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Vista do A ética da responsabilidade na teologia de Dietrich Bonhoeffer | Acta Científica

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A éticA dA responsAbilidAde nA

teologiA de dietrich bonhoeffer

Adriani Milli rodrigues1

resumo: Dietrich Bonhoeffer é o principal teólogo moderno que discute a ética cristã em termos de ética da responsabilidade. Sua discussão ética se baseia especialmente em seus conceitos teológicos e suas experiências com o nazismo alemão. Nesse sentido, este artigo objetiva descrever a ética da responsabilidade no pensamento bonhoefferiano, indicando brevemente seus pressupostos e implicações. De forma geral, do ponto de vista conceitual, a ética bonhoefferiana rechaça a metafísica filosófica em favor da revelação divina, enquan-to do ponenquan-to de vista prático ela abre possibilidades de atitude cristã frente a situações ex-tremas de ameaça à vida.

palavras-chave: Bonhoeffer; Ética; Teologia moderna; Ética da responsabilidade

the ethics of responsibility in the

theology of dietrich bonhoeffer

Abstract: Dietrich Bonhoeffer is the main modern theologian who discusses christian ethics in terms of ethics of responsibility. His ethical discussion is particularly based on his theolo-gical concepts and his experience with german nazism. In this sense, this article aims to des-cribe the ethics of responsibility in the Bonhoefferian thought, by indicating its presupposi-tions and implicapresupposi-tions. Overall, from a conceptual perspective, Bonhoefferian ethics denies philosophical metaphysics in favor of divine revelation, while from a practical perspective it opens possibilities of christian attitude in face of extreme situations of threat to life.

Keywords: Bonhoeffer; Ethics; Modern theology; Ethics of responsibility

Embora o conceito de responsabilidade tenha um lugar firme desde as primei-ras tradições da moral filosófica e também na ética teológica, Max Weber foi o pri-meiro autor que formulou a tarefa ética em termos de uma ética da responsabilidade (HUBER, 1993, p. 579). Nesse sentido, Weber estendia a necessidade de responsa-bilidade para os futuros efeitos das ações presentes. Em seu ensaio “A política como vocação”, Weber diferencia os dois tipos opostos de condutas eticamente orientadas: a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Enquanto no primeiro caso, a pes-soa decide seguir suas convicções básicas sem considerar os efeitos e resultados no mundo real, a ética da responsabilidade leva em conta os resultados e consequências das ações, bem como seu caráter decisivo no mundo real.

1 Doutorando em Teologia Sistemática pela Andrews University, EUA. Mestre em Ciência da Religião pela

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Weber (1982, p. 144) chega a relacionar o pensamento religioso com a ética da convicção. Segundo essa visão, quando o cristão afirma fazer o bem, deixando os resul-tados para o Senhor, há uma clara indicação de conduta “que não quer prestar conta dos resultados previsíveis dos atos cometidos”. Nesse caso,

se uma ação de boa intenção leva a maus resultados, então, aos olhos do agente, não ele, mas o mundo, ou a estupidez dos outros homens, ou a vontade de Deus que assim os fez, é responsável pelo mal. Mas um homem que acredita numa ética da responsabilidade […] não se sente em condições de onerar terceiros com os resultados de suas próprias ações, na medida em que as pôde prever. Dirá: esses resultados são atribuídos à minha ação (WEBER, 1982, p. 144-145).

A discussão teológica moderna acerca do papel da ética da responsabilidade compreen-de tanto uma extensão como uma reação à iniciativa compreen-de Weber. Dietrich Bonhoeffer, que talvez tenha sido o teólogo que aplicou com maior ênfase a noção de ética da responsabilidade, tanto em seus escritos como em sua própria vida, parece ter ampliado e reagido ao pensamento de Weber. Em seus escritos sobre ética, Bonhoeffer (2005, p. 124) afirmou formular um conceito de responsabilidade que carregava maior plenitude de sentido que as reflexões de Weber. Ao contrário do exemplo dado por Weber, que colocava o cristão na categoria da ética da convic-ção, Bonhoeffer discute a ética da responsabilidade enquanto postura cristã.

