• Nenhum resultado encontrado

Profissão músico independente: as tensões da subsistência e gestão de carreira

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Profissão músico independente: as tensões da subsistência e gestão de carreira"

Copied!
16
0
0

Texto

(1)

1

VII Seminário FESPSP - “Juventude, trabalho e profissão: desafios para o futuro no tempo presente”.

28 de outubro a 01 de novembro de 2019

GT 11 - Experimentos de produção cultural, arte e trabalho nas cidades e suas periferias

Profissão músico independente: as tensões da subsistência e gestão de carreira

Alice Coutinho Costa Lima1 UNIFESP

Resumo: Este artigo pretende ampliar a compreensão da atividade artística e extra artística do músico independente no campo da música popular brasileira produzida hoje em relação a esfera do trabalho, e as lutas e tensões destes em busca de uma carreira estável na independência. Para analisar este contexto serão trabalhadas entrevistas com artistas atuantes no campo em diálogo com uma bibliografia atual sobre a área musical e um conjunto de obras da sociologia da cultura como A produção da crença de Pierre Bourdieu e L’art du realism de Julien Duval.

Palavras-chave: 1. Músico independente; 2. Sociologia da cultura; 3. Música popular brasileira; 4. Trabalho artístico; 5. Financiamento da cultura

1

Alice Coutinho Costa Lima, mestranda no programa de Ciências Sociais da UNIFESP, com a pesquisa intitulada: O patrocínio na música, sob orientação da Prof. Dra. Márcia Tosta Dias. Alice é especialista em Gestão Cultural pela USP, atua como professora dos cursos de pós graduação de Gestão Cultural do Senac São Paulo e do curso Gestão, política e produção cultural da UNICAMP. E-mail: alicecoutinho@gmail.com

(2)

2 Introdução

Este artigo pretende discutir acerca dos músicos independentes da música brasileira e suas condições econômicas na cultura contemporânea e os desafios para gestão de suas carreiras.

O campo da música passou por uma intensa transformação há cerca de duas décadas, desde que o consumo migrou para o ambiente on-line. O estrondoso abalo na indústria fonográfica que essa mudança de consumo gerou trouxe a necessidade de se repensar todo o espaço da produção cultural – o trabalho, a circulação, a experiência.

Novas oportunidades se abriram principalmente para um grande nicho: dos artistas autônomos também chamados de independentes. As gravadoras e as rádios não são mais a única via possível e nem os árbitros culturais que já foram no decorrer do século XX, e o gosto do consumidor começou a integrar além da música massificada a música de nicho, que através de plataformas de redes sociais e streaming propõe novas experiências de consumo e distribuição. Ao mesmo tempo esse novo nicho de artistas não conta com o investimento financeiro que era dado pelas gravadoras e selos para a produção, distribuição e promoção, não são empregados e encontram aí um grande desafio a superar. Como financiar seus trabalhos, como garantir a permanência no campo?

Essa autonomia em relação ao aporte estrutural-financeiro das gravadoras é um dos grandes diferenciais dessa geração desde a consolidação da indústria da música na segunda metade do século XX. Uma pesquisa norte-americana organizada pelo grupo Future of Music Coalition (THOMPSON, K.; COOK, J., 2011) apresentou em 2010 dados sobre a transformação da fonte de renda dos músicos na primeira década do século, entre os resultados se apresentou uma queda na renda global dos artistas, e uma maior variedade na composição das fontes - a venda de discos perdeu relevância e a maior porção da receita observada vieram de shows e turnês (60%).

(3)

3

Em paralelo a isso, no Brasil, o Estado tornou-se nas últimas décadas a principal instituição de financiamento das atividades culturais. No entanto há de forma generalizada um fortalecimento do papel das grandes corporações e da privatização da cultura, com participação das grandes empresas no financiamento do trabalho artístico incentivado pelas próprias políticas públicas através da renúncia fiscal. No campo da música essas possibilidades de financiamento estatais e de patrocínio empresarial tem sido frequentemente utilizada para o fomento das produções, em substituição ao papel anteriormente exercido por gravadoras, e acabam trazendo novos tipos de relações entre artistas e instituições.

