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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE

SÃO PAULO

PUC-SP

Celso Eduardo Mendes Gonçalves

A via Vico

Ética e mitologia na filosofia de Giambattista Vico

DOUTORADO EM FILOSOFIA

São Paulo 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Celso Eduardo Mendes Gonçalves

A via Vico

Ética e mitologia na filosofia de Giambattista Vico

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de DOUTOR em Filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio José Romera Valverde.

São Paulo 2017

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Banca Examinadora ______________________________________________ ______________________________________________ ______________________________________________ ______________________________________________ ______________________________________________

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A Loli, Guto, Nina & Dudu, Estrepitosa constelação a iluminar o horizonte. A Alice, Primeira Estrela dessa numinosa constelação.

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Esta tese contou com auxílio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) por meio da concessão de

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AGRADECIMENTOS

Ao Caro Orientador, Prof. Doutor Antonio José Romera Valverde, pela atenção, paciência e confiança. Ao Prof. Doutor Miguel Wady Chaia, pela carinhosa consideração de sempre e pelas oportunas observações na Banca de Qualificação. Ao Prof. Doutor Marcio Pugliesi, pela empatia, pela amizade e pelo incentivo para a pesquisa. À Prof. Mestra Siméia Mello, pelo apoio oportuno. À CAPES, pelo fundamental auxílio da bolsa de pesquisa.

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Imagino o artista num anfiteatro Onde o tempo é a grande estrela Vejo o tempo obrar a sua arte Tendo o mesmo artista como tela

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RESUMO

Após situar Vico na Nápoles de seu tempo e em relação às questões da racionalidade moderna, e realizar um exercício de reflexão filosófica para a compreensão da cosmovisão viquiana, objetiva-se explicitar a ética que subjaz em sua obra como uma ética de caráter teleológico e que privilegia a vida prática, evidenciando uma preocupação para com o que o homem pode e deve fazer de si mesmo, nada obstante a tutela de uma providência divina numa história cíclica. Entretanto, no advento da “idade dos homens”, verifica-se um processo de desdobramento da natureza humana em que o desenvolvimento do indivíduo passa a ditar o desenvolvimento da comunidade; ao mesmo tempo, a predominância da racionalidade abstrata dissociada de outras faculdades humanas, como a imaginação, conduz a uma literalidade preponderante na interpretação da mitologia, que pervade as doutrinas das religiões, afastando o homem da piedade, com a consequente perda da coesão social e perda do sentido humano do mundo. Daí, o homem decai na idade

dos deuses, submetendo-se à heteronomia face a história ideal eterna. Identifica-se com a presente tese, então, a “chave

mestra” indicada pelo próprio Napolitano com a imaginação que fundamenta a sabedoria poética, estende-se a aplicação dessa chave interpretativa do método de sua obra – a nova arte crítica – para a solução do pretenso paradoxo entre a autonomia e a felicidade objetivada por uma ética teleológica e a repetição cíclica da história ideal eterna.

Palavras-chave: Vico. Ética. Práxis. Fortuna. Mitologia. Religiosidade.

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ABSTRACT

After situating Vico in the Naples of his time and in relation to the questions of modern rationality, as well as carrying out an exercise of philosophical reflection seeking the understanding of the worldview of Vico, this piece of work aims at making explicit the ethic that underlies his work as an ethic of teleological character which privileges the practical life, evidencing a concern for what man can and should do of himself, notwithstanding the guardianship of a divine providence in a cyclical history. However, within the advent of the "age of men," it is verified a process of unfoldment of the human nature in which the development of the individual starts to dictate the development of the community; at the same time, the predominance of abstract rationality dissociated from other human faculties – such as imagination – leads to a preponderant literality in the interpretation of mythology, which pervades the doctrines of religions, moving man away from piety, with the consequent loss of both social cohesion and the human sense of the world. Hence, man decays in the age of the gods, submitting himself to heteronomy in the face of the eternal ideal history. It is identified with the present thesis, therefore, the "master key" indicated by the Napolitan himself with the imagination that underlies poetic wisdom, the application of this interpretative key of the method of his work – the new critical art – is extended to the solution of the pretended paradox between the autonomy and the aimed happiness by a teleological ethic and the cyclical repetition of the eternal ideal history.

Keywords: Vico; Ethic; Praxis; Fortune; Mythology;

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

1ª PARTE UNIVERSO VIQUIANO: O NAPOLITANO E SEU TEMPO, COSMOVISÃO FORTUNA E ÉTICA ... 23

CAPÍTULO I - O HOMEM E SEU TEMPO: SITUANDO GIAMBATTISTA VICO ... 31

1.1 O Esclarecimento e a Nápoles ao tempo de Vico ... 31

CAPÍTULO II – A COSMOVISÃO VIQUIANA ... 42

2.1. Vico e a Igreja: o Napolitano entre a Ortodoxia e a Heterodoxia ... 42

2.2. A influência do Renascimento e do Humanismo ... 45

2.3. O tempo cíclico ... 50

2.3.1. O desenvolvimento cíclico histórico na nuova: corsi e ricorsi... 53

2.3.2. Ciclo do tempo e seta do tempo ... 58

2.4. Ontogênese e Filogênese ... 68

CAPÍTULO III – FORTUNA ... 72

3.1. Fortuna ou Providência Divina ... 72

3.2. Agência Humana e Providência Divina no Pensamento Filosófico Viquiano ... 76

CAPÍTULO IV – A ÉTICA VIQUIANA ... 85

(11)

2ª PARTE

A CHAVE MESTRA: A LINGUAGEM POÉTICA; A MITOLOGIA e A PIEDADE:

A VIA VICO ... 95

CAPÍTULO V – MÉTODO, CIÊNCIA e CHAVE INTERPRETATIVA ... 102

5.1. O Método e a chave ... 102

5.2. A Ciência e a chave ... 107

CAPÍTULO VI – VICO: A MITOLOGIA, O NUMINOSO e A PIEDADE ... 115

6.1. A Mitologia e a Sabedoria Poética ... 115

6.2. O Numinoso ... 119

6.3. A Piedade ... 123

6.4. A Religião e a “Barbárie da Reflexão” ... 127

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A VIA VICO ... 131

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A VIA VICO

Ética e Mitologia na Filosofia

de Giambattista Vico

INTRODUÇÃO

Aquele que acredita que a interpretação está restringida ou a deformar ou a retomar literalmente a significação de uma obra, na verdade deseja que tal significação seja completamente positiva e suscetível, de direito, de um inventário capaz de delimitar o que está e o que não está nela. Quem acreditar nisto engana-se sobre a obra e sobre o pensar.

