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Entre Nômades: Gênero, sexualidade e idade e o uso de convenções entre travestis

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Academic year: 2021

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33º ENCONTRO NACIONAL DA ANPOCS 26 a 30 de outubro de 2009, Caxambu – Minas Gerais

GT 36: Sexualidade, Corpo e Gênero

Entre Nômades: Gênero, sexualidade e idade e o uso de

convenções entre travestis

Autor: Bruno Cesar Barbosa

Mestrando em Antropologia Social (PPGAS/USP)

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Introdução

“(...) Tudo o que me caracteriza é apenas o modo como sou mais facilmente visível aos outros e como termino sendo superficialmente reconhecível por mim. (...) E eu também não tenho nome, e este é o meu nome. E porque me despersonalizo a ponto de não ter o meu nome, respondo cada vez que alguém disser: eu.”

Clarice Lispector1

Este paper advém de questões discutidas em minha pesquisa de mestrado intitulada “Nomes e diferenças: sujeitos e convenções em debate”, no qual tenho por objetivo investigar os usos de convenções referentes a identidades sexuais e de gênero entre pessoas que foram assignadas como nascidas do sexo masculino e construíram em seus corpos o que consideram feminino2.

Para alcançar este objetivo a pesquisa concentra-se em metodologia qualitativa de cunho etnográfico, especialmente no trabalho de campo e entrevistas em profundidade acerca das histórias de vida. O trabalho, portanto, constitui-se em duas frentes de análise. A primeira frente se concentra em trabalho de campo apoiado, sobretudo, em observação participante no Centro de Referência em Diversidade (CRD), equipamento social direcionado à LGBT3 na cidade de São Paulo. Neste equipamento foco minha atenção em uma reunião quinzenal entre pessoas trans4, chamada de Terças Trans, além de observações no cotidiano desse equipamento. O grupo é ligado a Associação da Parada do Orgulho GLBT, porém, não se define enquanto militante, mas como meio militante e

meio auto-ajuda, considerando que tal espaço seria um lugar de trocas de vivências.

A segunda frente de análise, e que irei enfatizar neste paper, concentra-se na análise das entrevistas. Todas as pessoas entrevistadas freqüentam esporadicamente o CRD e as Terças Trans. A partir do contato estabelecido com essas pessoas realizei entrevistas em profundidade, tomando-as enquanto narrativas5.

1

A Paixão segundo G.H, 1990, páginas 178-179.

2

Tal caracterização dos sujeitos da pesquisa serve para dar ênfase às práticas destes sujeitos, em detrimento as identidades, já que como veremos os sujeitos percorrem diferentes posições de sujeito.

3

Sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Vale constar que a sigla já apresentou diversas combinações, sendo que atualmente, devido a 1ª Conferência Nacional LGBT, convencionou-se o termo LGBT.

4

Termo êmico utilizado pelas freqüentadoras das Terças Trans que abarca tanto travestis e transexuais. Utilizarei o itálico para me referir as falas nativas neste paper.

5 Irei considerá-las enquanto narrativas, pois estou respeitando o modo como o sujeito entrevistado

organiza o seu relato, como ele produz esta seqüência, e quais os elementos agenciados nesta narrativa. Suely Kofes (1994) propõe pensarmos assim em estórias de vida, e não em histórias de vida, pois o

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Neste paper irei trazer parte das narrativas de Carla e Bárbara para refletir estas questões que envolvem o uso das categorias e convenções. As duas freqüentam o CRD e esporadicamente as Terças Trans. A participação e contato com grupos militantes, mesmo que de forma não oficial, é presente nas duas narrativas. É necessário destacar que as duas pessoas escolhidas possuem trajetórias distintas, assim como noções e relações distintas com a militância.

Carla nasceu em São Paulo, tem 54 anos, autoclassifica-se como branca, cursou até o primeiro ano do ensino médio e, de acordo com seu relato, tem origem em uma família de classe média do Bairro do Bosque da Saúde, na Zona Sul. Perguntada acerca de definições em termos de classe, ela relatou ser de classe média. Ela tem acesso e interesse a bibliografias médicas, psicológicas e das ciências sociais que tenham como tema travestis e transexuais. Trabalha como performer e cantora desde os anos 70, mas aponta mudanças no estilo de suas apresentações. Grande parte de suas letras de música geralmente tem como tema as experiências de travestis, principalmente daquelas que se prostituem. Disse que nunca se prostituiu, nem na Europa onde trabalhou em casas de show. Considera que sua militância é individual, pois nunca se engajou efetivamente em nenhum grupo organizado, mesmo que freqüentando esporadicamente alguns grupos organizados em São Paulo, com algumas participações em eventos oficiais do movimento LGBT.

Já Bárbara, nasceu em uma cidade pequena do interior de Minas Gerais e tem 59 anos. Perguntada acerca da autodefinição em termos de cor/raça, ela apontou ser morena

cor de jambo, pois disse que tem uma cor que sempre parece que está bronzeada. Antes

de vir para São Paulo, morou no Rio de Janeiro. Nos dois lugares trabalhou na prostituição. Nos anos 1980 se envolveu com os trabalhos de prevenção e tratamento às DST e Aids, trabalhando na casa de apoio da Brenda Lee. Considera este tipo de trabalho uma missão humanitária, pois acredita que quem escolhe este tipo de trabalho, com pessoas marginalizadas, precisa ser uma pessoa que tenha um dom especial. Diz discordar em muitos aspectos dos discursos de algumas militantes atualmente, e assim diz que não participa mais ativamente de nenhum grupo, no entanto, busca se interar de interesse não está em saber dos fatos como aconteceram, isto é, da veracidade de tais fatos, e sim da forma como são agenciados no momento presente da vida dessas pessoas. Assim, a autora propõe pensarmos as narrativas como interpretações individuais de experiências sociais. As narrativas trazem uma dimensão de singularidade e também informam acerca de aspectos sociais mais amplos. As narrativas são um lugar plural, onde é possível perceber tramas de poder de diversos discursos que atravessam o sujeito e constituem relações sociais mais amplas.

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discussões acerca de temas que a interessam. Quando perguntei sua definição em termos de classe, ela disse: a gente é marginal né, vive sempre a margem, com essas pessoas da

marginalidade como bandidos, traficantes, cafetão, tudo isso que é ilegal.

