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A MODERNIDADE LÍQUIDA EM ZYGMUNT BAUMAN: ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DE UM DIREITO FRATERNO

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Fernando Henrique da Silva Horita * Data de recebimento: 06/05/2013 Data de aprovação: 03/08/2013

Graduado em Direito pela UNIVEM – Centro Eurípedes Soares da Rocha de Marília. Foi estagiário do Gabinete da 1ª Vara Federal da 11ª Subseção Judiciária do Estado de São Paulo do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Atualmente esta cursando Especialização em Formação de Professores Para Educação Superior Jurídica na Universidade Anhanguera UNIDERP e Mestrado em Teoria do Direito e do Estado pelo UNIVEM, bolsista CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Integrante do Grupo de Pesquisa GEP – Grupo de Estudos, Pesquisas,

Integração e Práticas Interativas, cadastrado no diretório de grupos de pesquisa do CNPQ. E-mail: nando_horita@hotmail.com

A MODERNIDADE LÍQUIDA EM ZYGMUNT BAUMAN:

ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DE UM DIREITO

FRATERNO

THE LIQUID MODERNITY IN ZYGMUNT BAUMAN: AN ANALYSIS OF POSSIBILITIES OF FRATERNAL LAW

RESUMO

Partindo de uma investigação realizada no âmbito da linha de pesquisa “Construção

do Saber Jurídico”, do Programa de Pós-graduação em Direito do UNIVEM e

re-lacionada ao Grupo de Pesquisa GEP – Grupo de Estudos, Pesquisas, Integração e

Práticas Interativas, do qual o autor faz parte, o presente artigo tem como objetivo

descrever o cenário da “Modernidade Líquida” com foco nas obras de Zygmunt Bauman, confrontando-as com a atual possibilidade de um Direito Fraterno. Para tanto, no contexto da “Modernidade Líquida”, reflete-se a discussão de se com-preender qual a possibilidade de um direito fraterno no momento em que os seres humanos tornam-se cada vez mais individualizados. Com a finalidade de cumprir,

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portanto, o objetivo proposto, o percurso teórico nesta investigação foi elaborado sob a base lógica do método dedutivo, com uma coleta de dados bibliográficos e do-cumental. Em sede de conclusão, o presente estudo fornece um diagnóstico sensato que retrata o direito fraterno e os vários aspectos deste novo tempo, a fim de promo-ver uma humanização do direito, mesmo diante de uma modernidade mergulhada em transformações complexas.

PALAVRAS-CHAVE

1. Direito Fraterno; 2. Fraternidade; 3. Modernidade Líquida; 4. Zygmunt Bauman.

ABSTRACT

Based on a inquiry carried out within the research line “Legal Knowledge’s Con-struction”, of the Post Graduate Program in Law of UNIVEM and related to the GEP Research Group - Group of Studies, Research, Integration and Interactive Practice which the author belongs, the present article aims to describe the “Liquid Moderni-ty” scenario, with a focus on the works by Zygmunt Bauman, confronting them with the current possibility of a Law Fraternal. For this purpose, in this context called “Liquid Modernity”, reflects the discussion to comprehend what is the possibility of a right fraternal when humans become increasingly individualized. Therefore, in order to accomplish the proposed objective, the research’s theoretical route was pre-pared under the deductive method’s logical basis, with a collection of bibliographic and documental data. In place of conclusion, the present study provides a sensible diagnosis that portrays the fraternal right and the various aspects of this new time, in order to promote a law’s humanization, even in the face to a dipped modernity in complex transformations.

KEYWORDS

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INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como intuito principal trazer a discussão acerca da pos-sibilidade de um direito fraterno em tempos de modernidade líquida, percorrendo as mudanças, os hábitos e a experiência de um tempo fugaz.

Entre os vários relatos possíveis e válidos para a modernidade, a proposta teórica de Zygmunt Bauman1 é útil para se compreender a fragilidade dos vínculos

humanos, além de fornecer um relato coerente das principais características dos dias atuais. Não se tratando de uma visão egoísta, ou superior a outras possibili-dades de compreensão do paradigma da modernidade, o pensamento do polonês, ao tratar dos vínculos humanos e do individualismo, serve de esteio para fornecer reflexões sobre a fraternidade.

Do mesmo modo, a teoria posta pelo italiano Eligio Resta é de fundamen-tal importância para o entendimento do direito fraterno, ao elaborar um direito que evidencia parâmetros essenciais para a conscientização e resolução dos problemas enfrentados pela sociedade.

Para tanto, o Direito Fraterno, ao ser introduzido na modernidade líquida como uma variável significativa para a percepção do resultado, se parte do seguinte questionamento: Qual a possibilidade do direito fraterno na modernidade líquida de

Zygmunt Bauman?

O critério metodológico utilizado para investigação deste estudo e as bases lógicas do relato reside na interdisciplinaridade entre direito, filosofia e sociologia. Cabe esclarecer que o foco privilegiado em que se tecem os argumentos é o do direi-to, tendo a metateoria do direito fraterno como pano de fundo da presente pesquisa, ou seja, busca-se a possibilidade do Direito Fraterno, propiciando uma interpretação dinâmica e totalizante da Modernidade Líquida, vinculando o Direito a outros ramos do conhecimento, como a filosofia jurídica e as ciências sociais.

