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Só os cães correm assim, com o ar de saber para onde vão

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Academic year: 2021

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COM O AR DE SABER PARA ONDE VÃO

Fernando Ribeiro Uma fronteira è sempre uma dimensão de fiuências. Cotn-fiiiêti-cias. Ora aparta ora reúne. Um fluir no tempo e no espaço. Uma dinâmica de sobrevivências.

Manchmal trãumt mir von einer Liebe ohne Hoffnung schõne Aussichtslosigkeit fliessend trennend verbindend wie diese Grenze über-leben

(Algumas vezes sonho com um amor sem esperança desespero belo fluindo

apartando reunindo como esta fronteira sobre viver)

Elb/Alb in Deutsche Roulette excerto do poema, 1996 de B. Kohier (tradução nossa) Quer seja espaço natural ou artificial, esta dimensão dinâmica de aproximação e afastamento, prazer e dor instala-se no acto exacto e exclusivo de sobrevivência. Porque a vida corre e com ela o espaço de sobrevivência também. E o homem não resiste à condição desse espaço de lucidez, por definição a fronteira. Acontece em si o momen-to finimomen-to de existência, mas não deixa igualmente de desesperar, por não saber se o infinito existe e é passível de ser desejado. A sua condi-ção de fronteira confunde-se com o desejo de existir e intervir e

simul-Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n." 11, Lisboa, Edições Colibri, 1998, pp. 183-196

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taneamente com a postura abúlica de não tomar qualquer partido, só porque o real lhe aparece ininteligível.

Como espaço de fronteira que é, o homem personifica a contra-dição entre o sentido e o acaso. Por mais que mergulhe e absorva o real, o desespero, por não encontrar qualquer sentido, toma sempre a dianteira. A lucidez sobrevém e o ódio contra o mundo instala-se. A aparente existência de qualquer esperança decorre da dúvida perma-nente, da interrogação constante que acomete contra o real. Porém, a inexistência da esperança apenas parece e a postura de dúvida e inter-rogação persistentes somente ilustram o reverso da medalha; se o sen-tido não se impõe, um sensen-tido nascerá.

"Dir-se-iam ruas povoadas de cães. Só os cães é que correm assim, com o ar de saber para onde vão. Na ponte de S.Michel já não chovia. Na R. des Ecoles o céu desanuviou-se e o sol apareceu. Mas por toda a parte, as mesmas pessoas iguais umas às outras. Era como se fossem uma ou duas pessoas multiplicadas indefinidamente."' Ser espaço desta dimensão de fronteira revela homem empenhado em sobre-viver enquanto espaço de com-fluências de vectores opostos, mas sempre existenciais: o desespero e o ódio decorrentes da lucidez, a esperança decorrente da interrogação. O homem-fronteira acabará sendo sempre momento dinâmico em diálogo consigo próprio, deci-sivo para uma relação nova com o real. De sentido mais individuali-zadamente, humanamente imprevisível.

Sucede ser o hotnem-fronteira espaço único de entre os inúmeros espaços que a cidade disponibiliza. E um ser urbano, funcionário, sem ilusões nem esperanças. Sem, aliás, qualquer objectivo na vida. (o que também só poderia ser próprio dos cães). Os traços do seu rosto não poderão por isso traduzir vivacidade vigor ou alegria. E quanto a este particular, o homem-fronteira partilha com os demais congêneres, a condição de objecto de uma sociedade de massas, abúlica, impessoal, desmotivadora. Contudo, a dimensão de fronteira provém soberana-mente da sua postura de rejeição perante esta sociedade de que se mantém funcionário. Assenta precisamente no individualismo extremo bem como no modo auto-centrado com que matiza a sua existência. Individualismo que se precipita até às suas últimas consequêncis: celi-batário inveterado, empenhado em não promover quer a família pre-sente quer a do passado. O homem-fronteira define-se pela assumpção

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da solidão enquanto expressão da rejeição da memória. Vive o pre-sente no prepre-sente, sem interacções com o passado ou o futuro.2

Isolado e solitário, auto-centrado e sem laços ou compromissos sociais, terá forçosamente de ser um tímido, um (in)diferente. A cida-de, a sociedacida-de, apesar de espaço fisico e socialmente indispensável nada lhe diz, porque demasiadamente organizado, i.e. inumanamente organizado, a ponto de só permitir a existência em monotonia. Dir--Ihe-á apenas algo, como referente de distanciamento, não de aproxi-mação.