Minha experiência de campo me chamou atenção para a proliferação de categorias para a definição destes corpos e as disputas por nomeação e produção das diferenças entre estes. Como tenho sinalizado, meu objetivo neste paper são os usos de categorias e convenções em narrativas. Em tais narrativas é possível perceber esta variedade de convenções e categorias agenciadas por esses sujeitos, além das disputas entre tais categorias. Ao mesmo tempo, é importante destacar que esta variedade de discursos presentes nas narrativas deve ser entendida através do contexto que torna possível tal variedade, além dessa proliferação que apontei.

Desde os anos 1990 é possível destacar, como argumenta Facchini (2005), uma maior especificação daquilo que era chamado de “Movimento Homossexual”. Travestis e transexuais começaram a se organizar como movimento específico desde a década de 1990, sobretudo através da articulação possibilitada pelo Encontro Nacional de Travestis e Transexuais que Atuam na Prevenção da Aids (Entlaids) e da criação nos anos 2000 de redes e articulações nacionais como a Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros (ANTRA), criada em 2000, e o Coletivo Nacional de Transexuais, criado em 2005. A organização destas em movimentos específicos, a partir da ênfase no modelo de políticas de identidade, possibilitou uma maior cobrança por políticas públicas específicas, processo pelo qual a própria identidade coletiva de tais movimentos passou a se consolidar6. Também nos anos 1990 há um adensamento dos estudos sobre travestis e transexuais nas próprias ciências sociais que começaram a focar tais temas.

6 A literatura acadêmica que se enfocou o Movimento Homossexual tem sinalizado que a construção da

identidade coletiva deste movimento nas últimas duas décadas esteve vinculada, e foi até mesmo estimulada e produzida, na interlocução com a formação de políticas públicas, tais como apontam autores como Facchini (2005); Facchini & Simões (2009) e Parker (1997). O contexto da Aids foi essencial neste sentido, pois ainda que este contexto de proliferação do vírus e da doença tenha registrado a perda de vários militantes do movimento homossexual e gerado uma forte estigmatização da Aids como a “peste gay”, foi neste período que emergiu um modelo de ONG/AIDS que ajudou a viabilizar uma política de identidade homossexual no Brasil (Facchini, 2005). Se é possível afirmar a partir dessas reflexões que, no caso da identidade homossexual, a relação com as políticas públicas foi um dos fatores para a sua consolidação e diferenciação; pode-se também considerar que no caso das travestis e transexuais, sua especificação e firmação enquanto movimento autônomo deu-se através da interlocução com as políticas públicas e o investimento dos programas estatais. O estriamento o movimento homossexual, como aponta Facchini (2005) teve forte influência das políticas públicas e do modelo de projeto para o financiamento estatal, no qual começou uma maior especificação daquilo que é considerado como “público alvo”.

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Na produção das políticas públicas atores de diversos campos participam na produção de sentidos acerca do que é travesti e transexual. Atualmente, por exemplo, na discussão acerca da implantação do Processo Transexualizador no SUS, participaram do debate uma série de atores como psicólogos, movimento social, assistentes sociais, médicos e gestores estatais. Teixeira (2009) aponta como é possível perceber neste documento do Processo Transexualizador uma diversidade de discursos como o de pessoas que propõem uma maior autonomia às pessoas transexuais, procurando desvincular a cirurgia do diagnóstico e assim o caráter eminentemente patológico de tal diagnóstico. No entanto, como destaca Teixeira (2009), este documento é marcado também pelo protagonismo do discurso médico-psiquiátrico na definição destas pessoas pelo viés patológico. O documento retoma a resolução nº 1.652 do Conselho Federal de Medicina (CFM) que é tomada como princípio do diagnóstico e tratamento das pessoas transexuais, e baseada nas Normas de Tratamento da Harry Benjamin Association (SOC), que por sua vez, entende a transexualidade enquanto um distúrbio. Vale constar que a hormonioterapia para travestis não é citada no documento, já que estas não se encaixam no diagnóstico clínico de transexualismo. De fato, as posições neste campo não são unânimes. Como sinaliza Teixeira (2009), dentro do próprio movimento social temas como a despatologização da transexualidade levantam posições contrárias e a favor, mostrando a diversidade de posições e disputas nesse campo.

Deste modo, podemos afirmar que estamos em um contexto específico de maior acirramento das disputas terminológicas devido ao encaminhamento de políticas públicas específicas para estas populações. O conhecimento médico, psicológico e as próprias ciências sociais estão inseridos na rede de discursos de produção destas identidades, de modo que tais discursos produzidos por estas “ciências” são apropriados pelos movimentos e pelas próprias pessoas, sendo utilizados para justificar diferentes concepções acerca destas diferenças. Durante meu campo, percebi como o tema das diferenças entre travestis e transexuais era recorrente entre as mesmas. Elas agenciam convenções biomédicas, convenções dos movimentos sociais e convenções das próprias ciências sociais, que neste processo pragmático se transformam.

Se por um lado, é necessário destacar o protagonismo médico-psiquiátrico para a definição destes corpos e o estabelecimento de suas diferenças, também é possível enfatizar como estes sujeitos deslocam tais diferenças. Tive contato com pessoas que, a partir das convenções médicas fixas, seriam identificadas como travestis, porém se

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diziam transexuais, transex ou trans.7 No entanto, é importante enfatizar que o contrário não acontecia, isto é, pessoas que seriam identificadas pela medicina enquanto

transexuais se dizerem travestis.

Desta forma, este paper irá focar atenção nas narrativas procurando perceber os agenciamentos de convenções e categorias referentes à identidades sexuais e de gênero, entendendo que tais convenções e categorias podem ser modificadas na prática das pessoas. Assim, em vez de definir de antemão os conceitos de travesti e transexual tomei como norte de minha pesquisa uma abordagem pragmática que procura focar nos usos que os sujeitos fazem de modelos e representações. Como discorre Herzfeld (1997), aquilo que nós propomos como “objeto” merece ser posto em questão desde o começo, pois este objeto já é um meio de nossa análise. Neste sentido, poderíamos não fechar claramente o que é “travesti” e “transexual”, e procurar entender como estas concepções aparecem nas práticas sociais dos próprios sujeitos e, além disso, como estes se utilizam de convenções de forma a justificar estas concepções e construir idéias como a de “grupo”8.