Nesse sentido, o presente artigo pretende descrever a ética da responsabilidade no pensamento bonhoefferiano, discutindo inicialmente sua compreensão ética enquanto ampliação de sua teologia do seguimento e, a seguir, apresentando a ética da responsabili-dade de acordo com os escritos da Ética.

o pensamento ético de bonhoeffer como ampliação da teologia do

seguimento

A ética assume um papel preponderante no pensamento de Bonhoeffer. Para Gi-bellini (2002, p. 111), “a teologia de Bonhoeffer é mais uma teologia ética que uma teo-logia dogmática”. No prefácio de 1948 da primeira edição de Ética, Bethge explica que o teólogo alemão projetava a obra sobre ética como a grande obra de sua vida. Bonhoeffer (2003, p. 176-220) fala com tristeza acerca do fracasso desse projeto em Resistência e sub-missão. Ao assumir a proximidade da morte, ele confessa: “Às vezes, penso que já deixei

a minha vida mais ou menos para trás e que somente me faltaria ainda concluir a Ética.” O contexto de redação dos manuscritos que formam a atual Ética abrange desde a conspiração contra o estado nazista (1939/1940) à sua prisão em abril de 1943. Gibellini (2002, p. 111) explica que esses escritos constituem uma ampliação progressiva da “teologia do seguimento” (delineada principalmente na obra Discipulado, a qual publicada em alemão

em 1937 sob o título de Nachfolge, que literalmente significa “seguimento”) para o ambiente

do mundo secular, isto é, há uma ênfase maior no mundo como sendo domínio de Jesus Cristo e, portanto, campo de atuação de seus seguidores. Um exemplo desse enfoque é a descrição da postura de Lutero. Em Discipulado, Bonhoeffer (2004, p. 13) ressalta que

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Lutero teve que abandonar o convento e regressar ao mundo, não porque este, em si, fosse bom e santo, mas sim porque também o convento nada mais era do que mundo. […] o discipulado de Jesus passaria a ser vivido no seio do mundo […]. A obediência perfeita ao mandamento de Cristo deveria acontecer na vida profissional de todos os dias.

Na Ética, Bonhoeffer (2005, p. 142) interpreta tal postura de Lutero em termos de responsabilidade: “Em seu retorno para o mundo, Lutero visava à responsabilidade integral diante do chamado de Cristo.”

No contexto de sua conhecida distinção entre graça barata e graça preciosa, que constitui o ponto de partida da teologia do seguimento em Discipulado, Bonhoeffer insere as

noções opostas de obediência e conflito ético. Ele salienta que “a fé somente é fé no ato da obediência” (BONHOEFFER, 2004, p. 25). Nesse sentido, deixar de obedecer ao manda-mento simples e claro de Deus significa deslocar-se para o terreno humano da dúvida e do conflito ético. Nesse terreno a ação é substituída pelo julgamento e pela racionalização, onde o próprio ser humano precisa decidir acerca do que é bom, apoiado em seu conhecimento do bem e do mal segundo os ditames de sua consciência. Por isso, o apelo ao conflito ético nada mais é do que a recusa da obediência (BONHOEFFER, 2004, p. 33).

Esses conceitos são amplamente retomados em Ética, especialmente a ênfase da ação em detrimento da abstração; o enfoque de que o ser humano não deve buscar o conhecimento do bem e do mal e a importância da obediência direta ao chamado e a vontade de Deus. Tais conceitos são fundamentais para a contextualização e a discussão da ética da responsabilidade em Bonhoeffer.

A ética da responsabilidade em Ética

Na estrutura criada por Bethge para a compilação dos escritos éticos de Bonhoeffer, a discussão acerca da ética da responsabilidade aparece de forma bem específica na seção intitulada “A história e o bem”. Contudo, existem alusões à ação responsável, assim como conceitos que apresentam direta conexão com suas noções acerca da ética da responsabili-dade, em outras seções. Assim, pode-se destacar algumas ideias que estão presentes, princi-palmente nas seguintes seções: “O amor de Deus e a decadência do mundo”, “Ética como formação”, “As últimas e as penúltimas coisas” e “Cristo, a realidade e o bem”.

Em “O amor de Deus e a decadência do mundo”, Bonhoeffer (2005, p. 15) abre sua discussão ressaltando que a reflexão ética em geral objetiva trabalhar com as noções e distinções do bem e do mal. Por isso, “a primeira tarefa da ética cristã consiste em sus-pender este saber”. Ao relembrar o relato da queda do ser humano, ele enfatiza que o co-nhecimento do bem e do mal constitui, em realidade, uma separação e oposição daquele em relação a Deus: “Trazendo em si o conhecimento do bem e do mal, o ser humano se tornou juiz de Deus e dos seres humanos” (BONHOEFFER, 2005, p. 19).