Quanto mais organizada, pensada, estruturada, massificada, a cidade e a sociedade se lhe apresentarem, mais o homem fronteira acentuará a sua necessidade diferencial: a sobrevivência pelo caos. Para cúmulo deste distanciamento, o homem-fronteira acabará por desempenhar um papel literalmente marginal na sociedade onde vive. Capital, mas sempre marginal. Ora dentro do colectivo, ora fundeado na sua própria condição de singular. Ora já tendo trabalhado e vivendo agora de rendimentos deixados por outrém, ora, continuando a traba-lhar, desempenhando funções que lhe permitem perspectivar, em equidistância, o seu presente e o dos seus congêneres.

Ao comungar dos dois espaços, singular e plural, o que em nada abona a sua definição vulgar - o compromisso exclusivo com qual-quer deles - o homem fronteira faz convergir para si próprio a mais valia diferencial da sua condição de lucidez. Usufruindo de ampla disponibilidade reflexiva, por via profissional, o homem-fronteira personifica a observação, mantendo no seio do colectivo o único traço que lhe confere a coragem bastante para se manter diferente: a liber-dade. Rejeitar o ordenamento, a organização significa afinal repudiar a classificação, a nomeação, a ciêticia-tradição, cujo saber produzido morre no grau finito. O homem fronteira quer pensar antes de organi-zar e classificar, pois sabe quão distante se encontra da felicidade adveniente da alegria do saber.

Qualquer homem-fronteira, qualquer solitário deseja tão somente existir. E, por quanto mais tempo melhor.

2 Ibidem, p. 19: "Não pensemos em nada. Não julguemos coisa nenhuma. Quando não, viria a enlouquecer. (...) E foi assim que consegui viver durante anos limitado ao próprio instante (...) um instante indefinido."

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Jonathan Noel era homem de mais de cinqüenta e "havia uns bons vinte anos que levava uma vida igual e sem incidentes e nunca lhe passaria pela cabeça que ainda lhe pudesse vir a acontecer qualquer coisa de importante."''

Tratar-se-á de uma defesa ou de uma acusação?

Nascido nos anos cinqüenta, Jonathan Noel o herói de A Pomba - narrativa publicada em 1987, da autoria do escritor bávaro, Patrick Süsskind, nascido em 1949 - é definido como um homem abúlico para quem o real se manifesta opaco, ininteligível: "(...) num passado remoto, na obscura pré-história dos seus anos de infância e de juven-tude (...) a mãe partira, disse o pai, levaram-na primeiro para o Vélo-drome d'Hiver e depois para o campo de concentração de Drancy, daí segue-se para o Leste de onde ninguém toma."'*

Um real que o compele "(...) unicamente a habituar-se às vicis-situdes da vida em rebanho (...)", como alistar-se e ver-se embarcado para a Indochina no princípio dos anos cinqüenta. Ou como casar-se, apôs os quatro anos do serviço militar: "O tio exigiu então que Jona-thati casasse de imediato com uma rapariga de uma aldeia vizinha. "Ou como ter de aceitar a infidelidade: "(...) Marie deu à luz um rapaz e nesse mesmo Outono, fugiu com um negociante de frutas (...)."''