Apenas como exemplo, no ano de 2018 o patrocínio captado no segmento de música na principal lei de incentivo do país, conhecida como Lei Rouanet, somou 279 milhões de reais com 884 projetos realizados (sem contar os projetos das leis de incentivo de âmbito municipal e estadual, onde há mais de 70 em vigor).

Essas novas relações entre artistas e instituições (públicas e privadas) por um lado e por outro os desafios de uma atividade artística autônoma trazem uma série de tensões a profissão como instabilidade, precarização, necessidades de gerenciamento e negociação e de busca por atividades paralelas a atividade principal para compor renda, entre outras.

Para refletir e exemplificar a hipótese acima serão trabalhados depoimentos e entrevistas de músicos do polo independente do campo. Mas um passo anterior será circunscrever e distinguir este polo independente no campo da música, analisando se há correspondências ao polo de vanguarda e desinteressado de Bourdieu tratado em A produção da crença ou ao polo simbólico tal como trata Julien Duval no artigo L’art du realism.

No segundo tópico “Artista é um ser bem mimado” serão colocadas as tensões e lutas destes músicos em busca de legitimidade e subsistência no contexto contemporâneo, reconhecendo as situações de instabilidade e precarização tal qual aborda Dilma Pichoneri em Relações de trabalho em música, refletindo sobre a centralidade do papel do cliente como ressalta Michael Baxandall em O olhar renascente, sobre as desigualdades entre centro e periferia como debate Carlo Ginzburg em sua A micro-história e outros ensaios e analisando as tensões geradas

(4)

4

pela centralidade do gerenciamento, do deslocamento da crença do criador (“mimado”, desinteressado) para o campo e seus intermediários, como trabalha Bourdieu.

O artigo então se desenvolverá a partir dos tópicos: Independente a quê? e “Artista é um ser bem mimado” e as conclusões finais a partir das reflexões apresentadas.

1. Independente a quê?

O termo de distinção indie (diminutivo para independent) começou a ser utilizado na década de 1980, na Inglaterra e nos Estados Unidos, para se referir a estrutura de selos fonográficos – segmentos musicais específicos, que eram ligados as grandes companhias fonográficas e atuavam na formação de novos artistas e na prospecção de novos nichos de mercado. Posteriormente o termo também abarcou as pequenas gravadoras situadas à margem do esquema de produção, distribuição e promoção das majors (grandes gravadoras).

Apesar do uso do termo ser utilizado há cerca de quatro décadas, em sua dimensão prática são observadas por diversos autores a participação dessas pequenas gravadoras e de selos independentes desde o início da produção fonográfica, que no Brasil data de meados do séc. XX.

Ao longo da década de 1980 o independente se tornou também a distinção utilizada pelos artistas que desenvolviam autonomamente a produção de seus discos e carreira, “o artista que tem uma atitude independente, procurando esse tipo de meio para veicular um produto de proposta estética diferenciada e, muitas vezes, inovadora, sem lugar nos planos da grande empresa e do grande mercado” (DIAS, 2008, p.138).

O exercício de circunscrever os campos de produção aparece no ensaio A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos onde Pierre Bourdieu (2006) se debruça sobre os campos do teatro, das galerias de arte e dos escritores e editoras literárias da Paris do séc. XX para analisar o processo de criação, circulação e consagração dos bens culturais. Em comum ele distingue os

(5)

5

campos mais polarizados: a estética burguesa, também conhecida como “comercial” e a estética intelectual, também conhecida como “não-comercial” ou de vanguarda.

A estética burguesa, condicionada pelo grande porte de suas empresas e pelo igual volume de suas produções, considera o sucesso (econômico) por si só o valor de sua obra. Os empreendimentos deste nicho não assumem risco, investindo em produtos com demandas preexistentes, em um ciclo curto de produção com rápidos retornos dos ganhos, que contam com o aparato da publicidade para agilidade do seu fluxo. Já os agentes da estética intelectual, condicionados pelo menor tamanho das empresas e volume de suas produções, assumem os riscos de um investimento a longo prazo, na aceitação do risco inerente aos investimentos culturais, com uma produção inteiramente voltada para o futuro. Neste investimento desinteressado (dos ganhos comerciais) o sucesso vem pelos benefícios simbólicos, de reconhecimento (BOURDIEU, 2006, p.65).