Desta feita, a produção do presente artigo pautar-se-á pelo método dedu-tivo proposto por Mezzaroba2, propiciando um raciocínio efetivamente lógico, por

1 Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, iniciou sua carreira na Universidade de Varsóvia, onde ocupou a cátedra de sociologia geral. Teve artigos e livros censurados e, em 1968, foi afastado da universidade. Logo em segui-da, emigrou da Polônia, reconstruindo sua carreira no Canadá, no Estados Unidos e na Austrália, até chegar à Grã-Bretanha, onde, em 1971, se tornou professor titular de sociologia da Universidade de Leeds, cargo que ocupou por vinte anos. Responsável por prodigiosa produção intelectual, recebeu prêmios Amalfi (em 1989, por sua obra Modernidade e Holocausto) e Adorno (em 1998, pelo conjunto de sua obra). Atualmente, é professor emérito das universidades de Leeds e de Varsóvia.

2 MEZZAROBA, Orides. Manual de metodologia da pesquisa no direito. Orides Mezzaroba, Cláudia Servilha Monteiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 65.

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meio do relacionamento entre premissas e conclusão, levando os fatos sociais que se pretende analisar, especificamente os da modernidade líquida, a serem tomados como verdadeiros e inquestionáveis, permitindo um alcance limitado com pouca margem de erro para, em seguida, chegar à projetada conclusão que, em hipótese alguma, não poderá ultrapassar o conteúdo enunciado nas premissas.

A proposição deste ensaio é essencialmente ir desvendando o direito frater-no, ainda que profundamente, sob o enfoque da filosofia do direito e da sociologia, despertando-se tanto pela relevância e pela pouca literatura produzida na área, quan-to pela capacidade de contribuição para a sociedade, como para a possibilidade de identificar, na atualidade do direito e ante os desafios e singularidades da modernida-de, a possibilidade do direito fraterno na modernidade líquida de Zigmunt Bauman.

No desenvolvimento deste artigo, serão apresentadas, primeiramente, as análises de Zygmunt Bauman sobre a modernidade líquida e, na sequência, as con-cepções e os fundamentos do direito fraterno. Abordar-se-ão, ainda, os critérios gerais para a análise da viabilidade do direito fraterno no contexto da modernidade líquida.

1. A MODERNIDADE SOB A óTICA DE ZYgMUNT BAUMAN

Nesta seção, analisaremos a modernidade líquida, conforme o delineamen-to da proposta do trabalho, tendo como referência as obras de Zygmunt Bauman. An-tes, porém, destacaremos a concepção de outros autores sobre as relações pessoais na modernidade.

O marco do paradigma teórico da modernidade foi delimitado pela grande maioria dos sociólogos; o que interessa, contudo, para alcançar o resultado preten-dido é saber se é possível ter fraternidade nos dias atuais e, em seguida, ver qual é a viabilidade de ter um direito fraterno na atual modernidade. Desse modo, se destaca, de forma breve, a questão da amizade e confiança segundo Antony Giddens.

Mesmo a dimensão da amizade e da confiança não sendo o objetivo deste artigo, conforme dito, nisso reside uma explicação que proporciona uma pista impor-tante para os fatores que influenciam a vida pessoal. Conforme Giddens3 ensina, as

“amizades institucionalizadas eram essencialmente formas de camaradagem, assim como a fraternidade de sangue ou companheirismo de armas”. Portanto, a amizade era praticamente baseada em valores de honra e sinceridade. Hoje, com as transformações da modernidade, a natureza da amizade é frequentemente um modo de reencaixe.

3 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 134.

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Na As consequências da modernidade, de Antony Giddens, por exemplo, se lê que

O oposto de “amigo” já não é mais “inimigo”, nem mesmo “estranho”; ao invés disto é “conhecido”, “colega”, ou “alguém que não conheço”. Acompanhando esta transição, a honra é substituída pela lealdade que não tem outro apoio a não ser o afeto pessoal, e a sinceridade é substituída pelo que podemos chamar de autenti-cidade: a exigência que o outro seja aberto e bem-intencionado. Um amigo não é alguém que sempre fala a verdade, mas alguém que protege o bem-estar emocional do outro. O “bom amigo” – alguém cuja benevolência é disponível mesmo em tem-pos difíceis – é o substituto nos dias de hoje para o “honorável companheiro”4.

Continuando a perspectiva da confiança, Giddens5 chega à reflexão que

confiar em pessoas torna-se um projeto a ser laborado pelas partes envolvidas, sendo que a pessoa que confia não pode ser controlada ou coagida por códigos normativos, ou seja, a confiança tem que se ganhar e o meio para se obtê-la consiste em aberturas e cordialidades demonstráveis.

No mesmo diapasão, na obra O Direito Fraterno, Resta procura apostar, também, na questão da amizade, que seria como se fosse uma forma de autenticidade não encontrada, ou seja, “o lugar em que se concentram alguns paradoxos decisivos da vida dos sistemas sociais”. Ele acreditava que o mundo moderno realizava uma aceleração do processo ambivalente da amizade, tornando-a tanto como lugar da inclusão como da exclusão. Para ele, a amizade apresenta nas relações atuais do mundo um duplo fato: a re-proposição da solidariedade e sua negação6.

Por sua vez, e situado na temática da amizade dos sistemas sociais moder-nos, Resta complementa que

Aqui está o grande divisor de águas entre a philia do mundo antigo e a amizade dos sistemas sociais modernos; ao passo que a primeira é o que cimenta a cidade, sendo, portanto, pressuposto de qualquer vida política que generaliza o privado reproduzindo-o na vida pública, a segunda não reitera o próprio modelo comunitá-rio, mas o separa, o diferencia dele quase imunizando-se da condição de estranha-mento, senão da inimizade, que atravessa a esfera pública. Por isso, está exposta

4 Ibidem, p. 132. 5 Ibidem, p. 134.

6 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Tradução e coordenação de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, p. 25.