A recorrência do sentido ininteligível do real torna o homem solitário, despertando—lhe o apetite por uma "(..) existência monótona, calma e sem incidentes (...)"^ - nem os outros merecem confiança nem a paz ou a descrição, a rejeição da notoriedade pública e de qualquer sentido serão conseguidas sem a erecção de um espaço coerentemente delimitado e defendido obsessivamente. De um espaço-fronteira.

A cidade afigura-se a qualquer homem solitário como o lugar paradigmático desse espaço-fronteira; o lugar de realização da aspira-ção maior: existência monótona, calma e sem incidentes. A cidade concede a indiferenciação total, um alojamento de segunda, numa rua como qualquer, com tudo o que bastasse para se poder manter pela vida fora, para poder cumprir a existência em sobrevivência: "(...) partiu para Paris. (...) e encontrou alojamento, um chamado chambre

'^ Patrick Süsskind, '/\ Pomba', (trad.port.), Lisboa: Presença, 1987, p.7 ^ Ibid., pp. 7-8

5 Ibid., p. 9 6 Ibid., idem.

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de bonne (...) na R. de Ia Planche (...) o n.° 24, o quarto de Jonathan. Media três metros e quarenta de comprimento por dois metros e vinte de largura e dois e meio de altura e dispunha (...) de uma cama, uma mesa, uma cadeira, uma lâmpada, um cabide e nada mais."''

Este espaço querido apresenta-se-nos tão essencial à definição do herói como homem-fronteira quanto vital à sobrevivência deste por se tratar do seu "(...) refúgio seguro (...) que o abrigasse das desagra-dáveis surpresas da vida e de onde ninguém o pudesse expulsar." Por ser "(...) a sua ilha segura num mundo inseguro." 7 Só a cidade lhe poderia arranjar trabalho sem a inconveniência de horários arbitrários e subalternizantes da identidade individual: "Arranjou trabalho como guarda de um banco (...). Às oito e quinze em ponto Jonathan estava à porta do banco, exactamente cinco minutos antes de o director adjun-to, o senhor Villmann (...). O serviço era igual desde há trinta anos e resumia-se a ficar de pé diante da porta ou, quando muito passear tranqüilamente para cá e para lá no degrau de baixo, todas as manhãs das nove às treze e todas as tardes das catorze e trinta às dezassete e trínta."8

A cidade "(...) assegurava—lhe o anonimato (...) - Jonathan não tinha amigos."^ e podia até darse ao luxo de organizar o seu tempo -e Jonathan por s-eu lado guardava-lh-e as tradiçõ-es. A lib-erdad-e - "A essência da liberdade humana consistia na posse de uma retrete comum (...)".'° A honestidade e a respeitabilidade - "(...) fora sempre um homem honesto e respeitável, sem exigências, quase ascético e sério e infalivelmente pontual e obediente, digno de confiança, decente (...) e que ganhara cada tostão que possuía e sempre pagara tudo em dinheiro, a conta da electricidade, a renda de casa, (...) e que nunca se endividara, (...) nem sequer adoecera e se aproveitara dos fundos da segurança social (...)."" O asseio - "Já se encontrava de novo na R. de Sèvres quando se lembrou que deixara ficar a embala-gem de leite vazia em cima do banco do jardim, e o facto incomodava--0, pois detestava que as outras pessoas deixassem lixo nos bancos ou

^ Ibid., pp. 10, 13 ^ Ibid., pp. 36-7 9 Ibid., p. 30 'Olbid., p. 51 " Ibid., p. 53

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o atirassem para o chão em vez de o deitarem no lugar apropriado, ou seja nos recipientes de lixo (...)".^^ A compostura - "O rasgão media cerca de doze centímetros de comprimento. Começava na extremidade inferior da algibeira esquerda das calças (...) seguia pela coxa abaixo (...) A fazenda não apresentava uma racha discreta (...) mas um enorme buraco. (...) Na verdade, era como se estivesse ferido. Era como se, não só as calças se lhe tivessem rasgado, mas como se na sua própria carne se tivesse aberto uma ferida (...) de onde jorrasse o seu sangue, a sua vida (...)."'-''

