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O espelho do outro: As cruzadas vistas pelos Árabes

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Academic year: 2021

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O espelho do outro: As cruzadas vistas pelos Árabes

Angela Zatta1

MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes. Tradução Editora Brasiliense S.A. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. 253 p.

Trazendo de forma pioneira a “versão dos vencedores”, o escritor nascido no Líbano em 1949, Amin Maalouf, choca o leitor ocidental com seu livro As Cruzadas Vistas pelos Árabes, relato épico sobre a defesa dos muçulmanos em relação aos ataques das Cruzadas publicado originalmente em 1983. A obra chegou ao cenário acadêmico cinco anos após a publicação e extraordinária disseminação da obra do palestino Edward W. Said Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente – traduzido para o francês em 1980 - em que são analisados os vínculos entre as relações de produção dos conhecimentos acerca da representação do Oriente e do Ocidente, e pôde aproveitar a onda de novos estudos acerca do “orientalismo” trazida com a obra de Said. Partindo da prerrogativa de contar a história das cruzadas como foram vistas, vividas e relatadas pela perspectiva árabe, o libanês faz uso do romance histórico para reunir testemunhos de historiadores e cronistas árabes da época. Amin Maalouf, que em 1976 mudou-se para a França, trabalhou como jornalista e romancista. Foi chefe de redação do Jeune Afrique, do qual posteriormente tornou-se editor. Durante 12 anos foi repórter e realizou missões em mais de 60 países. De suas obras, três lhe renderam prêmios, sendo que “As cruzadas vistas pelos Árabes” lhe garantiu o Prix dês Maisons de la Press.

Publicado quase dois séculos depois da publicação do relato da viagem de Chateaubriand ao Oriente, o qual argumentava que as Cruzadas não se deram como uma agressão, mas sim, como uma resposta cristã à altura da chegada de Omar à Europa, Maalouf trata da visão oposta, trazendo os relatos islâmicos das invasões francas. Enquanto o Cheteaubriand defendia que o movimento cruzadista não consistia apenas em libertar o Santo Sepulcro, mas em definir quem venceria sobre a Terra, colocando desta forma o Islã como um culto inimigo da civilização e sistematicamente favorável à ignorância, ao despotismo e à escravidão diametralmente oposta à civilização ocidental

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Angela Zatta é acadêmica da 5ª fase da graduação em História pela Universidade do Oeste de Santa Catarina – Unoesc campus Videira

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2 – a qual o autor pertence- cujo culto propiciou o renascimento da antiguidade sábia e a abolição da escravidão servil, o autor do século XX tem como objetivo trazer uma nova visão à sociedade européia, que não é mais aquela imagem “orientalizada” do Oriental e do movimento cruzadista.

Iniciando com um prólogo emocionante, o livro relata o luto e a revolta dos muçulmanos, evidenciados na figura do venerável cádi Abu-Saad al-Harawi, contra a carnificina promovida pelos franj a caminho e na tomada de Jerusalém. Aqui pode-se estabelecer uma relação com Walter Benjamin, ao defender que “nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios”2. Segundo Maalouf, a ação do cádi de Damasco marca a tomada de consciência da parte dos crentes com relação às invasões francas e, consequentemente, o início da reação, mesmo que os contemporâneos de al-Harawi não tenham uma noção tão clara da ameaça vindoura como ele. “Foi preciso esperar cerca de meio século antes que o Oriente árabe se mobilize perante o invasor, e que a chamada ao jihad lançada pelo cádi de Damasco à tenda do califa seja celebrada como primeiro ato solene de resistência.”3

A primeira parte do relato, denominada “A Invasão (1096-1100)”, trata da chegada das primeiras tropas armadas aos territórios islâmicos. Aqui é possível conferir o testemunho da empresa fracassada de Pedro, o Ermitão, e da primeira cruzada oficial que retira Nicéia das mãos do sultão seljúcida Kilij Arslan e chega às portas da mais importante das cidades Sírias, Antioquia, que capitula após um dramático cerco de mais de cem dias. Ao longo do caminho de Jerusalém, várias outras cidades enfrentam a barbárie dos franj, como é o caso de Maara. Fica evidente, porém, a fragmentação política dentro do Islã.

A segunda parte, “A Ocupação (1100-1128)”, retrata a consolidação dos domínios dos franj com o Reino de Jerusalém, o Condado de Edessa e o Principado de Antioquia, bem como a preparação para a criação de um novo estado franco; o Condado de Trípoli. Os muçulmanos percebem que ninguém, nem mesmo o imperador bizantino Aléxis

2

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e historia da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p.232.

3

MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes.Tradução Editora Brasiliense S.A. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p.14.

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3 Comneno4, é capaz de deter o avanço dos franj. Após ater-se na séria ameaça dos Assassinos para a ordem interna do Islã e união dos crentes em função da jihad, Maalouf apresenta algumas vitórias de destaque para o Islã, lideradas pela figura do emir turco Ilghazi.

Em um terceiro momento, denominado “A Resposta (1128-1146)” vemos surgir respostas efetivas à ocupação, iniciadas com Buri e sequenciadas por Zinki, senhor de Alepo e Mossul. Esta parte da narrativa apresenta ao leitor uma nova geração de franj, que não se assemelham com os primeiros. Estes novos franj, em geral, não conheceram o Ocidente, pensam e agem como orientais5. As divisões começam a ficar mais intensas entre os franj.