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aos riscos de interferência e, quando vence, inserindo-se na esfera pública, está pronta a transformar-se, na melhor das hipóteses, em incidente transversal, quando não em confusão a ser eliminada, em dimensão irrelevante a ser deixada de lado em virtude da separação entre vida privada e efetiva e vida pública, quando, até mesmo, não seja identificada com o familiarismo e o particularismo; competen-tes, mas os que lhes são leais, delegando confiança à amizade e perpetuando a desconfiança da luta política. Quando também a amizade se expusesse ao risco da confiança, a ela se reservaria tão-somente a esfera da intimidade: isso, de resto, está de acordo com as análises da fidúcia no mundo contemporâneo que veem orientar-se os investimentos em relação à confiança institucional para os grandes sistemas funcionais (serviços, competências técnicas, etc.) e retrair-se a amizade na direção da intimidade7.

Crê-se, pois, que uma das características da vida humana é ter uma natural confiança uns aos outros e, somente por circunstâncias anormais, se desconfia ante-cipadamente em um estranho, ou seja, só não se aceita a palavra de um estranho se tiver uma razão particular para isso8.

Por outro lado, a forma predominante de convívio humano nos dias de hoje é representada pelo que cada um pode ganhar, continuando apenas enquanto ambas as partes proporcionarem satisfações suficientes para ambas na relação9.

Assim, acompanhando a sucinta formulação da questão da confiança pelo sociólogo Zygmunt Bauman, pode-se dizer que

Es posible que la confianza siga siendo, tal como lo señaló Knud Lögstrup, una emanación natural de la ‘soberana expresión de la vida’, pero una vez emitida, en nuestros días, busca en vano un lugar donde arraigar. La confianza ha sido senten-ciada a una vida llena de frustraciones. La gente (separada o en conjunto), las em-presas, los grupos, las comunidades, las grandes causas o los esquemas de vida con autoridad suficiente para guiar nuestras acciones casi nunca retribuyen la devoción que se les dedica. De todos modos, rara vez se trata de modelos de coherencia y continuidad a largo plazo. Casi nunca hay un punto de referencia en el que con-centrar la atención de manera confiable, que permita a los confundidos que buscan orientación liberarse de la agotadora tarea que implica una vigilancia constante y la

7 Ibidem., p. 32.

8 BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Acerca de la fragilidad de los vínculos humanos. Buenos Aires: Fondo de cultura económica de Argentina, 2005, p. 117.

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incesante necesidad de volver sobre sus pasos en las decisiones adoptadas. No hay puntos de orientación que parezcan tener una expectativa de vida más larga que los individuos que buscan orientación, por breve que pueden ser sus vidas corporales. La experiencia individual señala obstinadamente al yo como el pivote de esa dura-ción y continuidad que tan ávidamente buscan10.

Desse modo, antes de percorrer ao caminho da modernidade líquida que foi inicialmente proposto, se observou, nos parágrafos anteriores, que a modernida-de traz consigo uma misteriosa fragilidamodernida-de no convívio social; portanto, a seguir, se foca no pensamento sobre modernidade de Zygmunt Bauman.

A problemática sobre a modernidade já foi refletida por diversos outros intelectuais, como exemplo: Jünger Habermas, Ulrich Beck, Georges Balandier, Bo-aventura de Souza Santos, Octavio Ianni e diversos outros autores11. Por outro lado,

apesar de toda a problemática que envolve esses outros autores, Bauman apresenta a sua tese sobre a modernidade, considerando por um marco histórico diferenciado de outros intelectuais.

Bauman, assim, apresenta a modernidade pelo marco do século XVII, apontando a não existência sobre o tempo desta nova forma de viver da humanidade. Por isso, o autor considera a modernidade como um conceito ambíguo e susceptível a discussões.

Sobre esse ponto e outras considerações sobre a temática, incide a fala de Bauman (1999, p. 299-300):

Quero deixar claro desde o início que chamo de “modernidade” um período histó-rico que começou na Europa Ocidental no século XVII como uma série de transfor-mações sócio-estruturais e intelectuais profundas e atingiu sua maturidade primei-ramente como projeto cultural, com o avanço do Iluminismo e depois como forma de vida socialmente consumada, com o desenvolvimento da sociedade industrial (capitalista e, mais tarde, também a comunista)12.

Em destaque no trabalho de Bauman, está presente a modernidade

carac-10 Ibidem., p. 120.

11 Para Bauman: “Não é em toda parte, porém, que essas condições parecem, hoje, estar prevalecendo: é numa época que Anthony Giddens chama de ‘modernidade tardia’, Ulrich Beck de ‘modernidade reflexiva’, Georges Balandier de ‘supermodernidade’, e que eu tenho preferido (junto com muitos outros) chamar de ‘pós-moderna’”. In: BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1998, p. 30.

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terizada pela “fluidez” 13, denominada de a era da liquefação, ou melhor, a moderni-dade líquida. De fato, está, por assim dizer, diferentemente da modernimoderni-dade sólida, não sustenta seu modelo com grande facilidade, ou seja, as organizações sociais não podem manter sua forma por muito tempo14.