Desse modo, faz-se necessário seguir o exemplo deixado por Jesus. Em sua vida terrestre ele não agiu a partir de qualquer conhecimento do bem e do mal, antes sua ação foi uma resposta à vontade de Deus. A obediência simples de Jesus se contrapõe ao julga-mento do conflito ético (do bem e do mal) que nunca chega à ação.

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Velasquez Filho (1977, p. 48) identifica nessas noções de Bonhoeffer uma explícita ligação com as ideias de Karl Barth. Tanto em Carta aos Romanos como na Church Dogmatics,

Barth expressa o fracasso da ética como ciência independente. Esse fracasso ocorre em virtude da impossibilidade de se resolver o problema do conflito entre o bem e o mal. A tentativa de penetração nesse conflito representa o esforço do ser humano de se apropriar de algo (o conhecimento do bem e do mal) que exclusivamente pertence a Deus. Logo, “a origem ética coincide com o pecado do primeiro homem”. Tanto Barth quanto Bo-nhoeffer entendem que a melhor postura do ser humano é a obediência incondicional à vontade de Deus, isenta do conflito ético.

Mas ao refletir sobre a vontade de Deus, Bonhoeffer (2005, p. 26) reconhece que esta pode se ocultar profundamente sob muitas possibilidades que aparecem. Novamente aqui, o discernimento da vontade de Deus também não parte do ser humano, pois isso significaria basear-se no próprio saber do bem e do mal. O reconhecimento da vontade de Deus depende exclusivamente da atuação da graça divina na mente humana.

Nesse ponto, Bonhoeffer segue basicamente a tradição da Reforma, a saber, a ado-ção da revelaado-ção de Deus (especificamente em Jesus Cristo) como ponto de partida de sua teologia e reflexão ética (WEISSBACH, 1967, p. 98-99). Ele recusa começar com quaisquer premissas humanas. Essa posição já estava evidente em sua obra Act and Being: “De Deus

para a realidade e não da realidade para Deus, este é o caminho da teologia” (BONHOE-FFER, 1961, p. 89). Na Ética essa posição também é bastante explícita: “É preciso superar

o raciocínio que parte dos problemas humanos e que de lá pergunta por soluções; ele não é bíblico. O caminho de Jesus Cristo, e com isso o caminho de todo raciocínio cristão, não vai do mundo a Deus, mas de Deus ao mundo” (BONHOEFFER, 2005, p. 198).

Na seção intitulada “Ética como formação”, Bonhoeffer (2005, p. 43) acrescenta mais um motivo para a impossibilidade humana de conhecer o bem e o mal: estamos em meio “à perversão, confusão e distorção dos conceitos”. Assim, a atitude mais sensata é manter “os olhos voltados apenas para a simples verdade de Deus”. Tal postura resulta de um comprometimento com o amor de Deus, não um comprometimento com meros princípios. Isso liberta o ser humano do conflito da decisão ética.

Nesse caso, fica bem claro que Bonhoeffer (2005, p. 53) considera a ética de prin-cípios como uma ética abstrata. Ao invés dela, ele aponta para a importância de uma ética concreta: “A questão não é poder e ter que dizer o que é bom de uma vez para sempre, mas como Cristo ganha forma entre nós hoje e aqui. A tentativa de definir o que seria bom para todos os tempos sempre fracassou por si mesma.”

Bethge (2000, p. 118) salienta que a ética bonhoefferiana não consiste em um siste-ma de princípios gerais de aplicação universal, siste-mas em usiste-ma formulação histórica. Portan-to, a ética difere de acordo com cada nação. Especificamente na Alemanha, ela não pode ser considerada de maneira isolada da experiência da guerra e da revolução.

Livre de uma percepção casuística e abstrata, a ética como formação se arrisca a fa-lar do processo pelo qual Jesus Cristo ganha forma no mundo. Mas para entender melhor essa asserção é necessário ter uma compreensão mais clara e concreta de Cristo:

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Cristo não é um princípio de acordo com o qual todo o mundo devesse ser estruturado. Cristo não é arauto de um sistema daquilo que fosse bom hoje, aqui e em todos os tempos. Não ensina uma ética abstrata que devesse ser imposta a qualquer preço. […] Cristo não amava, como o especialista em ética, uma teoria sobre o bem; amava, isto sim, o ser humano real. Seu interesse não se voltava, como o do filósofo, às “coisas de validade universal”, mas àquilo que serve ao ser humano real e concreto. […] Não se lê que Deus se fez ideia, princípio, programa, validade universal, lei, mas que Deus se fez ser humano (BONHOEFFER, 2005, p. 52).

