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Nada mudou nos últimos oito anos? Honestamente? Nada.

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62 • 2 Dezembro 2007 • Pública

Kosovo

— Nada mudou nos

últimos oito anos?

— Honestamente?

Nada.

Gracanica, Mitrovica,

Štrpce — sérvios e albaneses

encravados num território

com a dimensão de metade

do Alentejo.Texto de Sofi a

Branco Fotografi a de Rui

Gaudêncio, no Kosovo

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D

ezembro, Janeiro, Feve-reiro. Indepen-dência, autono-mia, federação. Há um território à espera de um estatuto e pes-soas suspensas por uma data. Ninguém arrisca ser categórico sobre o que acontecerá amanhã, prazo que a comunidade internacional fi xou para que sérvios e alba-neses chegassem a um acordo sobre o futuro estatuto do Kosovo, província sérvia sob admi-nistração das Nações Unidas desde 1999. As negociações falharam e todos os cenários são agora considerados possíveis. Uns acre-ditam que nada vai mudar, que o dia 10 de Dezembro sempre foi apenas mais uma data, que gerará uma nova data e mais tempo inde-terminado de espera. Outros aguardam uma declaração unilateral por parte dos albane-ses (mais de 90 por cento dos dois milhões de habitantes do território), que poderá levar à expulsão, ou à saída forçada, dos sérvios. Política aparte, o Kosovo é feito de gente com um passado comum. Um passado que já foi de camaradagem, de vizinhança, de amizade. Actualmente, e desde 1999, sérvios, albane-ses, roma, gorani, turcos, bósnios vivem barricados em categorias étnicas, ainda que territorialmente lado a lado.

Em Gracanica, nos arredores de Pristina (a maior cidade do Kosovo), mais a norte, em Mitrovica, onde habita o maior número de sér-vios, e mais a sul, em Štrpce, enclave sérvio rodeado por municípios albaneses, as pessoas esperam e estagnam, isoladas por fronteiras fi ctícias num território com a dimensão de metade do Alentejo.

Gracanica, sexta-feira, 30 de Novembro

A uma dezena de quilómetros de Pristina — a cidade que os albaneses querem erguer como capital de um futuro Estado independente —, chega-se a Gracanica depois de se passar por Hajvalija. Na primeira só vivem sérvios, na segunda só albaneses.

Entre as duas vilas, há um hospital, fi nanciado por Belgrado e que só assiste albaneses “em casos de emergência”, reconhece a enfermeira Vesna. São sérvios os 30 médicos que traba-lham nas pouco recomendáveis instalações — há lixo a transbordar de contentores lá fora, uma bomba de gasolina inactiva e duas ambu-lâncias “insufi cientes”, diz a enfermeira, na casa dos 30, que fala inglês com difi culdade. Ao contrário, a esquadra da polícia, de frente para um largo onde se ergue uma enorme ban-deira da Sérvia, tem uma composição multi-étnica: o presidente é sérvio, o vice-presidente albanês, a equipa é mista.

Ciganos romenos em negócios e jogo de xadrez no no lado sérvio de Mitrovica; rua do lado albanês

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Já na educação volta a não haver misturas. Cada vila, sua escola. Em Gracanica, 572 crianças aprendem segundo os programas de Belgrado. Os Estados Unidos são a referência no livro de Inglês de Slavko Djokic, orgulhosa-mente enrolado num cachecol dos Red Star, a equipa de futebol de Belgrado. Não sabe dizer muito na língua do tio Sam, mas aprende-a a partir de imagens de São Francisco. E já conse-gue afi rmar que “a Sérvia é um grande país”. Apenas três quilómetros de uma estrada enla-meada e patrulhada por colunas da Kfor (força de estabilização da NATO no Kosovo) separam a Kralj Milutin da Shkënoija, na localidade vizi-nha de Hajvalija, mas ambas as escolas, e os seus alunos, não comunicam entre si. E cada uma conta História à sua maneira.

“Como comunicar quando eles deslocaliza-ram as nossas escolas?”, insurge-se Gligorije Stojanovic, director da Kralj Milutin há 19 anos. Actualmente, as doze salas de aulas repartem as manhãs pelos alunos mais novos, as tardes pelos que frequentam o 5º ao 8º anos e ainda albergam as escolas de Medicina, de Música e de Condução, que tiveram de abandonar os locais onde estavam instaladas antes. “Até 1999, tínhamos escolas mistas, a comuni-dade internacional é que separou as escolas”, atira Stojanovic, recordando que o seu pri-meiro assistente foi albanês, que a escola tinha 800 alunos sérvios e 200 albaneses. Agora, os 72 professores da Kralj Milutin são todos sérvios e recebem os salários de Belgrado. “A situação está totalmente polarizada. Não podemos sair daqui, ir às cidades, podemos ser mortos, não há segurança. Não somos nós que governamos o Kosovo hoje”, consi-dera o director de 60 anos, que acredita que, num eventual quadro de independência,

Na educação volta a

não haver misturas.

