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Políticas de Memórias do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto e sua inserção no Ensino de História Autora: Antônia Lucivânia da Silva Co-autora: Paula

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Políticas de Memórias do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto e sua inserção no Ensino de História

Autora: Antônia Lucivânia da Silva Co-autora: Paula Cristiane de Lyra Santos 1. Introdução:

Buscamos tratar das políticas de memórias relacionadas a uma comunidade chamada Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, e para tanto, recorremos ao conceito de memória entendendo-a como resultado de uma construção social coletiva, ainda que haja memórias narradas por cada indivíduo. De acordo com Halbwachs (1990), mesmo as memórias dos indivíduos são coletivas, pois ninguém lembra sozinho. Há sempre uma relação com um coletivo, visto que as lembranças dos indivíduos se apoiam nas memórias de outros sujeitos ou grupos.

A memória não é fixa, sendo ressignificada pelos sujeitos que lembram, a partir de suas experiências vividas ou vividas por outros com quem se identificam, de modo que a memória vai sendo transformada ao longo de suas vivências conferindo-a novos significados. Essas transformações da memória podem se dar de forma planejada ou não. No caso do tema abordado neste artigo, trata-se tanto de memórias não programadas com intenção politicamente organizada, como é o caso das memórias dos que moraram em Caldeirão, como também das memórias planejadas, a partir de um lugar de poder institucional, entre estas a memória que era divulgada na imprensa e por meio do relatório do delegado da Ordem Política e Social do Estado do Ceará; a memória construída pela Diocese e Pastoral da Terra através das romarias; e a memória política instituída pelo tombamento do Caldeirão em 2005. Para tratar dos silêncios e dos esquecimentos, recorremos ao estudo teórico de Pollak (1989) na tentativa de entender os processos de instituição de esquecimento das memórias do Caldeirão, principalmente de seus moradores, que não contemplavam os interesses do Estado, da Igreja e dos latifundiários.

Buscando interligar a discussão de memória com patrimônio cultural e ensino de História, recorremos a Oliveira (2016), para quem o conceito de patrimônio cultural está para além do tangível e do que é reconhecido por meio de tombamento ou registro, entendendo a

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educação patrimonial como possibilidade de educar através dos sentidos, das emoções que o patrimônio cultural pode despertar, sem, no entanto abandonar a perspectivas da criticidade e da reflexão dos conceitos da história.

2. Narrativa do Caldeirão - Caldeirão visto como um problema social

O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foi uma comunidade rural no município de Crato, ao Sul do Ceará, conduzida por um beato seguidor do Padre Cícero, José Lourenço Gomes da Silva, de origem paraibana, situada no tempo entre os anos de 1926 a 1936.

José Lourenço chegou ao Juazeiro em 1890 à procura de sua família que havia se deslocado para Juazeiro do Norte em decorrência da divulgação do “milagre” da hóstia, fato protagonizado pelo Padre Cícero e a Beata Maria de Araújo no ano de 1889, quando no momento em que esta recebeu a comunhão, a hóstia se transformou em sangue em sua boca, sendo este fato interpretado e divulgado como um milagre, o que atraiu a vinda de pessoas de outros estados para esta localidade.

Lourenço ao chegar a esta terra se sentiu atraído pelos ensinamentos do Padre Cícero passando a se dedicar a religião a ponto de estabelecer uma relação de confiança chegando o Padre a recomendar que este arrendasse terras em Crato, para que lá pudesse trabalhar juntamente com homens e mulheres que vinham ao Juazeiro em busca de melhorias.

Desta feita, arrendou terras no Sítio Baixa Dantas no ano de 1894 lá permanecendo até o ano de 1926, ocasião em que o proprietário João de Brito vendeu a terra, tendo o Beato com seus liderados que desocuparem a propriedade. Saindo sem indenização pelas benfeitorias realizadas na propriedade, foi orientado pelo Padre Cícero a se instalar com sua gente, nas terras do Caldeirão, tendo que dar início a construção de casas, açudes e plantações.