Parte-se neste paper de uma noção de identidade enquanto contingencialidade (Butler, 1998). As identidades emergem de contextos de relação e, desta forma, devem ser entendidas a partir de contextos específicos de produção. Não há um caráter essencial nas identidades, tal naturalidade é produto de um efeito retórico, chamado por Butler (2003) de “performatividade”. Para a autora as identidades são performativas no sentido que não somente representam o que supostamente nomeiam, mas produzem neste mesmo ato de nomear. Tais processos de naturalização, chamados por Herzfeld (1998) de “essencialismos pragmáticos” devem ser entendidos como estratégias da prática social que produz naturezas, obviedades.

7

Leite Jr. (2009) também sinaliza em seu trabalho o uso situacional de tais categorias, apontando pessoas que podem se dizer travestis em uma situação e trans, transexual ou transex em outra

8 Grupo aqui, pode ser entendido como o que Benedict Anderson (2005) entende enquanto uma

“comunidade imaginada”. O conceito é cunhado Benedict Anderson (2005) em sua análise sobre “nação”, porém penso que o conceito pode ser estendido a outros tipos de “comunidades”. Segundo Anderson (2005) a comunidade é “imaginada”, pois mesmo no menor dos países os seus cidadãos não se conhecem e mesmo assim compartilham a idéia de que fazem parte do mesmo “grupo” e que deste modo que compartilham certas experiências comuns.

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1.

Narrativa de Carla ou A prova física da diversidade

Quando falei para Carla se apresentar, ela falou:

Sou Carla, tenho 54 anos, sou paulistana, sou performer né? Cantora, compositora, atriz, também sou escritora e ativista das causas sociais dos direitos humanos GLBT e em especial travestis, transexuais e intersexos.

É possível perceber que em uma frase de apresentação na qual Carla é solicitada a escolher alguns atributos, ela toma como referência a performer, ou o que ela chama de

artista travesti, profissão que ela trabalha desde os anos 1970. Neste contexto de

apresentação, o fato de dizer-se performer, também a permite não se identificar enquanto

transexual ou travesti. Carla relata que já se identificou de várias formas durante sua

vida, em suas palavras:

Eu cresci pensando que era homossexual, depois surgiu a discussão sobre travesti/transexual. Então, o que eu sou? Eu sou travesti, aí eu virei travesti nos anos 70. Sou travesti. Aí, nos anos 80, eu sou transexual e até há pouco tempo eu achava que eu era transexual, apesar de não querer me operar. Mas, essa coisa do andrógino nunca me abandonou, eu sempre tive certeza de ser dois em um, tanto que assim quando eu comecei a freqüentar a militância, aqui na Parada, há coisa de dez/onze anos atrás, quando começou a Parada, eu falava assim: eu quero a ambigüidade como identidade, porque eu não quero ser homem e não quero ser mulher, eu sou os dois, eu sou homem e sou mulher. Portanto, é ambigüidade, dualidade, é isso que eu quero como identidade.

Nota-se em sua fala uma interlocução com um vocabulário que vemos em muitos trabalhos dos estudos sobre gênero e sexualidade como ambigüidade como identidade,

dualidade. As “leituras”, “discussões” e “informações” não somente a “informam”, mas

também mudam a forma como ela vê suas próprias vivências. Deste modo, a narrativa adquire diferentes temporalidades, na medida em que o acesso às novas discussões e informações passa a rearticular suas vivências passadas.

É a partir das situações presentes que as pessoas dão sentido a sua narrativa. A narrativa de Carla é organizada em torno da sua descoberta de ser intersexo. Esta

descoberta rearticula uma série de eventos de sua vida e é, neste sentido, que ela relata

que essa coisa do andrógino nunca me abandonou. A narrativa desta descoberta é feita pela montagem de uma série de eventos que confirmam esta certeza de ser intersexo. A pergunta que deu início a narrativa da descoberta visava explorar quando ela começou a se sentir enquanto diferente de outras pessoas, e no que consistia esta diferença. Em um primeiro momento esta diferença seria o fato de ser um menino que gosta de coisas de

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menina, expresso por eventos de discriminação na escola e com colegas. Segundo Carla,

estes eventos fizeram com que seus pais a levassem a um psiquiatra. Em suas palavras: Carla: Com onze anos, me levaram ao psiquiatra, muito inteligente e moderno

pra época já. Eu tive sorte, e ele falou que tinham que me aceitar, do jeito que eu era. Depois ele pediu para eu tirar a roupa para fazer o exame, olhou o meu corpo, e ele receitou injeções de hormônio masculino, porque disse que eu tinha deficiência hormonal. Naquela época, eu não entendia o que era, e só fui descobrir o que era, agora em 2004. Em 2004 eu descobri que nasci intersexo. Você sabe o que é?

Bruno: Sei, mas se você quiser explicar, falar sobre isso...

Carla: Intersexo é a pessoa que nasce com os dois, com as duas

características, ou nasce com a genitália indefinida, e a minha era indefinida. Então os médicos, isso foi uma tia que me contou tudo em 2004, depois que meu pai e minha mãe faleceram, eles morreram com este segredo, e ela me contou que o médico queria castrar meu testículo para que eu crescesse como menina quando eu nasci. Com seis anos me levaram para fazer uma cirurgia de hérnia, que hérnia que nada que hoje eu descobri que naquele dia tiraram meu ovário, eu nasci com um ovário. E eu só fui entender isso agora, porque daí eu comecei a estudar, na internet e saber. Eu tinha visto um documentário uma vez, eu pensava que era uma coisa extraordinária, e depois eu descobri que não era uma coisa tão rara assim. (...) Aí em 99, eu fui num médico, num endócrino. Em 99 eu tive um problema nessa região (apontando o abdômen), e o médico me receitou um exame de ultra-som. Aí, ele chama a enfermeira e, de repente, ele grita assim: "Ah! Olha o útero dela aqui". Eu achei engraçado, comecei a rir, e falei "Ai, e travesti tem útero?" (risos). Mas aí eu olhei para a cara deles, e eles não estavam rindo, eles estavam meio assim pasmos, e eu esqueci, pensei que era brincadeira. (...). Aí, ano passado eu fiz três meses de análise com uma psicóloga e teve um dia que ela me falou e eu nunca tinha falado de intersexo, e ela me falou que eu não me classificava nem como travesti, nem como transexual. Ela falou pra mim: “você já fez algum exame pra ver se você tem útero?”. Aí, eu falei: “não”. E aí, me lembrei do negócio que aconteceu em 99. Aí, ela falou que eu falava uma série de coisas, e sentia, de pessoas que têm útero. Aí que eu fui vasculhar mais ainda. Na minha vivência isso mudou, no sentido assim, eu sempre pensei, puxa vida, no começo eu achava que eu era homossexual, um homossexual efeminado que queria ser mulher.

