os três momentos de tal noção, ou seja, a territorialização, a desterritorialização e a reterritorialização), em confluência com as obras literárias escolhidas para análise.

Já na seção três, “Exílio e silêncio”, procuramos funcionalizar o conceito de existência como exílio proposto por Jean-Luc Nancy, principalmente com relação às personagens Virgínia e Martim, protagonistas de ambos os romances escolhidos. E, na seção quatro, “Linguagem e estranhamento”, procuramos elaborar uma leitura na tentativa de trazer a literatura clariceana para mais perto do debate contemporâneo. Fazemos isso tomando o devido cuidado para que as reflexões sejam caminhos de diálogos possíveis, e não afirmações totalizantes. Também, procedemos de tal maneira a partir da discussão do que seja a fractabilidade (da e na obra literária), em confluência com a reflexão da experiência de estranhamento a partir da leitura do texto literário. Finalmente, na última seção, intitulada “Indocilidade final”, tecemos nossas considerações finais e nos despedimos deste trabalho.

1.1 Sentidos de Clarice

Em nosso ver, a literatura de Lispector se volta geralmente para o interior das personagens e suas tensões, amplificando-se quer através do desenvolvimento do fluxo de consciência ou de narradores oniscientes ou mesmo através de testemunhos. Algo que acaba por criar um entre-lugar entre a imanência de tais personagens e o exterior, que muitas vezes é uma forma refletida desse espaço onde a escritura se desenvolve – detalhes estes que acabam por afastar Clarice de movimentos realistas e também da literatura regionalista, o que vem a

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colocá-la em proximidade com autores tais quais James Joyce, Virginia Woolf ou Franz Kafka, e igualmente a contrasta de sua pátria10. Esse aspecto estrangeiro é um ponto que críticos como

Antonio Candido e Sérgio Milliet ressaltam, comparando-a com autores de fora11. Ou, como escreve Lêdo Ivo em Cadernos de Literatura Brasileira: Clarice Lispector:

Não haverá, decerto, uma explicação tangível e aceitável para o mistério da linguagem e do estilo de Clarice Lispector. A estrangeiridade de sua prosa é uma das evidências mais contundentes de nossa história literária e, ainda, da história de nossa língua. Essa prosa fronteiriça, emigratória e imigratória, não nos remete a nenhum dos nossos antecessores preclaros. Não é a de José de Alencar ou a de Machado de Assis. Não é a de Euclides da Cunha ou José Lins do Rego (2004, p.48).

Assim, a estranheza e a mobilidade marcarão tanto sua vida quanto sua escritura: isso começou cedo, como podemos verificar nas biografias sobre Clarice, tanto de Nádia Gotlib (1995) ou Benjamin Moser (2009), quando a família Lispector se viu obrigada a deixar a Ucrânia em razão de pogroms (termo russo que designa destruição violenta, geralmente causada contra o povo judeu) que vinham acontecendo em território russo. Também, a junção da alcunha de estrangeira que carregava a autora, a começar por seu sotaque “não brasileiro”, juntamente com a linguagem empregada em seus textos, contribuem para a fortificação de uma aura de estranheza.

A experiência literária de Clarice se torna mais radical se consideramos, a partir de Silviano Santiago em Uma literatura nos trópicos – ensaios sobre dependência cultural, que o discurso latino-americano se situava em um entre-lugar em relação ao discurso europeu. É o colonialismo, considera Santiago12, que vem a transformar a América latina em imitação do “original” – leia-se europeu –, quando justamente a originalidade se encontrava nas origens da América Latina que foram apagadas, quando sua contribuição real vinha justamente da quebra de noções como unidade e pureza:

Pelo extermínio constante dos traços originais, pelo esquecimento da origem, o fenômeno de duplicação se estabelece como a única regra válida de civilização. É assim que vemos nascer por todos os lados essas cidades de nome europeu cuja única

10 Como escreve Carlos Mendes de Souza: “Acusam-na de alienada que trata motivos e temas estranhos à sua pátria, numa língua que lembra muito os escritores ingleses. Lustre não existe no Brasil, nem aquela cidade sitiada, que ninguém sabe onde fica” (2000, p. 22).

11 No entanto, podemos ver aspectos genuinamente brasileiros em A hora da estrela, por exemplo, desde Macabéa, seu trabalho ou mesmo em Olímpico de Jesus. Ou então em O lustre e o machismo estrutural da sociedade brasileira.

12 Vale considerar, entretanto, se, atualmente, esse embate entre o discurso latino-americano e europeu ainda é válido (já que o supracitado trabalho de Silviano Santiago foi publicado em 1978 e pode não necessariamente refletir o cenário atual). De qualquer forma, de acordo com o contexto de Lispector, pode-se trabalhar essa visão de forma mais aceitável.

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originalidade é o fato de trazerem antes do nome de origem o adjetivo ‘novo’ ou ‘nova’: New England, Nueva Espanã, Nova Friburgo, Nouvelle France etc. (2000, p. 14-15).