MERLEAU-PONTY1

A epígrafe trazida à colação é especialmente emblemática no presente trabalho, no qual a reflexão filosófica é apoiada sobre a interpretação, em variadas vertentes:

1) Interpretação feita por Vico das fontes históricas, da linguagem e da sabedoria poética das lendas, poesias, mitos e costumes, desenvolvendo uma nova concepção da filologia, estendendo seu sentido e conjugando-a à filosofia em sua nova arte crítica, que é a hermenêutica viquiana a partir da qual, o Napolitano busca a compreensão do pensamento e do desenvolvimento do homem;

1

(13)

2) Interpretação consoante Vico. Com a atribuição de especial relevância à capacidade do engenho, que Vico identifica como uma faculdade específica do saber 2 , a

interpretação deve fazer parte do processo de aprendizado, da construção do saber cientifico, em que a curiosidade, a iniciativa e a imaginação atuam – ou deveriam atuar – livres para que o conhecimento seja apropriado e reconstruído ao invés de simplesmente transmitido, de forma padronizada, em detrimento de interpretações divergentes, em detrimento do aludido engenho, haja vista sua capacidade de juntar em unidades as coisas separadas e diversas. Liberdade de interpretação essencial tanto à aprendizagem significativa, quanto para o pensamento crítico, consoante professa Vico ao defender um processo de educação que leve em conta a rica imaginação que abunda nas crianças;

3) Interpretação do pensamento filosófico de Vico, que se faz no presente trabalho de pesquisa, que não pode prescindir das outras duas supra aludidas vertentes de interpretação e que se manifesta com originalidade na explicitação de uma ética viquiana não expressamente exposta em sua obra; na interpretação da relação da mitologia no pensamento viquiano e na teorização sobre a piedade, a religião e a “barbárie da razão”.

Com efeito, a interpretação promovida por Vico das fontes históricas e também da linguagem, dos costumes, das lendas, poesias e mitos, conforme o próprio Napolitano,

2

A elaboração viquiana da faculdade do engenho provém de uma tradição de reflexão poético-retórica oriunda dos séculos XVI e XVII, adquirindo maior envergadura na cultura seiscentista e barroca, onde o conceito de engenho está situado em seu próprio núcleo de reflexão. Cf. Gonçalves, CEM. A vertente Vico, 2011.

(14)

contou com a chave mestra da linguagem poética3, utilizada

através da imaginação para a construção de uma empatia com o pensamento dos primeiros homens, numa aplicação prática do fio condutor de seu pensamento filosófico – o princípio do

verum ipsum factum – somado à junção da filosofia com a

filologia, permitindo-lhe a criação de seu método histórico para a investigação do mundo social.

De fato, não se deve subestimar a importância da chave mestra revelada pelo próprio autor e a presente pesquisa intenta demonstrar a relevância da sabedoria poética e da sua base – a imaginação – não apenas para a criação do método histórico de Vico, mas – principalmente – para a compreensão do pensamento filosófico do Napolitano.

Com relação à interpretação consoante Vico, esta se relaciona com a perspectiva praxista e com a necessidade da observância nos métodos de ensino – da mesma forma que para o pensamento científico e filosófico – de uma razão abrangendo a integração de todas as faculdades humanas (os sentidos, a fantasia e o engenho, além da razão) igualmente valiosas e relevantes, de forma a cultivar as mentes com vistas ao objetivo da humanidade: a sua felicidade.

Trata-se, como se demonstrará adiante, da interpretação do mundo através da cosmovisão do Napolitano, na qual há uma historia ideal eterna e também – de forma menos explícita – a possibilidade de sua transcendência através da emancipação individual, sempre considerada em perspectiva com a relação entre o particular e o universal, entre o ontogenético e o filogenético, que marca o

3

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pensamento viquiano, implicando que a questão do conhecimento – da ciência e da educação – assume importância fundamental com a valorização da capacidade do

engenho e da interpretação livre individual, que apropria e

reconstrói o saber.

Finalmente, a interpretação do pensamento filosófico de Vico empreendida na presente tese, explicita a ética que subjaz em sua obra como uma ética de caráter teleológico e que privilegia a vida prática; explicita, igualmente, o entendimento da importância da mitologia – tanto para a investigação do mundo social na Scienza nuova, quanto para a própria formação do pensamento viquiano.

Neste ponto, torna-se oportuno a colocação da pergunta que norteou a pesquisa e a elaboração da presente tese: o desenvolvimento histórico, para Vico, reserva um fim para a humanidade?

E para melhor precisar o foco dessa pergunta, pode-se, oportunamente, subdividi-la em outras duas questões, as quais podem ser assim dispostas:

(1) No pensamento filosófico de Giambattista Vico, que considera a tutela de uma providência divina numa história cíclica, há espaço para uma preocupação com o que o Homem pode e deve fazer de si mesmo?

(2) Como a “chave mestra” indicada por Vico – a sabedoria poética – ou, mais precisamente, a sua base – a imaginação – resolve o paradoxo entre a autonomia e a felicidade objetivada por uma ética teleológica e a repetição cíclica da história ideal eterna?

(16)

Destarte, a construção da tese no que diz respeito à sua estruturação textual, divide-se em duas partes para melhor contemplar a síntese do material pesquisado em um raciocínio demonstrativo coerente e fluido no sentido apontado por essas questões.

A primeira parte da tese, portanto, é dedicada à explicitação da ética viquiana, como uma ética teleológica, cujo fim é a felicidade da humanidade. Além disso, é na primeira parte da exposição que se começa a explicitar a questão moral que dá inicio à “barbárie da reflexão” e suas implicações com o mito, tratado mais detidamente na segunda parte da exposição.

Nada obstante, a interpretação de Vico é reconhecidamente polissêmica. Desde gênio isolado, até precursor das mais variadas matérias, passando por pensador conservador e defensor da ortodoxia, alternando para interpretações diametralmente opostas, como heterodoxo iluminista; de fatalista, que não soube libertar-se do providencialismo, a arguto observador de questões que hoje ocupam a sociologia moderna e que justificou através de uma providência divina inspiradora e não interventora.

Destarte, faz-se mister que se defina, de plano, que a presente tese considera o Napolitano como um pensador identificado com as questões de seu tempo.

Para tal intento, torna-se necessário situar Vico na Nápoles de seu tempo e em relação às questões da racionalidade moderna, notadamente em relação ao

Esclarecimento, procurando responder se (e até que ponto)

(17)

humanidade tem a seu alvedrio a possibilidade de emancipação – mediante a educação, introspecção, livre exercício das capacidades humanas e do engajamento político-social – concorre com os ideais do Século das Luzes, configurando o ponto de partida para a exposição.

Passa-se, a seguir, no capítulo II, ao desenvolvimento da cosmovisão viquiana: um interessante exercício de reflexão filosófica, que vai situar o Napolitano como um pensador heterodoxo, um humanista extremamente influenciado pela extraordinária revolução que foi o Renascimento.

De especial relevo para a compreensão do mundo através da cosmovisão do Napolitano, está a exposição dos ciclos do tempo, dos corsi e ricorsi viquianos, como preâmbulo para nova e igualmente interessante reflexão filosófica sobre a coexistência e complementaridade de duas concepções do tempo na teoria viquiana, hodiernamente representadas pelas metáforas da seta e do ciclo do tempo.

Por conseguinte, a reflexão sobre a historia ideal

eterna e também sobre a possibilidade de sua transcendência

através da emancipação individual, é sempre considerada em perspectiva com a relação entre o particular e o universal, entre o ontogenético e o filogenético, que marca o pensamento viquiano, implicando que a questão do conhecimento – da ciência e da educação – assuma importância fundamental com a valorização da capacidade do

engenho e da interpretação livre individual, que apropria e

(18)

E assim, encerrando a primeira parte da presente exposição, adentra-se à reflexão sobre a ética viquiana, na qual a interpretação do pensamento filosófico de Vico empreendida na presente tese, explicita a ética que subjaz em sua obra como uma ética de caráter teleológico e que privilegia a vida prática; no mesmo capítulo, destaca-se a descoberta da subjetividade e o surgimento do indivíduo como causas do desdobramento da ontogênese atuando sobre a filogênese.

