Capítulo 9
A matéria nos seus extremos
1. Introdução
Apesar de toda matéria ao nosso redor ter uma constituição comum, baseada nas partículas elementares, nos átomos e assim por diante, ela também possui determinadas características macroscópicas que a diferencia, dando origem à grande variedade que observamos. Para podermos entender algumas dessas características mais sutis, é preciso investiga-la em certos extremos.
Como o homem, desde suas origens, tem tentado entender a natureza em todos os seus aspectos, é natural que ele busque constantemente atingir os limites daquilo que investiga. Mesmo quando não é possível realizar diretamente um experimento num desses limites, podemos sempre tentar imaginar, baseado nas leis físicas, qual seria o comportamento da matéria naquelas circunstâncias. Por exemplo, em termos de dimensões (tamanho), a busca pelos extremos nos leva desde os limites do universos, passando pelas Galáxias, até chegarmos nas escalas subatômicas, como vimos no capítulo 1.
Dimensão não é a única característica extrema que nos interessa na busca do conhecimento. Vimos o capítulo anterior que a temperatura é um parâmetro muito importante na determinação dos estados da matéria. De fato, a busca pelos limites extremos de temperatura tem sido algo fascinante. Resultando em muito da compreensão que temos hoje a respeito do mundo microscópico (quântico).
2. Extremos de temperatura
No contexto da temperatura e a matéria, vamos considerar dois extremos naturais: os de máximas e mínimas temperaturas. No extremo dos máximos, nosso entendimento permitirá fazer as devidas conexões com a formação da matéria. No limite inferior, os segredos revelados estão além das observações apresentadas pela natureza, no seu cotidiano. É preciso olhar com instrumentos especiais, mas o resultado vale a pena, pois ajuda-nos a entender um conjunto muito especial de superpropriedades da matéria, no extremo do ultrafrio. Vale notar que, embora, a princípio, a matéria não apresente um valor máximo de temperatura, ela sempre terá um limite inferior: o chamado Zero Absoluto.
Esta “quebra de simetria”, com relação aos extremos de temperatura, nos deixa curiosos a respeito de sua determinação e comportamento. Quais são os extremos da matéria? Porque isso ocorre assim? Qual o significado desses extremos? São algumas das repostas que buscamos neste capítulo.
2.1. Ultraquente: o plasma, o Big Bang e a origem da matéria
Vamos começar olhando o extremo das altas temperaturas. O estado usual da matéria comum a temperaturas extremamente altas, como no interior das estrelas, como o Sol, por exemplo, é o plasma. Nesse estado a matéria encontra-se numa forma altamente ionizada (sem os elétrons ao redor do núcleo), pois a energia térmica é muito maior do que a energia de ligação dos elétrons, mesmo os mais internos. Outro exemplo, em temperaturas menores, desse estado da matéria incluem a chama do fogo.
Porém, se desejarmos mesmo abordar o extremo máximo concebível de temperatura, teremos que nos remeter aos momentos primordiais na formação da matéria, no início do Universo. Já aprendemos que no Big Bang, ainda enquanto toda a matéria concentrava-se em torno de um ponto de singularidade, houve um instante de tempo imediatamente após o início da grande expansão (período inflacionário), onde a temperatura era altíssima, praticamente “infinita”. A rigor, esse constitui o maior extremo de temperatura que podemos imaginar, e será o nosso ponto de partida.
Rapidamente, porém, numa pequena fração de tempo, que é totalmente imperceptível aos sensos humanos, a matéria evoluiu daquele ponto de temperatura praticamente infinita para um ponto de extremamente alta temperatura (1028 K), já adquirindo dimensões do tamanho de uma laranja. Como vimos no capítulo 1, durante esses instantes iniciais, a matéria não existia ainda na forma como a conhecemos hoje. Nem mesmo as partículas elementares haviam sido formadas.
Figura 2: Linha do tempo mostrando a evolução do Universo, em linhas gerais. Valores aproximados.
Com um pouco mais de tempo, a matéria passa a ser formada: surgindo os primeiros tijolos fundamentais da matéria: os quarks. Neste ponto, a temperatura ainda é extrema (1027 K). Com toda esta energia sendo convertida em matéria, os próximos instantes são definitivos para formar a matéria que determinará a constituição do tudo que temos hoje. São formados os prótons, os nêutrons e os elétrons.
