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A Confissão Sacramento Da Misericórdia (Misericordiosos Como o Pai) - Conselho Pontificio

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Academic year: 2021

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INDICE

Capa Rosto Introdução

I - O perdão dos pecados por parte de Jesus II - Um pai e dois filhos

III - Uma questão de dívidas e de devedores IV - O dom do Espírito e o perdão dos pecados V - As palavras do perdão

VI - O sacramento da Reconciliação na Pastoral Ficha Catalográfica

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Q

I

NTRODUÇÃO

uando promulgou o Jubileu extraordinário que tem como centro a misericórdia de Deus, o Papa Francisco caracterizou-o como «uma nova etapa do caminho da Igreja na sua missão de levar o Evangelho da misericórdia a todos». E acrescentou: «Estou certo de que toda a Igreja […] poderá encontrar neste Jubileu a alegria para redescobrir e tornar fecunda a misericórdia de Deus, com a qual cada um de nós está chamado a dar conforto a todos os homens e mulheres do nosso tempo» (Homilia na Basílica de São Pedro, 13 de março de 2015).

Procurando oferecer um contributo como resposta a tais expectativas, e lembrando que «o Evangelho é a revelação, em Jesus Cristo, da misericórdia de Deus para com os pecadores» (CCC, n. 1846), neste livro são oferecidas algumas reflexões para se compreender melhor o sacramento da Confissão, o sacramento dos que, em Cristo, experimentam o amor misericordioso de Deus. Nos primeiros quatro capítulos, as considerações são claramente bíblicas: a argumentação desenvolve-se através de quatro textos, um por cada Evangelho, em que os temas da misericórdia, do perdão dos pecados e da conversão foram colocados por Jesus no centro do seu ensinamento e da sua ação. Nos capítulos seguintes, pelo contrário, prevalece a reflexão mais sistemática e pastoral para favorecer uma compreensão mais coerente do sacramento.

É bastante comum a crescente ausência da prática da confissão. Os motivos foram já várias vezes evidenciados: desde a negação da sua utilidade à convicção de que o perdão é um assunto meramente privado, entre a nossa consciência e Deus. Há ainda quem tenha dificuldades na confissão dos seus pecados a um sacerdote, e quem lamente a sua desilusão ao constatar a pouca disponibilidade de sacerdotes e de confessores bem preparados. Talvez se deva reconhecer que a dificuldade na aproximação do sacramento da Confissão é também espelho da dificuldade em avivar a fé em Deus e, sobretudo, na sua misericórdia.

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Este Jubileu poderá ser um momento privilegiado para se voltar novamente, como a um tema central da pastoral, ao sacramento da Reconciliação, de modo a colher a sua beleza e a sua eficácia. O Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização está profundamente agradecido ao padre Maurizio Compiani, que, com competência e sensibilidade pastoral, se dedicou à elaboração deste texto. Fazemos votos de que a leitura e a reflexão sobre este instrumento pastoral possa fazer chegar a alegria do perdão e da força da misericórdia de Deus como sinal da sua proximidade e ternura.

XRIN O FISICHELLA

Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização

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I

O

PERDÃO DOS PECADOS POR PARTE DE

J

ESUS

O Catecismo da Igreja Católica (CCC) aborda o sacramento da Reconciliação no capítulo intitulado «Os Sacramentos de Cura» (CCC, n. 1420-1532). A argumentação circunscreve-se a duas referências do Evangelho, colocadas uma no início e outra no fim, sobre o paralítico curado por Jesus em Cafarnaum (MC

2,1-12): é nesta situação que, entre Jesus e os escribas, tem início uma discussão sobre o tema do «perdão dos pecados». É a partir deste episódio que iniciamos a nossa reflexão.

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1. Uma questão controversa

Ficou desde cedo claro no Evangelho mais antigo, o de São Marcos, que o tema do perdão dos pecados é um assunto que cria sempre embaraço e levanta dificuldades. É significativo que a primeira controvérsia, que o próprio Jesus provocou, seja sobre o «perdão dos pecados» (MC 2,1-12).

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Um escândalo

Em Cafarnaum, dirigindo-se a um paralítico que lhe fora apresentado, Jesus disse: «Filho, os teus pecados estão perdoados» (v. 5). Estas palavras escandalizaram alguns escribas presentes que, no seu íntimo, questionaram: «Por que esse homem fala assim? Está blasfemando! Quem pode perdoar pecados, senão Deus?» (v. 7). As palavras de Jesus, consideradas blasfemas, provocaram desconcerto e desprezo nos doutores da Lei. Esta forte reação compreende-se perfeitamente, se comparada com os ensinamentos da tradição hebraica. Com efeito, o perdão dos pecados era considerado privilégio exclusivo de Deus, e somente de Deus! («Era eu mesmo, por minha conta, quem acabava limpando suas transgressões e não me lembrava mais de seus pecados», Is 43,25.) Foi o que Jesus manifestou na sua era messiânica, porque a salvação de Deus realizada em favor do povo incluía o perdão dos pecados («Qual deus é igual a ti? Qual deus, como tu, tira o pecado e absolve o crime do resto da tua herança? Qual deus que não guarda para sempre sua ira e dá preferência ao amor? Ele nos perdoará de novo: calcará a seus pés nossas faltas e jogará no fundo do mar todos os nossos pecados», MQ 7,18-19). No entanto, apesar de

serem múltiplas e variadas as expectativas sobre o Messias (um libertador do ocupante estrangeiro, alguém que reuniria o povo disperso, um fidelíssimo intérprete da Lei), nunca ninguém ousara atribuir ao consagrado de Deus o poder de perdoar os pecados de alguém. Tratava-se de uma prerrogativa absoluta de Deus, o Único! Julgando como blasfemas as palavras de Jesus, os escribas mostram ter uma lúcida consciência da condição do homem «sobre a terra» (v. 10) e do caráter da autêntica experiência religiosa. De fato, eles levavam a sério a distância abismal que separa o homem, pela sua natureza pecadora, do Deus três vezes santo (IS 6,3). Entre a erupção da vida de Deus e a fragilidade da existência

humana, o homem percebe uma diferença tremenda, reconhecendo-se indigno de entrar em relação com Ele. Nenhum homem pode ultrapassar tal distância: somente Deus pode assumir a iniciativa do perdão do pecado, reconciliando Consigo o pecador e abrindo-lhe a possibilidade de uma comunhão com Ele. Por isso, a tradição bíblica tinha ligado estreitamente o perdão dos pecados ao culto,

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o âmbito sacral em que o poder de Deus agia, através de um rito sacrifical em que o sacerdote oferecia uma vítima de expiação (LV 4-5), ou então, mediante a

solene e complexa liturgia do dia da expiação, o Yom Kippur (EX 30,10; LV

23,26-32). Em sintonia com os textos bíblicos, os escribas reconhecem somente a Deus o papel de agente de salvação. Por consequência, aos seus ouvidos, as palavras de Jesus dirigidas ao paralítico são inaceitáveis e insustentáveis, porque parecem querer elevá-lo acima da sua condição e, sobretudo, colocam quem as pronuncia no patamar do Deus “único” de Israel.

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Admiração

A cura prodigiosa do paralítico suscita em todos os presentes uma nova reação, desta vez abertamente manifestada. A multidão fica fora de si com a admiração e louva a Deus dizendo: «Nunca vimos coisa assim!» (v. 12). Nas palavras de Jesus sobre o perdão e na cura repentina do paralítico, a multidão reconhece a unicidade da relação que o une a Deus. No agir de Jesus, que cura e perdoa os pecados, veem-se dois aspectos em estreita relação, por atestarem o poder de reconciliação de Deus nas relações com Ele. Por isso, de modo oposto ao dos escribas, a multidão resolve a polêmica com um juízo a favor de Jesus: nunca se vira uma autoridade ou um poder que fizesse caminhar um paralítico sujeitado a muletas, tal como nunca se vira uma autoridade assim que tivesse o poder de perdoar os pecados «sobre a terra» (v. 10).

Da mesma forma, perante a missão evangelizadora da Igreja, escândalo e admiração manifestam-se a todas as horas. De fato, a Igreja, por mandato do Senhor, não se cansa de anunciar o Evangelho, «Porque eu não me envergonho do evangelho, pois ele é força de Deus para a salvação de todo aquele que crê, em primeiro lugar o judeu, e depois o grego» (Rm 1,16), e lembra incessantemente que em Jesus Cristo, «no qual temos a redenção por meio do seu sangue, o perdão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça» (Ef 1,7). Também hoje se verificam as mesmas reações na comunidade dos crentes, que igualmente interrogam toda a sociedade: Quem pode perdoar os pecados? E também: Termos como pecado, perdão, misericórdia, reconciliação têm ainda espaço no mundo que estamos construindo? Temos ainda hoje necessidade de perdão? E de perdão de Deus? Existirá ainda espaço para uma experiência de misericórdia?