O senso comum, muito valorizado por Vico, tem um papel destacado para a interpretação empreendida nesta tese: para o Napolitano, o senso comum abrange todos os povos, todas as nações, não sendo transmitido ou tomado do exterior, mas desenvolvido para cada nação ou grupo de per

si.

Aplicado à ética, o senso comum viquiano identifica-se com o próprio ethos, em sua expressão social ou objetiva, como expressão normativa da natureza humana, que se estabelece a partir de valores e costumes que formam um senso comum para a conduta da coletividade.

Por conseguinte, a orientação filosófica de Vico privilegia a vida prática refletindo sobre a vida social, com temas retóricos herdados da cultura humanista, promovendo a crítica da vida civil – como vida política e como arte da convivência. Essa orientação filosófica retoma, portanto, a reflexão sobre a compreensão do comportamento humano e o viver civil, preteridos pela moderna tendência de um direcionamento exclusivo para as ciências naturais, sob o império da Mathesis Universalis e em busca da verdade

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primeira, consoante o pensamento analítico de concepção cartesiana.

Dessa forma, a proposta de Vico para a ciência, consubstanciada em sua Scienza nuova, é a proposta para uma ciência renovada. Não a criação de uma nova ciência, mas o valer-se da sabedoria humana representada pela sabedoria poética, pela retórica, pelo direito, pela filosofia, para renovar a ciência demonstrando a possibilidade de desenvolvimento cientifico livre do império exclusivo da Razão e em prol da integralidade antropológica.

Na segunda parte da exposição, trata-se da “chave mestra” apresentada pelo Napolitano para o entendimento de sua obra: a linguagem e sabedoria poéticas

Faz-se a análise da importância da sabedoria poética e da imaginação, que a fundamenta, presentes nos mitos e imprescindível para a manutenção da religiosidade, da piedade, como elemento básico de manutenção da coesão social, que se desgasta com o excesso de refinamento intelectual, levando as nações à “barbárie da razão”, numa clara alusão à hybris que permeia a mitologia grega.

Destacando que Vico crê que toda comunicação humana é compreensível, haja vista a sua convicção na natureza comum dos homens e nos aspectos essenciais igualmente comuns a todos os seres humanos, evidencia-se que as fábulas, poesias e mitos da linguagem e da sabedoria poéticas tornam-se muito mais do que fontes para a contornam-secução de sua investigação do mundo civil, pois elementos de expressão do próprio núcleo de coesão social.

(20)

Centra-se, nesse ponto, a reflexão em como a racionalidade abstrata dissociada de outras faculdades humanas, como a imaginação – e, por conseguinte, a religiosidade – frustram a elevação do homem à sua natureza divina. Justamente quando o homem poderia ter nas mãos o seu desenvolvimento histórico, sem heteronomias, ele se perde ao perder a coesão social, ao isolar-se egoisticamente, mantendo-se submisso, por conseguinte, aos ciclos da “história ideal eterna”, para um novo recomeço, para a regeneração da integralidade humana.

Dessa forma, a presente tese espera lograr demonstrar como na reflexão filosófica de Vico é possível perceber a busca constante pela conciliação entre a sabedoria dos antigos e dos modernos; entre tradição e modernidade, resultando, dessarte, num pensamento que mantém sua atualidade e influência fértil num vasto conjunto de correntes epistemológicas, que chega, com vigor, à contemporaneidade.

Essa mesma contemporaneidade que tanto requer reflexões filosóficas. Pois se hoje há muito mais liberdade política e pessoal, com mais de dois terços da população mundial vivendo a liberdade de escolha em democracia, com liberdade de poder de opção sexual, com liberdade de poder de escolha sobre com quem contrair matrimônio ou, mesmo, com opção de não se casar, além de miríades de opções profissionais, opções por estudos, com uma gama extensa de cursos de graduação; se hoje há todo esse poder de escolha dado pela sociedade, sem embargo, há que se ter em mente que, em contrapartida, é a própria sociedade que dita as escolhas.

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De fato, mesmo com a grande liberdade de escolha, não se percebe a reflexão sobre as escolhas possíveis, o que leva os indivíduos a uma repetição dos padrões estabelecidos pela sociedade, não pela sabedoria contida no senso comum, conforme defende Vico, mas por uma condução em proveito de interesses econômicos, por meio – principalmente – da propaganda, que induz ao consumismo.

Dito de outra forma, o grande poder de escolha que os membros da sociedade hodierna dispõem não é acompanhado pelo exercício de escolhas conscientes.

Falta um sentido humano do mundo.

O que torna bastante atual e oportuna a reflexão sobre o pensamento filosófico de Vico.

Trata-se de orientação filosófica que privilegia a compreensão do comportamento humano, a vida prática e o viver civil, que são aspectos destacados do pensamento viquiano, assim como o entendimento da necessidade de uma integralidade antropológica, que, embora preterida por correntes do Esclarecimento, manteve-se latente para patentear-se no pensamento de autores posteriores, em correntes epistemológicas hodiernas: a Via Vico, na qual o Napolitano não é considerado um precursor, um proto-criador, mas um pensador afim.

Por fim, é oportuno esclarecer que a presente tese é o corolário de uma década de pesquisas sobre Vico – entre Mestrado e Doutorado – sendo o seu título – “A Via Vico” – concebido já desde o início desse período. Nada obstante, Antonio Risério escreveu um artigo pioneiro no meio

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brasileiro com o mesmo título na década de 1990. Deseja-se crer que o talentoso articulista não se incomodaria com a coincidência de nomes, considerando, antes, uma homenagem ao seu pioneirismo e interesse comum pela obra do Napolitano, a quem Risério 4 presta uma emblemática definição:

Giambattista Vico é um monstro bifronte, eruditamente enraizado no passado, ousadamente apontado para o futuro.”

Esclarece-se, ainda, que a pesquisa que baseia a tese abrangeu o conjunto da obra de Vico, notadamente a sua Autobiografia, as suas Orações Inaugurais – com especial destaque para De nostri temporis studiorum ratione (1708) e

De mente heroica (1732) – e as três edições da Ciência Nova,

sendo oportuno destacar que as menções à Scienza nuova no presente texto sempre farão referência à sua derradeira edição, de 1744; para as outras edições, o ano será sempre referenciado. Todas as obras de Vico citadas são as obras originais, digitalizadas, exceto De nostri temporis

studiorum ratione (1708), cujo exemplar utilizado é o da

tradução feita pelo próprio autor da presente tese, ainda no prelo para edição pela Editora Ícone, de São Paulo.

Nada obstante, importante ressaltar que optou-se pela indexação do texto conforme articulação consagrada por Fausto Nicolini em sua edição crítica das obras de Vico. Isto porque o Napolitano, como é sabido, adota um estilo barroco – rebuscado e prolixo – com parágrafos muito extensos, e a fórmula de parágrafos de Nicolini se mostra útil para facilitar a leitura e as referências à obra, tanto que essa divisão foi adotada pela grande maioria dos tradutores, comentadores e editores das obras viquianas.

4

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1ª PARTE

UNIVERSO VIQUIANO:

O NAPOLITANO E SEU TEMPO, COSMOVISÃO,

FORTUNA E ÉTICA

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UNIVERSO VIQUIANO:

O NAPOLITANO E SEU TEMPO, COSMOVISÃO, FORTUNA E ÉTICA

No texto concebido em sua maturidade 5 , De mente

heroica, escrito e pronunciado na aula inaugural de 1732, em

solenidade especial 6 que contou com a presença das

autoridades do reino napolitano, Vico exorta os alunos ao estudo a fim de tornarem suas mentes heroicas e dotadas de um saber útil ao gênero humano7.