Com trabalho coletivo a comunidade prosperou chegando a produzir o suficiente para a sobrevivência de todos que lá habitavam que eram, segundo Cordeiro (2013), aproximadamente 1700 pessoas. Organizavam-se seguindo os princípios do trabalho coletivo onde “nada era de ninguém e tudo era de todos” (RAMOS, 2005, p. 112), tendo seu cotidiano marcado pelo trabalho e oração, liderados pelo Beato que se destacava por ser hábil em manter boas relações com os de fora da comunidade, chegando a alimentar, conforme Figueiredo (2006) cerca de 500 pessoas de fora no período da seca de 1932.

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A vida seguia sem graves incidentes, porém vale destacar que em 1930 o movimento político que conduziu Vargas à presidência da República no Brasil, chegou a invadir o sítio à procura de armas, pois havia sido informado de que se tratava de um ajuntamento comunista e que possuíam armas, o que não foi constatado pelos invasores. Entretanto, em épocas anteriores, na primeira experiência comunitária em Baixa Dantas, alguns episódios quebraram a rotina da comunidade, como em 1914, por ocasião da Sedição de Juazeiro,1 episódio do qual o Beato e sua gente não teve participação armada, mas enviavam mantimentos à resistência de Juazeiro, homens ligados às forças governistas invadiram o Sítio Baixa Dantas provocando alguns prejuízos.

Outro fato mais intenso foi o de 1923, em decorrência de denúncias de que em Baixa Dantas estariam adorando a um boi de nome Mansinho,2 que culminou em repressão dirigida por Floro Bartolomeu, então deputado aliado político do Padre Cícero, tendo aquele, ordenado a prisão do Beato e o sacrifício do boi, numa tentativa de provar para seus adversários políticos, que Juazeiro do Norte não era favorável ao fanatismo religioso.

Com o falecimento do legítimo proprietário das terras onde despontou o Caldeirão, o Padre Cícero, as ações contra o Beato e a comunidade por ele liderada passaram a ser mais intensas. Em testamento lavrado no ano de 1923 o Padre Cícero havia deixado esse patrimônio para a Ordem dos Salesianos, que com a morte do padre, passou a ser a legítima dona. Sem a proteção do Padre Cícero, começaram os ataques e a articulação de setores da Igreja Católica, de latifundiários, do governo e da polícia, que fez uso dos jornais para construir diante da sociedade o Caldeirão como um perigo.

Foi intensificado o processo de desqualificação do modelo de vida adotado em Caldeirão, acusados de ser uma ameaça à ordem social estabelecida, ou mesmo, no entender dos desqualificadores, constituir uma célula comunista ou se tornar uma nova Canudos. Recorrendo às acusações que já eram anteriormente lançadas contra o Beato José Lourenço e seus adeptos, seja a de que praticavam o fetichismo religioso, ou de que eram dados a luxúria,

1. Sedição de Juazeiro: Conflito político entre o governador do Estado do Ceará, Marcos Franco Rabelo, contra a oligarquia liderada por Nogueira Acioly, da qual o Padre Cícero e Floro Bartolomeu faziam parte, resultando num conflito armado cuja vitória coube ao Juazeiro do Norte.

2. Boi Mansinho: animal pertencente ao Padre Cícero, que foi enviado aos cuidados de José Lourenço, no Sítio Baixa Dantas.

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foram feitas “investigações” com o intento de comprovar que se tratava de um ajuntamento de fanáticos e criminosos.

4. A primeira versão repressiva de controle do Caldeirão: disputas na construção de uma memória.

As políticas de perseguição ao Beato e a comunidade por ele liderada foram iniciadas bem antes de sua destruição em 1936. Data de 1934 a ação repressiva contra José Alves de Figueiredo3 por ter escrito um artigo publicado no Jornal O Povo, no dia 7 de junho de 1934, cujo título era O beato José Lourenço e sua ação no Cariri, rendendo ao autor prisão por esta atitude.

A escrita de Figueiredo, apesar de concordar com a versão detratora de serem o Beato e seus seguidores, fanáticos, “O beato José Lourenço pertence ao número dos verdadeiros fanáticos do Padre Cícero. Ele é daqueles que vêem na figura do velho patriarca alguma cousa mais do que um simples sacerdote” (FIGUEIREDO, 2006, p. 29), tinha teor defensivo, afirmando que o Beato Lourenço,

Em vez, porém, de tomar um timão e, galvanizando-se com um pouco de prestígio espiritual que irradiava do Padre Cícero, ir explorar os incautos, como faziam centenas de espertalhões, José Lourenço lançou mão da enxada e se dirigiu para o campo, preferindo viver honradamente da profissão de agricultor (FIGUEIREDO, 2006, p. 31-32).