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Perda do sentido do perdão

Quando a nossa sociedade exalta o indivíduo até a ponto de o pôr em contínua competição com os outros, e a todo custo, os conceitos de “perdão” e de “salvação” tornam-se incompreensíveis e intoleráveis. Por que é que devemos ser perdoados? E por que deveremos ter necessidade de salvação? A miragem da onipotência humana que o progresso tecnológico parece inspirar, o recurso ao mito da eterna juventude, a ostentação de bem-estar, a eficiência e a produtividade como únicos critérios de referência social levam a uma visão alienada e alienante do homem e da vida. E nela, qualquer limite é quebrado e transformado. O “limite” em si, até mesmo o mais natural e ético, é considerado um “mal” pelo simples fato de ele ser um recurso a uma liberdade sem outras referências que a afirmação de si contra tudo e contra todos. Neste caso, a confissão do pecado soa como fraqueza e o pedido de perdão a Deus parecerá um rito humilhante, do qual se pretende tomar distância.

Já não se acredita na misericórdia de Deus porque não se tem consciência do pecado, e não se tem consciência do pecado porque em nós subsiste a convicção de que não existe nenhuma noção objetiva de bem nem de mal. Este Ego desmedido contrapõe-se a qualquer reconhecimento de culpa, uma vez que cada decisão e ação sua têm apenas critérios auto referenciais. Então, a percepção de si, do mundo, dos outros e de Deus torna-se enviesada e hostil. O Ego desmedido coincide com o Ego alienado e egoísta. No mundo da perfeição, numa sociedade de indivíduos que querem ser perfeitos, reconhecer-se pecador e necessitado de salvação é sempre um escândalo. «O anúncio da conversão como exigência imprescindível do amor cristão é particularmente importante na sociedade atual, onde tantas vezes parecem perdidos os fundamentos de uma visão ética da existência» (JOÃ O PA ULO II, Tertio millennio ineunte, n. 50). É, portanto,

claramente atual o mandamento de Cristo aos seus discípulos, de irem por todo o mundo pregar o Evangelho (cf. MC 16,15): Evangelho de Verdade e de Salvação.

O Evangelho, que suscita a fé, leva à conversão e ilumina a vida, desmascarando toda a falsa visão do homem e da sociedade. Como lembrou o Papa Francisco:

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outras luzes acabam também por perder o seu vigor. De fato, a luz da fé possui um caráter singular, sendo capaz de iluminar toda a existência do homem. Ora, para que uma luz seja tão poderosa, não pode brotar de nós mesmos; tem de vir de uma fonte mais originária, deve provir, em última análise, de Deus. A fé nasce do encontro com o Deus vivo, que nos chama e revela o seu amor: um amor que nos precede e sobre o qual podemos nos apoiar para construir solidamente a vida. Transformados por este amor, recebemos olhos novos, experimentamos que há nele uma grande promessa de plenitude e se nos abre uma visão do futuro (Lumen fidei, n. 4).

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A maravilha da experiência

Quando o perdão dos pecados se faz experiência, o escândalo cede e dá lugar à admiração. De fato, no sacramento da Reconciliação, a “alegre notícia” sobre o perdão dos pecados faz-se certeza, o pecador é atingido pela misericórdia de Deus e regenerado por uma graça com múltiplas conotações.

Em primeiro lugar, trata-se de uma experiência de gratuidade. Não temos méritos suficientes porque o perdão de Deus não pode ser adquirido, mas só implorado e recebido: ele, de fato, é dom que atinge o homem por meio de Cristo. Pronunciando palavras de perdão sobre a Cruz (LC 23,34), o Messias de

Deus não só mostra o sentido de tal morrer, mas Ele mesmo se faz “transparência” da misericórdia do Pai. Tudo nos é perdoado em Jesus crucificado e ressuscitado! E a gratuitidade leva à gratidão.

O perdão dos pecados é experiência de luz. A misericórdia com que Deus atinge o pecador não é um vago sentimento que define a sua benevolência, mas a firme determinação com que Ele estende eficazmente a cada um a salvação que Cristo realizou sobre a Cruz para todos, de maneira completa e definitiva. Isto significa que só o Crucificado Ressuscitado é o centro adequado de compreensão do homem, da história e do mundo: o ponto de vista de que e no qual cada homem pode descobrir o sentido do projeto de Deus sobre si e sobre o mundo, o valor das suas ações e de tudo o que o rodeia, a profundidade do viver e o sentido da morte. Recebendo a remissão dos pecados, o homem é assim iluminado sobre a cruz de Deus e sobre a sua vontade. No rosto de Deus, descobre o rosto de um Pai que não renuncia a nenhum dos seus filhos.

O perdão dos pecados é experiência de verdade. A súplica reiterada de perdão dirigida a Deus mantém vigilante a consciência do cristão sobre a verdade da sua condição pecadora. De fato, um dos maiores riscos em que o discípulo de Jesus pode incorrer é o de não saber medir a profundidade nem a seriedade desta condição. Para o cristão, o pecado e o mal que daí resultam não são uma simples violação de uma lei, mas uma realidade que o penetra e o envolve sem que ele lhe possa compreender plenamente as raízes e o alcance. O mal não se anuncia por antecipação por aquilo que efetivamente é, mas mede-se e esconde-se no mais

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íntimo da vida humana banal e quotidiana, ao ponto de somente um olhar particularmente perspicaz o poder discernir antes que exploda em toda a sua horrível realidade. De resto, a experiência e a história ensinam que não basta querer fazer o bem para evitar o mal: crimes terríveis foram cometidos com a convicção de se fazer o bem. O sacramento da Reconciliação demonstra que existe indubitavelmente um mistério do mal que nos supera e perante o qual devemos ter sempre uma atitude cuidadosa, de humilde e de lúcida prudência, sem a ilusão de o ter alguma vez entendido e dominado apenas com a nossa razão e com os nossos bons sentimentos.

Além disso, na perspectiva cristã, a Cruz de Cristo, da qual provém o perdão do Pai, revela, em toda a sua dramaticidade, antes de tudo, a realidade do nosso pecado e o nosso estado de pecadores, porque, quer o saibamos ou não, sobre a Cruz aparece com clareza aquilo de que somos capazes, ainda que não tenhamos essa intenção: somos capazes até de matar o próprio Deus. Deste modo, o Crucificado torna-se a testemunha permanente da nossa cegueira e impotência radicais perante o mal e o pecado, ao ponto de se dever dizer que, sem Cristo, estaríamos radical e definitivamente perdidos. A luz que o Crucificado lança deste modo sobre o mistério do mal reduz pela raiz todo o pretexto presunçoso de conhecimento até o ponto de sabermos quem realmente somos.

O perdão dos pecados é experiência regenerante que renova a graça do Batismo e consagra como empenho contínuo o caminho pessoal e eclesial de conversão. Reconciliando com Deus, ele opera uma transfiguração no cristão pecador, renova-lhe as forças e relança-o para o desempenho da sua missão na Igreja e no mundo. Para o crente, o sacramento da Reconciliação é um sacramento de cura porque o acompanha no seguimento de Cristo, amparando-o no caminho marcado pela sua própria fragilidade e debilidade.

O perdão dos pecados é experiência de comunhão. O perdão que Deus oferece ao pecador nunca é uma realidade puramente individualista. Como o apelo à fé implica uma resposta pessoal e nos introduz numa comunidade de discípulos, assim o perdão de Deus não só se realiza na profundidade do coração, como é recebido no seio e mediante a Igreja. A reconciliação que Deus realiza aviva a comunhão da comunidade dos crentes. De fato, é a partir do amor de Deus, que

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se juntou a nós em Cristo, que o cristão aprende a amar: a graça superabundante derrama-se no amor aos irmãos. Assim, o eu do crente é inseparável do nós da comunidade, e o perdão de Deus, dado em Cristo por meio do Espírito Santo, a todos reúne num único mistério de comunhão.