Esta descoberta a faz olhar suas experiências passadas e ver uma androginia que sempre esteve lá, operando um tipo de “literalismo” baseado no corpo. Como Crapanzano (2002) afirma, o literalismo é um estilo de interpretação que se caracteriza pelos seguintes aspectos:

1) Concentra-se na dimensão referencial ou semântica da linguagem – mais especificamente na palavra –, e não em suas dimensões retórica ou pragmática.

2) Pressupõe uma correlação simples, inequívoca, entre palavra e coisa. 3) Insiste no significado único, essencial, “ordinário”, “habitual”, “de senso comum” da palavra.

4) Oferece resistência a qualquer compreensão figurativa, vista como distorcida e até adulterada.

5) Frisa a intenção autoral – “intenção original” – como indicadora do significado correto.

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7) Dá prioridade ao escrito – o texto – sobre o falado e, no caso de textos sagrados, como a Bíblia, às vezes até sobre experiência. (Crapanzano, 2002, p. 453).

Crapanzano (2002) afirma que os estilos de interpretação nunca são puros ou sem contradição. Para o autor qualquer sistema de classificação tem pelo menos duas dimensões importantes: uma dimensão semântico-referencial e outra dimensão pragmática. Tais dimensões não são distintas, mas é possível perceber em certos contextos uma valorização maior de alguma das duas.

No caso da descoberta de Carla, há uma valorização de um estilo literalista de interpretação e da dimensão semântico-referencial. O “texto fundamental” do literalismo de Carla é o ultra-som, que a permite fazer uma relação inequívoca entre palavra e coisa. O ultra-som marca uma “verdade absoluta” onde não há espaços para discussão. A relação entre tal estilo e o conhecimento biomédico é evidente. Em sua narrativa, é possível perceber uma tensão com o saber médico: de um lado, um enfrentamento diante de um saber de “controle” do corpo, e de outro lado, uma aproximação pelo status dado ao saber médico como científico e fonte de uma verdade absoluta, expresso por sua valorização de uma retórica literalista. No entanto percebemos que esta descoberta de ser

intersexo não a faz parar de utilizar outras categorias de classificação, como por exemplo,

quando ela responde ao médico, em tom de risos, e travesti tem útero? Neste momento, Carla se coloca na posição de travesti. Desta forma, é possível argumentar que o fato de ser intersexo parece a possibilitar “ser” muitas outras coisas.

Deste modo, a deficiência hormonal diagnosticada pelo médico não podia ser entendida até a recente descoberta de Carla. O fato de sua narrativa começar com um evento da sua ida ao psiquiatra com onze anos, não é por acaso. Em sua narrativa, a primeira indicação desta descoberta de ser intersexo foi a conversa com sua tia que contou que ela nasceu intersexo, depois que seus pais faleceram. No entanto, somente esta conversa com a tia não torna possível o entendimento completo desta descoberta. É necessário que este entendimento seja mediado pelas “informações” adquiridas por vários meios, como ela relata: eu só fui entender isso agora, porque daí eu comecei a

estudar, na internet e saber, eu tinha visto um documentário uma vez.

Se a conversa com a tia, e estas informações conseguidas via internet e em documentários mudam seu entendimento, os eventos com médicos parecem ter um grande peso em sua narrativa para legitimar esta descoberta. É assim que Carla retoma o

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exame de ultra-som acontecido em 1999, pois este exame confirma uma ambigüidade que sempre esteve lá. Carla procura se aproximar do status de irrefutabilidade do saber médico, e daquilo que permeia o “cientifico”. A narrativa do evento com a psicóloga vem corroborar ainda mais para esta descoberta de ser intersexo. A fala da psicóloga perguntando se ela tinha útero, a faz lembrar do exame de ultra-som de 1999, e como que em um insight psicanalítico Carla “entende” sua questão. O desconhecimento da psicóloga da sua descoberta de ser intersexo, torna mais fidedigna sua fala, e fornece mais um elemento de cientificidade em seu argumento. É interessante notar que se Carla nasceu com pênis e útero, no entanto, não foi o pênis do “ambíguo” que foi confirmado na pergunta da psicóloga. Carla sente como pessoas que tem útero, e não como “pessoas que tem pênis”. Não são sentimentos masculinos que são confirmados, são sentimentos que advém do órgão considerado por muitos “o mais feminino”. A lógica presente no saber biomédico, da qual Carla não se desloca, é a idéia de que a verdade do sujeito advém da natureza, do corpo.

O sentido desta confirmação do útero fica mais evidente quando ela relata que a

descoberta de ser intersexo mudou sua vida, pois ela sempre se considerou um homossexual efeminado que queria ser mulher. Argumento que mais do que “mudar”,

esta descoberta concede um lugar a uma feminilidade que sempre esteve “fora do lugar”. Uma feminilidade deslocada em um corpo nascido com pênis é confirmada pelo útero.

Carla também recebeu a confirmação da psicóloga, como que de um juiz, de que não se classificava nem como travesti, nem como transexual. O fato de ela sentir como

pessoas que tem útero faz com que seu problema não resida em um nível psicológico do se sentir mulher, como para as travestis e transexuais, e sim em um nível biológico do ter útero. Não há um deslocamento de sexo e gênero, ou de corpo e gênero. Argumento

assim, que toda esta incerteza de se classificar, envolvida neste nível do se sentir, é convertida em “certeza” pela sua “ambigüidade de corpo”. É, neste sentido, que o argumento literalista é tão importante em sua narrativa.

Bruno: Mas e hoje, quando você precisa se identificar, como você faz?

Carla: É o que eu te falei, a descoberta do intersexo me deixou meio sem rumo. Então, eu já fui homossexual, eu já fui travesti, eu fui transexual, e agora eu sei que sou intersexo, pelo menos isso eu tenho uma certeza física, não tá no subjetivo.