A pergunta que fica é o questionamento do por que o sociólogo polonês uti-lizou a expressão “modernidade líquida”? De fato, Bauman, antes de utilizar a expres-são “modernidade líquida”, utilizava a palavra “pós-modernidade”, sendo que alterou seu pensamento, pois “pós-modernidade” implica em um tipo de fim da modernidade, pensamento este totalmente falso para o autor. Logo, o polonês comenta que, hoje, as pessoas são tão modernas como nunca e ainda fundamenta sua escolha:

Anthony Giddens encontrou uma saída para a situação ao brandir a expressão “mo-dernidade tardia”. Achei difícil adotá-la. Nunca entendi como podemos saber que esta modernidade aqui e agora é “tardia”, e o que fazer para prová-la ou refutá-la. Além disso, a ideia de “modernidade tardia” implica o mesmo que o conceito de pós-modernidade: não se pode falar da fase “tardia” de um processo a menos que se presuma que esse processo chegou ao fim – e, portanto, que se possa observá-lo em sua “totalidade”15.

E, a partir dessa preocupação, Bauman complementa:

O termo “segunda modernidade”, de Ulrich Beck, é melhor, mas em si mesmo um contêiner vazio que abriga toda a espécie de conteúdo. Nada diz sobre a diferença entre a “segunda” modernidade e a “primeira”. Achei mais palatável a palavra

sumordenité, de George Balandier; é uma pena que em inglês ela não soe tão bem

como no francês. Daí minha proposta: modernidade líquida, que aponta ao mesmo tempo para o que é contínuo (a fusão, o desencaixe) e para o que é descontínuo (a impossibilidade de solidificação do fundido, de reencaixe). Até aqui tenho achado o conceito adequado e útil. Em Modernidade Líquida tentei examinar um a um

13 Bauman ensina que: “Fluidez é a qualidade de líquidos e gases. O que os distingue dos sólidos, como a Enciclopédia britânica, com a autoridade que tem, nos informa, é que eles ‘não podem suportar uma força tan-gencial ou deformante quando imóveis’ e assim ‘sofrem uma constante mudança de forma quando submetidos a tal tensão”. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução, Plínio Dentzien. Rio Janeiro: Jorge Zahar

Ed., 2001, p. 7.

14 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução, Plínio Dentzien. Rio Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 8. 15 BAUMAN, Zygmunt. Bauman sobre Bauman: diálogo com Keith Tester. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011, p. 112.

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alguns temas centrais e muito sensível incluídos na agenda social na era moderna, a fim de descobrir o que mudou e o que permaneceu incólume com o advento da fase “líquida”, e me parece que esse conceito ajuda a entender tanto as mudanças quanto as continuidades16.

Retorno à obra “Modernidade Líquida” e, primeiramente, ao entendimen-to de liquidez, por ser um termo chave para a compreensão da pesquisa de Bauman. A liquidez se caracteriza por não manter sua forma com facilidade, não fixar o es-paço, nem prender o tempo; se caracteriza por mover com facilidade e se associar à ideia de leveza. Portanto, a modernidade não foi um processo de “liquefação” desde sua concepção, menciona Bauman17.

A questão em torno das transformações de amplas proporções é comentada por Iani, mencionando que, além de imensas, são intensas e profundas. Praticamente, tudo que aparentava estável “transforma-se, recria-se ou dissolve-se”. Dos modos de vida e de trabalho, portanto, as formas de sociabilidade e ideais, mais do que os hábitos e as expectativas, passam por transformações mais ou menos radicais18.

Por sua vez, a modernidade líquida relata padrões sociais que adquirem uma nova realidade. Conforme diz Bauman,

O “derretimento dos sólidos”, traço permanente da modernidade, adquiriu, portan-to, um novo sentido, e, mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema na agenda política. Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o mo-mento da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas – os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humanas, de outro19.

Por isso, a reflexão de Bauman é a de que os indivíduos residem num mundo incuravelmente “fragmentado e atomizado, e portanto cada vez mais incerto e imprevisível”. Assim, o convívio humano na modernidade é representado pelo

16 Ibidem., p. 112. 17 BAUMAN, op. cit., p. 9.

18 IANI, Octavio. A sociologia e o mundo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 239. 19 BAUMAN, op. cit., p. 12.

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provérbio popular “cada um por si e Deus por todos”, em que os indivíduos devem combater de forma solitária pelas suas próprias escolhas20.

Pode-se perceber, a partir do que se discutiu anteriormente, o que Bauman ensina

Com cada vez menos poder devido às pressões da competição de mercado que solapam as solidariedades dos fracos, passa a ser tarefa do indivíduo procurar, en-contrar e praticar soluções individuais para os problemas socialmente produzidos, assim como tentar tudo isso por meio de ações individuais, solitárias, estando mu-nido de ferramentas e recursos fragrantemente inadequados para essa tarefa21.

Daí apreende-se que as relações se tornam cada vez mais solitárias e pou-cas pessoas continuam a acreditar que mudar a vida de outras pessoas tenha algo de relevância para suas vidas. Ademais, os seres humanos tornam-se cada vez mais solitários e os vínculos humanos enfraquecidos, definhando a solidariedade22.

Bauman, nesse contexto, trouxe sua contribuição sobre o referido assunto na obra “Tempos Líquidos”, em que o autor enfatiza que

a vida solitária de tais indivíduos pode ser alegre, e é provavelmente atarefada – mas também tende a ser arriscada e assustadora. Num mundo assim, não restam muitos fundamentos sobre os quais os indivíduos em luta possam construir suas esperanças de resgate e a que possam recorrer em caso de fracasso pessoal. Os vínculos humanos são confortavelmente frouxos, mas, por isso mesmo, terrivel-mente precário, e é tão difícil praticar a solidariedade quanto compreender seus benefícios, e mais ainda suas virtudes morais23.