Embora tenha escrito com a finalidade de defender a conduta do Beato, as autoridades governamentais e policiais usufruíram da publicação como forma de “comprovação” da “periculosidade” de Caldeirão e da suposta possibilidade de ser uma nova Canudos, enquanto que ao autor, as autoridades decidiram levá-lo a prisão por ter defendido um “criminoso”, segundo o entendimento da polícia e da política da época.

José Alves, ainda sem que este fosse seu propósito, ajudou a reforçar o pensamento do Estado e de quem mais tivesse interesse contra Caldeirão, pois “confirmou” que eram fanáticos afirmando a respeito de Lourenço que “para sua mentalidade de estreitos limites, transbordada por essa figura agigantada, o Padre Cícero é um santo superior a quanto os

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cânones tenham lançado nos catálogos da Igreja e com essa auréola empolgou seu espírito”. (FIGUEIREDO, 2006, p. 29). No entanto predomina no artigo o rebate à todos os tipos de acusações imputadas ao Beato e pontua os episódios dos quais o mesmo foi vítima, procurando comprovar a sua índole pacífica.

[...] o beato José Lourenço tem sofrido grandes injustiças sendo perseguido várias vezes, como perigoso à ordem. Dotado de um espírito dócil, amigo da paz, dispondo sempre de agregados, nunca se serviu deles para uma desordem, nunca desrespeitou uma autoridade (FIGUEIREDO, 2006, p.46). A construção de uma memória desqualificada do Caldeirão ganhou força a partir de 1934 pela ação da imprensa. O jornal O Povo, no dia 02 de março de 1935 publicou artigo intitulado Os fanáticos do Caldeirão, que em contraste com o artigo de Figueiredo e das ações repressivas do Estado, pode-se identificar uma disputa pela construção de uma memória no presente dos acontecimentos. A ordem da prisão contra J. A. Figueiredo exemplifica como não haveria espaço para a divulgação de uma versão em prol do Beato, mas contra ele, os que o seguiam, bem como os que ousassem destoar do discurso oficial construído pela Igreja e Estado representado por meio dos políticos e da polícia já marcava o inicio da construção de uma memória desqualificadora e do silenciamento de outras possibilidades de memória.

À medida que a trama histórica ia acontecendo, o Estado construía uma memória hegemônica acerca dos fatos, com propósito de silenciar memórias dissonantes, tendo os jornais como veículo de divulgação dessa memória oficial. Esta pressão se somou a coerção exercida pela possibilidade da repressão armada e aos poucos se consolidava uma memória sobre os acontecimentos de Caldeirão, se configurando como hegemônica a versão que tratava o Caldeirão como um ajuntamento de fanáticos nocivos a ordem civilizada.

A invasão da comunidade em setembro de 1936, foi uma decisão tomada4 por membros da Igreja Católica, do Estado e da Polícia, tendo como protagonistas principais o governador Menezes Pimentel eleito pela Liga Eleitoral Católica; o bispo de Crato, Dom Francisco de Assis Pirez; o chefe de polícia Cordeiro Neto; o deputado Norões Milfont e o Secretário do Estado Andrade Furtado. Durante a invasão, além de parte dos moradores do

4. Ver. SIPRIANO, Benedita França, 2014, p. 107. Dissertação de mestrado: Vozes sociais e produção de sentido: a reprodução do beato José Lourenço e do movimento Caldeirão na cobertura do jornal O Povo (1934-1938).

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Caldeirão terem sido conduzidos como prisioneiras até Fortaleza, objetos de uso cotidiano foram levados para esta cidade. Apesar de não terem valor financeiro que justificasse esta apropriação, os objetos tinham o valor simbólico a partir do qual se pôde construir um discurso instituidor, ou reforçador de uma memória desqualificadora.