Traçando um paralelo entre a sistematização desses campos analisados por Bourdieu com o polo independente da música no Brasil das décadas finais do século XX, quando começa a se utilizar o termo de distinção independente, podemos observar que há correspondências, mas não dão conta de todos as particularidades do campo aqui observado.

O campo da música no Brasil entre as décadas de 1970 a 90 era extremamente centrado na indústria fonográfica composta por poucas companhias transnacionais (as majors) que dominavam quase 90% do mercado (DIAS, 2008, p.78). Os meios de produção: dos estúdios de gravação a fabricação dos produtos (suportes da música gravada) estavam centrados nas mãos dessas poucas (de 6 a 8) majors. Já a partir de 1970 elas começam a adotar uma estratégia de segmentação e diversificação do mercado ampliando o leque de gêneros musicais trabalhados dividindo seu repertório entre artistas de catálogo e artistas de marketing (DIAS, 2008, p.82). Os artistas de marketing eram os concebidos e produzidos com objetivo de fazer sucesso, a maior parte do apoio financeiro era na esfera da promoção, e rendia às gravadoras milhares de cópias de discos vendidas num curto tempo, tal forma corresponde perfeitamente a sistematização de estética comercial de Bourdieu. Mas já os artistas de catálogo geralmente ligados a MPB produziam discos com venda garantida por vários anos, mesmo que em quantidades pequenas,

(6)

6

além de prestígio e espaço na mídia, o que caracteriza o ciclo longo e o reconhecimento, aspectos associados por Bourdieu a uma estética intelectual, porém aqui tal lógica é absorvida para dentro da indústria que é abertamente adepta a uma lógica burguesa e comercial, tendo o lucro seu principal objetivo.

Tal contradição com a literatura não se encerra por aí. Havia, como observado inicialmente, uma presença de artistas independentes que configuravam o outro polo de disputa. Porém estes esbarravam em primeiro lugar nas dificuldades de acesso a produção, que mesmo em crescente barateamento pelo desenvolvimento das tecnologias digitais ainda possuía um alto custo, dos estúdios a fabricação dos discos, já que as fábricas pertenciam ou atendiam às majors e aos independentes produziam discos de qualidade inferior “com um tipo de sobra do vinil e isso alterava a qualidade” (MANGA apud DIAS, 2008, p.154). Os artistas que possuíam capital econômico para investir nessa parte técnica de fato desfrutavam de uma independência na produção pondo em prática formas criativas e inovadoras no conteúdo, mas enfrentavam outra dificuldade, dessa vez no acesso aos mecanismos de distribuição e veiculação dos produtos, já que os grandes lojistas e as rádios e canais de tv já estavam coadunados ao jogo das gravadoras. Restavam aos pretendentes no campo uma “continua busca da sensibilização das majors” (DIAS, 2008, p.145) que também abraçavam artistas de nicho e com estéticas relativamente diferenciadas em sua lógica de segmentação.

A oposição entre os polos que para Bourdieu estrutura todo o espaço da produção cultural (BOURDIEU, 2006, p.40) neste campo e tempo específico demonstra contornos e fronteiras mais fluidas e menos determinadas. Mas e como essa oposição opera nas décadas atuais no campo da música, objeto deste estudo? Quem são os músicos independentes do século XXI? É o que será refletido adiante.

Realizando um panorama breve, o início deste século é marcado por uma reorganização das estruturas do campo da música no Brasil e no mundo a partir da implementação das tecnologias digitais. O digital que aparece como um fator de aprimoramento técnico da produção, com o surgimento e popularização da internet e o desenvolvimento de tecnologias de compactação musical como o MP3 vai alterar o cenário também em termos políticos, econômicos, jurídicos e culturais. Se fragiliza o domínio das grandes majors com os compartilhamentos de arquivos virtuais, com a

(7)

7

pirataria, a mudança nos hábitos de consumo e talvez o próprio esgotamento de seu modelo, e caem drasticamente os números dessa indústria.