Jonathan era guarda, guardava em si as tradições da sociedade, que lhe retribuía, respeitando-lhe o anonimato simbólico. "E todavia assemelhavam-se, a esfíngie e o guarda, achava Jonathan, pois o poder de ambos não era instrumental, mas simbólico (...) permitira a Jonathan Noel conservar-se de pé nos degraus de mármore à porta do banco e exercer a sua vigilância sem medo, sem duvidar de si próprio (...) e sem expressão enfastiada no rosto durante trinta anos (...)"."*

Contudo, defesa assim arquitectada traz como reverso respectivo a acusação implícita. Espaço-fronteira tão exíguo suscitaria, acto--contínuo, natural desequilíbrio. A ininteligibilidade do real não deixa de denunciar a razão do périplo em direcção à cidade: o extermínio do espaço próprio. Não se trata de um périplo qualquer, antes de uma fuga, de uma evasão. O espaço individual, posteriormente conquistado apenas poderia ser refúgio, ilha ou fronteira de sobrevivência.

Bastaria, no entanto, que este reduto se tomasse alvo de ameaça para que a motivação primordial se re-actualizasse e se instalasse a crise existencial profunda sem mais espaço para onde mmar; o homem-fronteira ganha consciência antes de mais do ódio ao mundo. E simultaneamente da fragilidade, da instabilidade da sua pretensão. Ou melhor da exiguidade do seu espaço-fronteira.

A consciência da lucidez activa-se-lhe à medida que as condi-cionantes dos hábitos adquiridos o acuam, obrigando-o a pôr-se em causa. A pôr-se em questão. Jonathan não resiste a ser objecto do que quer que seja, indigna-se quando alguém o observa: "Por que diabo está a reparar de novo em mim? Porque estarei de novo a ser exami-nado? Porque é que se não decide a respeitar a minha integridade?

'2 Ibid., p. 56 '•Mbid.,p. 58 '4 Ibid., p. 40

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Porque é que as pessoas são tão importunas?"'-^ - que ignóbil humi-lhação ser-se observado por outrém! A farda com defeito transforma-ra-o "(...) na caricatura de um guarda, num retrato grotesco de si próprio. Desprezou-se. (...) Odiou-se, ao ponto de quase desejar mudar de pele (...)". E o simples facto de aceder à caricatural personificação da miséria transfere o objecto do seu ódio. Do ódio a si próprio passa ao (...) vulgaríssimo ódio pelo. (...) Ah! Como lhe apetecia sacar da pistola e disparar para qualquer sítio, para o meio do café, para o meio das vidraças (...) para o meio dos carros (...) para o meio de um dos prédios gigantescos (...) feios, altos, ameaçadores, ou para o ar, para cima,para o céu, sim (...) para que estalasse (...) se rasgasse e desabas-se (...) e soterrasdesabas-se tudo (...) o mundo inteiro com todos os desabas-seus horro-res, maçadas, estardalhaços e maus cheiros."'^

A lucidez do hotnem-fronteira sucede quase concomitantemente ao desespero inerente à dúvida que o seu novo mundo lhe transmite. Não se vê a si próprio face quer a um novo sentido quer à esperança convertora, apenas ao desespero e sua instabilidade. "Mas uma vez, em meados dos anos sessenta (...) eis que o descobriu do outro lado da rua, acocorado entre dois carros estacionados, a fazer as suas neces-sidades (...) as nádegas estavam completamente à mostra (...) brancas como a farinha, cheias de nôdoas e escaras avermelhadas (...). Foi um espectáculo tão lastimoso, tão repugnte, tão hediondo (...) valia a pena (...) fazer continência (...) a troco de umas férias exíguas e de um exíguo ordenado (...).Valia a pena sim (...) pois evitava que tivesse de mostrar as nádegas em público (...) ".'''