Segundo essa compreensão, a ética cristã nunca é abstrata, mas concreta. Cristo toma forma entre nós aqui e agora na esfera de nossas decisões e encontros, na esfera dos problemas concretos, tarefas e responsabilidades (GODSEY, 1960, p. 206).

Outra seção importante no pensamento ético de Bonhoeffer é a sua compreensão sobre “As últimas e as penúltimas coisas”. O cristianismo tradicional costuma dividir a realidade em duas esferas ou compartimentos. Para retratar essa dicotomia são utilizados binômios tais como “sobrenatural-natural”, “sagrado-profano”, “cristão-secular”. Em lugar dessa terminologia, Bo-nhoeffer prefere adotar o par “último-penúltimo”. Na sua perspectiva, o uso dos pares tradi-cionais reflete uma compreensão dicotomizada do mundo que resulta em duas possibilidades extremas: conflito ou autonomia entre eles. Ele prefere o par “último-penúltimo” porque esses termos estabelecem uma relação adequada desses dois elementos da realidade. Não há o extremo do conflito nem da autonomia. O penúltimo só é penúltimo por causa da existência do último. É dele que o penúltimo ganha consistência (BONHOEFFER, 2005, p. 75). Logo, Bonhoeffer atribui ao penúltimo, isto é, ao mundo, ao ser humano, às realidades terrestres, “uma consistência que tem seu fundamento e sua justificação apenas no último” (MONDIN, 1987, p. 181).

As três seções analisadas até aqui fornecem alguns elementos básicos para a constru-ção da ética da responsabilidade bonhoefferiana. Dentre eles pode-se destacar: (1) o ponto de partida teológico da revelação divina e não da racionalidade humana (“O amor de Deus e a decadência do mundo”); (2) a ênfase em uma ética concreta que tenha direta relação com a realidade histórica (“Ética como formação”); e (3) a compreensão não dicotomizada da realidade, conforme a estrutura de pensamento de (“As últimas e as penúltimas coisas”).

Na seção “Cristo, a realidade e o bem”, esses elementos são retomados e recebem contornos adicionais. Bonhoeffer afirma a inadequação das perguntas “Como tornarei bom?” e “Como farei algo bom?”, que normalmente levam alguém a se ocupar com os problemas éticos. A real pergunta que precisa ser feita é a pergunta pela vontade divina. Essa asserção se sustenta por dois motivos. Primeiramente, mais importante que melhorar a situação do mundo ou tornar-me bom é a busca por manifestar a realidade de Deus em toda parte como realidade última, pois o “problema da ética cristã é a concretização da realidade reveladora de Deus em Cristo entre suas criaturas” (BONHOEFFER, 2005, p. 108). Além disso, devido à complexidade da realidade concreta, “todas as coisas aparecem distorcidas quando não são vistas e entendidas em Deus”. É nesse ponto sobre a importância do reconhecimento de Deus como realidade última que Bonhoeffer (2002, p. 110) demonstra que, ao criticar a ética abstrata do idealismo, ele não cai em um utilitarismo empírico-positivista. Ele também critica esta última forma ao asseverar que essa posição

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procura eliminar por completo da ética o conceito de normas, por ver nele unicamente a idealização de formas de comportamento de fato existentes e funcionais para a vida: o bem, no fundo, nada mais é do que aquilo que é funcional, útil e serve à realidade. […] não há um bem de validade universal, mas só um bem infinitamente variado, determinado sempre a partir da “realidade”.

Enquanto a vantagem da posição empírico-positivista em relação à concepção ide-alista está na indiscutível proximidade maior da realidade, ela apresenta a deficiência de renunciar a qualquer fundamento da realidade última de Deus, estabelecendo uma total dependência ética do momento, do acaso e da utilidade momentânea, por não reconhecer esta realidade (BONHOEFFER, 2002, p. 110).