Quando o polo comercial encolheu abriu-se um espaço maior para os artistas autônomos que se apropriaram das novas formas alternativas de difusão e do contato direto artista-público promovido pelas emergentes plataformas digitais. Mas entraram em cena também novos agentes e intermediários: gravadoras e selos independentes, pequenos empresários dos setores de comércio/distribuição de discos, de estúdios, de shows (DIAS, 2012), editoras musicais para proteção legal das obras, além deste novo espectro de empreendimentos digitais transnacionais, de plataformas como MySpace, Last.fm, YouTube entre outras.

Em paralelo a esse panorama do campo profissional da música há nestes mesmos anos uma crescente institucionalização da formação universitária do artista, apenas como exemplo o aumento de matrículas nos cursos de música do país no período entre 2000 e 2005 cresce 215%2. Então há uma nova geração de artistas que chega ao campo neste contexto sem uma oposição tão intensa entre os polos. Artistas com perfis estéticos mais alinhados ao polo comercial burguês por exemplo não terão mais tanto espaço e entrada no reduzido campo das gravadoras.

Ao mesmo tempo, essa ponderação não significa que não há mais desigualdades no campo da música no Brasil, significa apenas que simplesmente polarizar comercial x independente, como num paralelo a análise do campo da literatura ou do teatro de Bourdieu é redutor.

O sociólogo francês Julien Duval por exemplo, em sua pesquisa sobre o campo do cinema na França nos séculos XX e XXI (2006) chega a conclusão similar, de não estabelecer a priori a existência dessa polaridade no campo, mas buscar a partir de uma descrição empírica do mesmo, fazer desta polaridade questões de análise.

[...] numa descrição que se pretende rigorosa, as noções de "cinema de autor" e "cinema comercial" não são menos questionáveis. São categorias simples de percepção que, por serem muito compartilhadas, são dotadas de um forte poder de sugestão. Mas estas são categorias simples de classificação prática que não devem ser tratadas como categorias acadêmicas. Para propor

2

(8)

8

rapidamente a oposição entre "cinema de autor" e "cinema comercial", torna-se difícil, por exemplo, analisar a dimensão comercial do primeiro ou compreender que sucessos de bilheteira (como, recentemente, O fabuloso destino de Amélie Poulain) são regularmente percebidos como "filmes de autor". [...] seria necessário superar a oposição comercial/autor para entender a região, sem dúvida central no campo, que seria simultaneamente influenciada pelos dois polos. [tradução da autora] (DUVAL, 2006, p.97)

O autor parte então para compreender quais são as instancias de consagração do campo estudado, ou seja, quais as variáveis e modalidades que trazem reconhecimento aos artistas/cineastas, e os organiza no campo entre eixos (a partir de um exercício de análise de correspondência múltipla) do polo simbólico ao polo comercial e do acesso aos capitais globais envolvidos na atividade.

Entendendo então essa diversidade de fatores que compõe o campo, localizar e circunscrever os artistas independentes da música dos tempos atuais significa ultrapassar apenas os sentidos dos polos comercial versus de criação ou desinteressado.

As gravadoras que ainda hoje podem ser associadas ao polo comercial, mesmo entre elas há enormes diferenças entre as poucas grandes transnacionais existentes, que adotam inteiramente a lógica apresentada anteriormente para o comercial e de outro lado as pequenas e médias gravadoras ou gravadoras independentes que atuam mais sob a lógica de atender um nicho de mercado e muitas vezes adotam estratégias de longo prazo e com discursos que reforcem a imagem da valorização simbólica e do desinteresse econômico.

A geração de artistas independentes de hoje é marcada em primeiro lugar pelo não vínculo com as gravadoras, de qualquer porte. Esses artistas se autoproduzem de forma autônoma, mas não reside aí a única diferenciação. Essa autoprodução não significa que são os próprios artistas sozinhos os responsáveis diretos por todas as ações envolvidas, mas sim que passam por eles todas as decisões relativas a estas ações. Mas as ações são compartilhadas, por exemplo, o financiamento para seus trabalhos pode vir de diferentes fontes, seja de recursos próprios, patrocínios empresariais ou através de programas de políticas públicas. Suas distribuições podem ser realizadas em parcerias com empresas intermediárias ou realizadas pelo próprio artista, suas obras artísticas podem ser exploradas por

(9)

9

editoras musicais para licenciamento ou sincronizações, e sua comunicação muitas vezes está nas mãos de empresas ou profissionais de assessoria de comunicação e imprensa. Em grande parte, estas empresas intermediárias são de pequeno ou médio porte e são contratadas pelos artistas ou realizadas parcerias pelas participações nos lucros das ações. Cada composição ou forma de produção e condução da carreira poderia aqui indicar diferentes graus de autonomia e de proximidade maior ou não com o polo simbólico (não-comercial).