Desse modo, entre a cópia e o original, o escritor latino-americano, para Santiago, se vê em posição de batalha: se for falar, fala contra; se for atravessar modelos europeus vigentes, que seja para transfigurá-los: não basta apenas ler, não basta apenas ouvir; é preciso se posicionar. Nisso fica mais evidenciado o caráter político da literatura, de acordo com o teórico brasileiro:

É preciso que [o escritor latino americano] aprenda primeiro a falar a língua da metrópole para melhor combatê-la em seguida [...]. O imaginário, no espaço do neocolonialismo, não pode ser mais o da ignorância ou da ingenuidade, nutrido por uma manipulação simplista dos dados oferecidos pela experiência imediata do autor, mas se afirmaria mais e mais como uma escritura sobre outra escritura (2000, p. 20-21).

Pondera-se aí, nesses aspectos, o entre-lugar dos escritores latino-americanos, no retrospecto sócio-histórico: encontram-se em posição de se alimentar e assimilar outros textos. É o caminho que os permite superá-los; algo que os possibilita, também, a quebrar o modelo, o que justamente vem de conhecer, falar a língua da metrópole para melhor combatê-la. O que os leva, da mesma maneira, a justamente não dar continuação, e a superar o caráter de influência e da imitação. Pode-se refletir portanto que é “entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão” (SANTIAGO, 2000, p. 26) que se encontra o lugar do discurso latino americano, dado o contexto sócio-histórico que Silviano Santiago aborda e a posição que ele defende.

Também Carlo Mendes de Souza (2000), no estudo sobre Clarice Lispector, vem a convergir com Silviano Santiago na questão do lugar do escritor latino americano. O pesquisador português pondera que é uma ação recorrente em nações saídas de processos coloniais a busca pela identificação de territórios. Daí o espanto causado com a publicação de

Perto do coração selvagem, que já indica, defendemos, uma tendência de desterritorialização

deste território, afastando-se de um pretenso nacionalismo e negando o enraizamento da literatura brasileira.

Por esse ângulo (também refletido por Simone Curi (2001)), pode-se pensar que Lispector faz pulsar seu próprio idioma, tendo em Joana e suas reminiscências entre o passado e o olhar para a sua realidade a questão desterritorializante, que desemboca no interior da

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personagem, onde a linguagem parece ser feita em devir; e esse caminho, repleto de pulsações, é chamado vida.E é já a partir da primeira obra de Lispector, prossegue o autor português, que a crítica vem a aproximá-la a uma geração de autores que, nos anos de 1930, propuseram uma abordagem intimista da literatura, voltando-se à interrogação metafísica e psicológica. No entanto,

mesmo estes escritores [de 1930], como acontece com Lúcio Cardoso, que tão próximo esteve de Clarice, não deixam de impor às suas ficções um nítido enraizamento territorial, numa paisagem que revela claramente as marcas da inevitável brasilidade. [...] Se em Clarice não encontramos as fazendas nordestinas e mineiras, os rios de Pernambuco ou os mares da Bahia, é porque o caminho para a apresentação absoluta do puro sentir e da imanência é simplesmente a fazenda, é o mar simplesmente, ou seja, um modo radical de apresentar o vasto espaço da escrita (MENDES de SOUZA, 2000, p. 17).

Se aceitarmos esse ponto de vista, como pondera Carlos Mendes de Souza, podemos considerar que a literatura de Clarice, ao não apresentar paisagens reconhecíveis dentro do contexto brasileiro, não é necessariamente uma rasura destas paisagens, mas uma valorização da narração diante do narrado, da personagem ante o acontecimento, como também nos leva a entender o teórico português: “O não lugar também é a dominância desse pendor digressivo e impressivo, opondo-se aos acontecimentos localizáveis que estavam implicados nas visões realistas e neorrealistas” (2000, p. 17). Dada esta leitura, é uma possibilidade agenciarmos isso como fator de desterritorialização que a escritura de Lispector vem a provocar na própria literatura brasileira.

Esse é um posicionamento, por sinal, que suplanta certas acusações de alienação, como comenta Carlos Mendes de Souza (2000), refletindo o espaço da autora: “Clarice Lispector é a primeira mais radical afirmação de um não lugar na literatura brasileira” (p. 22, grifo do autor). Nesse sentido, ela não demonstra estar interessada em seguir os modelos da metrópole; tampouco, na maioria das vezes, parece abordar temas que poderiam ser considerados genuinamente brasileiros (mesmo que a força do que se considera brasileiro provenha da quebra, do hibridismo, da mistura, algo que consideramos que Clarice bem o faz). Sequer a crítica ela ouvia13: arriscamos a escrever que a literatura serve a ela não como representação do

mundo real, mas como forma de apresentação, que parte geralmente do íntimo, do fragmentário,

13 Silviano Santiago (2004) comenta, em “A aula inaugural de Clarice”, disponível tanto no livro O cosmopolitismo do pobre quanto no endereço http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/12/07/mais!/20.html, que Clarice ignora as considerações que o crítico literário Roberto Schwarz fez a respeito de seus textos. Também Benjamin Moser (2009) escreve que Clarice detestava o meio acadêmico por considerar que este, ao elaborar críticas sobre suas obras, se tornava incompreensível, intragável e fora da realidade de seus textos.