Bruno: Me fala mais sobre isso, porque a transexualidade então seria mais

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Carla: É, ainda é, não tem nenhum estudo nem na antropologia, na

psicologia, o que é um transexual? Tá, é uma pessoa, e aí, a medicina se apoderou dizendo que é doença, uma disforia. Eu não concordo, eu não sou doente, eu acho que isso tudo é uma necessidade de controle, nada mais do que isso. Agora, se a pessoa transexual se sente na necessidade de se realizar com uma operação, opere, eu quando tinha o nariz grande me operei, pra me sentir melhor. Agora, eu não posso me considerar mais nada, porque agora eu sei o que eu sou, o que eu sempre pensei que era, a certeza que eu sempre tive era essa, ser dois em um, eu sou intersexo, eu tenho os dois, as duas características.

Na argumentação de Carla se travesti e transexual são questões de se sentir mulher,

intersexo é uma certeza física sem menores dúvidas. Ela põe em evidência a concepção

médica considerada hegemônica do que é a transexual, pois ela se considerava

transexual e não queria se operar. Ao mesmo tempo, se coloca na posição de transexual,

pois responde à medicina que a transexualidade não é uma doença. Carla não se encaixava nos moldes clássicos da transexualidade e demonstra novamente este enfrentamento diante do saber médico que considera a transexualidade uma doença, além de atrelar a cirurgia como condição “sine qua non” desta identidade. Segundo ela:

isso tudo é uma necessidade de controle.

Porém, como já argumentei, Carla não se encaixava nos moldes clássicos da

transexualidade, e assim sua aproximação do saber médico e de um estilo de

interpretação literalista não se daria pela categoria transexual. É, neste sentido, que em seu argumento ela opõe o nível psicológico do sentir ao nível natural do físico, em uma distinção assimétrica. Ela usa a mesma lógica que a oprimiu para se legitimar, pois parece perceber a força que o argumento literalista tem. O elemento que as transexuais têm para dizer que são “naturalmente” mulheres é o se sentir, pois nasceram em um corpo masculino. Como Carla argumenta, temos um problema com a transexualidade, que é esta natureza afirmada a partir de um elemento psicológico, o sentir. No entanto, o corpo nascido intersexo dá a ela o elemento natural, incontestável na sua narrativa.

O que eu sempre pensei que era, e a certeza que eu sempre tive é confirmada pela descoberta de ser intersexo. Esta figura do ser andrógino, do dois em um, adquirida pelas

suas leituras, a possibilita se colocar neste lugar de um “sujeito pós-moderno”. Arrisco dizer que há aqui uma interlocução com a literatura das ciências sociais e de sua trajetória como performer no qual sempre quis valorizar esta androginia, além de uma percepção de uma atual valorização da “diferença”. Esta figura do sujeito “ambíguo”, do andrógino, é articulada pela descoberta de ser intersexo, o que lhe dá um tipo de capital corporal

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para poder se colocar neste lugar, já que ela seria a corporificação desta “ambigüidade”, como ela relata em alguns momentos: a prova física da diversidade.

É necessária na lógica da argumentação de Carla, portanto, estes elementos físicos, biológicos. O uso da categoria intersexo, do argumento incontestável do ultra-som, reafirma esta crença no natural como fonte de entendimento do sujeito e de toda lógica do que Foucault (2003) chama de “dispositivo da sexualidade”. É este tipo de pensamento da verdade do sujeito a partir do corpo, que a provê destes elementos físicos necessários. Como já argumentei, se o saber médico é colocado em uma posição de “controle sobre o corpo”, de fonte de grande parte de seu sofrimento, é a sua lógica de entendimento da sexualidade que é agenciada para justificar a descoberta de ser

intersexo.

2.

Narrativa de Bárbara ou Quando você se diz trans

Foi possível perceber que a narrativa de Carla é organizada a partir de sua situação presente, a descoberta de ser intersexo. Já a narrativa de Bárbara é organizada em torno das tensões entre travestis e transexuais. O uso que Bárbara faz da categoria transexual nos informa questões relevantes sobre o processo de agenciamento de convenções. Segundo ela:

Bárbara: Eu hoje acho muito estranho, porque quando você se diz “trans”, há

uma transformação na sua anatomia, não interna, que é o caso das transexuais. Para mim, transexual é o cidadão que se submete a uma operação e desfaz de seus órgãos genitais. Isso pra mim é transexual. Hoje, tem um discurso que transexual é a pessoa que transforma o corpo, através de prótese de mamária, silicone no quadril e por aí vai né, tomar hormônio todo dia, a transexual é isso. Quer dizer, as pessoas não se enquadram mais naquela coisa de travesti. Transexual agora é tudo isso, e eu vou me identificar que nem uma dinassaura? A jurássica na história? Agora, eu também falo que eu sou transexual. Aí, tem gente que fala que não, né. Mas a visão que eu tenho da transexual é isso. Eu seria travesti na história né, porque toda a minha transformação né, pode ser revertida. (Bárbara, 59

anos)

Bárbara põe em evidência as convenções “hegemônicas” acerca das diferenças entre travestis e transexuais e, no entanto, as rearticula por um discurso geracional. Em sua narrativa Bárbara diz que seria travesti na história, isto é, tomando como base de definição as categorias médicas, e aponta uma dimensão geracional na discussão afirmando que as pessoas não se enquadram mais naquela coisa de travesti. Ela aponta mudanças nas convenções do termo transexual, operadas pelas novas gerações. “Antes”,

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segundo sua narrativa, transexual [era] o cidadão que se submete a uma operação e

desfaz de seus órgãos genitais, no entanto, hoje tem um discurso que transexual é a pessoa que transforma o corpo, através de prótese de mamária, silicone no quadril e por aí vai né, tomar hormônio todo dia, a transexual é isso.

Ela sinaliza um alargamento do sentido do que é transexual, apontando que

transexual seria toda a forma de transformação corporal, pois as pessoas não se enquadram mais naquela coisa de travesti. Deste modo, parece que diferentemente de

Carla, aqui parece haver uma valorização de um estilo de interpretação retórico e da dimensão pragmática. A lógica por trás deste argumento parece ser que as convenções e as categorias podem mudar, elas não são dados naturais e assim dependem do contexto e da forma que são utilizadas. Em sua narrativa, é o alargamento da categoria transexual que a permite se colocar em seu argumento como transexual. Não se trata, no entanto, somente de uma mera mudança do sentido das palavras, pois as pessoas não se

enquadram mais naquela coisa de travesti. Em outro momento de sua narrativa esta

questão fica mais evidente:

Bárbara: Essas novas tem que respeitar muito a gente, a nossa geração,

porque nós abrimos caminho pra elas, elas não tem noção e eu ouvi esses dias uma coisa horrorosa (...) Hoje em dia, tem uma cultura de rapazes bem nascidos, que viveram suas vidas, concluíram sua faculdade, tem trabalho, e um dia eu ouvi uma usuária daqui falando que tinha que higienizar os travestis (...) Sei lá o que ela quis dizer de higienizar, porque ela dizia: “os travestis não servem pra nada, não sabem se comportar”. Porque a gente servia a causa quando precisava de gente que sirva a causa, de que modo eu não sei. Porque antes, que não tinha nenhuma dessas beldades operadas, a gente batia de frente e enfrentava a discriminação, agora higienizar travestis, a gente que higienizava lá nos anos 60. A gente que abriu as portas, quem é que deu a cara para bater? Homossexual podia ir em qualquer lugar. Agora travesti não. (...)