Seguindo a inspiração dos estudos de Julien Duval, além dessas parcerias e dos intermediários envolvidos na economia das produções e carreiras, também compõe o capital global dos artistas as instâncias de reconhecimento associadas a um artista independente, como específicas premiações, festivais (participações) e mídias (presença).

Por outro lado, se para Duval e Bourdieu o polo simbólico do eixo tem relação também com uma produção estética específica e mais orientada pela inovação, vanguarda e um discurso de desinteresse, o recorte dos artistas independentes de hoje não corresponde necessariamente a uma produção estética de vanguarda; diferentes gêneros musicais ou cenas compõe a música independente. Há artistas com produções estéticas comerciais que veem mais vantagem inclusive econômica na autoprodução como por exemplo boa parte do quadro dos artistas ligados ao funk nos dias de hoje, que centram suas produções principalmente na plataforma YouTube.

Outro caso que exemplifica uma escolha consciente pela atuação independente é Emicida, um dos artistas mais bem-sucedidos e reconhecidos atualmente na música brasileira:

As gravadoras já vieram atrás, mas os caras vêm com umas ideias tão furadas, mano, que não enche nossos olhos não... Então a gente continua trabalhando na independência. (...) Os caras falam: “Vamos aproveitar esse momento aí, porque agora que vocês estão bombando, vai vender pra caralho...”. E pô, eu não estou trabalhando pra vender pra caralho esse ano, tá ligado? Eu tô trampando pra daqui a dez anos eu estar trampando mais e melhor, saca? E, consequentemente, daqui a vinte [anos] eu ter uma história... Eu me preocupo em construir uma carreira e eu vejo que a mentalidade dos caras não funciona deste mesmo jeito. E por isso eu considero esses caras os latifundiários da nossa música. (EMICIDA apud GALLETTA, 2013, p. 257-258)

(10)

10

De outro lado pode-se contrapor uma cena inversa, de uma artista com uma estética menos comercial como a cantora Mahmundi sendo contratada por uma gravadora. O jornalista e colunista musical Mauro Ferreira faz uma provocação na matéria intitulada: O que Mahmundi tem a ganhar ao ir para o elenco de grande gravadora? e argumenta:

A questão é que um contrato com uma gravadora multinacional já não representa garantia de sucesso comercial ou artístico para um artista, seja ele um dinossauro da MPB ou um nome emergente nessa vasta cena independente que, verdade seja dita, ainda depende muito de editais para sobreviver. Até porque as gravadoras já operam sem o poder massivo de tempos idos. [...] Tomara Mahmundi tenha o discernimento sábio de manter a carreira no trilho artístico, aproveitando somente o que uma grande gravadora tem a oferecer de bom. O que já não é muito se comparado com as milionárias possibilidades da euforia fonográfica em vigor na era pré-digital, quando uma boa distribuição de CDs nas lojas era fator fundamental para o êxito de um disco. Mas que tampouco é desprezível se o artista (man)tiver o domínio da própria arte e as rédeas da carreira fonográfica... (FERREIRA, 2017)

Os exemplos apresentados apenas reforçam a não centralidade das gravadoras nos tempos atuais e como a autonomia seja na produção / condução da carreira, seja artística são cada vez mais valorizadas independente dos interesses – simbólicos ou econômicos por trás.

É possível concluir então que se já houve uma distinção polarizada dos campos da música comercial x independente, hoje nem o comercial compartilha inteiramente das mesmas lógicas de produção e difusão, como entre os independentes não há consensos sobre que lugar ocupam no campo e suas pretensões. Só é possível distinguir os independentes a partir de uma produção autônoma.

Mas e como sobreviver com uma produção autônoma? Apesar do forte termo empregado pelo jornalista Mauro Ferreira, a sobrevivência e a permanência no campo, e as tensões envolvidas nessa tarefa são sim fatores fundamentais para entender inclusive os papéis e espaços que esses artistas ocupam ou buscam ocupar no campo da música.