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do segredo ou de sua procura.

E, se seguimos esse raciocínio, sua escritura pode ser entendida também como um ato de apresentação, envolta em sua unicidade – dessa maneira que visualizamos uma das facetas de Clarice, a famosa autora ucraniana-brasileira escrevendo em português14. Aliás, esses

aspectos, pautados no âmbito literário, representam, para Simone Curi, uma “escritura que não escreve a língua de origem, mas faz vibrar uma língua original, fazendo estremecer dentro dela seu próprio idioma [...]. Se a cultura judaica se dispersa no sincretismo da cultura brasileira reterritorializa-se no livro, na escritura” (2001, p. 25).

Tal escritura pode dialogar, em nossa perspectiva, com a fala de Roland Barthes (1977) a respeito da produtividade e individualidade da escritura e seu ato de leitura (o filósofo já havia iniciado essa discussão em S/Z (1970), em que reflete sobre Sarrasine, de Honoré de Balzac). Em O prazer do texto, Barthes coloca a distinção entre texto de fruição e texto de prazer, e aponta em que sentido esses aspectos podem resultar em sabor e não necessariamente em saber, em conjunto com o ato de leitura: o texto de prazer diz respeito ao tipo de texto que satisfaz o leitor em suas necessidades, não o contrariando e nem o demovendo de seu lugar, seu conforto; já o primeiro visa a justamente não tranquilizar o leitor, tirá-lo de seu espaço e quebrar suas expectativas; é o texto que deixa o leitor vacilante, em movimento, onde a própria ideia de prazer (ou fruição) decorre desse estranhamento na produção da leitura.

Barthes se encaminha, assim, para o corpo contra a estrutura, para o prazer contra a seriedade (ainda que a ideia de prazer do texto remeta especificamente a um prazer curto, de satisfação), afirmando que “o texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura. A escritura é isto: a ciência das fruições da linguagem” (1977, p. 10). Do mesmo jeito, afirma a pluralidade da escritura e da leitura; postulando que é, também, tarefa do texto buscar seu leitor, e não apenas o contrário. Algo que vemos em consonância com Clarice: seus textos, ponderamos, tendem a quebrar o horizonte de expectativas do leitor, retirando-o de certo espaço de conforto, na produção de leituras que podem ser férteis em sentidos.

14 Uma série de detalhes poderia nos impelir a trabalhar a literatura de Clarice Lispector como uma literatura menor (ver Kafka – por uma literatura menor, de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2003)): seu lado político, o uso de uma linguagem estranha dentro de uma língua, as transgressões, o lado judaico de Clarice, etc. No entanto, por considerarmos que somente esta temática já seria o bastante para uma dissertação, escolhemos, aqui, apenas mencioná-la. A citação que prossegue, no corpo do texto, indica também este caminho.

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E nessa mobilidade pululam em sua literatura temáticas-oposições tais quais animal versus homem, homem versus mundo, luz versus escuridão, masculino versus feminino, etc. Que, refletimos, podem ser uma forma de Clarice trabalhar a linguagem. Apresentando-se nisso um embate sobre a tentativa de dizer tudo e esgotar a própria linguagem e, muitas vezes, alinhá-la ao pensamento e ao corpo. É por essa perspectiva que podemos considerar que “a literatura de Clarice implica a exclusão de qualquer tipo de hierarquização e propõe a instauração de um espaço de errância: não ser de nenhum lugar ou amplamente existir numa gravitação que é todos os lugares” (MENDES de SOUZA, 2000, p. 26).

Neste tipo de leitura dos textos clariceanos, onde podemos visualizar um espaço de errância, Lispector é vista em um ponto específico, segundo escreve Evando Nascimento: “[ela] trabalha a instituição literária a fim de poder dizer tudo sobre o humano. Dizer tudo no duplo sentido de desrecalcar uma fala e de hipoteticamente esgotar um assunto, sem nunca, neste último caso, atingi-lo de fato” (2012, p. 13, grifo do autor). Evando Nascimento reconhece bem essas oposições existentes na escritura de Lispector, se voltando, também, para a questão do humano e não-humano e humano versus animal. Direcionamentos esses que, para o autor, possibilitam variadas percepções a partir de descentralizações que retiram do homem sua figura dominante, ou que então diluem dicotomias-oposições.

A figura do animal em Clarice é também intensamente desfigurante. Antes de tudo, desfigura nossos pré-conceitos para com os animais e para com a diferença em geral. Tendemos a rebaixar tudo o que não acreditamos servir como espelho: os animais, as mulheres, os índios, os negros, e todos os grupos étnicos classificados como ‘minorias’, minorizados, portanto, ainda quando constituem efetivamente maioria em determinadas sociedades (2012, p. 16).