Por fim, o perdão dos pecados é experiência de admiração, precisamente porque, “em Cristo”, a revelação do pecado e do seu mistério individual e coletivo nunca pode ser separada da salvação que Ele nos oferece, porque o Crucificado também é o Ressuscitado. Por conseguinte, embora olhe para o mistério do mal que o rodeia e o atravessa, o cristão não teme tomar dele consciência pessoal e dele fazer aberta confissão, porque ele se move sempre e só a partir da certeza fundamental de uma salvação já oferecida, como se uma hábil mão amiga o guiasse ao atravessar um campo minado, tomando, porém, consciência somente depois de o haver já superado com ela e graças a ela. Então, a admiração agradecida não pode não acompanhar tal tomada de consciência, uma admiração em que a confissão do pecado, salvação doada e amor derramado não fazem senão uma unidade e onde a gratuidade do dom recebido é evidente. Como lembra o Papa Bento XVI:

O sacramento da Reconciliação, que se inspira numa consideração da condição existencial pessoal concreta, contribui de modo singular para aquela “abertura do coração” que permite dirigir o olhar para Deus, a fim de que entre na vida. A certeza de que Ele está próximo e, na sua misericórdia, atende o homem, mesmo o envolvido no pecado, para curar as suas enfermidades com a graça do sacramento da Reconciliação, é sempre uma luz de esperança para o mundo (Discurso à Penitenciaria Apostólica, 9 de março de 2012).

«Nunca vimos coisa assim!» A multidão maravilhada de Cafarnaum faz eco da alegre maravilha da Igreja de todos os tempos e da gratidão de todo crente que, no mistério pascal, descobre, vive e anuncia a fonte inesgotável da salvação.

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2. Um acontecimento eclesial e pessoal

O encontro de Jesus com o paralítico de Cafarnaum acontece de modo singular. Sem explicitar quem tomou a iniciativa, Marcos narra que «Levaram então um paralítico, carregado por quatro homens» (2,3). Quem são estes quatro homens? Os textos paralelos de Mateus e de Lucas ignoram estes detalhes (MT 9,2: «Eis

que levaram a ele um paralítico deitado na maca. Vendo a fé que eles tinham, Jesus disse ao paralítico: “Coragem, filho! Seus pecados estão perdoados”»; LC

5,18: «E eis que chegaram alguns homens carregando um paralítico numa maca. Tentavam levá-lo para dentro e colocá-lo diante de Jesus»). Impedidos de chegar perto de Jesus por causa da multidão aglomerada à frente da casa, tomaram uma iniciativa decidida: fizeram um buraco no teto «e por ele baixaram a maca em que o paralítico estava deitado» (2,4) e a seguir fizeram subir a maca na qual levavam o paralítico. Jesus, «vendo a fé que eles tinham», surpreendentemente, dirigiu ao paralítico não palavras de cura, mas «Filho, seus pecados estão perdoados» (v. 5).

Este episódio curioso destaca o desejo e a forte determinação que animam os que queriam ajudar o paralítico, transportando-o até Jesus. Não existe obstáculo que consiga pará-los: nem a problemática condição do doente, nem o caminho obstruído pela multidão, nem os muros da casa que os separavam de Jesus. Foi em consideração a esta «sua» fé que Jesus proclama ao paralítico o perdão dos pecados. A exegese identificou algumas vezes estes quatro homens com os quatro discípulos dos quais, um pouco antes, se narra o chamamento ao longo das margens do lago da Galileia (MC 1,16-20): «Venham após mim, e farei de

vocês pescadores de gente»; o imperativo e a promessa que Jesus lhes dirigiu parecem indicar a ação no comportamento dos quatro homens. Eles procuram quem não consegue chegar a Jesus nem se mistura com a multidão por causa daquela enfermidade. Ser pescadores significa retirar do mar; ser pescadores de homens significa salvar homens do perigo de morrerem (condição bem representada pelo paralítico que levavam) para assegurar a sua vida, como parece também sugerir a primeira reação do enfermo à sua cura: «Ele se levantou» (v. 12, ēgerthē); é usado o mesmo verbo que indica a ressurreição de Jesus (MC

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16,6). O mandato dado aos discípulos e a ação dos homens unem uns aos outros, mostrando que o mistério pascal de Jesus se atualiza e se estende também graças à sua colaboração.

Há ainda um apontamento posterior, tipicamente de Marcos, que não passa despercebido: trata-se de sublinhar com quem o texto evidencia a finalidade que os homens têm em vista. Segundo São Lucas, a maca desceu «diante» de Jesus (LC 5,19); Mateus evita qualquer precisão (cf. MT 9,1); Marcos, pelo contrário,

destaca que o lugar no qual eles abriram o teto é exatamente aquele «onde» Jesus se encontrava; foi ali que desceram a maca «onde» o paralítico estava (2,4). O duplo apontamento do lugar faz coincidir espacialmente, como a sobrepor, a figura do paralítico com a de Jesus: os dois encontram-se presentes no mesmo instante. O lugar da doença coincide com o lugar no qual Jesus «anunciava a Palavra» (v. 2): lá, onde o pecado existe, é o lugar onde aquela mesma Palavra salva, perdoando. O lugar do pecado dá lugar à salvação!

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A fé dos quatro homens

Existe uma relação estreita entre os quatro homens e o perdão dos pecados. Na verdade, foi graças à «sua» fé que Jesus declarou o perdão ao paralítico. Contrariamente à multidão, eles não foram simples espectadores da ação de Jesus, mas estiveram na origem da reação. Uma antiga interpretação litúrgica batismal associa-os à figura dos “padrinhos” que acompanham o catecúmeno, mas não é difícil ver neles uma mais ampla referência à comunidade cristã no seu conjunto, e ao papel que ela tem no capítulo do perdão dos pecados que Deus oferece. Tudo o que os quatro organizam e põem em ação tem apenas uma finalidade que eles concretizam com incomparável tenacidade: “levam” a Jesus. Tal lucidez e tal firmeza devem-se à determinação com que Jesus segue a vontade de Deus nos confrontos do filho do homem, até o supremo sacrifício da Cruz, fonte de onde provém o perdão cristão (cf. Mc 8,31; 9,31; 10,33-34). A ação dos quatro estava alinhada com o agir de Jesus. O perdão dos pecados chega ao paralítico através das palavras de Jesus, palavras que ressoavam num contexto preparado pelos quatro e no qual eles têm um papel fundamental. Na narração não se diz que o paralítico tem fé, mas que foi transportado pela fé daqueles quatro! A fé da comunidade crente abre o espaço para que o pecador seja atingido pelo perdão de Deus através do encontro com Jesus. Trata-se de uma dimensão fundamental e “sacramental” da graça: o perdão dos pecados realiza-se num acontecimento eclesial.

A missão da Igreja é aqui resumida na fórmula “trazer a Jesus”, que, porém, não significa pôr à “frente” d’Ele. Com efeito, aqueles quatro não prestam simplesmente cuidados ao pecador libertando-o de todo obstáculo no caminho até Cristo; mas o paralítico é descido exatamente no sítio onde Jesus se encontra, permitindo assim a realização do singular e surpreendente encontro pessoal com Ele. Mais do que uma ação de socorro e de compaixão, trata-se de uma missão iniciática, participante da dinâmica com que o perdão é dado por Deus e que, ao mesmo tempo, introduz dentro dele o mistério do poder que Jesus manifesta na sua palavra e na sua pessoa. Assim, torna-se claro que a salvação vem toda de Deus, mas chega ao pecador associando à missão de Cristo também a dos

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discípulos.

Relativamente ao sacramento da Reconciliação, o Catecismo da Igreja Católica sublinha em primeiro lugar a dimensão eclesial do ministério dos Apóstolos: «Ao tornar os Apóstolos participantes do seu próprio poder de perdoar os pecados, o Senhor dá-lhes também autoridade para reconciliar os pecadores com a Igreja» (n. 1444). Esta dimensão eclesial do ministério apostólico passou para o bispo enquanto «moderador da disciplina penitencial» (n. 1462). Depois, o olhar abre-se para um horizonte mais amplo quando abre-se fala dos efeitos do sacramento:

Este sacramento reconcilia-nos com a Igreja. O pecado abala ou rompe a comunhão fraterna. O sacramento da Penitência repara-a ou restaura-a. Nesse sentido, não se limita apenas a curar aquele que é restabelecido na comunhão eclesial, mas também exerce um efeito vivificante sobre a vida da Igreja que sofreu com o pecado de um dos seus membros (CCC, n. 1469).

O episódio do paralítico de Cafarnaum delineia, porém, uma perspectiva teológica em que a dimensão eclesial deste sacramento é ainda mais ampla e mais forte. Ela estende-se não somente ao momento celebrativo por força da confissão pessoal perante o ministro, mas, além disso, ao fato de a reconciliação com Deus também estabelecer a reconciliação com a Igreja. A dimensão eclesial é até prévia e tem, por assim dizer, uma conotação ligada ao desempenho: ela é inerente a todo o caminho penitencial, desde o seu início até sua consumação. Com efeito, aqui Deus dá o perdão ao pecador porque, através dos olhos de Jesus, Ele reconhece a fé que a Igreja põe nele. Trata-se de uma ótica de misericórdia trifocada que, de modo muito particular, coloca em relação Deus, Jesus e a Igreja. Certa analogia aparece também no grandioso hino aos efésios (1,3-14), em que o autor declara que a redenção, como perdão dos pecados, é derramada através do sangue expiatório de Cristo (v. 7). Tal acontecimento de graça realiza um plano de amor, fruto de uma livre vontade do Pai, que, vendo-nos em Cristo, desde sempre associados a Ele, vendo-nos escolheu desde a criação do mundo, dando-nos a condição de filhos adotivos (v. 3). A reconciliação, portanto, atua dentro de uma visão em que o Pai “vê” a Igreja, cuja identidade e fundamento real consistem no estar em relação a Cristo.