(11)

11 2. “Artista é um ser bem mimado”3

Uma pista para a subsistência nos tempos atuais é dada pelo próprio Mauro Ferreira no trecho da matéria acima citada: a dependências dos editais.

Como já apresentado anteriormente, no Brasil, o Estado vem representando a principal instituição de financiamento à cultura. Desde os anos 1930 ele assume a função de manutenção e expansão das artes como uma questão de política pública geral. Esse entendimento teve transformações e alguns avanços ao longo dos anos, e em meados de 1985 com a abertura da política nacional, em busca da superação das dificuldades financeiras e do fortalecimento da indústria da cultura é criada uma lei de incentivo à cultura, proposta de intervenção mínima do Estado na área, caracterizando um patrocínio empresarial às artes com uso de dinheiro público (a partir de benefícios tributários). Esta modalidade de patrocínio foi sendo fortalecida nessas últimas décadas e tornou-se sinônimo de política cultural, vista como a solução para os produtores de cultura.

Desde a virada do século as grandes empresas de variados setores e seus poderes de marketing e financiamento começaram a investir na música e na cultura de modo geral com o objetivo de haver retorno de prestígio para a imagem da empresa e/ou de seus produtos. Essas ações de patrocínio na maioria das vezes institui um edital, realizando uma seleção pública de apoio a projetos, como um instrumento formal para escolha dos melhores projetos a serem patrocinados. A dependência dos editais mencionada pelo jornalista aponta então que os artistas têm se valido cada vez mais desses patrocínios para financiamento de seus trabalhos, ocupando de certa forma a função anteriormente exercida pelas gravadoras.

Mas quais são as consequências desse novo tipo de relação entre artistas e instituições? Entendendo, assim como o historiador da arte Michael Baxandall, que “o dinheiro tem uma importância considerável na história da arte. Ele atua sobre a pintura não somente no que se refere ao fato de o cliente querer investir seu dinheiro em uma obra de arte, mas também através das modalidades de pagamento escolhidas” (1991, p.12).

3

Frase mencionada por um interlocutor, gerente de programa de patrocínio a música, em entrevista à pesquisadora.

(12)

12

A modalidade patrocínio empresarial traz novas e específicas condições: em primeiro lugar há uma mudança na lógica de condução e entendimento da carreira dos artistas. Hoje com os editais toda centralidade está no produto (álbum, show...) que será submetido para um financiamento pontual, realizado em um cronograma definido, com início, meio e fim. Não havendo iniciativas que invistam na carreira a longo prazo ou que ofereçam estabilidade a estes artistas. Outros fatores de instabilidade estão no risco inerente a este modelo de concorrência e processo seletivo, pois não há garantias de ser contemplado; e também na falta de constância e regularidade dessas ações de patrocínio.

Essa instabilidade da atividade aparece de forma relevante como uma das queixas apresentadas pelos artistas: “Sou autônomo. A característica de quem vive de música, de artes de modo geral, é uma certa instabilidade, no sentido de não ter uma clareza muito concreta do que vai acontecer amanhã. E esse é o único lance que às vezes amedronta4".

Há também uma extrema desigualdade no acesso ao patrocínio. A começar pela desigualdade territorial de relação centro - periferia. Centro aqui entendido como a região Sudeste e periferia correspondendo as quatro demais regiões do país. O Sudeste é responsável por 79% de todo o patrocínio captado na lei de incentivo federal à cultura5, índice que aponta enorme concentração. Essa desigualdade é reflexo de diversas dinâmicas que coincidem também com dinâmicas econômicas e políticas macro. Por exemplo o Sudeste tem também a maior atividade financeira do país, sendo responsável hoje por mais de 52% do PIB6. Em particular no campo da música há também uma grande dinâmica de fluxo dos artistas independentes de saírem de seus estados natais para o Sudeste, buscando a visibilidade da grande mídia, a proximidade dos agentes intermediários do campo, como também dos próprios patrocinadores, apontando para uma questão de dominação simbólica (GINZBURG, 1989, pp.73-83)7 deste espaço geográfico. Um

4

Depoimento de artista / interlocutor ‘A’ em entrevista à autora (2019).