Bárbara marca neste relato de “quem” está falando, isto é, das novas, das beldades

operadas. Marca também certos aspectos de classe: rapazes bem nascidos, que viveram suas vidas, concluíram sua faculdade, tem trabalho; e se coloca neste momento de onde

fala, da posição de travesti. No entanto, a questão é mais tênue, pois Bárbara não considera as transexuais como estes “outros”. A comunidade imaginada construída por ela permite que as transexuais sejam entendidas como do seu “grupo”. Neste sentido, Bárbara aponta que sua relação com estas beldades operadas não é de alteridade, tanto que elas podem ser a nova geração.

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Esta nova geração seria uma geração ingrata com as conquistas da geração anterior. Quando Bárbara aponta esta questão acerca de higienizar os travestis, ela estava se referindo a um evento ocorrido no dia da entrevista e a um processo mais amplo de estigmatização das travestis. Segundo ela, as travestis só aparecem na mídia e nas falas das pessoas ligadas a escândalos e a marginalidade. Como ela narra, em uma reunião entre travestis e transexuais, algumas transexuais falavam que as travestis não sabiam se comportar nas reuniões, e que era melhor elas não participarem. As travestis seriam vistas como escandalosas nas reuniões, podendo inclusive ser agressivas. Segundo Bárbara, é neste contexto que algumas transexuais teriam utilizado a expressão

higienizar os travestis, o que a fez se sentir extremamente ofendida. Percebe-se o uso do

artigo masculino na locução higienizar os travestis, como uma forma de ofensa por uma hierarquia de gênero, no qual o feminino assume posição superior. Tal ofensa marca a falta de uma feminilidade desejada, ou de uma feminilidade falsa, de quem não sabe se

comportar, já que travestis não seriam rapazes bem nascidos.

Bárbara se refere ironicamente às transexuais como rapazes, destacando com isso o fato de terem nascido homens como elas, as travestis. Bárbara utiliza o mesmo princípio de ofensa utilizado por parte das transexuais contra ela, e assim as chama de rapazes. No entanto, tal uso é irônico, pois Bárbara emite tal enunciado desde a posição de travesti, que seriam qualificadas como mais masculinas, já que seriam os travestis. Sua ação assim marca a relação de não alteridade entre travestis e transexuais, pois, as duas teriam nascido homens. Em sua narrativa a construção do que é travesti está intrinsecamente ligada à categoria transexual. E é assim que atributos de gênero, classe e geração intersectam-se na produção das diferenças. Bárbara marca certos contornos de classe à categoria transexual, pois este lugar transexual é o lugar dos rapazes bem nascidos, que

concluíram suas faculdades, tem trabalho. Marca como a cirurgia está atrelada a

categoria transexual, ao apontá-las como as beldades operadas, questão esta utilizada por muitas transexuais para reivindicarem que sua feminilidade é mais natural do que as das travestis. Portanto, dizer que agora, eu também falo que eu sou transexual é querer se aproximar deste outro lugar, diferente do lugar travesti, que em sua narrativa é marcado pela estigmatização e marginalidade. Esse lugar transexual “tem” classe, que sabe se comportar e, portanto, possui também um outro tipo de feminilidade. Os termos adquirem também aspectos de geração já que as travestis são as jurássicas, e a categoria

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das novas gerações é a transexual. Portanto, dizer-se transexual também a coloca como uma pessoa “informada” acerca das mudanças atuais.

Aqui, travesti e transexual são aquilo que Facchini (2008) chama de operadores sociais da diferença, que a autora sinaliza que seriam estilos, identidades e classificações. Estes termos articulam os marcadores sociais da diferença como gênero, sexualidade, classe e geração. A categoria travesti e transexual em sua narrativa tomam sentido pela articulação de convenções destes marcadores.

Como argumentei, na narrativa de Bárbara não existiria relação de alteridade entre

travestis, transexuais e homossexuais. Todos fazem parte da mesma comunidade

imaginada. O uso que Bárbara faz do termo terceiro sexo nos explica mais esta questão: Bárbara: Terceiro sexo9 é uma coisa lamentável, mas também existe, porque eu não sei qual é o primeiro e qual é o segundo, mas existe, porque você há de convir que existe a mulher, existe o homem e existe o homossexual. Então o homossexual não é o primeiro sexo, agora o heterossexual que discuta entre eles quem é o primeiro e quem é o segundo. Se é o homem ou se é a mulher.

Terceiro sexo e homossexual menos do que a “identidade homossexual”, parece

definir aqui tudo que é diferente de heterossexual. Quando Bárbara chama as transexuais de rapazes, ela argumenta que elas também são homossexuais como ela. Afinal, como bem explicado nesta última fala: existe a mulher, existe o homem e existe o homossexual.

Arrisco dizer que sua questão geracional marca mais ainda esta relação de não alteridade com as transexuais e homossexuais. Tal relação surge, como discorri, quando ela marca que todos são homossexuais. Bárbara aponta que foi sua geração que abriu espaço para estas novas gerações. Como ela relata, não eram também os homossexuais que mais enfrentavam a discriminação, mas sim as travestis. Sua relação com os

homossexuais também não é, tampouco, de alteridade, pois as travestis aparecem como

quase as “verdadeiras homossexuais”, as verdadeiras assumidas, pois o homossexual

podia ir em qualquer lugar, agora travesti não.