De interrogação em interrogação, vai confrontando o seu novo--mundo, o real urbano, com a sua organização tão massificada quanto ortogonalmente humanizada - "mas quando numa cidade (...) uma pessoa se achava privada da (...) liberdade suprema de se isolar das outras pessoas para fazer as suas necessidades (...). Então a vida perdia o sentido. Atingira a serenidade esfíngica (...) um misto muito vago de repugnância, desprezo e compaixão."'^ Até chegar finalmente à pos-tura de resistência abnegada -"não agia. Sofria."'^

'•Mbid., p. 15 '^Ibid., p. 70 '^ Ibid., pp. 47-9 '^Ibid., pp. 50-1 ''^ Ibid., p. 71

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O guarda e o sem-abrigo ilustram apenas aparentemente blocos opostos e antagônicos. Na sua essência, ambos se aproximam do para-digma da fronteira; quer na resistência consciente ao universo da esfíngie quer na apatia, unicamente natural do universo do sem-abri-go, encontramos o espaço diferencial da fronteira que sobrevive pela indiferença. No entanto esta indiferença, da esfíngie, surge tão--somente inadvertidamente como tal. A marca da marginalidade, dei-xada pelo sem-abrigo, não permanece incólume apesar da conseqüente e coerentemente derradeira postura do guarda. Este mantém-se à mar-gem. Qual fronteira certa, fixa e pré-estabelecida "(...) não fez nada, graças a Deus não fez nada! Não disparou para o céu nem para o café em frente, para os carros que passavam. (...) transformou (-se) na imagem intimidante e impotente de uma esfíngie, mas apenas por ser de todo incapaz de se expressar através de actos (...)".2o

O confronto gera a regressão, isto é, a fronteira cerrada e estan-que. Uma resistência militante, uma indiferença que cerceia toda a esperança, mas também toda a existência segundo um sentido prévio. O sentido único impõe-se e o andamento manso do zelador fá-lo cum-prir o seu papel: "Então a máquina humana, a marioneta Jonatlian pôs-se briosamente em movimento (...) foi carregando altemadamente uma apôs outra as portas de vidro blindado (...) fechou a porta de lagarto (...) escutou (...) os votos de um bom fim de semana (...) e incorporou-se na corrente de peões (...)."2'

Jonathan Noel é guarda. Guarda as tradições cegamente. Porém, o desempemho desse papel e a assumpção dessa postura não o deixam ileso. Desespera e odeia, mas não age; mantém-se fielmente lúcido. Porque não restringe o espaço de interrogação. Assume unicamente uma atitude defensiva, o bastante para que tenha lugar oportunamente o movimento de desespero maior:" A pomba (...). Inclinara a cabeça para o lado e fitava Jonathan com o olho esquerdo. Um olho terrível de olhar, um pequeno disco castanho, negro no centro (...) completa-mente nu, descaradacompleta-mente apontado para fora e monstmosacompleta-mente aberto; (...) havia no olho uma certa astúcia dissimulada, (...) tal qual uma lente de uma máquina fotográfica.(....) Era um olho sem olhar ".22 Não existe humilhação maior para o homem-fronteira que ser objecto

20 Ibid., pp. 71-2 21 Ibid., p. 75 22 Ibid., pp. 15-6

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e não sujeito de observação. Sobretudo quando daí resulta o medo. De uma pomba? De o olhar de uma pomba? Ou do peso, da angústia que esse olhar provoca? Ou do desespero e ódio instigados por esse olhar indiferente e frio, controlador e acusador? Ou denunciador de um modo estranho e bizarro de que se reveste a existência quando se é somente actor, guardador de um espaço cerrado e inviolável? - de um olho simplesmente inanimado que absorve toda a luz do exterior e nada deixa transparecer do seu íntimo.

