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EDUCAÇÃO E O CUIDADO DE SI

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Academic year: 2021

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EDUCAÇÃO E O CUIDADO DE SI

Prof. Dr. Jayme Paviani1 A escola ocupa-se predominantemente com os conhecimentos científicos, com a formação exigida pela internacionalização dos mercados e dos bens. Nesse sentido, a escola é influenciada pelos processos da globalização que tendem a impor no mundo uma única cultura, desvirtuando as culturas regionais. Nessa mesma perspectiva, a educação escolar enfrenta, especialmente hoje, o espírito de competição que exige inovação e qualidade, enfim, procedimentos próprios da época em que vivemos. Nesse cenário, o ser humano, a formação humana, a constituição do sujeito passam a um segundo plano. Por isso, a questão do cuidado de si, assim como é proposta por M. Foucault, muito mais do que um simples voltar-se para um domínio temático, significa concentrar-se no essencial da formação humana e do cidadão.

Posta a questão, a pergunta urgente é a seguinte: qual a função do cuidado de si na educação?

Um dos desafios da educação é o de ser um direito fundamental de todos. Nesse sentido, a educação precisa criar oportunidades iguais para todos, qualidade de vida para todos, pois, vivemos num mundo onde a competição é desigual, onde os mais fortes dominam e controlam os demais. Muitos são os excluídos dos benefícios sociais e políticos, da ciência e da tecnologia. A pobreza, a insegurança, a violência, o desemprego, as migrações, etc. fazem parte do cenário atual. E é dentro desse cenário que podemos refletir sobre antigas práticas que, uma vez reatualizadas, revistas em suas diferentes dimensões, podem adquirir função e sentido na educação atual. Esse é o caso do cuidado de si.

1 Professor de Filosofia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul.

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As relações entre a educação e o cuidado de si vêm desde a Antiguidade (da Grécia Antiga, da Roma Antiga e dos primeiros séculos do Cristianismo). Foucault ao investigar novamente o cuidado de si acaba reatualizando o conceito em suas reflexões e comentários especialmente na

História da Sexualidade III e na Hermenêutica do sujeito. Nos últimos anos de

vida, ele investigou a prática do cuidado de si, em relação aos mestres e aos alunos e em relação à formação em geral. Estudou, igualmente, as modalidade de constituição do sujeito, as chamadas “tecnologias do eu”, isto é, às ações, operações, práticas que formam (dão forma) ao sujeito.

Assim, o cuidado de si, em suas conexões históricas, além de uma dimensão pedagógica, tem uma relação explícita com a questão do poder e do saber e, igualmente, com as habilidades de pretender liderar, inovar, ser um empreendedor e, ainda, com a competência individual de autocontrole e de domínio, além de influenciar e de governar os outros.

O cuidado de si na Antiguidade dirige-se à alma ou à formação da consciência. Hoje, o cuidado de si considera o ser humano em sua totalidade corporal, emocional, racional, etc. Foucault mostra, na História da Loucura e em O Nascimento da Clínica, como ocorreu o predomínio da razão sobre a desrazão. A tradição humanista insiste na razão como guia das ações humanas. Podemos dizer que o pedagogo é esse guia desde os gregos, pois era ele que conduzia o menino de casa (oikos) até a escola (gynnasion) da cidade. Nesse sentido, após compreendidas as reflexões de Foucault, é possível constatar que o professor é por excelência aquele que sabe cuidar de si, uma vez que cabe a ele ser o mediador entre a família e a esfera pública, a sociedade e o Estado.

Sob a perspectiva do cuidado de si, alguns temas pedagógicos ganham relevância e, entre eles, destacam-se as questões das relações entre o poder, o saber e a disciplina e o uso de métodos disciplinares com o objetivo de

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controlar o aluno, com o objetivo de manter o poder do professor sobre o aluno. Também adquire importância a relação entre o poder, o saber e a sexualidade e, nessa perspectiva, a prática da confissão como uma tecnologia para submeter a vontade de conhecimento e de buscar a verdade oculta no interior da pessoa.

Mas, o aspecto pedagógico de Foucault que aqui nos interessa, especialmente, é o da formação do sujeito, do eu, através da prática do cuidado de si. Trata-se de uma dimensão pedagógica que consiste em prover o professor e o aluno de um determinado perfil que supõe habilidades e competências e, ainda, conhecimentos capazes de formar o sujeito. Desse modo, o cuidado de si é condição pedagógica, ética e ontológica para ser um bom professor e bom aluno e, desse modo, um cidadão e também um bom governante.