Bárbara nos relata que seria identificada como travesti, pois toda a sua transformação corporal pode ser revertida. No entanto, ela busca reconhecimento por

9 O termo “terceiro sexo” está associado à Karl Heinrich Ulrichs (1825-1895) e Magnus Hirschfeld

(1868-1935), porém o uso que Bárbara faz acerca do termo é diferente dos sentidos argumentados pelos autores. A expressão era utilizada pelos autores se remetendo a Platão, particularmente ao “Banquete”. O termo já teve uma grande popularidade, sendo utilizado pelos primeiros movimentos homossexuais. Na década de 60, alguns autores começaram a cunhar o termo “terceiro gênero” em uma ambição de comparação transcultural.

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meio do que a categoria transexual representa, isto é, um lugar diferente da categoria

travesti. Na narrativa de Carla, entendo que a diferença entre travestis e transexuais é

menos do que diferenças clínicas, do que signos de diferenças de gênero, sexualidade, classe e geração. O lugar transexual aparece como o lugar dos rapazes bem nascidos, portador da feminilidade legítima e adequado aos dias atuais e, neste sentido, superior ao lugar marginal das travestis, de pessoas que não sabem se comportar, de uma feminilidade falseada e das jurássicas. É esta posição do lugar transexual que Bárbara almeja, assim como uma fuga do lugar marginal e escandaloso das travestis.

Bárbara aponta um alargamento do sentido de transexual, mesmo sabendo que segundo os padrões médicos seria identificada como travesti. Ela também chama as

transexuais ironicamente de rapazes para marcar que estas também nasceram homens. É

possível destacar que nestes dois movimentos percebe-se que Bárbara amplia o grupo, em vez de dividi-lo.

Considerações Finais: Nomes, Posições e Diferenças

Nas narrativas de Carla e Bárbara é possível perceber que os usos das categorias são contextuais e tem relação direta com suas situações presentes. Como argumentei, Carla organiza sua narrativa a partir de sua descoberta de ser intersexo, já a narrativa de Bárbara é organizada em torno das tensões entre travestis e transexuais. Também é possível perceber que neste uso das categorias, muitas vezes os sentidos previamente estabelecidos são transformados. Mesmo as duas colocando em evidência as concepções médicas acerca da diferença entre travestis e transexuais, que seriam consideradas “corretas”, elas deslocam estas diferenças.

Certa posição geracional permite elas olharem as mudanças nos usos de convenções. As narrativas apontam uma especificação das identidades. Do antes tudo era

viado, agora temos travestis, transexuais e homossexuais. Antes tudo era viado, depois

teriam surgido as discussões sobre sexualidade, e é neste contexto de discussão e de “informação correta e científica” que surge a transexualidade. Assim, as narrativas apontam o imbricamento dos saberes neste processo de especificação das identidades. É possível perceber também que a lógica do antes tudo era viado não é algo de um passado longínquo. Bárbara usa tal lógica para apontar que as transexuais seriam rapazes e, assim, transforma o “antigo” em “novo”. Como discorri, chamá-las de rapazes lembra

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que antes tudo era viado e marca uma relação de não alteridade com as transexuais tanto que elas podem ser a nova geração.

Como argumentei, as formas como cada uma interpreta estas mudanças e as categorias são diferentes. Na narrativa de Carla há uma valorização de um estilo literalista de interpretação, diferentemente da narrativa de Bárbara que parece enfatizar um estilo de interpretação mais retórico. Na narrativa de Carla a transexualidade aparece como um modo mais correto e científico de falar de algo que sempre esteve lá, enquanto na narrativa de Bárbara a categoria transexual aparece como um aspecto de novidade das novas gerações. No relato de Carla tais categorias representam uma realidade natural e imutável e assim, ela se aproxima de um modo mais biomédico de entender a sexualidade e o gênero, pois cabe a “ciência” descrever esta “natureza”. Como argumentei, Carla enfrenta um paradoxo, pois se coloca em uma posição de enfrentamento diante do saber médico-psiquiátrico, dizendo, por exemplo, que a transexualidade não é doença e não deve estar atrelada ao desejo de cirurgia, e ao mesmo tempo, agencia a lógica de entendimento de tal saber no uso da categoria intersexo.

Arrisco dizer que Carla percebe a atual valorização de uma retórica literalista, e assim, uma série de descompassos frente a categorias é resolvida pela descoberta de ser

intersexo. É necessário enfatizar também que Carla se coloca em outras posições em sua

narrativa, como quando responde ao médico: e travesti tem útero?, ou na posição de

transexual quando diz que a medicina considera a transexualidade uma doença. Assim,

na narrativa de Carla tampouco a relação entre tais categorias é de alteridade. Desta forma, há uma dimensão retórica de seu argumento, pois mesmo que Carla mostre uma valorização de um estilo de interpretação literalista, a descoberta de ser intersexo a permite ser muitas outras coisas, já que ela seria a prova física da diversidade.

Na narrativa de Carla a transexualidade aparece como informação correta e científica, e também adquire certos contornos de classe, geração e gênero na narrativa de Bárbara. O lugar transexual aparece como o lugar dos rapazes bem nascidos, possuidor de uma feminilidade almejada e adequado aos novos tempos, sendo portanto, superior ao lugar marginal e jurássico das travestis. É esta posição do lugar transexual que Bárbara almeja, assim como uma fuga do lugar marginal e escandaloso das travestis. Lugar

travesti do qual nenhuma das duas também se desloca totalmente.

Tais imagens das travestis e transexuais que emergem destas narrativas nos informam acerca de um contexto mais amplo de disputas destas categorias. Leite Jr.

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(2009) argumenta como a transexualidade para se tornar uma categoria específica no âmbito brasileiro teve que se diferenciar da categoria travesti e homossexual. O autor aponta uma série de exemplos para mostrar como em muitos casos tais categorias aparecem muitas vezes misturadas, como quando Roberta Close ficou conhecida ao público, sendo chamada de travesti e somente posteriormente de transexual.

Segundo o autor, a distinção entre travestis e transexuais tornou-se acentuada, pois o termo travesti no Brasil está associado historicamente ao imaginário do desregramento sexual e ao universo da prostituição. O autor aponta como nos próprios grupos políticos e de direitos civis de travestis e transexuais, quando começaram a se organizar com foco nas identidades coletivas no final dos anos 1980, grande parte de suas atenções se direcionavam à problemática das DSTs/AIDS e toda estigmatização envolvida neste processo10.