Neste instante, cerca de apenas 10-6 segundos do instante primordial, a temperatura já caiu assustadoramente, chegando a 10 trilhões (1013) de Kelvin.
Esta sopa cósmica, ainda super quente, evoluiu nos primeiro minutos seguintes para a formação da dos núcleos atômicos. E a temperatura continuou a cair ainda mais, eventualmente chegando a alguns poucos milhares de graus, que é quando os elétrons começaram a se incorporar (ligar) aos núcleos, formando os primeiros átomos (majoritariamente hidrogênio), que passaram a constituir a unidade principal do entendimento da estrutura da matéria atual.
A partir da formação dos átomos, a matéria começou a formar aglomerados de átomos, constituindo as primeiras estrelas. Neste estágio, o universo já é frio, a cerca de -240 oC (lembre-se que o Zero Absoluto é cerca de -273 oC). A aglutinação da matéria criou a possibilidade de formação da vida e sua evolução, com formas mais complexas e organizadas de matéria.
Atualmente, o Universo está a aproximadamente -270 oC, ou seja, cerca de 3 K. É claro que esta é a temperatura geral (média) do universo, e não de pontos específicos como a Terra ou o Sol, etc. A temperatura, a qual nos referimos, deve ser entendida como se vista por alguém olhando o Universo de fora. Este observador veria um corpo emitindo radiação, com espectro característico (corpo negro) dessa temperatura.
Figura 3: Dados do satélite WMAP (NASA), mostrando as (pequenas) variações da temperatura de fundo do
Universo, em torno da temperatura média de 2,7 kelvin, observada na faixa de microondas em 160 GHz.
As evidências disto estão nas chamadas observações da radiação de fundo do universo, que comprovam esta evolução. A medida que o universo expande, ele se esfria. A pergunta agora é: como será os próximos passos nessa evolução? Como a matéria se comporta ao se aproximar do Zero Absoluto? Tentando responder essa pergunta, a ciência teve que desenvolver várias técnicas para produzir o frio extremo. E essa busca, sem dúvida nenhuma, revolucionou o modo de vida do mundo moderno.2.2. Ultrafrio: o condensado de Bose-Einstein e superpropriedades
Mas, se por um lado, simplesmente olhando o céu podemos tirar todas essas conclusões sobre a evolução do Universo até sua temperatura atual, abaixo disto não há nada nos céus para nos guiar. Temos que produzir nos laboratórios. É aí surge o interesse e a necessidade de produzir matéria ultrafria.
Como vimos, a medida que resfriamos a matéria, ela tende a mudar de estado. Porém, para investigar um dos mais intrigantes estados da matéria, nós precisamos produzir temperaturas extremamente baixas sem mudar de estado físico. Queremos observar a mudança de comportamento num determinado estado, como o gás, por exemplo. Isso exigiu um longo tempo de pesquisa e desenvolvimentos tecnológicos e científicos importantes até se tornar possível só nas últimas décadas.
A saga pelas baixas temperaturas não é nova. A partir do momento em que o homem conseguiu fazer gelo (artificialmente), um passo bem pequeno nesta rota, sua vida mudou. Imagine como seria a vida sem a capacidade de preservar os alimentos. A vida nas grandes cidades, por exemplo, seria praticamente impossível. Porém, as técnicas usadas para produzir gelo não nos permite atingir -273 oC.
É preciso técnicas especiais, e muito diferentes de um refrigerador comum, para alcançar isto. Ao longo de quase um século, os cientistas trabalharam neste sentido. Primeiro conquistaram técnicas para liquefazer substâncias como o nitrogênio, o hidrogênio e finalmente o hélio, que é o gás de menor temperatura de liquefação, em torno de alguns poucos kelvin. Este foi um grande avanço científico, que permitiu descobrir as consequências da matéria estar no extremo inferior de temperatura.
Figura 4: Diagrama indicando as temperaturas típicas de diferentes estados da matéria.
Efeitos como a supercondutividade e a superfluidez só foram revelados nesta busca por baixas temperaturas. De fato, foram descobertas de forma quase acidental e não previstas. Esta mudança de comportamento da matéria no extremo inferior, nos mostra que ao removemos o movimento da matéria, não é apenas a temperatura que muda, mas também a interação dos átomos no mundo microscópico.