5

Dados da Receita Federal dos resultados do Mecenato de 2015, Cf. Fórum brasileiro pelos direitos culturais. Cartilha Lei Rouanet. 2016. Disponível em: <https://www.fbdc.com.br/wp-content/uploads/2016/11/Lei_Rouanet_20161128.pdf>

6

Dados do IBGE, Livro: Sistemas de contas regionais (2019).

7

Ginzburg através do estudo da história da produção da arte italiana, analisa as relações centro-periferia e suas interações e dinâmicas. O autor trata as questões de dominação simbólica e das dinâmicas entre artistas e consumidores.

(13)

13

caso comum8 desses fluxos são de artistas residentes no Sudeste que são contemplados em editais de seus estados natais, aproveitando por um lado que participam de processos com menor concorrência e por outro que entram em vantagem pois possuem uma visibilidade nacional de uma mídia dominante.

Ainda pensando a instabilidade, a questão do trabalho artístico é também reflexo das mudanças globais das formas de trabalho que apresentam de modo geral um aumento das formas precárias e flexíveis de emprego, com diminuição dos direitos vinculados ao exercício do trabalho.

O auto-emprego, o freelancing, e as diversas formas atípicas de trabalho – trabalho intermitente, trabalho a tempo parcial, multi-assalariado –constituem as formas dominantes de organização do trabalho nas artes, e têm como efeito introduzir nas situações individuais de atividade a descontinuidade, as alternâncias de períodos de trabalho, de desemprego, de procura de atividade, de gestão de redes de inter-conhecimento e de sociabilidade fornecedoras de informações e de compromissos, e de multi-atividade na e/ou fora da esfera artística. (MENGER apud PICHONERI, 2011, p.110)

Tendo em vista essas relações precárias a multiatividade, por exemplo, é realidade para a maioria dos artistas independentes, o que pode gerar desgaste e prejudicar a trajetória profissional dos mesmos:

Eu saquei a muitos anos atrás que essa parada de você fazer um disco e viver do seu trabalho artístico pessoal, disco, show, que isso aí não ia rolar. Então por exemplo eu faço trilha de cinema que é o que mais me dá dinheiro, eu faço trilha de teatro, produzo discos de outras pessoas, essas coisas junto com alguns shows e com direito autoral de cinema que é muito melhor do que o de música, dá pra viver bem [...] Eu tiro dinheiro de onde dá e boto onde não dá, tiro do cinema e boto na música. (Artista independente, 2019)9

O mesmo músico do depoimento acima em outro momento da entrevista se disse desestimulado e que pensava muitas vezes em desistir da carreira. Já outro artista independente do campo quando perguntado sobre sua forma de produção deixou claro outro sintoma da precarização, quando explicou: “você grava de graça no meu, eu gravo de graça no seu, a gente se ajuda10”. O que é apontado como

8

Entre as entrevistas realizadas na pesquisa, por acaso metade dos interlocutores haviam praticado tal feito, apesar de residir e atuar em São Paulo foram contemplados por editais regionais de seus estados natais.

9

Depoimento de artista / interlocutor ‘B’ em entrevista à autora (2019).

10

(14)

14

solução colaborativa para produção demonstra uma fragilização do campo do trabalho profissional.

Diante desse contexto específico de autoprodução e precarização outro fator de tensão está na sobrecarga que as obrigações de gestão pesam sobre os artistas. Diferentemente do cenário colocado por Bourdieu na A produção da crença, sobre o papel de importância dos empresários / intermediários que permitem ao artista manter a crença e a denegação do econômico, nesse campo da música independente atual são os próprios artistas que passam a pensar na gestão de suas carreiras e nas negociações inerentes a atividade. A autonomia já tão discutida aqui se refere não só as decisões dos processos de criação e rumos artísticos do trabalho, mas também dos extra artísticos, como a definição das estratégias de financiamento e comerciais.