A função do professor é promover o cuidado de si e cuidar do aluno, isto é, desenvolver o cuidado de si para poder cuidar do aluno. Entre outros aspectos, esse cuidado de si consiste em falar a verdade (parrhesia). Pois, a ignorância significa falta de referência ao eu e à vontade. A pessoa imatura precisa de que alguém lhe diga a verdade. O professor deve falar a verdade, embora sseja difícil alcançar a verdade total. Por sua vez, para passar da imaturidade à maturidade, é preciso realizam-se ações e mudanças de aprendizagem. Nesse sentido especial, a pedagogia da relação entre mestre e aluno consiste na possibilidade de realizar o ideal do cuidado de si, evitando métodos disciplinares coercitivos ou outras estratégias inadequadas.

O cuidado de si desenvolve-se a partir de tecnologias do eu que produzem efeitos tais que constituem o sujeito em seu modo de ser. Foucault, inspirado em Nieztsche, mostra que os seres humanos tornam-se sujeitos sem necessariamente privilegiar o poder (Marx) e o desejo (Freud). Ele busca em Heidegger o sentido do conceito de tecnologia. Assim, o sujeito é constituído a partir do contexto histórico e cultural particular e um processo genealógica.

Para melhor entender a constituição do sujeito, é necessário observar que eu não é uma substância pré-determinada e que precisa apenas ser desenvolvida. Na realidade, o eu é forma. São as práticas ou as tecnologias que produzem o sujeito em sua atulidade. Para Foucault existem: tecnologias de produção; tecnologias dos sistemas de sinais e tecnologias do eu. Essas

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últimas são operações em corpos e almas, condutas, modos de ser próprios ou com a ajuda de outros para alcançar a felicidade, aplicações de conhecimentos, etc.

Essas práticas ou ações (atividades) são, por exemplo, rotinas, cerimoniais, ritos, disciplinas, horários, normas que produzem e regulam comportamentos, ações ou pensamentos que determinam o eu. Portanto, o eu não é algo autônomo, unitário, algo que apenas precisa ser desenvolvido. O eu é forma descentralizada, múltipla, mutante. Ele é produzido por processos de objetivação, classificação, normatização das ciências humanas. Para demonstrar o processo de constituição do sujeito, Foucault refere-se ao contexto de surgimento das ciências humanas que, no jogo do poder e do saber, à semelhança da morte de Deus proclamada por Nietzsche, operam a morte do homem.

Para Foucault, o lema délfico “conhece-te a ti mesmo” foi mal interpretado pela História da Filosofia. Na realidade, só é possível conhecer-se a si mesmo a partir do cuidado de si. Esse desvio do cuidado de si em conhecimento de si, em parte, deve-se ao Cristianismo que transformou a filosofia grega. As práticas previstas como necessárias para constituir o sujeito, por parte de Platão e dos estóicos, por exemplo, foram transformadas pelas tecnologias do Cristianismo.

Exemplos de técnicas estóicas: cartas aos amigos e revelação do eu, exame de consciência, interpretação dos sonhos, treinamentos físicos, privação sexual, técnicas de meditação, rituais de purificação (orações, etc.). Todas essas práticas ganharam com o Cristianismo uma nova orientação. O catolicismo transformou a prática de dizer a verdade, de um indivíduo a outro, em confissão dos pecados em um sacramento e a usa (a confissão), em parte, para controlar a vida sexual e geral dos crentes. Hoje, a tecnologia da confissão desembocou nas práticas psicanalíticas. Enfim, confissão significa reconhecimento das próprias contingências e, no sentido religioso, reconhecimento dos pecados de alguém a outra pessoa.

As práticas confessionais tradicionais tornaram-se práticas médicas, terapêuticas e pedagógicas: a dominação não está em quem fala, mas em quem ouve e questiona. Sob o ponto de vista histórico, a confissão está ligada à penitência, à tortura, ao martírio, à obediência, à contemplação, enfim, à

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morte. E à necessidade de falar a verdade sobre si mesmo. (Para Foucault, a tecnologia da confissão é tão importante que está na origem das ciências humanas).

As tecnologias do eu têm como finalidade propor modelos para desenvolver relações com os outros e consigo mesmo, realizar auto-reflexão, auto-conhecimento; auto-exame; entender-se. Daí a importância da arte, da estética da existência, da escrita sobre si. Enfim, as formas de confissão contêm elementos de identificação do eu

Pode-se concluir que o cuidado de si tem relação com a educação dos valores, a educação moral, o civismo, a cidadania, a educação pessoal e social, etc. O cuidado de si permite a cada um descobrir o valor pessoal, aumentar a auto-estima, desenvolver a sociabilidade e o sentimento de solidariedade, adquirir consciência dos próprios limites e valores, e buscar o equilíbrio entre a razão e a sensibilidade.

Finalmente, para entender melhor o cuidado de si na Antiguidade, é oportuno ler de Platão o diálogo Alcibíades Primeiro. Nele, a educação de Alcibíades é criticada por Sócrates que mostra a necessidade pedagógica do cuidado de si.

Referências:

FOUCAULT, M. Hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FOUCAULT, M. História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

PETERS, M. A.; BESLEY, T. Por que Foucault? Novas diretrizes para a

Referências

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