Com efeito, Vico assevera que a mente humana tem origem divina, mas que deve ser desenvolvida com cultura e erudição, aspirando, em primeiro lugar, a Deus e, em seguida, à felicidade do Gênero Humano8.

5

Se a Scienza nuova é a obra da vida de Vico, De mente heroica é “seu maravilhoso canto do cisne” conforme Nicolini apud García, M.G.; Bisbal, J.M., 1998, p. 44.

6 Os tradicionais discursos inaugurais, Orationes, da Universidade de

Nápoles eram proferidos em solenidade aos jovens alunos da Academia Real de Nápoles a cada 18 de outubro pelo encarregado da cátedra de retórica. Tradição interrompida desde 1719, a solenidade de 1732 reveste-se, portanto, de um caráter especial, pois simbolizou a recuperação da tradição e do prestígio social da universidade.

7

Vico, G. De mente heroica, 1732, pp. 2-3.

8

Ibidem, p. 3: “Itaque vestra vobis studia principio ad Deum Optimum Maximum sunt dirigenda; deinde prae Dei Gloria, qui nobis in universum Genus Humanum diligentiam jubet, ad Generis Humani felicitatem.”

(25)

Nada obstante a menção a Deus, é a felicidade do Gênero Humano o fim que caracteriza o pensamento filosófico viquiano como uma teleologia, cujo alcance se verifica através de uma sabedoria prática, através da ética implícita na filosofia de Vico, a qual será explicitada nesta primeira parte do presente trabalho de pesquisa.

Sem embargo, para a consecução desse objetivo, é oportuno que se contextualize o Napolitano com sua cidade, seu tempo e sua cosmovisão.

De fato, a falta de contextualização oblitera a ética implícita em seu pensamento, gera controvérsias sobre se o Napolitano era um defensor da ortodoxia ou um heterodoxo; sobre se era um pensador afinado com as ideias de seu tempo ou um conservador apegado à tradição em detrimento do acompanhamento dos desenvolvimentos conquistados pela ciência moderna. Afinal, é possível qualificá-lo? Como, vivendo em pleno Século das Luzes, Vico, defensor que é de tradições dos antigos, pode ser considerado um iluminista? Ou anti-iluminista? Ou, ainda, um herdeiro do humanismo

cívico?

Para dirimir essas e outras pretensas contradições e explicitar a ética implícita em seu pensamento filosófico faz-se necessário compreender a cosmovisão do Napolitano, sua particular – e inovadora – concepção da Metafísica; faz-se necessário a compreensão da Nápoles e das questões efervescentes de seu tempo.

Prescindir de tal compreensão dá azo àquela imagem romântica de um pensador idealista, isolado de seu mundo e fora de seu tempo, que se atribuía ao Napolitano até meados

(26)

do século XX; ou à imagem de precursor de uma miríade de teorias e disciplinas, tão presente até os dias de hoje.

Há que se destacar, que com reconhecida proficuidade, Vico propôs mudanças nos padrões intelectuais, éticos, artísticos e científicos de sua época através de um projeto para uma nova ciência apresentado em seu opus magnum, a

Scienza nuova, obra para a qual Burke atribui uma definição

especialmente emblemática: “É um livro tão repleto de ideias

que quase explode pelas costuras” (sic).9

Tal fecundidade é corroborada por Berlin, que destaca a visão pioneira de Vico sobre o condicionamento da humanidade e de sua história a uma lei de desenvolvimento social, visão essa, a partir da qual, o Napolitano procura conjugar em sua Scienza nuova um sem-número de novas ideias ao mesmo tempo “excessivamente heterogêneas, ricas e autocontidas para enquadrarem-se no esquema que lhes era reservado”, as quais, por conseguinte, “voam à parte e seguem seus próprios caminhos”10.

E, realmente, versando ao mesmo tempo sobre direito, história, poesia, teologia e filosofia, a obra de Vico, esboça questões seminais de novas linhas teóricas e disciplinas que se desenvolveriam posteriormente, o que outorga ao Napolitano “o direito à originalidade [que] pode

submeter-se a escrutínio, de qualquer ponto de vista vantajoso, sem o mínimo receio”11.

9 Burke, P. Vico, 1997, p. 45 10

Berlin, I. Vico e Herder, 1982, p. 71.

11

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A riqueza e originalidade de ideias, entretanto, devem ser consideradas no contexto da obra e do tempo do Napolitano. Botturi12 – atentando para a complexidade dos

textos de Vico e para seu universo de referências – questiona: “Quem pode afirmar já ter explorado a profundidade desses abismos? E, ainda, quem pode dizer-se livre da tentação de relacionar e de manter em tensão esses aspectos do mundo viquiano?”

É cediço que a obra de Vico é polissêmica e, constantemente, dá azo a interpretações abertas, em que suas ideias são descontextualizadas e interpretadas de forma anacrônica, podendo – dessa forma – apresentarem-se como antecipações de diversos campos das ciências.

Nesse sentido, Verene13 alerta sobre o “magnetismo”

que uma rede de imagens e conceitos, produzida através das aproximações e das relações; das superposições e das fusões conectadas pelo pensamento viquiano, exerce sobre pensadores que são muitas vezes levados a considerar o Napolitano como um “precursor” da fundação de suas próprias disciplinas.

A compreensão do pensamento filosófico de Vico, a exegese de sua produção literária, não pode prescindir da contextualização do período singular em que o Napolitano desenvolveu suas ideias.

Vivendo numa época polêmica, em pleno Século das

Luzes, testemunhando o ocaso do Humanismo e a consolidação

da ciência moderna, numa época de acaloradas controvérsias

12

Botturi, F. La sapienza della storia. G Vico e la filosofia pratica, 1991, p.11.

13

(28)

entre conservadores convictos, partidários da tradição humanista, e inovadores entusiastas do desenvolvimento científico, Vico ainda presenciou a autoridade da religião cristã como um grande obstáculo epistemológico para a consolidação das novas verdades sobre o homem, a natureza e a vida.

Pela mesma senda elucidativa, tão importante quanto a compreensão da Nápoles ao tempo de Vico, é a compreensão de sua visão de mundo, de sua cosmovisão.

Nesse sentido, atenta-se que uma das contribuições mais notáveis da filosofia de Vico, é a aplicação da antiga doutrina cristã do verum-factum àquilo que os homens criaram e que melhor expressa a essência da natureza humana: a realidade histórica. 14

Esse princípio, que é o fio condutor de seu pensamento filosófico, relaciona a verdade e o fazer humano e determina que só é passível de conhecimento aquilo que foi criado pelo próprio interessado em conhecer. Aplicado à realidade histórica, o verum-factum vincula a compreensão do mundo da história à sua criação pelo homem, propiciando o conhecimento dos mundos da moral, da política e da história, e sua unificação.

Nada obstante, aos olhos de Vico, a providência divina é o verdadeiro autor da história.

14

Sobre a aplicação do princípio do verum ipsum factum no pensamento filosófico viquiano, vide Gonçalves, CEM, Op. cit, pp. 41-47.

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Paradoxal à primeira vista, a compreensão da providência divina, tal como concebida por Vico, elide essa pretensa aporia.