Moltmann (1967, p. 67) entende que a busca da superação do idealismo e do empi-rismo positivista constitui o principal alvo da Ética de Bonhoeffer:

Em sua doutrina da realidade, Bonhoeffer esforça-se para encontrar uma penetra-ção além do que deveria ser e o que é, além do idealismo e positivismo, além de uma ética de normas e uma ética social, além da lei natural e a doutrina positivista da lei.

A estrutura da ética da responsabilidade

A estrutura básica da ética da responsabilidade de Bonhoeffer se encontra na seção “A história e o bem” da Ética. Green (1999, p. 311) salienta que, nesse capítulo, as refe-rências ao contexto político claramente saltam das páginas. No prefácio da sexta edição (1962) Bethge declara que esse capítulo foi escrito no auge das atividades conspirativas de Bonhoeffer. Há aqui uma direta relação entre “fazer a vontade de Deus” e o plano da conspiração e do tiranicídio. Além disso, para Pangritz (2000, p. 62), este capítulo foi de certo modo influenciado pela leitura de Barth, particularmente o volume II/2 da Church Dogmatics, que continha algumas seções sobre ética.

Bonhoeffer (2005, p. 120) inicia este texto reafirmando que não se deve indagar pelo bem em si, mas pelo que ele é nas circunstâncias da vida. Portanto, “a pergunta pelo bem é formulada e respondida em meio a situações definidas e ao mesmo tempo inacabadas da nos-sa vida, únicas e ao mesmo tempo transitórias, em meio a ligações vivas com pessoas, coinos-sas, instituições, poderes”. Ele também reafirma a superação da abstração de uma ética idealista:

Já superamos […] uma abstração que domina ainda boa parte da reflexão ética: a abstração do indivíduo isolado que deve decidir, de acordo com um parâmetro absoluto de um bem em si, constante e exclusivamente entre este bem claramente reconhecido e o mal reconhecido com igual clareza. Não existe indivíduo isolado, tampouco temos à nossa disposição aquele parâmetro absoluto de um bem em si, e, finalmente, nem o bem, nem o mal se manifestam em suas formas puras na história (BONHOEFFER, 2005, p. 120).

A principal fraqueza da ética abstrata idealista consiste em seu formato metafísico que não se relaciona essencialmente com a vida. Por isso, Bonhoeffer procura delinear sua noção ética em conexão com a “estrutura da vida responsável”. Essa estrutura é composta por dois pilares principais: 1) a vinculação da vida ao semelhante e a Deus; 2) a liberdade da própria vida.

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A vinculação da vida ao semelhante e a deus

A primeira maneira de vincular a vida ao semelhante e a Deus se dá através da representação. Existem muitos exemplos de pessoas que agem em lugar dos outros na sociedade, que ilustram a responsabilidade que se baseia na representação. Um pai, por exemplo, age em lugar de seus filhos. Ele trabalha, cuida, defende, luta e sofre por eles. Ele assume o lugar deles, pois não é um indivíduo isolado, mas que “reúne em si o eu de várias pessoas. Qualquer tentativa de viver como se sozinho estivesse, é uma negação do caráter fatual de sua responsabilidade” (BONHOEFFER, 2005, p. 125).

A ação representativa também envolve ação responsável de pessoas para com suas comunidades e nações. Green (1999, p. 314) entende que isso inclui Dietrich Bonhoeffer (e os membros de sua família e colegas no movimento de resistência) agindo em responsabilidade para com a Alemanha. Em realidade, ninguém pode se esquivar totalmente da responsabilida-de da representatividaresponsabilida-de. Jesus, enquanto Filho responsabilida-de Deus que se tornou ser humano, viveu responsabilida-de forma representativa por todos nós. Destarte, “toda a sua vida, ação e morte foi representação. Nele se cumpre o que os seres humanos deviam viver, fazer e sofrer”. Dessa forma, a “repre-sentação e, por conseguinte, responsabilidade, só existem na dedicação integral da própria vida ao semelhante. Só o abnegado vive responsavelmente” (BONHOEFFER, 2005, p. 126).

A segunda forma de vincular a vida ao semelhante e a Deus ocorre através da con-formidade com a realidade. Aqui Bonhoeffer retoma sua noção de realidade concreta. O comportamento de um indivíduo responsável surge em uma situação concreta, ele não está definido por um princípio universal de uma definição apriorística. É por isso que uma

pessoa responsável não impõe à realidade uma lei alienígena. Novamente Jesus Cristo é modelo, agora para a conformidade com a realidade:

Jesus Cristo não se defronta com a realidade como alguém alheio a ela. É ele somente que carregou e experimentou no próprio corpo a essência da realidade, que falou a partir do real como nenhum outro ser humano na terra, o único que não sucumbiu a uma ideologia (BONHOEFFER, 2005, p. 128).