Cada vila, sua escola

Olivera Mitrovic perdeu dois fi lhos durante a guerra

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os habitantes de Gracanica vão optar por abandonar a vila e a “vida de prisão” que ela lhes proporciona.

A maioridade de Slobodan Kostic está entrin-cheirada em Gracanica. Só foi a Pristina “duas a três vezes” desde 1999, quando a NATO bom-bardeou a Sérvia e o Kosovo passou a ser admi-nistrado pela comunidade internacional. Slobodan não tem qualquer amigo albanês, mas o que lamenta mesmo é a “falta de liber-dade de movimento”. Em vésperas do Dia Mundial Contra a Sida, enquanto distribuía preservativos como voluntário da Cruz Ver-melha sérvia, também Slobodan ia dizendo que os dez mil habitantes vão abandonar a vila se o Kosovo se tornar independente. “Alguns até já estão a vender as casas”, conta. E quem as está a comprar? “Albaneses.”

Mitrovica, sábado, 1 de Dezembro

Todos os sábados, a produção doméstica dos enclaves sérvios do Kosovo escoa no mercado de Mitrovica Norte.

A agricultura já teve melhores dias. Mas gali-nhas, espinafres, abóboras, pimentos de todas as cores, carne de porco fumada e queijo de vaca em pipas de madeira ainda brotam de bancas improvisadas que enchem o passeio logo a seguir à ponte sobre o rio Ibar, às gua-ritas da Kfor, ao arame farpado. Do outro lado, albaneses. Para norte, a Sérvia.

Dos cerca de 120 mil kosovares sérvios, um terço vive em Mitrovica Norte, o que tem feito da zona uma das mais instáveis. Em Março de 2004, circulou a informação de que três crian-ças albanesas se tinham afogado no rio Ibar, enquanto fugiam de homens sérvios. Bastou o rastilho do rumor para que, num ápice, se incendiassem casas e gado. Um dos rapazes acabou por sobreviver e pôde contar uma ver-são muito diferente do sucedido, mas já foi tarde para algumas dezenas de vidas. Toda a gente se lembra do incidente. Principalmente as forças internacionais, que perceberam aí a impreparação para controlar o ódio étnico entre os dois lados de Mitrovica.

Junto à mesma ponte sobre o rio Ibar, todos os sábados, Olivera Mitrovic substitui as com-pras no mercado pela conversa com os dois fi lhos que perdeu para a estatística dos dez mil mortos no confl ito. Os seus nomes, Radi-voje e Lubiša, estão inscritos num memorial à entrada da parte norte da cidade. Diz que foram mortos por albaneses, fardados à UÇK (guerrilha paramilitar), mas não se sabe se é apenas um rumor.

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bem e 80 por cento são pobres”, refere, acre-ditando que, “com a independência, tudo vai fi car cem por cento melhor”.

Ardijah está no negócio da roupa e tira 200 euros ao dia, trabalhando de segunda a quinta, das oito da manhã às seis da tarde. Já os 195 euros que Sadri Rustemi ganha como professor não dão para as contas do mês e, por isso, também ele faz uma perninha na banca do lado. Sadri quer viver num Kosovo “com os sérvios”. Ardijah corta-lhe a palavra: “Como viver bem com eles, quando eles mataram as nossas crianças e as nossas mulheres?” Pensa uns minutos. “Talvez as próximas gerações possam ir à escola juntas.” Vai continuar “à espera”.

Štrpce, domingo, 2 de Dezembro

O sol e as montanhas cobertas de neve suge-rem uma enchente de fi m-de-semana na estân-cia de esqui de Brezovica, no Sul do Kosovo. Cá em baixo, no vale, reina a calma. Ou melhor, a inércia. Štrpce, enclave sérvio rodeado por municípios albaneses não está só encravado no espaço, mas também no tempo.

De Pristina, a única maneira é apanhar o auto-carro até uma localidade próxima — Ferizaj, por exemplo — e depois arranjar um taxista que faça os restantes quilómetros até ao enclave onde vivem dez mil pessoas. Passado o posto de controlo da Kfor, Štrpce apresenta-se: do lado direito, um cemitério; do lado esquerdo, a carcaça de um jipe Niva verde, cheio de ferrugem e desrodado. O sobrevivente casario típico mostra uma aldeia típica de interior. Duas escolas, uma pri-mária e uma secundária, um centro de saúde, uns poucos restaurantes e cafés, algumas lojas que vendem trenós da Heidi e cachecóis dos clubes de futebol espanhóis. Assim é Štrpce, o que leva Aleksandar a querer emigrar para a Bélgica.