O olhar da pomba, aterrador aos olhos de Jonathan Noel, despo-leta a consciência de náusea da existência finita, obrigando-o à inter-rogação e à re-leitura do real. Interrogando-se quanto ao valor e vali-dade, natureza e adequação do real existencial, Noel atenua a distância que o separa quer do sem-abrigo quer da multidão. O apelo ao absurdo da representação do real instala-se de súbito e Jonathan Noel inicia a descoberta do real dentro do real:" Andar acalma (...) permitindo que alma por muito atrofiada (...) cresça e se expanda (...) Foi o que aconteceu ao duplo Jonathan. Pouco a pouco, passo a passo, o gnomo que habitava o corpo do enorme boneco foi crescendo e identificou-se com ele".2-''

Em vez de agir sobre a ideologia, uma vez que não aceita o ime-diato histórico, o herói aproveita a última conseqüência permitida pela consciência da lucidez: o absurdo do real. O real criado, até aí tomado como tal - matéria em si - que o remetera à passividade massifica-dora, serve afinal o nascimento de um real do real, instigador do re-ser activo, individual. De um ser existente individual invectivo e conjec-tural. Participativo quanto baste.

O homem-fronteira, nascido do gnomo recôndito, aponta o dedo ao espaço gasto, fantasma, material, dos outros e institui o único espaço - de luz - de que o homem se pode orgulhar ao investir-se fronteira: "(...) eis que vislumbrou (...) um raiar muito tênue lá no alto (...) uma restiazinha de luz (...) e agarrou-se-lhe, àquela fronteira entre o dentro e o fora, (...)". Eis a conseqüência directa do espírito recupe-rado que o homúnculo, nascido em noite de trovoada, traduz: "de noite houve uma trovoada (...) e és uma criança, apenas sonhaste que tinhas crescido (...) encolheu as pernas até lhe tocarem o peito e abra-çou os joelhos."2^

2-^ Ibid., p. 77

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Jonathan Noel encarna o derradeiro estado absurdo de facto; e nós, nele projectados. O narrador não aproveita do desespero e ódios lucidamente propagados para desferir qualquer golpe ideológico. Não esquece a história. Recusa-se, antes porém a aceitar o respectivo, e pretensamente único, sentido. Prefere consequentemente confrontar o singular perdido com o colectivo dirigista até inverter a correlação à partida desproporcionada das forças opositoras. Deste modo, o nar-rador prefere instigar-nos à projecção num herói que, tendo partido da assimilação sobranceira de um real inquestionável, se transforma em poço de dúvidas até assumir a nobre e humilde postura de regresso" às trevas e ao silêncio, ao pão e ao vinho, à liberdade reconquistada."25 À liberdade do espaço fronteira, para o qual o ser existente individual verte a pujança do seu imaginário.

Ao manter-se marginal-social, marginal-intelectual,o homem--fronteira enuncia o segredo da sua predilecção pelo caos e a chave da inflexível observação: a interrogação. O sentido nunca poderá ser sin-gularmente definido, antes pluralmente assumido, porque o que quer que exista jamais se reduzirá à expressão unívoca da sua aparência e conseqüente classificação, nomeação.

Dos outros, a realidade trivial, habitual. Do homem-fronteira, o real pensado. Perante observador tão empenhado e discreto, a reali-dade transfigura-se e de banal passa a real insólito e bizarro. Assim vence o hometn-fronteira a angústia e o tédio que partilha com os demais e arvora-se em ser autóctone e inconfundível por rejeitar a condição de actor de que todos os outros não têm consciência de en vergar. Não há dúvida! Carece dos outros, mas enquanto estes servi-rem para personificar o actor, o fantasma, aquele que não distingue o real do real.

O homem-fronteira sublinha a condição de estrangeiro perante tudo e todos, ainda que a sua felicidade e liberdade sejam tão exíguas quanto a sua condição de fronteira. Mas também tão imensas quanto o seu potencial de observador.