Esta perspectiva teológica, ao mesmo tempo trinitária e eclesial, está tão concentrada que a práxis penitencial e pastoral provavelmente ainda não

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desenvolveu em si todas as implicações e quedas. Porém, a liturgia, na sua sabedoria educadora, impede que se lhe perca a memória. Nos ritos de comunhão da celebração eucarística, no momento em que se invoca a paz prometida por Cristo, o sacerdote exclama: «Não olheis para os nossos pecados, mas para a fé da vossa Igreja». Assim, cada vez que comungamos, somos todos reconduzidos àquele dia em Cafarnaum, ao momento em que os olhos de Cristo pousam sobre a fé de quatro homens.

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Levanta-te e anda

Somente no fim desta cena o paralítico assume um papel ativo. Em perfeita correlação com as palavras de Jesus: «Levante-se, pegue sua maca e vá para casa» (v. 11), ele «Ele se levantou, imediatamente pegou o leito e saiu diante de todos. E ficaram todos admirados e glorificavam a Deus, dizendo: “Nunca vimos coisa assim!”» (v. 12). A súbita e perfeita sintonia entre a ordem e a sua execução tem em primeiro lugar como fim sublinhar o poder e a eficácia da palavra de Jesus. A polêmica com os escribas incidia sobre a qualidade do «dizer» de Jesus: «O que é mais fácil? Dizer ao paralítico: ‘Seus pecados estão perdoados’, ou dizer: ‘Levante-se, pegue sua maca e ande’”?». O duplo «dizer» sublinha tudo o que foi posto em jogo: A palavra de Jesus é verdadeira ou é vã? É poderosa ou ilusória? O fato de imediatamente o paralítico se levantar exige que os doutores da Lei reexaminem os seus juízos contra Jesus.

Antes deste momento, embora esteja sempre presente na cena, a figura do paralítico ocupa um papel extremamente marginal. Para além da sua condição de enfermo, dele não nos é dada mais nenhuma característica: não tem um nome nem está marcado por uma pertença religiosa (pagão, judeu, fariseu, levita), faltam atributos sociais (rico ou pobre), não fala nem são revelados seus pensamentos, emoções ou reações. Trata-se de um muro impenetrável, com uma única brecha, que deixa perceber a sua conotação moral presente na declaração de Jesus de que lhe são perdoados os pecados: é, portanto, um pecador. Jesus vê a fé dos quatro, mas conhece também a situação íntima deste homem, não lhe escapando igualmente o juízo que os escribas exprimem, mesmo que apenas em pensamentos (v. 8). Definitivamente, só Jesus conhece profundamente e revela o coração de cada um, revelando-se como o profético Messias redentor.

A atenção sobre o paralítico nos é, porém, dada por outro elemento: fazendo referência a este homem, por duas vezes se utilizam verbos sinônimos de “levar”: «Levaram então um paralítico carregado por quatro homens» (v. 3). A figura deste enfermo não é só impenetrável, mas também completamente inerme: uma descrição que destoa do contexto bastante caótico marcado pela multidão e pela

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iniciativa dos homens que transportam o paralítico. É a esta figura inanimada, sem vontade nem vitalidade, pertencente mais ao mundo dos mortos que ao dos vivos, que Jesus, como um Pai, chama «filho». A este filho perdoa os pecados no preciso momento em que os revela, assegurando que não existe nenhum obstáculo entre ele e Deus. Ele vê-se declarado “pecador”, mas através da mesma palavra encontra a sua vocação de “filho”. A distância ultrapassada entre o paralítico e Jesus corresponde à superação da distância que separa Deus do pecador. Deste modo, o paralítico experimenta que, aproximando-se de Jesus, também se aproximou do Reino de Deus, no qual a fé, a conversão e a boa-nova se fundem numa única coisa (cf. Mc 1,15). Pronunciadas em voz alta, as palavras de Jesus tornam, ao mesmo tempo, conhecido a todos que a enfermidade e o pecado não são forças insuperáveis que possam manter para sempre em seu poder o paralítico, porque Deus sempre o considerou “filho”, sem nunca o ter repudiado, independentemente das culpas que cometera. No encontro com Jesus, o perdão dos pecados está, assim, ligado à revelação salvífica sobre o pecador: a ligação originária a Deus, como a de “filho”, vem à luz. Ninguém a considerava, mas a palavra de Jesus que faz erguer o paralítico assegura também que nunca se perdeu, ou foi retirada.

O caráter poderoso da palavra de Jesus manifesta-se no efeito que produz. O paralítico é finalmente sarado e reage com uma transformação expressa em três tempos: estava deitado, levanta-se; era transportado, pega na maca; não podia entrar em casa, mas agora regressa a ela autonomamente. A rapidez destas ações amplia o efeito de vitalidade que agora o caracteriza. Aquele que era “levado” finalmente caminha, e a indicação sobre a maca que ele, ao ir embora, toma consigo, se bem que não precisasse disso, sugere que ainda não terminou a sua utilização. Poderá servir ainda para levar até Jesus outros enfermos pecadores que ele mesmo poderá transportar. O círculo acaba assim: o “levado” transforma-se no “que agora leva”; aquele que estava alojado na sombra da morte caminha agora à frente de todos; aquele que foi objeto de misericórdia por parte de Deus e de quatro homens torna-se homem “pescador de homens”, para que outros, levados até Jesus, experimentem como ele o encontro misterioso de fé, amor e perdão.

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II

U

M PAI E DOIS FILHOS

Que a dinâmica da misericórdia realiza em nós o perdão dos pecados manifesta-se com evidência na parábola do filho pródigo (LC 15,11-32), a mais longa do

Evangelho de Lucas e a terceira de três parábolas sucessivas e centradas no comportamento de Deus e na alegria de encontrar o que se perdera (uma ovelha: 15,1-7; uma moeda: 15,8-10; o filho: 15,11-32). De modo análogo à descrição do paralítico de Cafarnaum, também os personagens da parábola de Lucas são descritos de forma quase anônima. O único interesse da narração recai sobre as relações problemáticas entre um pai e os seus dois filhos. Toda a questão se refere à paternidade, às relações filiais e às ligações fraternas. Quanto ao resto, perdão e misericórdia são realidades primeira e completamente pessoais, acontecimentos que penetram o homem na sua mais profunda interioridade e na sua relação recíproca, até implicar com a vida, às vezes de modo inesperado e quase prodigioso. Portanto, na narração deve-se dar atenção particular às ações que os personagens realizam e às palavras que eles pronunciam. É aqui que emergem os seus verdadeiros sentimentos, os valores que mais chamam a atenção, os propósitos autênticos que eles seguem. Daí surge um quadro inesperado: uma paternidade singular, relações filiais desconcertantes e uma fraternidade a recompor.

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1. O regresso de um filho

Desde o início da parábola, a figura do filho mais novo apresenta dois pontos obscuros preocupantes. Ele é introduzido na cena sem preâmbulos, num discurso dirigido ao pai a pedir a sua parte da herança. Ele não explicita as razões de tal pedido, e o pai também não lhe pede isso. Pelo fato de pedir simplesmente «o que lhe cabe» (v. 12), mostra que não tem pretensões indevidas: está bem consciente da sua condição de filho e o seu desejo é ir para longe. O patrimônio deverá ser dividido, mas em toda a narração nunca fala do irmão mais velho. Abandonando a casa na qual não pensa deixar nenhuma lembrança de si («juntou tudo»), ele corta radicalmente a ligação que o unia ao pai e ao irmão, mas nem se parece importar muito com isso, pois mostra-se completamente decidido a realizar o que tem em vista.