A esse aparente paradoxo, juntam-se outra questões de forma intrínseca, como por exemplo, a questão sobre a sorte, sobre a fortuna: pode a fortuna ser controlada ou influenciada pela ação do homem, ou a humanidade só pode assistir, passiva, os desígnios que lhe são impostos por um poder transcendente?

E de modo igualmente intrigante – à primeira vista – a concepção de tempo cíclico adotada por Vico, obedecendo a uma lei ideal eterna, traz a ideia de eterna repetição, incompatível com a crença de recompensas ou punições em uma vida após a morte, como prega o dogma cristão, do qual o Napolitano expressamente se considera um crente.

De fato, se todos acontecimentos se repetem – ou não; ou se acontecem por determinação da providência divina – ou não; em qual medida, às ações do ser humano, caberá crédito por suas conquistas ou responsabilidade pelos sofrimentos dos quais padece?

Dirimir essas questões controvertidas sobre o pensamento viquiano e, especialmente, estabelecer se para o Napolitano o Homem pode ou não emancipar-se da “história ideal eterna” 15 e da tutela da Providência Divina, é o

propósito da primeira parte do presente trabalho, pois pela

15

A “história ideal eterna“ é, para Vico, o modelo de desenvolvimento cíclico, com ascensão e queda, ao qual todas as sociedades estão compelidas a cumprir, conforme melhor desenvolvido adiante.

(30)

sua relação intrínseca com a ética, a concepção metafísica de Vico é de especial relevo para a tese que se desenvolve.

Relevante, destarte, na primeira parte do presente trabalho, a contextualização da Nápoles do Século das Luzes, para, em seguida, retroceder ao Renascimento, identificando as principais contribuições dos ideais humanistas. Nos tópicos seguintes, situa-se, ainda, Giambattista Vico entre antigos e modernos, e entre ortodoxos e heterodoxos, destacando o papel da religião e da religiosidade em sua obra e fechando a contextualização proposta com a exposição da Metafísica e dos corsi e ricorsi que conformam a cosmovisão do Napolitano, para, só então, adentrar-se à reflexão sobre a ética viquiana.

(31)

CAPÍTULO I

O HOMEM E SEU TEMPO:

SITUANDO GIAMBATTISTA VICO

1.1 O Esclarecimento e a Nápoles ao tempo de Vico

O ideário do Esclarecimento difundiu o poder da razão para esclarecer todo tipo de fenômeno, inclusive criticando a religião e propugnando o fim da heteronomia do homem, correspondendo, conforme Gusdorf, a um “estado de espírito” compartilhado por intelectuais, os quais, mesmo em face das muitas diferenças que poderiam afastá-los uns dos outros, se postam em uma atitude crítica e de caráter universal.16

Como corrente de pensamento, o

Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro individuo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do Esclarecimento.17

16

GUSDORF, G. Les valeurs dominants au XVIII siècle, 1971, p. 294.

17

KANT, E. Resposta à pergunta: Que é “esclarecimento”?(Aufklärung), 1985, p. 100.

(32)

Como se vê, sem embargo de Kant ter formulado sua síntese sobre o Esclarecimento décadas depois da morte do Napolitano, o fato é que a emancipação, a superação da menoridade pela ilustração pessoal do espírito colocada por Kant, não difere, em fundamento, da emancipação do Homem por intermédio de sua mente cultivada, de sua mente heroica, conforme propõe Vico.

Movimento que veio na esteira do Humanismo, do

Renascimento, que recolocara o homem no centro do universo,

a Ilustração, nada obstante seu alastramento por toda a Europa, desenvolveu-se de maneira não uniforme pelas diferentes nações: enquanto seu corolário na França foi a Revolução, em Portugal, as reformas às quais deu azo foram conduzidas pela própria Coroa.

Efetivamente, é na Ilustração que se firma o entendimento do que a ciência é e de como a ciência deve ser, discussão que se inicia em meados do século XVII18, com

o surgimento da ciência moderna, e que se polarizou na discussão entre os antigos, defensores da tradição renascentista, e os modernos, entusiastas do mecanicismo newtoniano e do racionalismo cartesiano, que veem no progresso evidenciado por novas descobertas, a corroboração de sua prevalência.19

Na Itália, de um modo geral, frisa Rossi 20 , o

processo de renovação cultural do Esclarecimento não rompe com a tradição renascentista; pelo contrário, aprofunda essa

18

Vide GONÇALVES, CEM. Op. Cit.

19

A disputa entre antigos e modernos não foi restrita à imagem da ciência: ela envolveu também a filosofia, a literatura e a religião.

20

(33)

tradição, incorporando as questões candentes da ciência e da filosofia moderna.

Com a ressalva que nem todas as ideias modernas eram recepcionadas facilmente pela tradição renascentista italiana, Rossi aponta, por exemplo, a evidente influência de Descartes e Gassendi, harmonizada com a forte tradição do experimentalismo de Galileu.

Sobre essa recepção das ideias modernas sem o descarte da tradição, Burke destaca como no final do século XVII, entusiastas napolitanos discutiam em sua academia dos “Investigadores” a nova filosofia representada pelas ideias de Galileu, Bacon e Descartes, rejeitando a autoridade de antigos como Hipócrates e Galeno – na medicina – e Aristóteles num “amplo espectro de matérias”. Contudo, ressalva Burke, “esses ‘modernos’ não repudiam completamente o estudo da Antiguidade clássica” 21 , mas defendem uma

“Antiguidade alternativa”, não aristotélica, interessando-se por Platão, assimilando Descartes e aproximando-se de Epicuro e Lucrécio.

O próprio Vico frequentou círculos epicuristas e cartesianos, que lhe proporcionaram contato com as mais recentes ideias e produções filosóficas europeias de então, chegando a escrever poesias de acordo com a tendência filosófica da época: “Canzone in morte di Antonio” e “Affetti di un disperato”, nada obstante, essas obras sequer receberem menção em sua autobiografia, pois dissonantes do padrão universitário eclesiástico.

21

(34)

A Nápoles em que Vico nasceu foi, durante a maior parte da vida do Napolitano, um vice-reinado da Espanha (de 1503 a 1734), abalado por uma violenta insurreição (1647-1648) e assolado pela peste (1656), que dizimou dois terços de sua população.

Objetivando revitalizar Nápoles, o Vice-Rei determinou estímulos para os trabalhadores preencherem as ofertas de emprego, tais como isenções fiscais para operários e cidadania napolitana para estrangeiros. O êxito de tais medidas transparece no reconhecimento de Nápoles como um importante centro comercial já ao final do século XVII, contando com intensa movimentação financeira através de financistas privados e de bancos públicos, contando com uma expressiva marinha e apresentando pujante desenvolvimento na construção civil, além de vitalidade em sua tradicional indústria da seda.22

Ainda em meados do século XVII, uma renovação cultural, com a abertura para as novas ideias que tomavam conta da Europa, se apresenta por iniciativa do Vice-Rei, na forma de “favores do governo espanhol à plebe contra a nobreza”23.

Entrementes, a Inquisição de Nápoles representava um grave entrave para a difusão de novas ideias, como o próprio Vico pôde constatar de muito perto, quando amigos próximos foram condenados em processos inquisitoriais.

22

Cf. GALASSO, G. Napoli ai tempi del Vico. In: Giambattista Vico nel Terzo Centenario Della Nascita, 1971, pp. 13-36.