O homem-fronteira atesta a grandeza da lucidez, porque exprime um estado de facto. Por mais realidade que descreva, represente e reproduza, o real aparente e comum, desprovido mesmo de qualquer juízo valorativo jamais deixará de suscitar a incomodidade. O

inter-locutor acompanhará, acto contínuo, as interrogações incessantes e

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vislumbrará por fim quanto o real não se restringe ao oferecido por uma configuração habitual.

Quanto mais sonante, recorrente, quanto mais trivial esperado, o real representado, tanto mais naturalmente insólito e forçosamente absurdo. O real transfigura-se inexoravelmente e o interlocutor, con-duzido pelo homem-fronteira, acede de interrogação em interrogação à vereda do infinito.

Curiosa, esta obsessão pela interrogação. Em primeiro lugar ela advém de uma ânsia de liberdade. A liberdade face à opressão de um sentido previamente estabelecido. De um sentido da existência, de um sentido da história. Só o homem-fronteira em permanente obsessão pode provocar tal libertação do real. Compreendeu, conquistou tal compreensão: o real não é presa cujo odor possa ser previamente induzido no olfacto singular ou colectivo. O real vai desabrochando, revelando-se à medida que o sujeito vai caminhando. A medida que o sujeito ganha em proficiência no entendimento de si próprio e do real. A liberdade adveniente é extensa porque os sentidos da existência ou da história não se anquilosarão ou petrificarão num sentido ou único ou ideal ou ilusório quer seja maioritário quer minoritariamente sus-tentado.

Curiosa, em segundo lugar, porque esta liberdade-de-frot^teira, nascida da consciência de absurdo, exprime a grandeza individual e exemplar do homem-fronteira. Aquela que se constitui alternativa à angústia, à náusea e tédio que comunga com os demais. A diferença capital que o torna fronteira, personificação quer da solidão quer da liberdade: o imaginário.

Apenas o imaginário corrobora no homem a consciência do real como invólucro deste e confere plausibilidade e legitimidade à igno-rância. Reforça distintamente a condição-de-fronteira. Em primeiro lugar por valorizar o espaço do incriado, do vazio por oposição ao do criado; em segundo lugar por tomar o espaço-de-fronteira uma dimensão fluída porque dinâmica, concedendo ao sujeito a capacidade de definição do território que delimita e não vice-versa.

A dimensão do imaginário confunde-se ela própria com o con-ceito de fronteira ora definido, uma vez centro dinâmico de uma enti-dade tão livre quanto perplexa, tão anquilosada como pronta a recomeçar tudo de novo.

O homem-fronteira está no limiar do novo ser. Opõe-se à socie-dade auto-centrada e enclausurada no '"sistema de representações de

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significação" que forjou para sua própria satisfação e sobrevivência. O homem-fronteira opõe-se a tal sociedade de enclausuramento por-que sente em si próprio quanto a dimensão do imaginário apenas se exprime naquela sociedade por vias veladas à comunicação profícua, tal como o sonho, a doença ou o desvio.26 É sobretudo porque sente quanto tal "'sistema de representações de significação", respondendo à intenção globalizante da sociedade, impede e oprime qualquer mani-festação do imaginário individual: autônomo, livre e autóctone. Opo-sição natural, uma vez que a sociedade se esgota na produção de indi-víduos socializados.

O homem-fronteira não se compraz necessariamente com a fun-ção comunicativa do ""sistema de represetitações de significafun-ção", porque acaba por perceber e sentir quanto tal sistema imposto inviabi-liza a busca de qualquer sentido. Um pensar instituído assente em axiomas e dogmas úteis à necessidade biológica social, saturar-se-á inadiavelmente por persistir na inquestionabilidade das proposições dos seus funcionários.