Tal foco também ajudou a produzir esta associação direta entre travestis e prostituição. A este desregramento do termo travesti, associam-se tipos de feminino e contornos de classe. Berenice Bento (2008) sinaliza como as transexuais para se diferenciar e se distanciar da feminilidade das travestis, que é considerada por suas informantes como vulgar, exagerada e promíscua, elas põem em debate em grupos quem se encaixa ou não na categoria de transexual, trazendo as concepções médicas, em que o foco é saber a partir da classificação quem é mais feminina, pois a transexual seria entendida como a portadora da feminilidade legítima. Leite Jr. (2009) também aponta como as distinções médico-psiquiátricas entre travestis e transexuais podem ser usadas como instrumentos de distinção social entre as pessoas.

No âmbito do movimento social de travestis e transexuais é possível perceber como cada vez têm-se formulado as reivindicações como separadas. Teixeira (2009) aponta tensões e disputas entre os movimentos, que segundo a autora inclusive se expressam na produção de políticas públicas. A autora toma como exemplo a descrição de uma mesa de discussão realizada durante o XIII Entlaids, em 2007, na cidade de Salvador, cujo tema era “TT´s e a Inserção no Movimento de Mulheres” e para a qual foram convidadas para a discussão duas representantes do movimento feminista, uma das

10

Pelúcio (2007) também destaca tal associação das travestis com o campo da desordem e da doença das travestis por parte dos programas de controle e prevenção de DSTs e AIDS. Segundo a autora, o processo de inclusão social das travestis deu-se por uma SIDAdanização, pela associação das travestis à AIDS e a doença e marginalidade.

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travestis e uma outra transexual integrante do Coletivo Nacional de Transexuais. Faltaram no encontro a representante do movimento feminista e a representante das travestis e, portanto, uma representante da Rede Latinoamericana e Caribenha de Pessoas Transexuais foi convidada para participar da mesa. Nas palavras de Teixeira:

As ausências das representantes da organização feminista e da ANTRA foram apresentadas de maneira diferenciada pela coordenadora da mesa. A ausência da representante da organização feminista foi avaliada como um possível atraso, já a da organização das travestis foi acompanhada por um comentário: “não deve estar interessada”. Ao sugerir que a temática proposta pela mesa não interessaria a um determinado segmento poderia estar indicando que essa especificidade não integra o cotidiano deste grupo. (...)

(...)No momento do debate, identifiquei que a unanimidade das questões elaboradas pelas travestis se dirigia à representante da Rede Latinoamericana e privilegiava a expectativa de compreender como vivem e quais são as estratégias de enfrentamento das adversidades encontradas pelas travestis e transexuais da América do Sul, preocupação compartilhada com a representante da ANTRA, que integrou posteriormente o grupo de palestrantes. De fato, a temática não parecia despertar interesse das travestis retratado na ausência de perguntas dirigidas às demais representantes da mesa. Não se percebiam como mulheres? Esta questão ficou pairando no ar, foi apresentada num tom acusatório pelas mulheres (transexuais) e acompanhou o título da apresentação da representante do CNT – “somos todas mulheres????. Interrogação que parecia endereçada especificamente às travestis, uma vez que as mulheres (transexuais) foram contempladas através de sua fala – até que, na mesa de encerramento dos trabalhos, no sábado, a presidente da ANTRA encerra a mesa dizendo: “não somos homens, não somos mulheres, somos travestis e queremos ser respeitadas como travestis que somos. (...) (TEIXEIRA, 2009, p.186)

Segundo Teixeira (2009), a disputa descrita acima, ao estabelecer distinções entre travestis e transexuais, acarretou reflexos na elaboração de políticas públicas em saúde de 2007, época de elaboração dos Planos de Enfrentamento da Epidemia da Aids coordenadas pelo Programa Nacional de DST e Aids. Neste Plano, as travestis integraram o “Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia de Aids e DST entre Gays, outros Homens que fazem sexo com Homens (HSH) e Travestis” e as transexuais foram relacionadas ao “Plano Integrado do Enfrentamento da feminilização da Epidemia de Aids e outras DST”.

Percebemos no relato de Teixeira (2009) uma hierarquia de gênero que perpassa estas tensões entre travestis e transexuais, em que o feminino assume a posição superior. Estas tensões aparecem também nas narrativas apresentadas e de forma mais dramática na narrativa de Bárbara. Se geralmente pensamos as assimetrias de gênero como o masculino na posição superior, no contexto entre travestis e transexuais podemos afirmar

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o inverso. Deste modo, certas tensões e disputas presentes no movimento social também estão presentes nas narrativas.

As categorias travesti e transexual articulam marcadores sociais e produzem neste sentido “lugares sociais” no entrelaçamento destes diversos marcadores. Em sua análise acerca do imperialismo vitoriano, McClintock (1995) destaca a importância de se compreender o entrelaçamento dos marcadores sociais na produção destes “lugares sociais”. A autora afirma que a “invenção” da raça nas metrópoles urbanas foi central para o imperialismo britânico e para a auto-definição e configuração das classes médias urbanas, através do policiamento das “classes perigosas”, isto é, classes trabalhadoras, irlandeses, judeus, prostitutas, homossexuais, dentre outras. Em sua análise classe, raça, gênero e sexualidade não são vistos como realidades distintas ou sobrepostas, tais marcadores se articulam e produzem certos lugares sociais, como a “senhora”, a “empregada”, o “patrão”, o “escravo”, dentre outras.

No caso das travestis e transexuais, é possível perceber como suas diferenças podem ser expressas nestas narrativas por diferenças de classe, gênero, sexualidade e geração. Neste sentido, elas deslocam as concepções médicas acerca das diferenças entre travestis e transexuais. É possível perceber também que as pessoas se deslocam entre estes lugares sociais. Assim como a personagem do trabalho de McClintock (1995), Cullwick, que transita entre diversas posições de sujeito, Carla e Bárbara também se movem entre diversas posições.

Aparecem em suas narrativas outras categorias de identificação que não travesti e

transexual, como trans, intersexo e performer. Os significados do que é travesti e transexual são postos em questão em vários momentos de suas narrativas, e elas apontam

que estas não são as únicas categorias disponíveis. É possível perceber também como o acesso à informação, de vários meios, desde o científico, até a internet, permite a elas se olharem de outra forma. O conhecimento médico em vários momentos é deslocado, e em outro usado para justificar concepções. Carla e Bárbara estão imersas em uma rede de discursos sobre as pessoas transexuais e travestis, no entanto, não são vítimas de tal rede, elas participam ativamente de sua produção.

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