Aí é possível encontrar outra faceta da potência da literatura em Clarice, que Evando Nascimento caracteriza como pensante15: sua escritura é vista como capaz de descentralizar o

dominante e elevar o minorizado, fluindo de um extremo a outro; ora a presença ou ausência, ora a morte ou a vida, ora o humano ou o inumano, etc. Algo que possibilita a diluição de formas e a quebra da verdade como absoluto, que, assim, pode ampliar a possibilidade de dizer:

15 Em vídeo aula baseada em obra fruto de sua tese de doutorado – Clarice Lispector: uma literatura pensante, Evando Nascimento comenta que procurava um termo que pudesse utilizar, sem constituir uma caracterização limitante, para trabalhar suas reflexões sobre a escritura de Lispector; e que o termo era já constitutivo da autora: provém do livro infantil O mistério do coelho pensante, que narra um coelho capaz de farejar ideias. Vê-se aí uma dicotomia e a conexão entre corpo e pensamento: o nariz que fareja ideias. A vídeo aula pode ser encontrada em:

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Ao não mais lidar com o valor de verdade, sempre devedor de uma metafísica da presença humanista, a literatura pensante de Clarice abre a possibilidade de reverter as oposições que, segundo Nietzsche (1996, p. 10), estão na base da vontade de saber filosófica, oposições tais como homem/animal, racional/irracional, bem/mal, inteligível/sensível, vivo/morto, presente/ausente, orgânico/inorgânico, masculino/feminino etc. (NASCIMENTO, 2012, p. 17).

Desse modo, Evando Nascimento sugere um certo caráter ilimitado que a escritura de Lispector pode produzir a partir desses deslocamentos entre oposições, algo que faz fugir de categorias ontológicas e subjetivantes (2012, p. 17). É a inter-troca, defende o autor, que produz a fluidez, é o estar aqui e ali (ou nem ali nem aqui) que possibilita dizer isto e aquilo, e que também conduz a uma escritura de estranheza. Movimento que, além de tudo, aponta para questões de alteridade, na construção do humano:

A assinatura Clarice Lispector espraia sua fauna nos mais diversos textos, constituindo uma verdadeira zoo-grafia, termo que em grego designava a “pintura do vivo”. Nisso, o tornar-se-homem passa necessariamente por um tornar-se-mulher, tornar-se-animal, tornar-se-cão, tornar-se-galinha, tornar-se-galo, tornar-se-búfalo, tornar-se-vaca etc. (NASCIMENTO, 2012, p. 20, grifo do autor).

Abordar essa mobilidade é algo que vem ocorrendo entre pesquisadores de Clarice. Não somente Evando Nascimento, então, parte neste caminho, algo que se traduz em grande auxílio para o desenvolvimento deste texto, já que também seguimos este rumo. Outro exemplo desse campo de leitura é Simone Curi (2001), autora de A escritura nômade em Clarice Lispector, obra originada a partir de sua dissertação de mestrado. Curi reflete sobre a escritura de Lispector, pautando-a como nômade a partir da linguagem, do texto e das personagens. A autora focaliza o romance A maçã no escuro em confluência com o pensamento dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, produzindo assim um mapeamento de sua literatura que converge, para a autora, a uma mobilidade constante. A respeito do movimento e do nomadismo, que aqui nos interessa em larga escala, Curi escreve:

A relação nomádica que cada um dos textos de Clarice mantém com o todo da própria escritura e, provavelmente, a mesma que esta guarda a respeito de certa produção intelectual, onde os limites da literatura transbordam, por sua vez, para outros campos, de outras artes, da filosofia, da psicanálise, da antropologia. Sistema de transição num conjunto, numa multiplicidade de peças e fragmentos, simultaneamente teóricos e intuitivos, refletindo a linguagem, a escritura, a existência, a sociedade (2001, p. 17).

Assim, somos levados a entender que a escritura de Clarice produz, segundo S. Curi, certo tipo de escritura que se desloca, ora diluindo as formas, ora se fixando, pelo olhar, às coisas. Que, por conseguinte, engendra um modo de captar, de perceber, de ver – nesse caso seria oportuno apontar, como aproximação à postura que Curi adota, O ovo e a galinha, em que

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a percepção se enquadra no ovo provocando um esgotamento através da multiplicação de sentidos:

Olhá-lo [o ovo] é mergulhar na matéria primeira e compacta do eu: massa informe, do projeto também remoto. O olhar instaura um processo de conhecimento e de recriação, no reconhecimento do outro que não deixa de ser o do mesmo: o uno e o seriado (CURI, 2001, p. 67).

Em seu estudo sobre Clarice Lispector, S. Curi defende que sua literatura é constituída por uma espécie de método fragmentado. Uma escritura, além do mais, de abertura, que aponta para o real justamente para se aproximar do indizível, do que não pode ser simbolizado, para testar o limite da nomeação na tentativa de alcançar o que se encontra além da linguagem16 (CURI, p. 27). Posicionamento, por sinal, que consideramos válido no estudo da autora. E

O instante sublime de identificação com o objeto significaria a sua imobilidade, imagem que se desenha no turbilhão. Perfil desconhecido e fugaz, como uma miragem, na tormenta de areia. Identidade que constitui um terceiro termo na série linear: enorme objeto não diferenciado. Tudo para um momento, tudo se cristaliza (depois tudo recomeçará) (CURI, 2001. p. 27-28).