Eram os objetos “duas cruzes, um estandarte, um turíbulo, duas roupas de culto penitencial, uma espingarda, uma palmatória, uma foice, um machado e uma cadeira” (RAMOS, 2011, p. 367) expostos a visitação e fotografados para divulgação via jornal como suposta prova do atraso e do fanatismo, e enviados ao museu do Ceará em Fortaleza, onde permanecem até o presente. Expropriados e deslocados do seu lugar de origem, foram folclorizados falseando uma realidade imaginária criada a partir das ideologias políticas dos que ocupavam o poder no Estado do Ceará.

As memórias de moradoras do Caldeirão que se encontravam presas na capital, foram deslocadas para a construção de provas contra o Beato, buscando legitimar a tese do perigo e do fanatismo, posto que as antigas moradoras foram interrogadas e a partir dos interesses da polícia, suas falas enquadradas no discurso jornalístico, o qual afirmou que cerca de 20 mulheres “ que ontem à tarde foram aprisionadas, pretendiam os fanáticos, assaltar as cidades de Joazeiro e Crato para, depois de saquearem bancos e estabelecimentos comerciais, apoderando-se de dinheiro, estabelecerem-se em Caldeirão [...]”.5 Trata-se de uma memória

norteada por membros do Estado que por seu viés político e ideológico incitaram as memórias das mulheres a serviço da confirmação de uma verdade já esperada pelos entrevistadores.

Quanto ao “espolio de guerra” apropriado pela força militar em setembro de 1936. Eram utensílios de reza e trabalho, como era de reza e trabalho a grande parte do tempo de quem ali vivia. Estavam no meio de muitos artefatos, como enxadas, pratas, canecos, potes, redes de dormir, oratório, rosários. Funcionavam nas relações cotidianas, como criação e criatura das relações sociais. Se não eram excepcionais, passaram a ser (RAMOS, 2011, p. 367). Como estratégia de consolidar a memória construída pelo Estado e aniquilar as memórias contrárias que iam sendo divulgadas paralelas à do Estado, o General Góes de Campo Barros produziu o relatório dos acontecimentos de Caldeirão, publicado em 1937,

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com o título de A ordem dos penitentes, no qual constam as fotos dos objetos usurpados, sob as quais constam legendas que se prestam a legitimação de uma memória negativa.

Na construção de uma memória, não bastou apenas exibir as fotos dos objetos no relatório transformado em livro. O autor, para solidificar sua versão e minar as possibilidades de outras narrativas, escreveu legendas que ajudaram a impor uma interpretação. Sob a foto de uma vestimenta do Beato, consta: “sob esta batina, dizem, o sacerdote de Caldeirão desfez muitos casamentos; há quem diga que as divorciadas, quando aprazíveis, passavam a gozar de sua proteção especial” (BARROS, 1937). Abaixo da foto do turíbulo, consta que “torcia, pitorescamente, para o fetichismo os seus conhecimentos do ritual cristão” (BARROS, 1937). Ao apresentar foto de duas foices, instrumentos necessários à lida na agricultura, escreve “nesses dois instrumentos de trabalho apenas tocavam as mãos puras do preto milagroso” (BARROS, 1937).

Importante frisar que nesse trabalho de construção de uma memória conveniente ao Estado, o próprio autor deixa perceber sua resistência em não aceitar qualquer depoimento contrário ao que desejava ouvir. É o caso da legenda do relatório, quando apresenta fotografia de duas moças integrantes de Caldeirão, que foram levadas como prisioneiras à Fortaleza. Reconhece que “são de boa família, e com voz dôce e, serena, nos fizeram sentir que o seu protetor era o mais justo dos homens deste mundo; negam, peremptoriamente, tudo que se relaciona com as versões sobre a libidinosidade do seu ídolo” (BARROS, 1937).

Entretanto, Góes de Campos apesar de ter reconhecido a idoneidade das moças, se negou a aceitar os depoimentos como verdadeiros. “É difícil saber com quem está a razão, pois que a fidelidade dos íntimos de Lourenço os leva, naturalmente, a negação sistemática de tudo o que possa prejudicar-lhe a reputação” (BARROS, 1937), pois tal discurso não era conveniente à memória que estava sendo por ele construída, ao passo que o depoimento dado por outras mulheres aprisionadas, conforme Jornal O Povo, “as mulheres por serem menos experientes, manifestam-se mais crentes no beato, e o julgam um semi-deus”,6 foram bem aceitos, por servirem ao seu ideal memória. Trata-se de uma disputa de memórias ainda no

6. Ver: ALMEIDA, Maria Isabel Medeiros. Dissertação de mestrado. Memória e história: o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto na narrativa histórica. PUC-SP, 2011. publicação do jornal em 21 de maio de 1937, jornal O Povo, citado por em sua dissertação p.49.