Na quarta parte, “A Vitória (1146-1187)”, é possível analisar duas das principais figuras islâmicas de todo o período cruzadista: Nureddin e Saladino. O primeiro cujas virtudes e justiça assemelham-se aos primeiros califas6, tem sua expansão freada pela ameaça dos rum, entretanto consegue barrar as investidas dos franj. Aqui percebemos a mudança do eixo dos conflitos, que saem da Síria para travar uma corrida em direção ao Egito, a mais rica e frutífera colônia oriental. No país do Nilo, Saladino ascende ao cargo de vizir e, com o apoio de seu mestre Nureddin, derruba a dinastia Fatímida do poder. As relações entre Saladino e seu mestre se tornam cada vez mais tensas, mas com a morte do segundo torna-se possível que o senhor do Cairo se torne sultão. Saladino consegue recuperar Jerusalém sem batalhas.

A quinta parte, “Os Sursis (1187-1244)”, mostra claramente que os interesses dos franj já não estão mais ligados à religião. Vemos surgir no cenário cruzadista personagens como Frederico Barbaroxa, Filipe Augusto da França e Ricardo Coração de Leão. Antes da morte de Saladino, e mesmo depois quando seu irmão al-Adel está no poder, crentes e franjs conhecem períodos de trégua. Apesar disso, recuperam a fortaleza de Acre e Jerusalém.

4 “O rei dos rum é mais muçulmano que o príncipe dos crentes” apud MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes.Tradução Editora Brasiliense S.A. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p.86. 5 MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes.Tradução Editora Brasiliense S.A. São Paulo:

Editora Brasiliense, 1988, p.112. 6

MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes.Tradução Editora Brasiliense S.A. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p.137.

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4 Já a sexta parte do livro, denominada “A Expulsão (1244-1291)”, retrata o avanço mongol e o enfraquecimento do poder dos herdeiros de Saladino. A impressão deixada pela invasão mongol foi, para a época, uma espécie de guerra santa contra o Islã capaz de corresponder simetricamente às invasões francas. Um golpe de estado no Cairo coloca os antigos escravos mamelucos no poder. Autoritários e sem escrúpulos, os novos lideres do Islã expulsam mongóis e francos de seus territórios para sempre. Encerrando a narrativa com um Epílogo bastante crítico, Maalouf vê o movimento das Cruzadas como um – senão o - dos responsáveis pela hostilidade entre Oriente e Ocidente, em que os povos árabes vêem os ocidentais como inimigos naturais.

Analisando a obra, vemos que Maalouf cai na armadilha das representações ao aglutinar povos de diferentes etnias em dois conceitos “árabes” e “franj”. Ao identificar dois personagens antagônicos, o autor faz uso do recurso linguístico de alteridade, impelindo o leitor a estabelecer a identificação de um grupo “nós” – civilizado e árabe – em comparação ao grupo “eles” – bárbaro e franj. Os conceitos citados não possuem, como afirma Said, “estabilidade ontológica”, pois “ambos são constituídos de esforço humano – parte afirmação, parte identificação do outro”7.

Embora seja possível identificar consequencias advindas das Cruzadas na cultura de todos os povos envolvidos, sejam eles árabes, turcos, curdos, mongóis, egípcios, francos, germânicos, venezianos, normandos, bizantinos, é preciso considerar que as relações de dominação – em que há vencedores e vencidos – implicam em momentos de barbárie. “Assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”8. O movimento cruzadista proporcionou o florescimento de uma “cultura orientalista” nos reinos ocidentais, com a disseminação do que se esperava dos padrões de vida tipicamente orientais e o interesse pelas línguas árabe e persa. As Cruzadas, em todas as suas três frentes - Drang Nach Östen, Reconquista da Península Ibérica e Cruzadas do Oriente – como uma ação de união da cristandade latina contra um inimigo comum (o bárbaro, o islâmico) de forma poderosa e totalitária entravou, em certa medida, a formação de pátrias nacionais sólidas9. Ao mesmo tempo,

7

SAID, Edward W. Orientalismo: oriente como invenção do ocidente. Cia das Letras. São Paulo,2007, p.13.

8

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e historia da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p.225.

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5 trouxe relativa unidade dos povos islâmicos do Oriente Próximo, seguindo o mesmo conceito de combate ao inimigo – desta vez franco - nas figuras de Nureddin, Saladino, e dos sultões mamelucos, seguidos pelos otomanos que representam o ultimo suspiro de unidade conhecido pelo Islã até os dias atuais. Tratar as Cruzadas do ponto de vista islâmico é, portanto, lutar contra o conformismo e o esquecimento, buscando a compreensão dos fatos sob uma perspectiva mais ampla, na tentativa de cessar as manipulações da historiografia.

Referencias Bibliograficas:

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p.225.

FEBVRE, Lucien. A Europa – Gênese de uma civilização. Bauru: Editora Edusc, 2004, p.33.

MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes. Tradução Editora Brasiliense S.A. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. 253 p.

SAID, Edward W. Orientalismo: oriente como invenção do ocidente. Cia das Letras. São Paulo,2007, p.13.

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