Aliás, em leitura convergente com o trabalho de Simone Curi, Gabriela Gurgel sugere, em análise sobre A maçã no escuro, que é também a procura, por Martim, de uma linguagem possível, que engendra o movimento na referida obra. Isso não como busca de um território, mas como procura de um espaço onde seria possível se (re) conhecer:

Nascia em Martim uma terceira pessoa – não era ele no princípio, não eram os outros nele mesmo. [...] Como um estrangeiro na sua língua – era assim que Martim se sentia na construção de alguma coisa inteiramente assustadora pela força do desconhecido e pela sensação de familiaridade. Afinal, era sua a produção, prolongamento explícito de seu braço no papel. ‘Martim se resolveu doente, com dor de estômago: ele não cabia’ (p. 172). Não caber, não suportar a dor que acompanha o desejo, ser familiar e, ao mesmo tempo, sobrenatural, ser herói e humano, ser parte de um real e ser também avesso, fazia dele um homem à beira de, num estado propício para a arte, para o amor e para a morte. (GURGEL, 2001, p. 21, grifo do autor).

Para Simone Curi, além disso, a relação de movimento é vista, dentro da escritura de Lispector, na junção de três instâncias, a considerar: o texto, a linguagem e as personagens. Ora por obras como Água viva, texto-rizoma, construção em fragmentos que pode se confundir com romance, poesia, diário, etc.; ora pela linguagem mesma de O ovo e a galinha, dissolvida,

16 Algo que podemos verificar no contato da narradora com o ovo, em O ovo e a galinha, por exemplo (S. Curi não aponta diretamente para este conto, mas acreditamos ser uma aproximação possível).

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estranha, não fixada, língua que busca uma linguagem para comunicar; ora por personagens ambulantes como Martim de A maçã no escuro, criminoso amoral; ou por personagens intensivos, caso de Virgínia de O lustre, que aqui e ali parece encontrar certos tipos de viagens sem deslocamento territorial (viagens em intensidade), como defende Curi analisando a escritura de Clarice:

Movimento no texto, na linguagem, nas personagens. Três instâncias que indicam a repetição nômade. Mas se, conforme vimos até aqui, o deslocamento não é o que dá sentido ao nomadismo, sendo o nômade puro movimento, extático. É chegado nesse ponto que a viagem se realiza em intensidade, aquela dos personagens ‘ao si’, aquela que Clarice realiza na língua, na procura da própria nomeação. (2001, p. 131, grifo do autor).

Aliás, é o texto-rizoma de Água viva que nos permite pensar a referida obra como aproximação ao conceito de “fruto estranho”17, de Florencia Garramuño (2014): a autora pensa

a inespecificidade da arte contemporânea, nisso incluída a literatura, como característica unificadora da arte. Na visão de Garramuño, pululam mais e mais obras que fogem das categorizações, dos modelos, das formas, e justamente se utilizam do hibridismo como construção18:

Frutos estranhos e inesperados, difíceis de ser categorizados e definidos, que, nas suas apostas por meios e formas diversas, misturas e combinações inesperadas, saltos e fragmentos soltos, marcas e desenquadramentos de origem, de gêneros – em todos os sentidos do termo – e disciplinas, parecem compartilhar um mesmo desconforto em face de qualquer definição específica ou categoria de pertencimento em que instalar-se (GARRAMUÑO, 2014, p. 6).

Garramuño defende, aliás, que tem ocorrido um enfraquecimento de aspectos que seriam individualizantes no gênero romance. Daí o reforço do inespecífico como aposta contemporânea, no entendimento da autora; por exemplo, em Eles eram muitos cavalos, de

17 Não queremos, com isso, afirmar que Água viva se insira como uma obra contemporânea, apenas que possui rastros que, pensamos, dialogam com a proposição de Garramuño. Aliás, “fruto estranho” se trata mais de um lugar-comum contemporâneo que necessariamente um conceito. Garramuño pensa essa caracterização a partir da instalação “Fruto estranho”, do artista brasileiro Nuno Ramos, exposta no MAM do Rio de Janeiro em 2010. Imagens da exposição podem ser conferidas no endereço: https://www.artecapital.net/exposicao-290-nuno-ramos-fruto-estranho.

18 Como um dos exemplos literários, Florencia Garramuño aponta o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz

Ruffato, que apresenta múltiplas formas de composição (por exemplo, há uma mistura entre verso e prosa, e a obra é composta por 70 pequenos textos que apresentam um dia vivido por pessoas na cidade de São Paulo) e o que Florencia vem a chamar de uma “aposta no inespecífico”, tanto no que se refere à forma quanto aos personagens, o que acaba por desfigurar o gênero romance: “O enfraquecimento da forma aglutinante e individualizante do romance produz em obras como as de Luiz Ruffato uma escrita que se distancia constantemente de qualquer tipo de particularização ou especificação, criando sempre pontes e laços de conexão inesperados entre personagens e comunidades separados, heterogêneos e muito diferentes entre si. É assim que Eles eram muitos cavalos é mais o romance – coletivo – de uma cidade do que a história de um indivíduo” (2014, p.8).