Dessa maneira, percebe-se que evitar o outro é praticamente uma proteção em face dos percalços da vida. De toda forma, as pessoas não reconhecem alguma opção para si mesma e dificilmente se questionam. Além disso, os indivíduos24

en-frentam os problemas solitariamente, mesmo sabendo que a vida é cheia de riscos e

20 BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 20.

21 Ibidem., p. 20. 22 Ibidem., p. 30. 23 Ibidem., p. 30.

24 Bauman explica que o indivíduo é o pior inimigo do cidadão. O cidadão é uma pessoa que busca seu próprio bem-estar por meio do bem-estar da cidade. Por outro lado, o indivíduo busca ser cético ou prudente em relação à boa sociedade.

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que estes riscos são apresentados juntos com a palavra “solidão”25.

Caminhando na direção indicada nessas últimas linhas, o entendimento de Bauman26 constrói um diagnóstico de individualização27. Por outro lado, em suma,

a individualização se destaca por ser corrosão e a lenta desintegração da cidadania, conforme ensina Bauman:

Se o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualização anuncia proble-mas para cidadania e para a política fundada na cidadania, é porque os cuidados e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço público até o topo, afirmando-se como seus únicos ocupantes legítimos e expulsando tudo mais do discurso público28.

A predominância da individualização, em suma, causa uma lenta desinte-gração da cidadania; praticamente ela é desencadeada pela suspeita em relação a ou-tros seres humanos e pela resposta negativa em confiar no companheirismo humano. Crê-se, portanto, que com o afrouxamento dos vínculos inter-humanos originam os medos especificamente na modernidade fluida, uma vez que se inicia uma competi-ção em relacompeti-ção à solidariedade em que os indivíduos se sentem abandonados29.

Por essa razão, e por mais que os indivíduos se sintam sozinhos, menos vale a pena investir em laços humanos, ocorrendo, assim, o que se poderia deno-minar de “controle de risco: do afastamento do outro, conserva-se a si mesmo e a própria integridade”, comenta Silva30.

Conforme argumenta Bauman,

De hecho, basta con preguntar “¿por qué debería hacerlo?, ¿qué beneficio me re-portaría?” para percibir el absurdo carácter de la exigencia de amar a nuestro

próji-25 BAUMAN, op. cit., p. 45. 26 BAUMAN, op. cit., p. 41.

27 Bauman, resumidamente, ensina que “a individualização consiste em transformar a identidade humana de um dado em uma tarefa e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das consequências (assim como dos efeitos colaterais) de sua realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure (independentemente de a autonomia de facto também ter sido estabelecida)”.

28 BAUMAN, op. cit., p. 46. 29 BAUMAN, op. cit., p. 73.

30 SILVA, Rafael Bianchi. O individualismo como estratégia de cuidado de si na sociedade de consumo. Cadernos Zygmunt Bauman ISSN 2236-4099, v 1, n. 1. Jan/2011, p. 28.

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mo, a cualquier prójimo, por el solo hecho de ser nuestro prójimo. Si amo alguien, es porque esa persona debe merecerlo de alguna manera… “Y lo merece si en ciertos sentidos importantes es tan semejante a mí como para que pueda amarme a mí mismo amándola a ella; y lo merece si es más perfecta que yo mismo como para que pueda amar en ella el ideal de mi propia persona… Pero si esa persona me resulta extraña y no puede atraerme gracias a su propio valor o a la importancia que pueda haber cobrado en mi vida emocional, me resultará muy difícil amarla”. Y la exigencia resulta aún más molesta e insensata, ya que con frecuencia no logro descubrir ninguna evidencia de que esa persona extraña a la que supuestamente debo amar me ame o muestre por mí siquiera “una mínima consideración. En el momento en que le convenga, no vacilará en herirme, burlarse de mí, calumniarme y demostrarme que tiene más poder que yo…”31

Assim, o indivíduo centra-se em si, com sua filosofia de vida planejada, com os riscos calculados e demonstrando-se dono de certa autonomia para seguir os seus planos, sem que nada escape de seu controle. Evitar o outro, portanto, é uma forma radical de proteção, destacando o interesse exclusivo e afastando a possibili-dade da verpossibili-dadeira relação humana32.

Porém, diante desse novo cenário, indaga-se uma necessidade de repensar conceitos tradicionais, pois o Direito, por lógico, não tem dado respaldo para algu-mas demandas. Com efeito, é preciso considerar a fraternidade como fundamento transcendente para uma concreta reformulação política e jurídica adequada à moder-nidade fluida de Zigmunt Bauman.

2. A POSSIBILIDADE DO DIREITO FRATERNO FRENTE àS CARACTERíSTICAS DA MODERNIDADE LíqUIDA

Neste segundo ponto do trabalho, são analisados alguns dos pressupostos do Direito Fraterno, tentando, no decorrer dessas reflexões, propor uma nova manei-ra de se ver o Direito. Abordar-se-ão, ainda, a possibilidade do Direito Fmanei-raterno no contexto da modernidade líquida.

Nessa linha, o professor Eligio Resta teoriza O Direito Fraterno, a par-tir de um pressuposto teórico da amizade, da fraternidade e, consequentemente, do Direito Fraterno. No entanto, parece conveniente, para se entender um pouco dessa abordagem, realizar uma breve apresentação do formulador. Eligio Resta é,

atual-31 BAUMAN, op. cit., p. 105-106. 32 SILVA, op. cit., p. 29.