A liberdade da própria vida

Embora estabeleça o ponto de partida de sua teologia na revelação de Deus, Bonhoe-ffer não deixa de reconhecer a importância do conhecimento humano. Antes, ele introduz cri-térios que servem como verificação sobre o que é tomado pelo ser humano como a vontade de Deus. Aqui se insere a questão do autoexame da vida e da ação (HOLBROOK, 1969, p. 37).

Bonhoeffer (2005, p. 130) relaciona algumas atividades racionais do ser humano que são importantes nessa questão: “É preciso observar, ponderar, avaliar e decidir na situação concreta”, mas tudo isso deve ser feito dentro do reconhecimento dos limites do conhecimento humano. Portanto, apesar da importância do autoexame ele não gera um resultado definitivo ou estabelecido. A ação responsável não deixa de ser um risco. Mas além da necessidade de correr o risco de olhar para o futuro próximo, é preciso também considerar com seriedade as consequências da ação, e examinar os próprios motivos do coração. Apesar da ação responsável ser arriscada, ela não pode ocorrer cegamente.

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Talvez o ponto que seja mais comentado por Bonhoeffer acerca da ação responsável é o risco assumido pela decisão concreta. O risco está presente porque o indivíduo responsá-vel desconhece o bem e o mal, dependendo totalmente da graça. Quem age com base numa ideologia vê sua justificação na ideia que defende; a pessoa responsável coloca sua ação nas mãos de Deus e vive de sua graça e bondade (BONHOEFFER, 2005, p. 131).

Ele também enfatiza a existência de casos extremos que confrontam o ser hu-mano com a questão do último recurso, que, por sua vez, está além das leis da razão. É uma ação irracional. Essa necessidade extraordinária apela à liberdade das pessoas responsáveis. Neste sentido, é necessário assumir o livre risco, entregando a própria de-cisão e ação à condução divina da história (BONHOEFFER, 2005, p. 133). Bonhoeffer complementa dizendo que essa ação não deve ser julgada, pois o juízo cabe a Deus e ninguém pode julgar as ações do outro.

Ali onde a observância da lei formal dum Estado, duma empresa, duma família ou duma descoberta científica […] se choca com as necessidades básicas dos seres humanos, a ação responsável e objetiva sai do âmbito dos princípios e leis, do normal, do comum, para a situação excepcional de necessidades últimas, situação essa que não pode mais ser regulamentada por leis (BONHOEFFER, 2005, p. 133).

A partir de sua forte compreensão cristológica, Bonhoeffer também considera que o risco assumido pela decisão concreta da ação responsável inclui a disposição para se assumir a culpa. Jesus, por exemplo, na qualidade de quem age responsavelmente na existência histó-rica humana, entra na culpa dos seres humanos e a assume (BONHOEFFER, 2002, p. 134). O desconhecimento do bem e do mal, a disposição de se assumir a culpa estão dire-tamente ligados à noção de que a ação responsável não pode ser justificada ou necessaria-mente aprovada. Não há cobertura por parte de princípios, circunstâncias e seres humanos. Em realidade, a ação responsável ocorre na liberdade do próprio eu. Destarte, a maior prova de sua liberdade está no fato de que nada pode defendê-lo, a não ser o seu próprio ato livre. Portanto, a ação responsável “acontece totalmente no âmbito total da relatividade, na pe-numbra que a situação histórica espalha sobre bem e mal” (BONHOEFFER, 2005, p. 139).

A ação responsável é […] uma aventura livre, sem justificação por lei alguma […] na renúncia a seu conhecimento último e válido de bem e mal. O bem, na qualidade daquilo que é responsável, acontece no descobrimento do bem, na entrega da ação necessária, e mesmo assim (ou justamente assim!) livre, a Deus, que vê o coração, pesa o ato e guia a história (BONHOEFFER, 2005, p. 139).