Como pode um metal, que ao conduzir eletricidade dissipa energia, de repente perder esta característica e passar a conduzir sem nenhuma resistência elétrica e sem dissipar energia? Como pode um liquido, que apresentava viscosidade perder completamente esta propriedade, e passar a fluir de forma a não fazer força de arrastre sobre os objetos ou mesmo subir pelas paredes de um recipiente?
Estes são apenas alguns dos exemplos das surpresas observadas na matéria em temperaturas bem baixas, da ordem de alguns poucos kelvin. Na verdade, esses efeitos são manifestações quânticas, expressas em escala macroscópica. São fenômenos quânticos coletivos da chamada matéria quântica.
Mas é necessário ir além, o Zero Absoluto é a meta... Como é possível fazer isto?
A solução para atingir temperaturas muito abaixo de 1 K só se tornou possível nas últimas duas ou três décadas. Isso permitiu o resfriamento de átomos, e mesmo moléculas, com as chamadas técnicas de resfriamento a laser. Feixes de luz, que transportam energia e momento, podem ser organizados de forma a produzir força (pressão de radiação) sobre átomos livres de um gás, e removerem seu movimento interno, trazendo os átomos bem próximo ao repouso.
Essa técnica é tão poderosa, que têm permitido atingir temperaturas da ordem de nanokelvin de forma rotineira, no laboratório. Sendo a menor temperatura já registrada da ordem de 10-10 K, isto é, apenas alguns trilionésimos acima do zero absoluto!
A medida que nos aproximamos do zero absoluto, a matéria nos mostra mais uma mudança de comportamento. Um gás que vai sendo resfriado mais e mais, repentinamente muda seu comportamento coletivo e sofre a chamada Condensação de Bose-Einstein (BEC).
Este é um estado onde não podemos mais usar a visão clássica do gás, como sendo uma coleção de partículas independentes em movimento desordenado. No condensado, cada átomo torna-se praticamente do tamanho do “recipiente” que os contém, e passam a interferir, como ondas, de forma construtiva. É o momento onde a mecânica quântica torna-se dominante e supera todos os efeitos clássicos. Os condensados de Bose-Einstein são formas bastante puras de matéria quântica, e abrem as portas para uma nova visão da matéria nos extremos de baixíssimas temperaturas. As aplicações e oportunidades criadas por este estado da matéria estão ainda na sua infância, e a cada dia novas descobertas são feitas.
Apenas para citar algumas das áreas que as pesquisas neste campo têm explorado, podemos mencionar a produção do laser de átomos, onde as ondas de matéria se comportam como as ondas eletromagnéticas de um laser comum, ou de superfluidos atômicos, cujo estudo pode nos ajudar a entender como funcionam os supercondutores de alta temperatura, ou até mesmo um possível computador quântico, com capacidade de processamento sem igual, produzido com átomos ultrafrios.
Como podemos ver a saga pelos extremos parece não tem fim. Mesmo a alguns trilionésimos do Zero Absoluto, as coisas não parecem monotonamente paradas, como imaginávamos na física clássica. Este continua sendo um território extremo e ainda não “habitado” pelos cientistas. Que segredos estarão lá? E qual sua relevância para nosso entendimento da natureza?
Bem, isso vai depender do esforço de pessoas motivadas e interessadas que serão produzidas nos bancos escolares por diversos professores de ciências. Talvez alguém formado por um de vocês aqui!
Com isso concluímos nosso curso sobre a estrutura da matéria. Parabéns, vocês concluíram uma longa jornada. Nessas últimas semanas, nós exploramos juntos desde as escalas de tamanho dos quarks até os limites do Universo e o Big Bang. Aprendemos como é a estrutura interna dos átomos, desde a descoberta das primeiras partículas subatômicas até a teoria quântica. Vimos também como os átomos se ligam, formando as moléculas e os diferente estados da matéria, incluindo os estados menos comuns, só observados nos extremos de temperatura. Foi uma longa e rica jornada, que esperamos tenha lhe ajudado a compreender um pouco mais a respeito do fascinante mundo ao nosso redor.