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próprio momento dos acontecimentos, embora uma já fosse gestada numa situação de poder, enquanto as outras já nasciam fadadas ao silenciamento cabendo às mesmas operar na clandestinidade.

Outro caso notável dessa operação de fabricação de uma memória contra o Caldeirão pode ser mencionada na divulgação das fotos de três seguidores do Beato mortos no confronto do dia 10 de maio de 1937, na Mata dos Cavalos. Na edição do dia 15 de maio de 1937 o Jornal O Povo, exibiu as fotografias dos corpos, como forma de mostrar e exaltar as ações da polícia construindo uma narrativa heroica da força policial, “o capitão José Bezerra lutou muito até não poder mais, porque recebeu uma foiçada na nuca, que provocou a exposição da massa encefálica. A morte desse oficial foi uma coisa bárbara”.7 Vale destacar que as imagens

dos quatro militares, sargento Anacleto, cabo Benígno, soldado Josafa, cap. José Bezerra mortos neste mesmo combate foram poupadas de divulgação no jornal, ao passo que a de seus inimigos foram expostas como demonstração de poder e muito provavelmente como parte da desconsideração do direito dos populares diante do Estado.

5. Memória subversiva ou resistências da memória

Embora esforços tenham sido feitos para silenciar outras memórias, diferentes narrativas dos fatos continuaram operando ao longo de décadas, apesar de não terem espaço para se fazerem públicas.

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas (POLLAK, 1989, p. 3). As memórias dissidentes das quais fala Pollak, foram mantidas por remanescentes e contemporâneos sendo repassadas pela oralidade nos espaços privados ou em algumas ocasiões se fazendo públicas através de cordéis,

Dessa forma, constata-se que o apagamento e a desqualificação da comunidade e do beato não ocorreram de forma efetiva. Mesmo que, em um primeiro momento, o cordel elaborado por José Bernardo não tenha atingido um público maior, a obra foi difundida para aqueles que viviam na região do

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Cariri. E esses leitores, oralmente, passavam adiante o legado da comunidade de seu líder. (ALMEIDA, 2011, p. 103).

Todavia, conforme Santos (2012), que também cita a existência de um cordel em favor do beato, escrito no ano de 1935 por José Bernardo, proprietário da tipografia São Francisco, em Juazeiro do Norte, houve um silenciamento, “ao ponto de não termos seguramente, pelo menos em nossa catalogação, nenhum cordel sobre o beato José Lourenço ou Caldeirão, que seja posterior a 1938 e anterior a 1970” (SANTOS, 2012, p. 53), sendo esse silêncio rompido no início da década de 1970 com um cordel escrito por Abraão Batista, intitulado a história do beato José Lourenço e o boi Mansinho.

Essas memórias dissonantes da veiculada pelos órgãos do poder governamental atuaram nos bastidores num lento trabalho subversivo até a década de 1980, quando estudiosos começaram uma busca pelos remanescentes a fim de dar voz a outras memórias, dentre eles o cineasta Rosemberg Cariry que entrevistou diversos remanescentes.

Em entrevista concedida por este cineasta no ano de 2017, falou das dificuldades de ter acesso a essas memórias subterrâneas, que não estavam registradas. Subsistiam apenas na memória dos remanescentes.

Nós fomos chegando pouco a pouco às pessoas que eram remanescentes daquele terreno. No primeiro momento estavam todos muito afastados de tudo e muito desconfiados e não queriam falar. [...] Todos eles tinham um certo receio de falar. Eles achavam que os algozes ainda estavam vivos e que poderiam vir ainda represália, tamanha foi a perseguição tamanha, foi a brutalidade e a injustiça cometida.8

O receio dos remanescentes provocado pelas políticas de perseguição mostra como “tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e que dominam as sociedades históricas” (NORA, 1993, p. 368). Porém aos poucos aqueles que guardavam a memória dos tempos vividos em Caldeirão foram sendo reveladas aos pesquisadores e o assunto deixando de ser tabu, ganhando espaço na academia e sendo utilizado como sinônimo de luta e resistência.