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mente, professor de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Università di

Roma; professor visitante de várias Universidades brasileiras e latino-americanas;

de 1988 a 2002, foi integrante laico do Conselho Superior da Magistratura eleito pelo Parlamento, sendo Presidente da Comissão Conciliar, competente pelo Regu-lamento; também foi Vice-Presidente da Comissão de Reforma, da Comissão para a Magistratura Honorária e da Comissão de Formação dos Magistrados; é membro do Comitê Científico da O. N. U. (Organização das Nações Unidas) sobre temas que versam sobre legalidade; está no Comitê Científico do Centro de Prevenção e de De-fesa Social, do qual é sócio-fundador. Na atualidade, faz parte do grupo de estudos internacionais sobre a Constituição Europeia.

Os esforços do professor italiano Resta33 são no sentido de destacar um

“direito jurado em conjunto por irmãos, homens e mulheres, com um pacto em que se decide compartilhar regras mínimas de convivência”. Ora, para abordar esta pro-posta fraterna, talvez seja necessário iniciar demonstrando o pensamento de outro autor pelo assunto. Nessa vereda, destaca Baggio que

Responder hoje à pergunta sobre a fraternidade requer um esforço coordenado e aprofundado por parte dos estudiosos e, ao mesmo tempo, uma disposição para ex-perimentação por parte dos agentes políticos. Colaboração que não pode ser impro-visada nem planejada no escritório; ela nasce da realidade dos fatos, das escolhas das pessoas e de grupos que já estão agindo nesse sentido, começando a oferecer uma amostra de experiência de crescente relevância34.

Vale recordar, de forma sucinta, que o ponto chave de estudo da fraterni-dade ocorre na Revolução Francesa, posto que, em seus meandros, proclamaram-se os três princípios axiológicos fundamentais em matéria de direito do homem, acarre-tando a célere divisa: liberdade, igualdade e fraternidade.

Todavia, enquanto a igualdade e a liberdade transformaram-se em catego-rias políticas propriamente ditas, introduzindo-se em diversas constituições, a frater-nidade não teve a mesma felicidade, segundo Baggio35. Ainda sobre o ponto de vista

da fraternidade, afirma Aquini que

33 RESTA, op. cit., p. 133.

34 BAGGIO, Antonio Maria. A redescoberta da fraternidade na época do “terceiro 1789”. In: BAGGIO, Antônio Maria (org.). O princípio esquecido/1: A fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. Vargem Grande

Paulista, SP: Cidade Nova, 2008, p. 18.

35 BAGGIO, Antonio Maria. Fraternidade e reflexão politológica contemporânea. In: BAGGIO, Antônio Maria (org.). O princípio esquecido/2: Exigências, recursos e definições da fraternidade política. Vargem Grande

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A fraternidade é considerada um princípio que está na origem de um comportamento, de uma relação que deve ser instaurada com os outros seres humanos, agindo uns em relação aos outros, o que implica também a dimensão da reciprocidade. Nesse sentido, a fraternidade, mais do que como um princípio ao lado da liberdade e da igualdade, aparece como aquele que é capaz de tornar esses princípios efetivos36.

De fato, ainda sobre a questão fraterna, anota-se uma conclusão ilustrativa:

A fraternidade possui uma finalidade em si mesma, se é realmente o espaço em que se realiza um encontro de consciência e de culturas, uma partilha de interioridades e uma deliberação intersubjetiva em torno da vida que compartilhamos, e que por isso se torna “nossa” e não apenas “de cada um”. É na fraternidade, então, que se encontram o “tempo presente”, a condição humana que compartilhamos neste instante, o “tempo justo”, kairós em que a palavra que cada um sabe dizer ao outro e dele ouvir é a revelação do segredo cada um guardado pelo outro37.

Abre-se, assim, um caminho para retirar a fraternidade do anonimato, sa-bendo que a pesquisa nesse campo não deve abordar somente a situação de esqueci-mento, mas também retirar os “escombros” que dificultam os campos desse estudo, como menciona Baggio38. Ademais, a importância de se refletir sob tal temática dá

ao Direito a possibilidade de ser visto como um discurso de conversão, sendo anali-sado como uma função promocional. Dessa feita, é necessário acentuar que a finali-dade do Direito é extremamente útil. Completando esse sentido, entronca Patto com maior amplitude que

Se as normas jurídicas não podem impor a fraternidade, pode a atuação dos operadores do Direito (advogados, magistrados, notários, funcionários judiciais, agentes policiais e penitenciários) testemunhá-la. A postura e atitude de um juiz pode ser fraterna mesmo quando condena, porque o faz depois de plenamente se identificar com a situação do condenado, tal como com a situação da vítima determinada e de todas as potenciais e indeterminadas vítimas. Quando assim é, quando se procura olhar a pessoa do condenado como um membro da mesma família, para lá do crime

36 AQUINI, Marco. Fraternidade e Direitos Humanos. In: BAGGIO, Antônio Maria (org.). O princípio esquecido/1: A fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. Vargem Grande Paulista, SP: Cidade Nova, 2008, p. 137. 37 BAGGIO, A inteligência fraterna. Democracia e participação na era dos fragmentos. In: BAGGIO, Antônio Ma-ria (org.). O princípio esquecido/2: Exigências, recursos e definições da fraternidade política. Vargem Grande

Paulista, SP: Cidade Nova, 2009, p. 109. 38 BAGGIO, op. cit., p. 19.

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que possa ter cometido, e isso se reflete nas palavras e atitudes39.

Nesse sentido, o Direito se revela como a construção do homem em uma sociedade, de tal modo que a experiência jurídica pode aparentar estar incorporada no Direito, no entanto, aquela representando a compreensão deste. Nesse diapasão, segundo Reale, o Direito como “experiência significa o complexo de valorações e comportamentos que os homens realizam em seu viver comum, atribuindo-lhes um significado suscetível de qualificação jurídica”40.