23

(35)

Por outro lado, a nobreza napolitana de então estava mais preocupada com a manutenção de seus privilégios e não se mostrava muito motivada em seguir o processo de modernização que se desenvolvia pelo restante da Europa. Nada obstante, ao considerar o poder clerical como um indesejado limite às suas pretensões e lançar-se em confronto ante a Inquisição napolitana, a nobreza permitiu o surgimento de espaço para a disseminação da ciência e da filosofia modernas, num processo em que a camada média da população começa a assumir funções políticas, com o surgimento de uma importante categoria profissional, os profissionais forenses, do seio da qual, conforme Galasso24,

saíram os porta-vozes da nova cultura de meados do século XVII até meados do século XVIII.

Assim, em perfeita consonância com a Nápoles de seu tempo, Vico busca conciliar as vantagens do método dos modernos com as vantagens do método dos antigos:

E se comparássemos os nossos tempos com os antigos, e pesássemos vantagens e desvantagens de uma e de outra parte para os estudos. Poderíamos definir um método tal qual o dos antigos. Descobrimos muitas coisas desconhecidas pelos antigos, ao passo que os antigos sabiam muitas coisas que não conhecemos. Temos faculdades para o êxito em determinados estudos; eles, outras faculdades, para êxito em outros campos.25

Mesmo sendo reconhecidamente um defensor das tradições humanistas, tanto que Grassi o vê como o “último

24

GALASSO, Op cit., p. 27.

25

(36)

grande humanista” 26 , Vico valoriza, ao mesmo tempo, as

descobertas científicas dos modernos, buscando, constantemente, conciliar saberes antigos e modernos, tanto é assim, que Rossi27 destaca a Scienza nuova como uma obra

fortemente influenciada pelos debates em voga nos meios filósofos e eruditos do século XVII.

Há que se destacar, contudo, uma reserva do Napolitano com relação à tendência apresentada pela ciência ao seu tempo: Vico não se conforma com a limitação imposta aos saberes que não podem se restringir aos limites do procedimento dedutivista do Cogito cartesiano, como é o caso dos saberes do mundo civil.28

Com efeito, para o Napolitano, essa limitação – que decorre de critérios e princípios lógicos impostos à experiência – privilegia exclusivamente o método crítico em detrimento da tópica e do senso comum, muito embora também venha a demonstrar-se útil ante o dogmatismo escolástico, por descobrir verdades lógica e racionalmente evidentes.

Nada obstante, tal reserva não significa uma negação do valor epistemológico da ciência, que Vico, desde seus primeiros textos, valoriza e considera em seu projeto filosófico para uma reforma do racionalismo do século XVII: “Vico deu início à formulação de um projeto para ciências

26

GRASSI, E. Humanismo y marxismo: crítica de la independización de la ciência., 1977, p.221

27

ROSSI, P. Os sinais do tempo: história da terra e história das nações de Hooke a Vico, 1992.

28

(37)

humanas, em tudo diverso do projeto que surgiria mais tarde com o positivismo de Augusto Comte (1798-1857)”29.

Nesse sentido, clarifica-se:

Pensador de temas retóricos da reflexão acerca da vida social, Vico é herdeiro da cultura retórica humanista, e essa herança o conduz à crítica da vida civil, entendida como a arte da convivência e vida política, em oposição às concepções cartesianas do pensamento analítico em busca da verdade primeira sob o império da Mathesis Universalis, cuja imposição se verifica em detrimento da integralidade antropológica do homem.

Por conseguinte, o Napolitano segue uma orientação filosófica que privilegia a vida prática; que privilegia a compreensão do comportamento humano e o viver civil, deixados de lado pela tendência moderna direcionada à dedicação exclusiva às ciências naturais. Vico pretende uma reflexão filosófica e uma concepção científica que reconstituam um ideal de integralidade humana, propondo um humanismo cívico e retórico para o vivere civile. 30

Há que se destacar que, mesmo que seu intento seja investigar o surgimento e o desenvolvimento da civilidade humana no curso da história, Vico não propõe a criação de uma nova ciência. De fato, pretende tão somente fazer uso do rico arcabouço de conhecimento que é representado pelo direito, pela filosofia, pela retórica para demonstrar a possibilidade do desenvolvimento da ciência por outras vias que não aquela do império exclusivo da Mathesis Universalis.

29

GUIDO, Humberto. Giambattista Vico: a filosofia e a educação da humanidade, 2004, p.31.

30

(38)

Trata-se de uma preocupação com a dimensão prática do saber, que conduz o Napolitano a conceber um ideal pedagógico correspondente, compreendendo os saberes dos

studia humanitatis preteridos pela filosofia cartesiana, que

os excluiu do âmbito de um conhecimento verdadeiro por considerá-los destituídos de justificação científica.

Mesmo diante de suas reservas perante o cartesianismo, Vico é um racionalista, pois:

há que se examinar com atenção a postura de Vico, que não é, absolutamente, a de um ferrenho adversário de Descartes. Pelo contrário, o Napolitano teve forte influência cartesiana que se evidencia no reconhecimento de que a ciência é a sabedoria humana e, pelo tanto, não há como se dedicar a uma ciência em detrimento das demais; ou no reconhecimento de que o conhecimento científico deve ser certo e evidente.

Efetivamente, Vico adota uma via racionalista. A Scienza nuova visa constantemente demonstrar que a razão humana foi se desenvolvendo ao longo da história e que seu estágio mais avançado é uma meta a ser alcançada.

...

Ademais, a hermenêutica de Vico, fundada na nova arte crítica, ao conciliar filosofia e filologia, está longe de ser uma simples coleta de dados, pois se baseia na interpretação de dados fundamentada em uma teoria que é, a um só tempo, guia e controle 31

. Corroborando essa assertiva, Rossi (Os sinais do tempo, 1992, p. 139) aponta a influência do empirismo e do racionalismo na obra de Vico, destacando, ainda, o recurso à demonstração do tipo geométrica e a configuração sistemática da obra viquiana, além da aplicação do racionalismo como orientação filosófica para a formulação dos enunciados

31

(39)

científicos a partir da análise do verossímil, como características tributáveis à Descartes.32

Portanto, nesse contexto Vico desenvolveu seu pensamento filosófico, o qual se coaduna com o ideário do

Esclarecimento por propor uma humanidade livre de qualquer

heteronomia (como a presente tese interpreta, mais adiante); por defender que ao Homem cabe a livre escolha e a responsabilidade por suas decisões, pois tem a capacidade de fazer uso da própria razão para estabelecer seus modos de conduta; por apresentar ideias contrárias à ortodoxia; por propugnar um ideal pedagógico capaz de desenvolver a mente heroica, capaz de desenvolver a consciência individual.

Sem embargo, por outro lado, quando Vico discorda da crença33 partilhada por seus contemporâneos no progresso pela

ciência e pela tecnologia como suficientes para impulsionar a humanidade para a verdade e autonomia; quando identifica o seu tempo com o ciclo que antecede o ricorso, com o ciclo da decadência do Homem pela “barbárie da reflexão”, quando atribui à Providência Divina o desenvolvimento da sociedade, o Napolitano parece contrariar o ideário do Século das

Luzes.

Essa aparente contradição pode encontrar solução na distinção apresentada por Rouanet 34 , que reserva o termo

Ilustração para designar exclusivamente a corrente de ideias

que floresceu no século XVIII, ao passo que o termo

32

GONÇALVES, CEM. Op. Cit., pp. 20-22.