A tensão dessa mudança de papel aponta as vezes a uma forma de saudosismo em relação a crença do criador (BOURDIEU, 1006, p.21-15), algo que essa geração nunca chegou a vivenciar:

Quem é autor como eu, quer viver da sua obra. No mundo ideal eu viveria exclusivamente da minha obra, sabe? Às vezes eu não tenho tempo pra pegar uma letra de música, e ficar gastando tempo para fazer aquela letra, porque eu tô cuidando da empresa, tenho que cuidar disso, daquilo, tenho que ligar pra fulano, siclano [...] Eu produzo menos do que gostaria porque eu trabalho muito pras coisas acontecerem. (Artista independente, 2019)11

O “mundo ideal” para esse artista era uma realidade não muito distante, das relações de trabalho das gravadoras nos anos de 1970 a 90, onde talvez este artista independente não tivesse entrada.

O título provocador do tópico “artista é um ser bem mimado” ouvido em 2019 por um gerente de patrocínio demonstra que apesar de uma mudança cultural, política e econômica consolidada no campo da música, as relações e pretensões dos agentes do campo demonstram mais complexidade e ainda se confundem ora apontando a valores ligados a autonomia, ora apontando a denegação e desinteresse. Mas a única certeza que talvez possamos tirar da atuação do músico

11

(15)

15

independente após explorarmos o atual contexto é de que eles não são em nada mimados.

Conclusões

O amplo quadro de artistas independentes da música do século XXI, conta em comum com produções autônomas, mas se diferenciam em suas propostas estéticas e pretensões, com influência tanto do polo simbólico como comercial do campo. Já os desafios da subsistência e da auto-gestão são compartilhados por esses independentes num contexto de privatização da cultura e de novos intermediários digitais.

No âmbito do trabalho artístico na música as mudanças nas últimas décadas têm significado diminuição das relações de trabalho formais, instabilidade e aumento das formas precárias e flexíveis de emprego, com o exercício constante das multiatividades.

Articulando, então, o panorama das políticas culturais e das mudanças observadas no mundo do trabalho artístico, o caso específico dos artistas independentes ilustra, de diversas formas as contradições e tensões de um processo de autonomia.

Referências

BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991 [1972].

BOURDIEU, Pierre. “A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos”. In A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Porto Alegre: Zouk, 2006 [1977], pp. 19-111.

CASTELNUOVO, Enrico & GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, pp. 5-93.

(16)

16

______. "Quando o todo era mais que a soma das partes: Álbuns, singles e os rumos da música gravada". Revista Observatório Itaú Cultural, número 13. São Paulo: Itaú Cultural, 2012.

DUVAL, Julien. “L’art du réalism: le champ du cinema français au début des années 2000”. Actes de la recherche em sciences sociales, nº 161-162, 2006, pp. 95-115. FERREIRA, Mauro. O que Mahmundi tem a ganhar ao ir para o elenco de

grande gravadora?. Blog Mauro Ferreira. G1, Rio de Janeiro, 26/01/2017. Disponível em <http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/post/o-que-mahmundi-tem-ganhar-ao-ir-para-o-elenco-de-grande-gravadora.html>. Acesso em 20 de nov de 2019.

GALLETTA, Thiago Pires. Cena musical independente paulistana – início dos anos 2010: a “música brasileira” depois da internet. Dissertação - (Mestrado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, Campinas, 2013. PICHONERI, Dilma Fabri Marão. Relações de trabalho em música = a

desestabilização da harmonia. 2011. 251 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP

SEGNINI, L. R. P. O trabalho do músico entre o Estado e o mercado. Bahia: Políticas Culturais em Revista, 2014.

THOMPSON, K.; COOK, J. “Artist Revenue Streams: projeto de pesquisa multimétodo que examina as mudanças nas fontes de renda dos músicos”. São Paulo: Revista Auditório - Repensando Música, 2011.

Referências

Documentos relacionados

segunda guerra, que ficou marcada pela exigência de um posicionamento político e social diante de dois contextos: a permanência de regimes totalitários, no mundo, e o

b) Execução dos serviços em período a ser combinado com equipe técnica. c) Orientação para alocação do equipamento no local de instalação. d) Serviço de ligação das

O presente trabalho foi realizado em duas regiões da bacia do Rio Cubango, Cusseque e Caiúndo, no âmbito do projeto TFO (The Future Okavango 2010-2015, TFO 2010) e

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

To demonstrate that SeLFIES can cater to even the lowest income and least financially trained individuals in Brazil, consider the following SeLFIES design as first articulated

the human rights legislated at an international level in the Brazilian national legal system and in others. Furthermore, considering the damaging events already