Ora, é necessário rever o direito a fim de perceber se poderia existir a possibi-lidade da atividade jurídica com uma nova postura, pois se encontra aprisionado numa visão metódica. Por outro lado, as dimensões normativas também não podem continuar a reproduzir conteúdos que não estejam (re)adequados à cultura de um povo41.

Para Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino,

Ao tratar o Direito sob o ângulo do positivismo lógico, rompe-se a tênue linha de diálogo que existe entre Estado e cidadãos. Direito torna-se sinônimo de norma. A linguagem normativa criada pelo senso comum dos juristas é a representação da vontade coletiva. Nessa linha de pensamento, despreza-se o imaginário e o desejo dos cidadãos a fim de atender e corroborar a técnica, a racionalidade lógica e aos interesses corporativos [...]42.

O direito que se conhece por meio do positivismo é, então, um direito que afasta a realidade valorativa, não permitindo que o direito fosse submetido a discus-sões mais livres e menos dogmáticas. Portanto, o direito estudado na concepção po-sitivista neutraliza a sua interpretação que passa a ser meramente uma reconstrução da vontade do legislador que criou a norma.

Segundo Bobbio, sobre o positivismo:

O primeiro problema diz respeito ao modo de abordar, de encarar o direito: o positivismo jurídico responde a este problema considerando o direito como um

39 PATTO, Pedro Maria Godinho Vaz. O princípio da fraternidade no Direito: instrumento de transformação so-cial. In: Pierre, Luiz Antonio de Araujo; Cerqueira, Maria do Rosário F; Cury, Munir e Furlan, Vanessa R. (org.).

Fraternidade como categoria jurídica. Vargem Grande Paulista, SP: Cidade Nova, 2013, p. 17.

40 REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1968, p. 31.

41 AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Cotidiano, Semiologia e Política Jurídica: fundamentos do direito na pós-modernidade. Revista Jurídica – CCJ/FURB, v. 12., n. 12, p. 148-172, jan./jul. 2008, p. 163.

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fato e não como um valor. O direito é considerado como um conjunto de fato e não como um valor. O direito é considerado como um conjunto de fatos, de fenômenos ou de dados sociais em tudo análogos àqueles do mundo natural; o jurista, portanto, deve estudar o direito do mesmo modo que o cientista estuda a realidade natural, isto é, abstendo-se absolutamente de formular juízos de valor. Na linguagem juspositivista o termo do “direito” é então absolutamente avalorativo, isto é, privado de qualquer conotação valorativa ou ressonância emotiva: o direito é tal que prescinde do fato de ser bom ou mau, de ser um valor ou um desvalor43.

Nessa esteira, presencia-se, atualmente, uma crise dogmática jurídica po-sitivista que também é uma crise do Poder Judiciário e, por conseguinte, de todos os aplicadores do direito, cuja redefinição se faz necessária, a fim de que se possa dar uma nova conotação para o direito, para que seja, efetivamente, mais fraterno.

O direito fraterno, por sua vez, se apresenta como um modelo jurídico que preza pela cidadania e observa em direção à nova forma de cosmopolitismo que não é representado pelos mercados, mas pela necessidade de respeito aos direitos dos homens que vão se impondo ao egoísmo. Assim, o direito fraterno pode ser uma tentativa de valorizar uma possibilidade divergente e “recoloca em jogo um modelo de regra da comunidade política: modelo não vencedor, mas possível”44.

Ora, se a modernidade líquida contribui filosoficamente, à fragilidade e transitoriedade dos laços, a teoria do direito fraterno busca um horizonte que possa romper em face do dogmatismo e do autoritarismo. Ademais, a luta pela transforma-ção do Direito na modernidade líquida é complexa, como ensina Veronese:

Percebe-se que, nesse ponto, a questão se torna ainda mais complexa, mesmo que se tenha uma produção normativa moderna, em harmonia com as transformações que se processam na sociedade. Via de regra, em razão de os juristas terem sua formação construída sobre as bases de mitos e dogmas, eles tornam-se submissos a preceitos e fórmulas45.

Por isso e por outros motivos que a ação jurídica, com foco fraterno, res-tringe-se a poucos casos isolados e, ainda permanece à mercê de padrões normativos;

43 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 135. 44 RESTA, op. cit., p. 15.

45 VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito e Fraternidade: A necessária construção de um novo paradigma na academia. In: Pierre, Luiz Antonio de Araujo; Cerqueira, Maria do Rosário F; Cury, Munir e Fulan, Vanessa R. (or-ganizadores). Fraternidade como categoria jurídica. Vargem Grande Paulista, SP: Cidade Nova, 2013, p. 38.

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o Direito se torna, assim, cada vez mais o direito do indivíduo separado e isolado, incapacitado de conciliar os valores da Revolução Francesa46.

A colocação dos correlatos questionamentos desta modernidade e deste fenômeno jurídico contribui para uma urgência jurídica fraterna, que não será tarefa fácil. Desse modo, Andrade diz que

O que se tem a partir daqui é que a fraternidade se dá a partir da mediação com o outro com quem se fraterniza pela ação de ser humano em que a igualação de posturas perfaz a liberdade como tal porque a partir de si e infinitamente até a si, novamente, torna-se o homem começo e fim de si mesmo, indivíduo e coletividade, a razão e a ação na conclusão pela humanidade por meio do esforço da cultura na história, a conformação do ser em dever ser humano47.

Portanto, a fraternidade é exercida como algo absolutamente natural e es-pontâneo, de pessoa a pessoa; pensar em fraternidade em cada decisão que se escolha pelo grupo acarreta ser a escolha mais lógica da preservação e do desenvolvimento de qualquer sociedade e da humanidade de um modo geral, conforme comenta Santos48.