O modo repentino com que «Poucos dias depois, o filho mais novo juntou tudo e partiu para uma região distante. E ali esbanjou seus bens, numa vida desregrada» (v. 13), lança luz sobre as verdadeiras motivações que estavam por detrás do pedido feito ao pai. Por mais aventureiro que seja, o desejo do filho é fruto de uma decisão livre e consciente. Ele não poderá culpar ninguém se, no futuro, se encontrar na condição dramática de arriscar morrer de fome: a culpa é sua, a responsabilidade é pessoal. Mas no confronto do pai e do irmão mais velho, as suas palavras dizem mais do que afirmam. Enquanto filho, as pretensões sobre o patrimônio são legítimas, e o pai não lhe coloca objeções. Não se fala de nenhuma recriminação por parte do irmão mais velho. No entanto, ao sublinhar-se que ele pediu «o que lhe cabe», isso implica uma divisão patrimonial na ótica da herança. O pedido é dirigido ao pai como se este já estivesse morto! E, de fato, a pressa dos preparativos para sair de casa, não para um lugar por ali perto, mas para um lugar distante, mostra que a distância não é somente geográfica. Independentemente dos motivos que justificam a sua saída, para o filho mais novo o desejo de autonomia é mais importante que a relação filial. Naquela sua saída repentina, a ênfase da separação mostra que a figura do pai e a do irmão não têm lugar no projeto de vida que este filho tem.

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dissoluta e de prazer. Infelizmente, frequentes vezes este pormenor levou a pregação a estigmatizações morais. Mas a narrativa pretende pôr em evidência o pormenor imprevisto que encanta a parábola. Em primeiro lugar, para o próprio jovem: aquele viver «distante» tão desejado e querido a todo custo revela-se uma escolha trágica em que ele perde toda a dignidade. Procurava a própria autonomia longe do pai e com um corte nítido com a sua casa, mas é obrigado a trabalhar como guardador de porcos. Para um judeu, era um trabalho infame, que ainda por cima nem dava para matar a fome. O lugar «distante» perde todos os atrativos e mostra uma dupla característica: não é motivo de enriquecimento, mas põe tudo a perder, esvazia completamente tudo, mesmo o interior. Além disso, é um lugar marcado pela carestia, que por isso não pode dar-lhe o alimento necessário. Para o filho mais novo, delineia-se uma condição sem futuro, de desencanto e sem esperança. Contudo, esta catástrofe levará a uma nova descoberta: o modo como será acolhido pelo pai. Por sua vez, a decisão do pai provocará uma inesperada reação no filho mais velho. Esta trama de pecado e de misericórdia, de culpa e de perdão, caminha de surpresa em surpresa.

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A experiência do pecado

A parábola não dá uma definição do pecado, nem tem particular interesse nas motivações que impelem o filho mais novo a sair de casa. Todo o conjunto da parábola tem em vista, sobretudo, preparar as motivações do seu regresso ao pai. Este silêncio sobre as razões das escolhas erradas leva-nos a interrogar-nos sobre a origem do mal em cada um de nós e sobre o homem continuar à procura de um lugar longínquo do Pai. É um silêncio que deixa espaço a mil respostas (egoísmo, inveja, perda de referências, valores errados, indiferença ao próximo etc.). Todos os confessores e todos os penitentes poderiam em cada dia atualizar a casuística sem demasiadas dificuldades, lançando luz sobre as motivações individuais, sociais e eclesiais que inspiram os males do nosso tempo. Mas a evidência mostra simplesmente que o pecado nos é conatural, a ponto de a sua contínua repetição arriscar adormecer a consciência. Para percebermos isso, bastaria fazer o exercício de tentar lembrar o nosso primeiro pecado para termos consciência da impossibilidade de formular uma resposta. Simplesmente, até onde temos consciência, devemos reconhecer que o pecado esteve sempre conosco, esteve sempre presente nas suas variadas manifestações, mais ou menos graves. Sobre esta misteriosa e inquietante presença meditou o texto de GN 3, ao falar da

serpente tentadora, que «era a mais esperta das feras do campo que o Senhor Deus havia feito» (v. 1). Adão e Eva encontram-se no jardim do Éden, literalmente o “jardim das delícias”; a serpente é aí apresentada como um estranho: não pertence ao jardim, mas ao campo, e contudo aparece, de repente, onde vive o homem e a mulher. Alguns Padres da Igreja perguntam-se como pôde este animal entrar no jardim, quem e quando o admitiu. É a mesma pergunta que fazem os empregados na parábola do trigo e do joio: «Os servos do proprietário foram até ele e perguntaram: ‘O senhor não semeou boa semente em seu campo? Então, como é que tem joio?’» (MT 13,27). É a mesma pergunta

que se repete cada vez que o pecado e as suas consequências de mal e de sofrimento provocam escândalo aos nossos olhos. A Bíblia evita qualquer especulação filosófica: o mal é apresentado, mas não é explicado, simplesmente “existia”. No momento em que Adão e Eva iniciam a sua aventura humana, a

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serpente aninha-se na sua intimidade, está presente nos seus pensamentos, nas suas palavras e nas suas ações. Ela é persuasora, capaz de sugerir “lugares distantes”, para além de toda constrição e limite («Vão morrer coisa nenhuma!», GN 3,4), sobretudo é capaz de enganar e de deformar a visão de Deus e a relação

com Ele. Como o filho mais novo da parábola, também Adão e Eva se encontrarão vazios e na miséria, e até incapazes de olhar um para o outro: a sua nudez agora é o espelho da verdade da sua própria culpa, uma visão que eles não conseguem aguentar.

O que é, pois, o pecado? A parábola de Lucas sugere a imagem de “separação” do Pai. O pecado é tudo aquilo que nos afasta dele e dos irmãos e subverte o nosso coração. O pecado é tudo o que não nos deixa ter uma vida plena. O pecado é tudo o que nos impede de reconhecer como nossa a casa do Pai, fazendo-nos esquecer que somos irmãos. Por fim, o pecado é tudo o que degrada a nossa relação filial e a nossa relação fraterna.

Por isso, ao apresentar-se ao sacramento da Reconciliação para receber o perdão de Deus, é importante que o cristão amadureça uma certeza e evite um perigo. Uma autêntica vida de fé mantém vigilante a consciência. O discípulo, ao seguir o Senhor, sabe que o caminho é a verdade, e não teme, por isso, pôr a nu o seu coração diante do Pai, para que lhe dê um “novo” (cf. EZ 11,19): «Pela

confissão, o homem encara de frente os pecados de que se tornou culpado; assume a sua responsabilidade e, desse modo, abre-se de novo a Deus e à comunhão da Igreja, para tornar possível um futuro diferente» (CCC, n. 1455). Por outro lado, ao descobrir os seus pecados, evitará deixar-se transportar pelo cálculo, um pouco mesquinho, que tende a especular sobre o amor de Deus: «Até onde posso chegar impunemente com este comportamento? Posso, mas dentro de que limites? Se não ultrapasso o risco, então está tudo certo?». Trata-se de uma mentalidade de mínimo indispensável na relação com o pai. Em geral, semelhante perspectiva limita a própria vida ética, o testemunho de fé e a pertença à Igreja a um conjunto infinito de regras que “infelizmente” se devem respeitar e que tornam cada vez mais penosa ao penitente (e ao confessor!) a celebração do sacramento da Reconciliação. Trata-se de uma frustração da vida espiritual que leva o crente não a abrir-se ao projeto que Deus tem sobre ele,

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confiante na sua misericórdia inesgotável, mas a diminuir o entusiasmo da fé. Ofusca-lhe a beleza, enfraquecendo inexoravelmente toda a dinâmica da vida cristã. Como lembrou o Papa Francisco, o problema não é ser pecador, o problema é não se deixar transformar pelo amor no encontro com Cristo (cf. Homilia em Santa Marta, 17 de maio de 2013). Neste caso, falhamos a meta e não alcançamos o objetivo essencial. Qual? O objetivo de viver como filhos. E é o Crucificado Ressuscitado, o Filho bendito, que mostra como se desenvolve a autêntica relação filial. Trata-se de um caminho de liberdade: um êxodo sem retorno, uma liberdade feita para amar o Pai e os homens até o abandono sobre a Cruz. Esta mesma liberdade é pedida por Ele aos seus discípulos para entrar no dom da vida de Deus.