O homem fronteira arroga-se afinal o direito de acometer ininter-mptamente contra o ""sistema de representações de significação", per-sonificando a "interrogação' e a "criação' de formas novas. Tão novas quanto decorrentes do imaginário individual. Tão novas quanto refor-muladoras da experiência humana. Se é o próprio 'sistema de repre-sentações de significação' que está a ser posto em causa, então assim também acontece ao próprio sistema de pensar. Por esta via, este último torna-se objecto impalpável, mas contudo via sacra para a obtenção da verdade. Não estática, mas dinâmica por excelência, pois não se esgota na adequação do pensamento à coisa. O pensar torna-se inadvertidamente objecto do pensar. O novo ser centra-se então no acto de reflexão. Objecto de si próprio; de auto-interrogação. Limita--se a buscar a verdade, ao libertarLimita--se das certezas da consciência e ao suspender a actividade exclusivamente consciente.2^

A linguagem a isso se ajusta por não defender unicamente a afir-mação instituída. Interrogar e fender o sistema aceite significa propiciar a visão estranha e bizarra do real instituído bem como trans-formar a linguagem no veículo do imaginário singular. E,

conse-26 Cf., Cornelius Castoriadis, 'Faü et à Faire', Paris: Seuil, 1997, pp. conse-263, 272

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quentemente, abrir para o espaço da obra do "imaginário radical','^^ quiçá da sociedade aberta.

Aquilo que move o novo ser que o homem-fronteira esclarece, define-se pela obsessão da verdade.

E esta apresenta como fundamento a paixão pelo conhecimento, i.e., a simbiose de tal modo perfeita entre sujeito e objecto que será com esforço lúcido desgatante que a 'interrogação' terá de ser manti-da. Sob pena de o balanço entre a paixão pelo conhecimento e os resultados obtidos ficarem aquém das brechas no "sistema de repre-sentações de significação'; sob pena de o' imaginário' perder todo o seu valor radical e de o sujeito deixar de ser fonte de criação e re--criação ontolôgicas. Não fosse assim, o sujeito reduzir-se-ia à con-dição de mero postulado, ou máquina desprovida de todo o contacto com o real. Tal sujeito estaria só, encerrado na sua idiossincrasia transcendental, cujo imaginário' seria constituído pelo acervo de idéias fornecidas 'a priori'.2^

O homem-fronteira recria o novo ser. Não se eximindo ao conhe-cimento, revela a sua própria essência de ser com-paixão pela institui-ção social-histôrica e com pensar veiculado pela linguagem. Assim permite formar incessantemente objectos e imagens, os seus próprios, radicados e por acordar na psique.

No entanto, este diferencial ontolôgico do próprio homem carece de componente essencial de representação: a linguagem; esta traduz inexoravelmente o valor de tal diferencial em virtude de ser manifes-tação de busca apaixonada de conhecimento através do prazer. A lin-guagem, tal como a fonte de criação de que é expressão, verte com toda a a-funcionalidade e a-determinabilidade a essência do "imaginá-rio'. O real resultará recriado porque fmto do pensar com imaginação; o homem, mais consciente quer da grandeza da verdade quer da sua paixão pelo conhecer. A linguagem, mais proficuamente espelho do pensar, agir e produzir o verdadeiro.^^ A fronteira, mais fluída. O homem, mais ser.

"Este não era o seu quarto! Este nunca foi o teu quarto! Não... também não é o quarto em casa do tio, (...) é o quarto das crianças em

28 Ibid., pp. 125-6 29 Ibid., idem

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Charenton - não o quarto da crianças, não (...) estás na cave da casa dos pais e és uma criança, apenas sonhaste que tinhas crescido, que te tinhas tornado velho e horroroso e guarda em Paris, mas és uma crian-ça e estás sentado na cave da casa dos pais e lá fora é a guerra, e encontras-te preso, soterrado, esquecido. (...) Onde é que estão os outros? Meu Deus, onde é que estão as outras pessoas? Que eu não posso viver sem as outras pessoas!^'

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