33

Gusdorf destaca o caráter dinâmico do Esclarecimento, que implica numa filosofia da história imbricada num “ato de fé” no progresso. Vide GUSDORF, G. Op. Cit., p. 294.

34

(40)

Iluminismo é reservado para “designar uma tendência

intelectual, não limitada a qualquer época especifica, que combate o mito e o poder a partir da razão”35.

Dessarte, conforme esse autor, a Ilustração, cuja fé na ciência foi denunciada como perigosa e ingênua, responsável por criar novas formas de dominação e por estimular a destrutividade humana, que em sua cruzada desmistificadora “solapou as bases de todos os valores, deixou o homem solitário, sob um céu deserto, privado de sentido”36, seria uma realização histórica do Iluminismo:

uma realização histórica importante, mas não a primeira e nem a última, haja vista ser o Iluminismo uma tendência de todas as épocas, que apenas se atualizou na Ilustração. Antes da Ilustração teriam havido autores iluministas como Luciano, Lucrécio e Erasmo; após ela, também: Marx, Freud e Adorno, dentre outros.

No mesmo sentido, Nietsche já considerara Petrarca e Erasmo na “linhagem das Luzes” e, mais recentemente, Adorno e Horkheimer consideram o Esclarecimento como uma tendência ativa desde o inicio da história da humanidade.

Por esse prisma, o pensamento de Vico em pleno

Século das Luzes é revelador sobre o que a Ilustração

prescindiu e, ao mesmo tempo, torna possível a compreensão do pensamento filosófico de Vico numa Ilustração ampliada.

35

Ibidem, p. 28.

36

(41)

De fato, depois dos Mestres da Suspeita37 , não se

pode mais conceber a ideia de uma razão soberana e independente de influências psíquicas e materiais. E Vico, muito antes, já denunciou o risco dessa crença que conflui para a “barbárie da reflexão” por prescindir da integridade antropológica, por prescindir de outras faculdades humanas igualmente importantes, como a imaginação e a piedade, como se verá mais adiante.

37

Mestres da Suspeita – expressão cunhada por Paul Ricoeur – In O conflito das interpretações, 1989 – e aplicada a Marx, Nietsche e Freud por “suspeitarem” do Império da Razão e da sua capacidade para a realização do ser humano.

(42)

CAPÍTULO II

A COSMOVISÃO VIQUIANA

2.1. Vico e a Igreja: o Napolitano entre a Ortodoxia e a Heterodoxia

Não resta dúvida de que Vico é um homem religioso e que seu pensamento filosófico contempla de forma importante a dimensão religiosa na integridade do Homem. Tal assertiva é corroborada pela ênfase à piedade com a qual o Napolitano conclui o último parágrafo de sua opus magnum – a Scienza

nuova:

Em suma, de tudo o que nesta obra se raciocinou, é de se concluir que esta Ciência carrega, de forma indivisível, o estudo da piedade e que, se não se é piedoso, não se pode ser verdadeiramente sábio.38

Contudo, a religiosidade de Vico não deve ser confundida com a submissão de suas ideias ao dogma de uma religião. Há, de fato, na obra de Vico uma aparente

38

VICO, G. Principi di scienza nuova di Giambattista Vico d’intorno alla comune natura dele nazioni , 1744, § 1112: “In somma da tutto ciò, che si è in quest’Opera ragionato, è da finalmente conchiudersi che questa Scienza porta indivisibilmente seco lo studio della Pietà e che, se non siesi pio, non si può daddovero esser saggio.”

(43)

ambiguidade39 que permite que se considere o Napolitano ora

ortodoxo, ora heterodoxo. Mas tal ambiguidade não resiste a uma leitura mais detida de suas obras. Senão, veja-se:

À época de Vico a inquisição se fazia presente e a doutrina da religião cristã ainda se constituía um obstáculo epistemológico, razão pela qual, de fato, o Napolitano pode se mostrar um conservador quando não o supera inteiramente para o desenvolvimento de suas teorias sobre a origem da vida e do Homem40.

Nesse sentido, a divisão que Vico engendra entre hebreus e gentios, entre a sua história ideal eterna e a história sagrada bíblica, é muito emblemática.

Por outro lado, “a grande admiração pela ciência experimental sempre nutrida por Vico, sua via racionalista e a tese da barbárie primitiva constante na Ciência Nova, alonga a história e contradiz a rapidez do processo civilizatório defendido pelos ortodoxos”41, no sentido que

ressalta Rossi:

Declarar as origens fabulosas, insistir no caráter rude e primitivo das épocas mais remotas, na imaginação e na irracionalidade, no assombro e na ferocidade dos primeiros habitantes da Terra, impelia Vico para uma doutrina decerto não menos sacrílega e perigosa do que a dos defensores das teses

39

A respeito da ambiguidade de Vico, notadamente na Scienza nuova, infere-se que seria um expediente face os riscos representados pela inquisição. Cf. DIAS, M.O.L., 2002, p.200. Particularmente, prefere-se o raciocínio adotado por Pereira Filho, para quem Vico simplesmente não desejou entrar em discussão sobre Religião

40

Cf. GONÇALVES, CEM. Op. Cit., p. 24 e 36.

41

(44)

pré-adâmicas e deístas: aquela que para explicar as origens da história humana fora apresentada, na idade antiga, por Lucrécio e, no mundo moderno, por Hobbes.42

E corroborando a tendência heterodoxa do Napolitano, Guido destaca a barbárie dos intelectos43, como a definição

de infância dada por Vico na Scienza nuova, em que a barbárie seria a privação do comportamento social e a ausência de raciocínios abstratos, a qual daria lugar à humanidade através da educação. Assim, somente ao superar o estado de natureza é que o homem confere intencionalidade à sua vontade, em contraste com todas as outras criaturas.

Destarte, se é possível encontrar no pensamento viquiano elementos que o classificariam ora como um ardoroso defensor da fé cristã, ora radicalmente criticado pela promoção da destruição da fé 44, dos argumentos colacionados

não se pode duvidar da predominância de uma inclinação inovadora, a qual revela um Vico muito mais próximo do humanismo do que da ortodoxia.

O próprio Vico ajuda a dirimir dúvidas sobre sua posição heterodoxa com o argumento apresentado em sua oração inaugural na abertura do ano letivo de 1701:

42

ROSSI, P. Os sinais do tempo, p. 139

43 Numa antecipação das abordagens psicanalíticas do século XX. In:

Guido, H. op. cit., p. 87. Cf. Vico, G. Principi di scienza nuova, 1744, § 159 (axioma XXI).

44

(45)

Eu creio firmemente que todo esse universo, que nós chamamos o infinito, se fosse dotado de sensibilidade, vendo que todas as criaturas obedecem à lei da natureza, teria notado que o homem é, ao contrário, o patrão e o árbitro do seu destino, porque teria certamente reconhecido que ele, graças à sua liberdade natural, é, se não senhor, quase o senhor do criado.45

2.2 A influência do Renascimento e do Humanismo

Consoante apresentado no capítulo precedente, o ideário iluminista foi recebido e absorvido na Nápoles do tempo de Vico, sem que houvesse, necessariamente, uma ruptura com a tradição do Renascimento.