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A experiência do perdão

O monólogo do filho mais novo tem início com uma certeza: na casa do seu pai, os empregados têm de comer com abundância, mas, ao contrário, «eu aqui, morrendo de fome» (v. 17). É a fome, e não o remorso pelo sofrimento causado ao pai, que o induz a regressar a casa. Aquele «caindo em si» não é indício de conversão, como comumente se pensa. Sobretudo, ele agora toma consciência da realidade em que caiu, afligido pela necessidade fundamental que não pode satisfazer: está morrendo de fome. É o instinto de sobrevivência a fazê-lo lembrar da casa paterna. É o desejo de bom alimento que move as suas palavras, não a relação com o pai. Trata-se de interesse, mais do que de um arrependimento sincero. E de fato, ainda que confesse «vou me levantar, irei até meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e contra o senhor. Já não mereço ser chamado seu filho. Trate-me como um dos seus empregados» (vv. 18-19), o jovem não deixa de pensar como aquela punição vai ao encontro do seu plano: «trate-me como um dos seus empregados», uma condição evidentemente bastante melhor do que ser guardador de porcos. Um indício posterior cria fortes suspeitas sobre as verdadeiras intenções do jovem. O monólogo serve de discurso preparatório, mas, uma vez chegado junto do pai, o filho omite a frase inicial: não diz que é a fome que o fez regressar! Ele cala a verdadeira razão: uma autêntica esperteza. Estabelecida a estratégia para obter o perdão paterno, começa a realizar o plano arquitetado: «Então se levantou e foi ter com seu pai» (v. 20). Só podemos ficar perplexos perante tal comportamento que instrumentaliza os sentimentos e as relações com o pai através de um discurso com sabor religioso. A intenção é inegável, a confissão é muito interesseira.

O comportamento espertalhão do filho mais novo deixa adivinhar que imagem ele guarda do pai: um severo e justo juiz, que, porém, pode ser acalmado com lindos discursos. Mas o plano arquitetado cai por terra, e cai devido ao comportamento totalmente imprevisto do pai perante o filho: «O filho então lhe disse: ‘Pai, pequei contra o céu e contra o senhor. Já não mereço ser chamado seu filho’» (v. 21). Esta rapidez comprometedora com que o pai agiu confirma que o seu abraço não depende das motivações que o filho poderá apresentar.

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Com efeito, o pai não espera que o filho fale! O seu modo de agir não depende nem se mede pelas palavras do filho. Nesta altura, o jovem pode dizer o que quiser, mas nem sequer tem a necessidade de mentir ou de ocultar as razões do seu regresso. Nada tem a temer: o pai veio ao encontro dele, abraçou-o e beijou-o, uma atitude clara que põe ponto final a qualquer estratégia enganadora. Ao filho nada reprova («ah, se soubesse o que me fez sofrer, mas estou contente por ter vindo!», ou então, «finalmente percebeu seu erro?»). Para o pai, a única coisa que importa é que o filho tenha voltado. Na verdade, logo que o jovem começa a falar, declarando não merecer ser seu filho, o pai o interrompe. Para o pai, são palavras insuportáveis e inadmissíveis: uma possibilidade que não se deve ter em consideração. Foi assim que o filho descobriu que no coração do pai encontrou sempre abrigo, e nunca deixou de ser filho. Nenhuma escolha errada, nenhum comportamento reprovador, nenhum sofrimento causado fizeram diminuir a sua qualidade de filho junto do pai. Ao filho interesseiro, manifesta-se um rosto do pai que ele não suspeitava e que só o regresso a casa lhe fez descobrir: um pai que não é ingênuo, nem juiz severo, mas que ama sem cálculo e sem medida. As palavras que o jovem dirigiu ao pai depois de ter sido abraçado e beijado por ele podem agora provir do seu coração sem temor algum: «Pai, pequei contra Deus e contra o senhor». Nesta relação renascida, os dons do pai ao filho só amplificaram o seu amor, que sempre existiu, restabelecendo os sinais de uma dignidade filial que o filho acreditava perdida. Como Jesus com o paralítico de Cafarnaum («filho, os seus pecados estão perdoados», Mc 2,5), também este pai volta a dar ao filho a sua verdadeira identidade.

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2. Entrar na casa do Pai?

Na segunda parte da parábola, entra em cena o filho mais velho. É curiosa a indicação «estava no campo» (v. 25), porque corresponde ao mesmo lugar onde se encontrava o filho mais novo antes de voltar ao pai: «Foi então até um dos habitantes daquela região, que o mandou para seus campos, a fim de cuidar dos porcos» (v. 15). O filho mais novo tinha-se aventurado num lugar distante; o filho mais velho nunca se afastou de casa. O primeiro entrega-se a uma vida dissoluta, gastando todos os seus bens; o segundo vivia ocupado numa vida de trabalho. No entanto, embora cada um à sua maneira, ambos os irmãos têm um ponto em comum: estão nos campos e de lá é que saem para regressar à casa do pai. São muitos os textos bíblicos que utilizam a imagem do campo com uma acepção negativa: morada da serpente tentadora e de animais selvagens (Gn 3,1), lugar de morte (nos campos, Caim levantou a mão contra o irmão Abel, cf. Gn 4,8) e de violência (os escravos hebreus são obrigados a fazer trabalhos duros nos campos, cf. Ex 1,14), imagem profética de ameaça (cf. Os 2,14; Jr 26,18), lugar onde as forças se opõem (Mt 13,24-30). Com efeito, em toda a parábola, os dois irmãos não mostram nenhum sinal de fraternidade: o mais novo nunca menciona o irmão, e este por sua vez não o reconhece («agora, porém, que veio esse seu filho», v. 30). Na prática, ambos os filhos têm uma mesma visão compartilhada, mais do que pensam: ambos estão longe do pai e da sua vontade de os ver “irmãos”. Porém, o pai refere-se a cada um com o mesmo título de «filho» (v. 24; v. 31) e convida cada um a entrar em casa, para participar na festa em que o pai os considera a ambos como «seu irmão» (v. 32).

Há ainda outras características que parecem aproximar os dois irmãos. Ao que parece, se o filho mais velho trabalha aplicadamente nos campos, significa que na casa do pai a condição de filho não é motivo válido para não fazer nada e levar boa vida. Foi talvez por isso que o filho mais novo quis sair de casa? Apesar das suas escolhas diferentes, um dissoluto e outro trabalhador rural, quando se referem à sua vida com o pai, ambos a caracterizam na condição de assalariados. De fato, eles partilham os mesmos critérios de avaliação baseados na lógica da retribuição: pequei, portanto mereço o castigo de não ser mais seu filho; sempre

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o servi, por isso mereço a sua recompensa. O mais novo não ousa mais nada, o mais velho reprova o pai: «Mas ele respondeu ao pai: ‘Eu sirvo o senhor há tantos anos, e nunca desobedeci a nenhuma ordem sua. E o senhor nunca me deu um cabrito para eu festejar com meus amigos» (v. 29). Embora de lados opostos, emerge um mesmo olhar interesseiro que a ambos prejudica a possibilidade de fazer a experiência do coração infinitamente generoso do pai. É ele que uma vez mais se ergue como figura grandiosa, uma paternidade absolutamente excepcional, que acolhe o filho mais novo sem condições e revela ao mais velho que não tem necessidade de pedir nada porque «‘Filho, você está sempre comigo, e tudo o que é meu é seu também» (v. 31). No confronto com os filhos, ele não calcula nem nunca calculou nada, simplesmente quis sempre partilhar tudo. O seu ser de pai é pura relacionalidade para com eles, numa ligação de amor e ternura sem medida.

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A mentalidade de um assalariado

Por que razão, ouvindo as músicas e as danças, o filho mais velho não entra em casa, mas chama um empregado para lhe pedir informações? Vivendo com o pai, suspeitaria de alguma coisa? O pai tinha-lhe já comunicado as suas intenções no caso de um regresso do irmão? Com a sua indignação, quis provocar o pai para o levar a agir de outra forma? Tudo isto são respostas possíveis. O texto, porém, quer vincar o contraste entre as palavras do empregado, que o convidam a reconhecer as suas ligações familiares («‘Seu irmão chegou, e seu pai matou o bezerro gordo, porque o recuperou com saúde’, v. 27), e as que o filho dirige ao pai («agora, porém, que veio esse seu filho, que devorou os bens do senhor com prostitutas, o senhor matou para ele o bezerro gordo», v. 30). Ele nega uma ligação com o irmão e olha de lado para o comportamento do pai, distanciando-se. Não quer entrar em casa do pai porque agora o seu coração habita “num lugar distante”. Em relação ao irmão mais novo, ele chama a atenção para o seu longo e ótimo serviço, e para a fidelidade às ordens do pai. A sua apresentação constitui uma espécie de curriculum exemplar, mas as relações com o pai são descritas com muita frieza, em termos de “obediência” e de “ordens”. Ele obedeceu às suas ordens, por isso esperava dele uma retribuição, uma compensação, ainda que inferior, ao seu heroísmo: pelo menos um cabrito «para eu festejar com meus amigos» (v. 29), mas, para a festa que ele imagina, o pai e o irmão não são convidados! Poderá alguma vez aceitar o pedido para participar na festa que o pai mandou preparar para o filho mais novo?