Sob a perspectiva fraterna na modernidade líquida, Bauman conta uma história interessante, baseada no costume de tocar o hino nacional para a pessoa que recebe o título de Doutor Honoris Causa na Universidade de Charles, de Praga. Em que pediram para o Bauman que escolhesse entre o hino da Polônia e o hino da Grã-Bretanha, país que o sociólogo polonês escolheu para viver e que lhe deu a possibili-dade de lecionar, pois, na Polônia, ele foi proibido de ensinar. A escolha de Bauman sugerida, por sua esposa, revela bem o aspecto da fraternidade que se quer destacar:

Nossa decisão de pedir que tocassem o hino europeu foi simultaneamente “includente” e “excludente”. Referia-se a uma entidade que abraçava os pontos de referência alternativos da minha identidade, mas ao mesmo tempo anulava, por pouco relevantes ou mesmo irrelevantes, as diferenças entre ambos e assim,

46 RIGATELLI, Maria Giovanna. Comunhão e Direito: desafios e propostas. In: Pierre, Luiz Antonio de Araujo; Cerqueira, Maria do Rosário F; Cury, Munir e Fulan, Vanessa R. (organizadores). Fraternidade como catego-ria jurídica. Vargem Grande Paulista, SP: Cidade Nova, 2013, p. 199.

47 ANDRADE, Maria Inês Chave de. A fraternidade como direito fundamental entre o ser e o deve ser na

dialética dos opostos de Hegel. Coimbra: Almedina. SA. Junho, 2010, p. 96.

48 SANTOS, Hélbertt Paulo Leme dos. A pena alternativa de liberdade e o princípio da fraternidade. In: Pozzoli, Lafayette e Splicito, Christiane (org.). Teoria Geral do Direito: ensaios sobre dignidade humana e fraternidade.

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também, uma possível “cisão identitária”. Tirava da pauta uma identidade que me foi negado e tornado inacessível. Alguns versos comoventes do hino europeu ajudavam: “alle Menschen werden Brüder”... A imagem da “fraternidade” é o símbolo de se tentar alcançar o impossível: diferentes, mas os mesmos; separados, mas inseparáveis; independentes, mas unidos49.

Nesse diapasão, a fraternidade tem o objetivo de ser uma semente para uma transformação social, transcendendo as divergências existentes entre as pesso-as, fazendo com que o diferente se manifeste para o seu pleno desenvolvimento e para o benefício coletivo, sem se descuidar dos vínculos comuns que mantêm unidas grandes coletividades, como se fossem, no dizer de Lied, “verdadeiras famílias ou grupos de irmãos, as quais, por sua vez, são necessárias para a própria existência do único, do impar”50.

De outro norte, o professor Antonio Maria Baggio do Instituto Universitário de Sophia, realizando uma interpretação baumaniana, apresenta a fraternidade, um dos lemas revolucionário, em substituição na atual modernidade. Hoje, afirma o pensador polonês, no lugar da fraternidade, se prefere a rede (relacionamentos construídos no mundo virtual), escondendo uma realidade que precisa ser repensada e, de fato, a rede; ou seja, a fraternidade é por demais fluida e destituída de alteridade real51.

Assim sendo, partindo não só dos pressupostos do último parágrafo, mas de todos os demais, defendemos o direito fraterno como uma real possibilidade de novas abordagens para o atual sistema jurídico e de grande importância para as trans-formações do mundo social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A colocação das correlatas transformações da modernidade e deste fenô-meno ao Direito contribuiu para revelar a necessidade de se refletir sobre uma nova possibilidade do Direito. Com isso, alcançou a ideia de que o Direito presente, nes-ta modernidade, está em declínio, pela influência do enfraquecimento do vínculo

49 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vechhi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 15.

50 LIED, Thiago Borges. Ética da Fraternidade para os direitos socioambientais. Dissertação (mestrado em Direito). Programa de Pós-graduação da PUC/PR, Curitiba, 2011, p. 24.

51 BAGGIO, Antônio Maria. Fraternidade e reflexão politológica contemporânea. In: BAGGIO, Antônio Maria (org.). O princípio esquecido/2: Exigências, recursos e definições da fraternidade política. Vargem Grande

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humano e de outras características da modernidade líquida. Daí a necessidade e a possibilidade de se discutir sobre o Direito Fraterno, ou seja, um novo horizonte para o Direito, de modo a situá-lo no espaço e no tempo, a fim de resgatar a função do próprio Direito.

Por isso, buscou-se problematizar as questões da modernidade líquida de Zigmunt Bauman, trabalhando um cenário que retrata um ambiente crítico nas ques-tões da amizade, do amor e até mesmo, da confiança, sendo que essas quesques-tões resul-tam numa crise de reciprocidade humana.

De fato, todo o exposto tentou refletir, de forma construtiva, sobre a real possibilidade do Direito Fraterno, evidenciando que o direito e a humanidade neces-sitam da fraternidade; devendo, assim, ser deixada de lado a fluidez, característica predominante na modernidade líquida, que transforma, em um piscar de olhos, os vínculos humanos e, consequentemente, a relação fraterna de um sujeito ao outro.

Por tais razões, se entende que o Direito Fraterno é uma oportunidade so-cial, que, dele, resulta a possibilidade de se tornar um pressuposto do saber jurídico que terá certos ares de reciprocidade tanto na questão do direito, como na questão humana e que, por outro lado, justiça e dignidade serão representadas pelo Direito.

REFERÊNCIAS

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