Efetivamente, a valorização do Homem e de sua história, exaltação da dignidade humana, da liberdade e da criatividade; a relevância ao seu estudo integral – no sentido dos Studia Humanitatis –, a mente cultuada para se tornar uma mente heroica, dotada do talante para a emancipação do Homem, que caracterizam o pensamento filosófico e cientifico de Vico, bem como a sua proposta para o ensino, encontram suas raízes no ideal humanista de sabedoria e educação.

Percebe-se na cosmovisão de Vico, na concepção da história como um processo imanente aos homens, o quanto o

Renascimento – e seu reflexo ideológico, o Humanismo –

deixou o legado da tradição retórica e do ideal do saber com sua dimensão enciclopédica, além do interesse pelos

45

VICO, G. Le orazioni inaugurali I – VI apud Guido, H., op.cit., p. 87-88.

(46)

neoplatônicos Ficino e Pico della Mirandolla, revelado em sua autobiografia.

A importância de tal influência é melhor dimensionada com a definição:

As bases da sociedade hodierna foram lançadas no Renascimento: um abrangente processo, ou “a maior revolução progressista”, nas palavras de Engels, que transformou as práticas morais e os ideais éticos da sociedade, afetando toda a sua estrutura, promovendo modificações econômicas, sociais e culturais, que refletiram profundamente na religiosidade e no desenvolvimento da ciência e das artes; um processo cuja importância – eclipsada pelas “luzes” do Esclarecimento – foi reconhecida apenas após a primeira metade do século XIX, graças ao trabalho de Stendhal, Jules Michelet, Jacob Burckhardt, Engels e Nietzsche.

Como processo de mudança da estrutura social, o Renascimento ocorreu na Itália, França, Inglaterra e parte da Holanda. Sem embargo, teve seu reflexo, substanciado no Humanismo, estendeu-se por toda a Europa.46

O Humanismo, como reflexo ideológico do Renascimento, atuou sob uma forma ética e acadêmica, conforme esclarece Heller 47 , verificando-se, inclusive, em países onde o

Renascimento não se verificou como fenômeno social.

Sob a visão humanista, o Homem se torna o centro do Universo, em contraste com a desimportância de sua condição na “Cidade de Deus”, da visão agostiniana.

46

GONÇALVES, CEM. Op. Cit., p. 25.

47

(47)

Com a recolocação do homem em relação ao universo, o eixo da vida se desloca da ordem divina para a ordem temporal e humana, numa mudança que não implicou, contudo, no abandono dos valores cristãos, os quais foram incorporados a um novo modo de vida, que exigia, de todos, a participação nos negócios públicos, resultando que o modelo de homem bom deixou de ser o santo para ser o cidadão.48

A ação humana torna-se o maior valor da humanidade e a fortuna deixa de ser senhora dos destinos dos homens, passando, consoante Mirandolla, a ser reconhecida como uma

entidade exterior, que pode encarnar-se nas forças cegas da natureza, mas que não nos pode obrigar a abandonar os nossos projetos de transformação do mundo49.

Emblematicamente, o espírito humanista é representado em linguagem figurativa pelo “Homem Vitruviano”50, o qual

materializa, ao mesmo tempo, a relação simbólica e mágica do homem individual com o universo.

48 GONÇALVES, CEM. Op. Cit., p. 26. 49

MIRANDOLLA, G.P. A dignidade do homem, 2001.

50

O “Homem Vitruviano”, que com seus braços estendidos se inscreve tanto no círculo, quanto no quadrado, se encontra no célebre Livro de Horas do Duque de Berry, e foi adotado por Leonardo da Vince para ilustrar “a base que deu à estética, na qual as proporções do corpo humano refletem a ordem universal, noção esta, que é aceita como evidente em todo o período da Renascença“ (Cf. Francastell, P. A realidade figurativa, 1993, p. 176). Marcos Vitruvio Pollio foi engenheiro militar e arquiteto da Roma antiga, contemporâneo do Imperador Augusto, e escreveu Os dez livros da arquitetura, que foram redescobertos no final do século XV pelos renascentistas italianos, obra que estabelece o princípio da existência de uma relação harmoniosa entre as proporções arquitetônicas e o homem de “boa conformação” (bene figuratus), definindo um cânone de beleza para o desenho de corpos no Ocidente, desde o Renascimento até fins do século XIX (no capítulo I, do livro III, intitulado “De acordo com qual modelo se edificam os templos”), cf. Panofsky, E. L’évolution d’um schème structural, 1969.

(48)

Essa noção do “homem individual” que tanta importância tem na concepção da ética viquiana, como se verá adiante, no Capítulo IV do presente trabalho.

Com efeito, a noção de individualidade – De

individualitas – já aparecera nas traduções latinas de

Avicena e toma corpo durante o Renascimento, onde, conforme Heller, o

mundo (moderno) começava a surgir cada vez mais como um mundo feito de indivíduos, um caleidoscópio de personalidades individuais. Daí em diante, o indivíduo transforma-se no ponto de partida teórico de todos os sistemas psicológicos e éticos.51

No mesmo diapasão, Valverde, relacionando individualidade e secularidade, sintetiza o processo de individualização no Renascimento:

Se o processo de secularização, iniciado no século XII, está na matriz e em concomitância com o processo de individualização, durante o Renascimento, Lutero findou por secularizar a religião, Maquiavel a política e Bacon a ciência. A arte, por sua vez, foi secularizada pela maioria
dos artistas, sobretudo italianos. Para os artistas italianos e flamengos não importava mais o universal concreto – a santidade de Cristo, da Virgem Maria, dos santos – mas o homem comum, o burguês. Todas essas instituições – religião, política, ciência, artes – tenderam a se transformar em “técnicas”. Frente a nova concepção de individualidade, as noções de “alma” e “imortalidade” não encontravam nexo com a orientação moral e a vida cotidiana. O Renascimento conheceu um ateísmo prático, mas não aberto. Talvez por um excesso

51

(49)

de religiosidade, em crise.

...

O momento era de separação entre o burguês e o cidadão, que prefigura a divisão e conflito entre a vida privada e a vida pública. Assim, o homem foi cindido para melhor exprimir-se de uma forma relativa ao “indivíduo” e seu “papel”. E se, em princípio, durante a Idade Média, a natureza era fonte de estranheza – o grande Outro –, durante o Renascimento será o mundo da política – a cidade – tal lugar. 52

Há, ainda, um outro movimento impactante ocorrido no

Renascimento: o neoplatonismo, que se apresentou como um

ressurgimento do idealismo platônico sob um prisma místico e cristianizado.

O surgimento de textos místicos atribuídos a sábios de prestígio, como Zoroastro, Orpheu e, destacadamente, Hermes Trimegisto na mesma época em que eram redescobertos os textos de Platão, aprofundaram a característica mística do núcleo hermético desse movimento, conforme Yates53.

Marsílio Ficino é um dos fundadores desse núcleo hermético; para Ficino, o universo é vivo: um vasto sistema de correspondências, unindo o mundo das estrelas e dos elementais ao mundo e aos seres espirituais.

Emblemático, o livro de Cornélio Agripa, De occulta

philosophia, incorpora as ideias neoplatônicas de Marsilio

Ficino e os princípios cabalistas de Pico della Mirandolla,

52

VALVERDE, A.J.R. Individualidade, misantropia, vilania sob o Renascimento, 2002, pp. 83-98.

53

YATES, F.A. Ensayos reunidos III: ideas e ideales del renacimiento en el norte de europa, 1993.

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