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Responder ao convite

Emerge uma dificuldade: Por que é que o pai não convidou imediatamente o filho mais velho e iniciou a festa sem ele? Porque não o mandou chamar ou não esperou que regressasse dos campos? A parábola não oferece uma resposta, mas deixa claramente entender que, se a festa tem início, é unicamente pela decisão incontestável do pai («peguem o bezerro gordo e o matem. Vamos comer e festejar!», v. 23): não depende da vontade do filho. Ela provém diretamente da «compaixão» (v. 20) e da alegria superabundante do pai pelo filho «que voltou à vida», e não pode ser adiada. Para o coração do pai não há alternativa: «Mas era preciso festejar e se alegrar, porque esse seu irmão estava morto e voltou a viver, estava perdido e foi encontrado» (v. 32). O filho mais velho pode agora decidir sozinho se entra na festa ou não para partilhar os sentimentos e os valores do pai, ou recusa e se revolta. O final aberto da parábola não nos permite saber qual foi a resposta do filho mais velho. Ambas as cenas, aquela relativa ao filho mais novo (vv. 12-24) e a referente ao filho mais velho (vv. 25- 32), terminam com as palavras do pai: são estas a determinar a continuação da história e a interrogar cada leitor que, juntamente com os dois filhos, é levado a participar do coração do pai. Trata-se de se confrontar com o seu ponto de vista, com as suas razões e com as suas escolhas: os únicos valores em causa. No final da parábola, com efeito, cada um é colocado perante uma escolha: entrar naquela casa e participar na festa ou ficar longe sem saborear a alegria do pai, recusando o seu abraço misericordioso e sem querer acolher o seu perdão, que volta a dar vida e nos faz irmãos.

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3. A compaixão de um Pai

Enquanto no início da parábola a figura do pai é bastante secundária, ela adquire maior consistência a partir do momento em que o filho mais novo é avistado de casa, até ocupar o papel de protagonista absoluto, que determina o desenrolar de toda aquela história. O que move o pai é imediatamente claro: à vista do filho ainda longe, o pai «encheu-se de compaixão» (v. 20). É esta profunda piedade que produz a sucessão rápida das suas ações: corre ao encontro do filho, abraça-o e beija-o. O verbo (que traduz o hebraico rakhamim) sublinha uma compaixão quase visceral: ele não pode ficar à espera de o filho chegara a casa, mas precipita-se para junto dele levado por esta força incomparável. São sobretudo os profetas que descrevem esta comoção perturbadora em Deus: «Olha do céu e observa da tua morada santa e gloriosa. Onde estão teu ciúme e poder? A comoção de tuas entranhas e tua compaixão para comigo foram recolhidas?» (IS 63,15; cf. também IS 49,15; OS 2,21; ZC 1,16;

SL 145,9). A compaixão assim descrita é o oposto exato da impassibilidade ou da

dureza de coração, e é a qualidade fundamental daquele Deus que é misericórdia: uma ternura que vai até a comoção física, um zelo e uma paixão que o impelem a agir sempre e com eficácia.

Também o diálogo que o pai desenvolveu com o filho mais novo mostra a profundidade do mistério da sua misericórdia. Com grande ternura, ele não proferiu a palavra «pecado» que o filho pronunciou de leve, nem se deteve sobre as motivações ambíguas que o levaram para casa. A única coisa em que pensa é no perigo iminente que o filho corre: a morte estava a privá-lo do seu filho! Para o pai, importa somente que agora o filho esteja ali, novamente em casa, resgatado na vida de filho por um amor que nunca desapareceu.

O pai declara que o afastamento do filho (com a consequente separação do pai e do irmão) foi para o filho uma morte, e que o seu regresso equivale a um voltar à vida (v. 24). O seu regresso a esta vida foi um longo caminho com conotações tipicamente pascais. Em tal passagem da morte à vida, o filho mais novo é misteriosamente associado ao mistério pascal de Cristo crucificado e ressuscitado. A conversão como regresso ao pai é a dinâmica própria da vida

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cristã: uma tensão contínua inspirada num Amor que vai além de toda a imaginação e no qual se reflete o acontecimento que aquele Amor manifesta para além de qualquer medida: a Páscoa do Senhor. A vida do cristão, por isso, não pode ser senão uma vida tipicamente pascal.

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Os dons da misericórdia

Desta alegria excepcional do pai advêm os dons que o filho recebeu. Neles muitas vezes se colheram vários significados oriundos do amplo patrimônio simbólico da tradição cristã.

A melhor túnica é imediatamente associada ao novo estado de vida em que o pai reintegra o filho e cria sugestões tipicamente batismais: «Pois todos vocês, que foram batizados em Cristo, se revestiram de Cristo» (Gl 3,27). Por conseguinte, «agora, porém, tirem da boca de vocês tudo isto: ira, raiva, maldade, maledicência e palavras obscenas. Não mintam uns aos outros, porque vocês já se desvestiram do homem velho e de suas ações, e se revestiram do novo, que pelo conhecimento vai se renovando à imagem do seu Criador» (Cl 3,8-10). Pelo Batismo, a vida do cristão é aqui definida em termos novos, com um comportamento impensável para quem ficar imerso com o peso do pecado. De fato, se o batizado é um “novo nato”, a sua nova vida não pode ser outra coisa senão a vida de Cristo e a vida em Cristo. A Carta aos Colossenses sublinha que este crescimento se faz através de um renovamento contínuo. Deste modo, o sacramento da Reconciliação está profundamente ligado ao sacramento do nosso Batismo:

A vida nova recebida na iniciação cristã não suprimiu a fragilidade e a fraqueza da natureza humana, nem a inclinação para o pecado, a que a tradição chama concupiscência, a qual persiste nos batizados, a fim de que prestem as suas provas no combate da vida cristã, ajudados pela graça de Cristo (CCC, n. 1426).

Ora, o apelo de Cristo à conversão continua a fazer-se ouvir na vida dos cristãos. Esta segunda conversão é uma tarefa ininterrupta para toda a Igreja […]. É o movimento do “coração contrito” (SL

51,19) atraído e movido pela graça para responder ao amor misericordioso de Deus, que nos amou primeiro (CCC, n. 1428).

O anel no dedo indica o poder de que o filho é novamente investido. Para conferir plenos poderes a José, filho de Jacó, o faraó entrega-lhe o seu anel (Gn 41,42), e a mesma coisa faz o rei persa Assuero em relação ao seu confidente Amã (Est 3,10). O anel constitui um símbolo de vínculo e de união. O filho é restabelecido na comunhão plena com o pai e participa da sua autoridade.

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livres: os presos de guerra e os escravos deveriam caminhar descalços (IS 20,2.4).

O filho é, desse modo, reintegrado nos seus antigos direitos.

A última indicação dada pelo pai são os preparativos para o banquete. A ordem de prepararem o novilho gordo e a exortação explícita para comerem constitui uma alusão ao banquete de carnes gordas indicadas para a aliança entre Deus e a humanidade: «O Senhor dos exércitos vai preparar no alto deste monte, para todos os povos do mundo, um banquete de carnes gordas, um banquete de vinhos finos, de carnes suculentas, de vinhos refinados» (Is 25,6). É sobretudo o Livro do Deuteronômio a ligar ao tema do banquete o da festa alegre na presença de YHWH:

E vocês não farão do mesmo jeito para servir ao Senhor, o Deus de vocês. Pelo contrário, vocês irão buscá-lo somente no único lugar que o Senhor, o seu Deus, tiver escolhido entre todas as tribos, para aí colocar o nome dele e aí fazê-lo habitar. Para esse lugar vocês devem levar seus holocaustos e sacrifícios, seus dízimos e as ofertas de suas mãos, suas promessas e suas ofertas espontâneas, e os primogênitos do seu gado graúdo e do seu gado miúdo. É nesse lugar que vocês vão comer na presença do Senhor, o Deus de vocês, alegrando-se vocês e suas casas por tudo o que vocês tiverem realizado e que tenha sido abençoado pelo Senhor, o seu Deus (Dt 12,4-7; cf. ainda Dt 14,22-24; 16,10-17).