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Luiz Ruffato (vide nota de rodapé abaixo), não há um personagem central e mesmo as múltiplas estórias não são se entrelaçam ao longo da obra. Isso, aliado a certo hibridismo que parece transformar o espaço do livro em instalação19, é posto como algo que vem a constituir uma das paisagens do espaço contemporâneo, ao menos ao que se refere à literatura, de acordo com F. Garraumuño:

Assim como nas instalações de arte contemporânea o desenho de um espaço contíguo com o real cava dentro de si um lugar para o espectador, onde ele é confrontado com seu próprio descentramento; a indistinção entre realidade e ficção lança a especificidade da literatura para uma zona em que as elucubrações sobre ela valem mais pelo que dizem com respeito a questões existenciais ou conflitos sociais que habitam esse outro espaço, com o qual se elabora essa contiguidade, do que por aquilo que elas podem dizer a respeito do texto, do texto enquanto tal, em sua especificidade. É claro que realidade e ficção não são indistintas; veja-se bem: são os textos que, ao se instalarem na tensão de uma indefinição entre realidade e ficção, perfazem uma sorte de intercâmbio entre as potências de uma e outra ordem, fazendo com que o texto apareça como a sombra de uma realidade que não consegue iluminar-se por si mesma (p. 9).

De outra maneira, ainda que Água viva não comporte esse hibridismo nas formas em que é composto, arriscamo-nos a ponderar que se trata de uma escritura que se aproxima da quebra, ou do esgarçamento, do gênero romance. Na referida obra, a narrativa é centralizada na personagem-narrador, que escreve suas impressões e pensamentos; algo que configura a estória, então, num monólogo, que é construído a partir do questionamento do “instante-já”, de certo tipo de reflexão sobre o presente; que é visto, na narrativa, desta forma: “o presente é o instante em que a roda do automóvel toca minimamente o chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado” (LISPECTOR, 1998, p. 16)). Daí a nossa sugestão de que seria possível uma aproximação entre Água viva e o debate contemporâneo.

É também esta obra de Lispector que Silviano Santiago utiliza para sugerir que existe, de maneira geral, uma outra concepção de tempo pretendida dentro dos escritos da autora: o tempo atomizado, que possibilita à narrativa se desenvolver a partir de momentos específicos, inseridos num cotidiano em que pouco acontece; característica, consequentemente, que a distancia da materialização do tempo de acordo com os romances realistas:

A ambição de Clarice Lispector é outra, a qualidade da sua obra é outra. Quis ela inaugurar uma outra concepção de tempo para o romance (vale dizer de história, ou seja, de transformação e evolução do personagem): a do tempo atomizado e,

19 A partir da fertilização de fragmentos que vêm a ocupar esse lugar, no sentido de que dada linearidade, antes preconizada no romance, vem sendo quebrada.

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concomitantemente, espacializado. Não há dúvida que o ‘momento’, ‘os raros momentos essenciais’ [...] estão dramatizados na ficção de Clarice. Podem, por isso, ser compreendidos e interpretados como partículas aparentemente privilegiadas e imóveis do presente (SANTIAGO, 1997, s/p).

Clarice valoriza, para Santiago, a possibilidade de dramatização de poucos específicos momentos. Justamente os instantes que permitem a construção de texto-narrativas que não gravitam em torno de uma dita busca pela verdade, mas se direcionam para fragmentos, que passam a ter maior importância dentro de seus contextos. À parte o posicionamento de Silviano Santiago, consideramos que, ainda que a concepção de tempo possa ser vista como atomizada, diferenciando-se do realismo, podem existir romances em que esse procedimento se torna tão espaçado que, quando os “momentos essenciais” ocorrem, servem para dar vida a uma narrativa que vinha apresentando um desgaste de linguagem (caso, por exemplo, de O lustre, em que a monotonia da vida de Virgínia parece ser incorporada, em alguns momentos, diretamente à linguagem literária).

Por outro lado, Claudia Nina (2003) vê em O lustre (1946), A cidade sitiada20 (1949), e A maçã no escuro (1961) a conjunção de uma tríade do exílio. A autora defende que esses três

romances têm características em comum – silêncio, estranheza, isolamento, nostalgia, etc. E que, mesmo que tenham sido escritos em épocas diferentes, podem ser colocados no mesmo grupo – Claudia Nina altera, desse modo, o modelo de análise proposto por Claire Varin, pesquisadora canadense, que considerava como narrativas do exílio apenas os textos de Clarice escritos no exterior (NINA, 2003, p. 64)21. Outro ponto que Claudia Nina sustenta é o de que A paixão segundo G.H. não deve ser emparelhado com A cidade sitiada somente porque ambos

foram escritos na mesma década.