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7.Políticas de memória do Caldeirão

O Caldeirão desde meados da década de 1970 veio ganhando força a ponto de serem criadas políticas de memória para lembrá-lo. Em 2002 a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará aprovou a criação do dia estadual em memória do Caldeirão, 10 de setembro.

Para Nora, “a memória é o antídoto para o esquecimento” (NORA, 1993, p. 378). Então podemos enxergar as políticas do início do século XXI criadas pelo Estado, a exemplo do tombamento como patrimônio Cultural em 2005 ou pela Igreja a partir do ano 2000, com a romaria ao Caldeirão, como políticas de memória não mais de esquecimento, mas de lembrança positiva e quem sabe até uma memória romantizada silenciadora de conflitos.

Porém vale destacar que apesar das idealizações da memória no presente, houve resquícios de conflitos do passado no momento a criação da romaria, proposta pela Pastoral da Terra. Conforme entrevista concedida por Angelita Maciel, em maio de 2018, diante da proposta da Pastoral, de que na passagem do milênio a Diocese pedisse perdão por ter apoiado o massacre de Caldeirão, a Diocese não proibiu a romaria, mas não fez pedido de desculpa e sugeriu que a romaria fosse feita oficialmente enquanto Pastoral da Terra. Entretanto, atualmente a Diocese de Crato já reconhece Caldeirão como santuário das missões, o que na visão de Angelita, é mais que um pedido de desculpas.

Lembrando Certeau (2005) podemos nos referir a atual memória do Caldeirão construída por membros da Diocese do Crato, como a beleza do morto. A romantização do Caldeirão porque este já não existe. O que há é apenas uma memória e as ruínas de um passado romantizado ofuscando o conflito, ressaltando apenas parte do passado.

Com o tombamento, o passado é valorizado, porém a partir dos interesses do presente. “a memória tem o objetivo de remontar um tempo que passou. Ela evoca o passado” (LIRA BARROS, 2013, p. 75), mas esse passado é apropriado pelas demandas atuais, selecionando o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido. Apesar da valorização, “a memória edita os eventos que são arquivados, enfatiza determinadas nuances do passado em detrimento de outras” (LIRA BARROS, 2013, p. 77).

Mesmo com a política de memória implementada pelo Estado através do tombamento pela Secretaria de Cultura em 2005, ainda há profundo desconhecimento por parte da

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população e das escolas de educação básica das questões relativas ao Caldeirão. Em salas de aulas, quando interrogados acerca do Beato Lourenço e do Caldeirão, raramente alguém afirma ter ouvido falar, o que nos leva a deduzir que a patrimonialização ainda não tem contribuído para fazer essa história integrar o currículo escolar.

Mesmo com a ampliação do que se pensa como sendo patrimônio cultural e com uma concepção da necessidade de desenvolver práticas de educação patrimonial, essas ações ainda não acontecem ou são insuficientes, mantendo as pessoas afastadas do patrimônio cultural.

8. O ensino de História: o Caldeirão e a educação patrimonial

Oliveira (2016) afirma que o tema patrimônio cultural consta nos currículos de quase todos os estados do Brasil. Para ele, o contato com o patrimônio cultural permite acessar outras temporalidades, sendo, portanto, a educação patrimonial uma estratégia facilitadora da aprendizagem da disciplina de História. Concordamos com Oliveira quanto à validade da “educação dos sentidos” (OLIVEIRA, 2016), do seu potencial para possibilitar a compreensão dos conceitos dessa disciplina. Educar pelas sensibilidades para que o patrimônio possa despertar na tentativa de dar um sentido ao conhecimento, conceber uma materialidade às ideias abstratas que permeiam os conteúdos de História.

A educação patrimonial pode despertar “sentimentos que poderão fazer vê-los com outros olhos as antigas construções, as produções e manifestações culturais singulares, retirando-lhes qualquer véu mistificador” (OLIVEIRA, 2016, p. 183), promovendo uma ampliação do conhecimento conceitual dos alunos e criando novas relações com os bens patrimoniais. Neste caso, direcionamos para o bem patrimonial Caldeirão com seu potencial formador, através do qual os estudantes podem acessar o passado por meio dos suportes de memória, ou lugar de memória (NORA, 1993) que integram o espaço Caldeirão.