Aos 22 anos, Aleksandar só quer ser como os outros jovens europeus e, acima de tudo, poder circular. Tem madeixas no cabelo, brinco na orelha, fuma. Deixou a faculdade O que é certo é que Olivera chora enquanto

conta a história que a traz vestida de negro a uma jornalista que realiza um documentário para a televisão sérvia.

A 340 quilómetros de Belgrado, Mitrovica benefi cia de uma série de estruturas paralelas fi nanciadas pelo Governo sérvio. Milos Gulo-bovic, 22 anos, estuda novas tecnologias na “universidade de Pristina temporariamente relocalizada em Mitrovica Norte”, com cerca de quatro mil alunos.

“Não gosto de política”, diz quem, antes da guerra, tinha um amigo-vizinho albanês com quem nunca mais falou, mas que continua a acreditar que a convivência “é o melhor”. Isso mesmo sentiu durante a visita organizada pelo Alto Comissariado para as Minorias Étnicas do Kosovo, que recentemente levou um grupo de 20 estudantes sérvios e albaneses à Holanda. “Foi muito fi xe”, resume.

Belgrado ajuda, mas não tanto. Há sempre “quatro ou cinco horas” de escuridão durante o dia e a água deixa de correr durante a noite, conta Tamara Iovic, 37 anos e consultora legal da União Europeia. “Honestamente, não sei [o que vai acontecer se a independência for declarada unilateralmente], mas temo que os albaneses expulsem os sérvios”.

Em Mitrovica Norte, como no resto do territó-rio, não há muito para fazer. Joga-se xadrez, no passeio, de pé.

Algumas pessoas atravessam, a pé, a ponte sobre o rio Ibar, quase sempre estrangeiros ou etnias como os roma ou os ciganos, que fazem negócio dos dois lados do confl ito sér-vio-albanês.

A população aumenta do lado albanês e o espaço parece mais exíguo. Há mais lixo no chão e mais caos. Mas, ao fundo, a cena repete-se: o mesmo mercado, aos sábados. O mesmo queijo a sair à colherada de bidões para sacos de plástico entregues ao compra-dor. A mesquita no centro e os vendedores ambulantes de posters e calendários alusivos a Meca marcam a diferença religiosa. Ardijah Shkreli conhece todos os comercian-tes do mercado. Dá uns toques de inglês, mas fala melhor italiano, em resultado dos vistos temporários de trabalho que o levaram a ter-ras romanas, entre 2002 e 2007.

Conversa nas pausas do negócio — “Compro por cinco e vendo por dez.” Tem sorte. Já o mesmo não se pode dizer daqueles que “andam 20 a 30 quilómetros por dia para ganhar cinco a seis euros” a vender pevides, compara. No Kosovo, “vinte por cento dos habitantes vivem

Um terço dos 120 mil

kosovares sérvios vive

em Mitrovica Norte

Escola em Gracanica, um enclave sérvio perto de Pristina

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Muro dos desaparecidos em frente ao parlamento de Pristina

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Mitrovica — ponte que separa o lado albanês do lado sérvio

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no primeiro ano, trabalha dia-sim-dia-não num bar para ganhar 12 euros por dia e con-tinua a viver com os pais e os quatro irmãos mais novos. “Não há futuro para mim aqui.” Não quer saber se o Kosovo vai ser ou não independente, só pensa em guardar dinheiro para o visto e sair.

Corre a ideia de que a vida é mais fácil nos enclaves sérvios, às custas da ajuda de Bel-grado. Não em Štrpce. A electricidade mantém uma alternância equilibrada: quatro horas com, quatro horas sem. Nada de água quente — a solução é pagar 300 euros pela madeira que dará o aquecimento durante todo o gelado Inverno. “O gás está muito longe de nós”, diz Tatjana Kecic. Tatjana é o espelho da balcani-zação: nascida e estudada na Eslovénia, fi lha de mãe croata e de pai sérvio, vive há doze anos em Štrpce e está cansada.

Com dois fi lhos pequenos, para ela tudo se resume ao emprego. Por isso, espera que a comunidade internacional fi que mais tempo em Štrpce. “Não me interessa quem me paga” — é funcionária da Organização para a Segu-rança e Cooperação na Europa (OSCE). A OSCE emprega 20 pessoas, 14 das quais locais. Tatjana ganha 650 euros limpos por mês, três vezes mais do que o salário médio kosovar. Mesmo assim, começa a achar que nada paga viver em Štrpce, sem escolas “decentes” para os filhos estudarem, sem cinema, sem hospital, sem luz, sem poder “tomar um duche quando apetece”. “Isto é uma loucura no século XXI”, suspira. Nada mudou nos últimos oito anos? “Honesta-mente? Nada.” a

Štrpce: viver sem

cinema, hospital ou um

duche quando apetece

Um vendedor de fruta e um desempregado no lado albanês de Mitrovica Biblioteca de Pristina, a cidade que os albaneses querem que seja a capital de um Estado independente

Referências

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