No Novo Testamento, são numerosos os textos que fazem referência a um banquete festivo e familiar no qual participar: em São Lucas, a parábola sobre os convidados descorteses está um pouco antes das três parábolas da misericórdia (Lc 14,16-24). Na conclusão da cena, o banquete que o pai prepara para o filho regressado reveste-se de um valor ritual e cerimonial. Ele tem como finalidade festejar aquele que realizou uma passagem marcando a sua transformação. Além disso, celebra a solidariedade recíproca que liga agora o pai ao filho, a ligação que entre eles existe, a sua unidade. Muitos viram nisto uma referência ao banquete pascal que Cristo celebrou na Última Ceia, onde a aliança entre Deus e os homens foi estabelecida para sempre no seu sangue (Lc 22,20). O convite explícito a participar no seu banquete foi retomado pelo anjo do Apocalipse, que deu esta ordem a São João: «O Anjo me disse: “Escreva: ‘Felizes os convidados para o banquete do casamento do Cordeiro’”. E disse ainda: “São estas as verdadeiras palavras de Deus”» (Ap 19,9). É a bem-aventurança que, com uma pequena adaptação, foi retomada pela liturgia para convidar à comunhão

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eucarística. Depois do Batismo, também a Eucaristia se liga ao sacramento da Reconciliação. De fato, ela manifesta à comunidade cristã a exigência de uma conversão contínua e põe à disposição o poder reconciliador da Páscoa do Senhor: «A conversão e a penitência quotidianas têm a sua fonte e alimento na Eucaristia: porque na Eucaristia se torna presente o sacrifício de Cristo, que nos reconciliou com Deus: pela Eucaristia nutrem-se e fortificam-se os que vivem a vida de Cristo» (CCC, n. 1436).

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A festa do perdão

Ao filho mais velho, o pai declara que «era preciso festejar e alegrar-se». O pai obedece a uma lógica superior, da qual não pode se abster, uma lógica diferente e mais elevada em relação ao modo de ver do filho mais velho: «Ele ama e não sabe fazer outra coisa» (Papa Francisco, Homilia em Santa Marta, 28 de março de 2014). A sua paternidade põe em primeiro lugar a relação com o filho: é este o sentido do seu ser pai. Se o filho «estivesse morto», ele imediatamente deixaria de ser pai! Voltando à casa do pai, «tornou a viver», voltou à vida de filho, reanimando-se assim que o pai correu ao seu encontro. O filho mais velho é convidado a compreender a circularidade deste amor profundo que liga o pai ao filho, circularidade que vale para ele mesmo. Encontrando o filho, o pai pode restituir-lhe o irmão, sem o qual até o filho mais velho perderia a sua própria identidade de irmão. Assim, a compaixão profunda que move o agir do pai encontra a maior alegria ao ver que os filhos se reconhecem irmãos; então a paternidade atinge o seu vértice e resplandece em toda a sua luz. Comentando a parábola do filho pródigo, o Papa Bento XVI referiu:

Esta página de São Lucas constitui um vértice da espiritualidade e da literatura de todos os tempos. […] Ela nunca cessa de nos comover, e todas as vezes que a ouvimos ou lemos, é capaz de nos sugerir sempre novos significados. Sobretudo, este texto evangélico tem o poder de nos falar de Deus, de nos fazer conhecer o seu rosto, melhor ainda, o seu coração. Depois de Jesus nos ter narrado acerca do pai misericordioso, as coisas já não são como antes, agora conhecemos Deus: Ele é nosso pai, que por amor nos criou livres e dotados de consciência, que sofre se nos perdemos e que faz festa se voltamos. Por isso, a relação com Ele constrói-se através de uma história, analogamente ao que acontece a cada filho com os próprios pais: no início depende deles; depois reivindica a própria autonomia; e por fim – se há um desenvolvimento positivo – chega a um relacionamento maduro, baseado no reconhecimento e no amor autêntico (Angelus, 14 de março de 2010).

Ilustrando esta sapiente pedagogia da misericórdia de Deus, a parábola do filho pródigo não pretende nos fazer meditar de modo abstrato o mistério do Amor que perdoa, mas impele todo homem a recorrer a esta misericórdia em nome de Cristo e em união com Ele. Somos assim transportados pelo Amor que salva a reconhecer as nossas infidelidades confessando os nossos pecados. Assim, revelando o amor de Deus, a Palavra do Senhor continua a encarnar-se na vida de cada crente, imprimindo nela e na sua consciência ferida o rosto do pai rico de

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toda a consolação. Por isso, a Igreja não pode senão professar a misericórdia divina em toda a verdade que a Revelação nos transmitiu e dela dá testemunho pondo-se ao seu serviço:

À luz desta inesgotável parábola da misericórdia que apaga o pecado, a Igreja, acolhendo o apelo que nela está contido, compreende a sua missão de se empenhar, seguindo os passos do Senhor, pela conversão dos corações e pela reconciliação dos homens com Deus e entre si, duas realidades que estão intimamente conexas (João Paulo II, Reconciliatio et paenitentia, n. 6).

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III

U

MA QUESTÃO DE DÍVIDAS E DE DEVEDORES

No discurso da montanha (MT 5-7), o primeiro e o mais amplo dos discursos de

Jesus no Evangelho segundo São Mateus (MT 5-7), o texto central aborda as três

formas clássicas da devoção judaica: esmola, oração e jejum (6,1-18). No coração do ensinamento sobre a oração, isto é, na posição absolutamente mais central de todo o discurso, encontra-se a oração do Pai-Nosso (6,9-13). A centralidade reservada à oração ensinada por Jesus aos discípulos e às multidões demonstra que ela constitui um dom precioso, uma joia inestimável incrustada no seu ensinamento. De fato, a relação do cristão com o Pai está na base de todo o seu ser e de todo o seu agir. A oração articula-se em sete pedidos (sete é o número da totalidade e da perfeição): os primeiros três dizem respeito à iniciativa de Deus, destacada pelos pronomes possessivos referidos pela segunda pessoa (o vosso nome, o vosso reino, a vossa vontade – 6,9-11); os últimos quatro são pedidos inerentes às principais necessidades humanas, formulados utilizando os possessivos referidos na primeira pessoa (o pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores. E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal). O quinto pedido configura-se como pedido de perdão.

Falando de «dívidas»[1] (gr. opheilémata) e de «devedores» (gr. opheilétais, MT

6,12), São Mateus utiliza uma linguagem jurídico-comercial: «as dívidas» indicam, em primeiro lugar, os valores que deveriam ser restituídos para não se incorrer numa ulterior penalidade. Para compensar os consequentes desequilíbrios sociais, a legislação do ano sabático definia que os escravos fossem libertos, compensação que dizia respeito precisamente a pessoas feitas escravas porque não podiam pagar o que deviam (cf. EX 21, 2-6; DT 15,1-11). No texto

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paralelo de Lucas, é utilizada a expressão «perdoa-nos os nossos pecados» (gr. amartías, LC 11,4), pretendendo precisar teologicamente o pedido: as “dívidas”

nos confrontos de Deus são “pecados”. As duas versões são, portanto, convergentes, e, na recitação do Pai-Nosso, o cristão utiliza sem dificuldade o termo “pecados” pensando nas “dívidas”. Porém, não lhe deveria escapar o precioso valor do termo utilizado por São Mateus, porque constitui um apelo à parábola do rei bom e do servo impiedoso (MT 18,21-35), uma parábola presente

somente em São Mateus e onde recorre pela segunda e última vez o termo «dívidas» (opheilémata). É a partir desta parábola que se deve compreender o pedido contido no Pai-Nosso, de perdão dos nossos pecados.

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1. A parábola do rei bom e do servo impiedoso

A parábola (MT 18,21-35) parte de um diálogo entre Pedro e Jesus sobre a

reconciliação entre os discípulos: «Senhor, quantas vezes devo perdoar meu irmão que pecar contra mim? Até sete vezes?». A pergunta parece sublinhar uma práxis de reconciliação interna na comunidade cristã de que devem ser esclarecidos alguns critérios. O ponto de partida de Pedro é certamente generoso: «Até sete vezes?». A resposta de Jesus é, porém, esmagadora: não se devem fazer cálculos. O discípulo deve assumir um estilo consequente com a dinâmica do Reino dos Céus, onde a misericórdia é sem limites e produz um perdão sem medida e sem reservas. A vertiginosa perspectiva aberta por Jesus é ilustrada pela narração parabólica na qual o elemento que sobressai é constituído por uma dívida imensa e impagável, acumulada por um servo no confronto com o patrão. Três cenas sucedem-se, em que as primeiras duas são simétricas, mas opostas. Em primeiro lugar, descreve-se a ação do patrão que perdoa (vv. 23-27), depois vem a cena do servo que castiga (vv. 28-30), a terceira põe em confronto os dois modos de agir (vv. 31-34) e tem o seu vértice nas últimas palavras que o patrão pronuncia: «Não devia você também ter compaixão de seu companheiro, como eu tive de você?» (v. 33). O contraste é amplificado por algumas diferenças: a condição social entre patrão e servo na primeira cena e a outra, paritária, entre servo e com-servo (doūlos e syndoūlos ) na segunda, a dívida enorme na primeira e a irrisória na segunda, o papel que tem o servo na primeira, como devedor insolvente, e depois como credor impiedoso. A finalidade é suscitar a ideia da vastidão incomensurável em que se estende o perdão de Deus, sobretudo se relacionado com a limitada e um pouco mesquinha realidade humana.

Referências

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