20 Em A cidade sitiada é possível ponderar que é o olhar de Lucrécia Neves – personagem que constantemente se sente alheia ao mundo – que molda a realidade, como uma câmera procurando constantemente o foco para captar as nuances de sombra e luz. A questão do olhar se aprofunda de tal maneira que se pode afirmar que, muitas vezes, Lucrécia é percebida, ou pega, tentando se transformar no que via (a construção da linguagem é aqui estranha, mas não é possível usar “Lucrécia se percebe”: quem a vasculha é o narrador, ela não possui mais que a superfície. Tanto assim que Claudia Nina (2003) apresenta a ideia de ela é uma personagem anti-epifania. Ademais, se colocadas nesses termos, essa é grande diferença entre Virgínia e Lucrécia: pensamos que, embora Virgínia padeça de uma compreensão limitada sobre o mundo, ela é capaz de alcançar, mesmo que por instantes, percepções mais aguçadas sobre as coisas e o mundo).Tal narrativa também se constrói de forma linear: Lucrécia vive inicialmente com sua mãe em São Geraldo, cidade que se moderniza, e então parte para uma metrópole quando se casa. A linguagem, no entanto, é mais contida, sem os excessos de O lustre, e serve de instrumento de captura e descrição da cidade sendo sitiada pela modernidade.

21 Tais romances foram inteira ou parcialmente escritos no exterior enquanto Clarice acompanhava seu marido, Maury Gurgel, em missões diplomáticas. A cidade sitiada, por exemplo, foi escrito em Berna, na Suíça.

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À parte isso, consideramos que os romances apresentam as similaridades temáticas que Claudia Nina aponta. Pensamos, no entanto, que a autora, ao aproximar esses romances, aponta para direções que aqui vemos com distância: embora sem a intenção de conectar as narrativas a certo classicismo, Nina escolhe, a partir de Gilles Deleuze e Félix Guattari, o conceito de árvore como motor de análise. Ou seja, considera, em sua leitura, as questões de enraizamento, estruturas de poder e, principalmente, modelos representativos e miméticos do mundo real. Assim, desconsidera o livro-rizoma, aberto, com várias formas, direções, modelo não hierarquizado:

Encontrei nesses mundos exilados uma conexão direta com a imagem deleuziana de ‘árvore’, que, no meu entender, ilustra com perfeição o modelo que todos esses romances apresentam. Não que eu pretenda classificá-los como romances conceitualmente clássicos, mas o mundo que eles reproduzem é, de fato, um mundo ‘representado’, dominado pela ‘árvore’, governado por uma lógica binária, com personagens enraizados na ambiência exílica (NINA, 2003, p. 117).

Em nossa percepção, mesmo essas narrativas, que, para Claudia Nina, antecedem uma fase nômade na escritura de Lispector, não têm função de representação do real, mas de apresentação de um mundo tal. Igualmente, pensamos que as personagens e a linguagem provocam quebras e diluições na escritura (como acredita Simone Curi (2001)), mesmo que construída com narrativas lineares. Desse modo, não vemos, tanto nas referidas obras quanto na conceituação de exílio, um caráter de busca e recuperação do que foi perdido (desenraizamento e procura de reconexão22), mas de estados constantes de procura de algo que

não necessariamente se encontra no passado, de algo que não necessariamente pode ser encontrado.

Por outro lado, dado o crescimento de pesquisas a respeito de Clarice Lispector, podemos trazer à discussão o trabalho de Lúcia Peixoto Cherem (2013), que destaca a importância da argelina-francesa Hélène Cixous e da canadense Claire Varin para a recepção da literatura clariceana no exterior (a autora direciona sua pesquisa principalmente na investigação do trabalho dessas autoras). Em especial, Cherem destaca a relevância de leituras feministas, ou em prol da busca de uma escrita feminina, caso de Hélène Cixous, ao que se refere à aparição de obras de Clarice em outros países, embora tenha com ressalva a restrição

22 Embora Claudia Nina não desconsidere a questão do exílio como estado de estranheza que não depende necessariamente de uma perda territorial, demonstra aproximar-se mais deste espaço, principalmente quando aborda casos de exílio e literatura, como por exemplo em Vladmir Nabokov, Albert Camus e James Joyce.

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dos estudos de textos de Lispector a um específico campo do saber. L. Cherem escreve que Cixous via em Clarice um fazer filosófico poético:

A densidade com que se deparou nos textos de Clarice só seria comparada à dos textos de Kafka. Mas a grande diferença entre eles é que Kafka trabalha com alegorias, ao passo que Clarice trabalha diretamente o real, assim como fazem os filósofos. Porém, com uma liberdade muito maior pelo fato de ser poeta (CHEREM, 2013, p. 29).