Tais conceitos parecem colocar a ética da responsabilidade em uma total subjetivi-dade e relativisubjetivi-dade. Todavia, algumas qualificações são necessárias aqui. Primeiramente, não se pode confundir as tendências naturais com o chamado concreto de Jesus para a ação responsável. Há certa dificuldade ou impossibilidade de avaliar essa questão em um caso concreto. Novamente, é importante ter em mente alguns parâmetros de autoexame, mas com o reconhecimento de que eles não conduzem a uma plena certeza nesse sentido.

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É preciso diferenciar a ação responsável de uma ação entusiástica, ou a limitação da res-ponsabilidade com a insegurança pessoal (BONHOEFFER, 2005, p. 144).

Além disso, há uma aproximação entre obediência e liberdade, para que não fique a im-pressão de que responsabilidade seja necessariamente sinônimo de desobediência às leis esta-belecidas no mundo. Para Bonhoeffer (2005, p. 140), a “obediência sem liberdade é escravidão, liberdade sem obediência é arbitrariedade. A obediência disciplina a liberdade, a liberdade eno-brece a obediência”. Assim, a ação responsável carrega em si uma tensão, pois nela ocorrem tanto a obediência quanto a liberdade. “Qualquer autonomia de uma contra a outra seria o fim da responsabilidade. Ação responsável é, ao mesmo tempo, comprometida e criativa.”

considerações finais

Uma análise mais profunda da ética da responsabilidade bonhoefferiana extrapola o escopo deste artigo, que se limita a um estudo essencialmente descritivo. No entanto, os pressupostos e implicações básicos desta ética podem ser brevemente delineados, servin-do como sugestão para estuservin-dos posteriores. De maneira geral, a ética da responsabilidade exposta por Bonhoeffer mescla conceitos teológicos com situações históricas do nazismo alemão no contexto da Segunda Guerra Mundial.

É provável que a realidade do nazismo provocou em Bonhoeffer uma profunda reflexão ética que exigia uma atitude prática de responsabilidade (reação ao nazismo) e também uma fundamentação conceitual dessa atitude (embasamento teológico). No que diz respeito à fundamentação conceitual, Bonhoeffer rechaçou o tradicional embasamento filosófico para a ética, constituído de princípios metafísicos absolutos. Tais princípios possuem dois problemas básicos: 1) eles se originam na racionalidade humana; 2) por serem abstratos e absolutos, eles não se adaptam à dinâmica da realidade histórica concreta. Nesse sentido, Bonhoeffer adianta parte da crítica pós-moderna à ética metafísica. Como novo fundamento para a ética, o teólogo alemão propõe a revelação de Deus, que não indica princípios abstratos, mas atitudes específi-cas de acordo com o contexto histórico. Como resultado, criam-se possibilidades para que sua conspiração contra o nazismo possa ser teologicamente legitimada.

O fato de que as ações de Bonhoeffer se deram no contexto extremo de guerra e genocídio faz com que nosso julgamento de suas decisões éticas seja bastante cauteloso. Todavia, em termos de fundamentação teológica, existem pontos positivos e negativos que podem ser ressaltados. Positivamente, Bonhoeffer propõe a revelação de Deus como fonte para as noções de bem e mal, ao invés da racionalidade humana (embasamento ético via metafísica). Contudo, seguindo a noção barthiana, o teólogo alemão não entende a revelação divina no sentido proposicional, isto é, em termos de informações comunicadas por Deus registradas nas Escrituras. Desse modo, Bohoeffer equivocadamente conclui que a revela-ção divina não comunica princípios éticos gerais. Antes, sua norevela-ção de revelarevela-ção é entendida cristologicamente: Cristo é a única forma de revelação divina. É por isso que a cristologia é o pano de fundo de toda a sua discussão ética.

Em última instância, uma ética da responsabilidade baseada na revelação de Deus unicamente em Cristo envolve apenas uma imitação ou “seguimento” do exemplo de Cristo (ironicamente, Cristo só é conhecido através das informações contidas nas

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ras), com a confiança de que Deus está guiando a mente do crente em todo esse processo. A implicação básica desse tipo de fundamentação para uma ética da responsabilidade é a de que existem poucos critérios para nortear as decisões e ações éticas. Desse modo, a subjetividade e o relativismo ético parecem inevitáveis.

De fato, embora Bonhoeffer tenha corretamente indicado a revelação divina como fundamento para a ética, ele acabou distorcendo e reduzindo esse fundamento, ao des-considerar os importantes e ricos conceitos registrados nas Escrituras que certamente podem embasar a ética da responsabilidade.

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