Em visitas de campo podem ser problematizados os resquício materiais lá presentes como portas de entrada para o passado. O contato com os suportes de memória podem suscitar interrogações dos alunos, desde que um pouco do tema já tenha sido trabalhado previamente, construindo uma cadeia de sentido para os conceitos de patrimônio, memória, silenciamento, permanência, registro, tombamento, entre outros. E mesmo sobre a trajetória

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da comunidade que lá viveu, ainda se pode perceber a proximidade da História, visto que os sujeitos evocados na narrativa histórica, se situaram no espaço geográfico em que os alunos vivem.

Com base em experiências de educação patrimonial realizadas na educação básica, tendo o Caldeirão como espaço visitado, podemos constatar uma maior compreensão e o surgimento de indagações que não surgiam nas aulas teóricas no espaço escolar. Informações já trabalhadas em sala, não tinham sido internalizadas pelos educandos, que ao se deparar com o lugar de memória, faziam perguntas que imaginávamos que já tivessem sido compreendidas por todos, uma vez que para nós docentes eram questões fáceis, mas que para eles, não haviam feito sentido nenhum, a não ser quando entraram em contato com a materialização do conteúdo representado pelo patrimônio lá presente, o espaço do Caldeirão com seus resquícios materiais.

Considerações finais

Entendemos que as tentativas de trazer a história e as memórias do Caldeirão são válidas, entretanto é necessário reflexão acerca das políticas instituídas e as apropriações desse passado, buscando perceber a quem interessa cada memória construída no passado e no presente, que aspectos do passado está sendo lembrado ou esquecido, ou mesmo que passado está sendo construído no presente.

É preciso também pensar que “o esforço em lembrar o passado deve ocorrer para esclarecê-lo às novas gerações” (LIRA BARROS, 2013, p. 80-81), principalmente por meio da educação patrimonial como estratégia de ensino na busca de aproximar a história geral do contexto local e, sobretudo, adotar uma visão crítica acerca da História, das políticas de memória e do patrimônio cultural, no esforço intelectual de perceber as relações de poder e disputas por trás das políticas de memórias.

BIBLIOGRAFIA:

ALMEIDA, Maria Isabel Medeiros. Memória e história: o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto na narrativa histórica. São Paulo: PUC, 2011. Dissertação de mestrado.

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SANTOS, Ana Cláudia Veras. Representações do Caldeirão do Beato José Lourenço na literatura de cordel. Leituras comparativas. Fortaleza-CE: UFC, 2012. Dissertação de mestrado.

LIRA BARROS, Aretha Ludmilla Pacheco. O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto: diálogos entre literatura, história e memória. São Cristóvão: UFS, 2013. Dissertação de mestrado. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. 4. ed. Campinas-SP: Papirus, 2005.

FIGUEIREDO, José Alves de. O beato José Lourenço e sua ação no Cariri. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2006.

HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. São Paulo: Revista dos tribunais LTDA, 1990. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. São Paulo: PUC, 1993. OLIVEIRA, Almir Félix Batista de. O patrimônio cultural e os livros didáticos de história ou de como se constrói o sentimento de pertencimento- 200-2015. São Paulo: PUC, 2016. POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

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RAMOS, Francisco Régis Lopes. Objetos do Caldeirão: museu, memória e cultura material (1936-1997). Est. Hist., Rio de Janeiro, vol. 24, nº 48, p. 366-384, julho-dezembro de 2011. SIPRIANO, Benedita França. Vozes sociais e produção de sentido: a reprodução do beato José Lourenço e do movimento Caldeirão na cobertura do jornal O Povo (1934-1938). Fortaleza-CE: UECE, 2014. Dissertação de mestrado.

CORDEIRO, Sávio Domingos. Um beato líder: narrativas memoráveis do Caldeirão. 2. ed. Rio de Janeiro: Kelps, 2013.

ENTREVISTAS

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Entrevista concedida em maio de 2018 na cidade de Juazeiro do Norte-CE, por Angelita Maciel, integrante da Pastoral da Terra e organizadora da romaria.

Referências

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