Hélène Cixous, de fato, não esconde seu fascínio face ao que ela considera ser não somente uma mulher (Clarice), mas também uma escritura incrível. Afirmando que Kafka seria irrecuperável não fosse a existência de Lispector. E que, por ser “poeta”, sua filosofia pode avançar onde os filósofos perdem força:

Si Kafka fuera mujer. Si Rilke fuera una brasileña judía nacida en Ucrania. Si Rimbaud hubiera sido madre y hubiera llegado a cincuentona. Si Heidegger hubiera podido dejar de ser alemán, si hubiera escrito la Novela de la Tierra. ¿Por qué cito todos estos nombres? Para intentar perfilar el terreno. Por ahí escribe Clarice Lispector. Ahí donde respiran las obras más exigentes, ella avanza. Pero, luego, donde el filósofo pierde aliento, ella continua, va aún más lejos, más lejos que cualquier clase de saber (CIXOUS, 1995, p.157).

Cixous defende, dessa maneira, a existência de uma força na escritura de Lispector que seria capaz de avançar onde outros recuariam. Justamente o que apontaria, em outras palavras, a sua potência de desterritorialização. E essa força, para ela, provém geralmente do comum, como apresentação da vida que desponta do cotidiano, que se transforma em vendaval, em incêndio (lembremos que Silviano Santiago vem a também defender essa direção em “A aula inaugural de Clarice”). Ou, como alternativa, isso viria da linguagem que tenta tocar tudo, tudo que pode ter um nome; assim, para Cixous, definida a força igualitária desta escritura.

Lúcia Cherem destaca também a postura de Claire Varin na abordagem dos textos de Lispector. Lúcia escreve que a pesquisadora canadense se afasta de uma suposta crítica racionalista, procurando na literatura clariceana o estudo de símbolos e de uma leitura telepática, por assim dizer. Algo que mesmo Clarice sugeria ao comentar o seu desapreço com relação à crítica: “Eu não entendo o que eles falam, mas lamento esse falso vanguardismo, cheio de modismos, frio, calculista, pouco humano. A melhor crítica é aquela que entra em contato com a obra do autor quase telepaticamente” (LISPECTOR apud CHEREM, 2013, p. 36). Ou, nas próprias palavras de Varin:

Parece-me então impensável falar cerebralmente dos textos de Clarice quando ela deseja antes de tudo a receptividade. A reciprocidade por ela postulada entre o leitor e o autor obriga-nos a abandonar o raciocínio que é, segundo ela (ou a Angela de Um sopro de vida), um anestésico; a privilegiar a intuição e adotar até um método de

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conhecimento telepático de sua obra. Para lê-la, temos que unir-nos a ela. Comunhão de sensações. (1989, p. 56).

Por outro lado, é também a constatação da estranheza da escritura de Clarice que leva C. Varin a modificar o seu tratamento na construção da leitura de seus textos, prossegue L. Cherem. Claire procura analisar o que ela considera ser uma escrita que vem do corpo para o papel, uma escritura de fôlego e intuição (como a canadense vê obras como Perto do coração

selvagem e Água viva, por exemplo). E é precisamente por isso que a pesquisadora vem a ser

criticada: por supostamente se afastar do meio acadêmico em seus estudos sobre Clarice.

Varin vem a valorizar, igualmente, a biografia de Lispector. Ela destaca, como fator traumático, a morte da mãe da escritora ucraniana-brasileira (existia a ideia de que Clarice havia sido concebida como possibilidade de cura da mãe doente; e isso é algo que vem a direcionar o trabalho de Varin). Escreve Lúcia Cherem: “a mãe doente, paralisada e depois morta, seria, segundo Claire, a verdadeira pátria de Clarice. Uma espécie de pátria inatingível conduzindo a um permanente estado de exílio, traduzido em toda a sua obra” (201, p. 52). Essa postura da pesquisadora canadense é algo que, aliás, inflaciona críticas no meio acadêmico.

Nesse sentido, reconhecemos a tentação que a leitura da literatura clariceana projeta, na valorização da intuição, do afeto e da busca do núcleo selvagem da vida, como algumas leituras aqui sugerem. Embora estejamos de igual acordo que seja pouco aconselhável abandonar, de todo, a rigorosidade do método enquanto pesquisa acadêmica. Paira, ademais, a dúvida de se a academia é capaz de acompanhar o afeto e a vida pulsante de dadas escrituras sem correr o risco de contaminá-las, e vice-versa. Dúvida esta que, receamos, não sejamos capazes de solucionar aqui.

Intentamos, por fim, com a dada abordagem da fortuna crítica de Clarice, em direcionar a discussão para o campo de leitura que nos servirá de apoio, no sentido de que buscamos um esclarecimento da imagem de falha, paisagem que aqui nos é cara. Deixamos de lado outras leituras que seriam consideradas mais tradicionais (como exemplo de autores, podemos citar Antonio Candido e Álvaro Lins – este último aproximando Clarice a James Joyce e Virgínia Woolf através da crítica que preconizava a influência). Escolhemos aqui apresentar críticos e pesquisadores de Clarice que, de uma maneira ou de outra, apontam para aberturas no texto literário, e não fechamentos.

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E, a partir de agora, é para o permanente estado de movência, na gravitação entre exílio, estranhamento e nomadismo, que nos dirigimos, perscrutando esses agenciamentos com mais detalhamento.

Referências

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