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QUANTIFICADORES E NUMERAIS NA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM: O PAPEL DA LÍNGUA NO DESENVOLVIMENTO DE HABILIDADES NUMÉRICAS

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QUANTIFICADORES E NUMERAIS NA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM: O PAPEL DA LÍNGUA NO DESENVOLVIMENTO DE HABILIDADES NUMÉRICAS

Mercedes Marcilese - LAPAL/PUC-Rio Letícia Maria Sicuro Corrêa - LAPAL/ PUC-Rio Marina R. A. Augusto - UERJ/ LAPAL/ PUC-Rio Introdução

A relação entre os sistemas cognitivos relacionados à linguagem e o próprio sistema da língua tem ganhado uma posição teórica de relevância no framework introduzido pelo Programa Minimalista (Chomsky, 1995, 2007), fato que se traduz na abertura de novos espaços de pesquisa. Por outro lado, cada vez mais se tem argumentado que a compreensão da faculdade da linguagem requer uma cooperação interdisciplinar substancial (Hauser, Chomsky & Fitch, 2002, 2005). Recentemente, a investigação sobre o papel instrumental da língua no desenvolvimento de capacidades cognitivas específicas da espécie humana tem voltado a fazer parte da agenda da Psicologia Cognitiva.

De forma geral, a literatura em Psicologia Cognitiva fornece um considerável número de resultados compatíveis com a tese de que o sistema cognitivo da língua se encontra – de algum modo que ainda precisa ser bem definido – em estreita relação com outros domínios da cognição como, por exemplo, aqueles vinculados ao desenvolvimento de habilidades numéricas (Baldo et ali, 2005; Bloom, 2004; Delazer et ali, 1999; Feigenson et ali, 2004; Gordon, 2004; Hermer-Vazquez et ali, 2004; Spelke, 2000, 2003; Spelke & Tsivkin, 2001a, dentre outros).

Um conjunto de trabalhos (Spelke, 2000; Feigenson et al, 2004, dentre outros) sustenta a hipótese de que o conceito de ‘número natural’ é fruto da combinação de representações provenientes de dois sistemas nucleares de conhecimento: um sistema de representação de objetos como individualidades persistentes e um sistema que representa magnitudes numéricas aproximadas. Nessa perspectiva, a construção do conceito de número natural por parte da criança resulta da combinação desses dois tipos de representações. A linguagem natural poderia ser o suporte da combinação entre ambos os sistemas. Spelke argumenta que os seres humanos e outros animais são dotados de sistemas nucleares que se desenvolvem muito cedo e são específicos por domínio e relativamente encapsulados. Assume-se ainda que a língua irá permitir que se estabeleçam relações entre esses sistemas e, essas mesmas relações, resultariam nas habilidades cognitivas distintivas para a espécie humana. De acordo com essa perspectiva, a linguagem é um sistema de representação de domínio geral que contém termos para se referir a objetos e relações cujas representações primárias são construídas por vários sistemas modulares. Diante disso, o fato de a linguagem poder fornecer representações específicas para quantidades exatas, como por meio de numerais, seria crucial no desenvolvimento das habilidades numéricas mais complexas. No entanto, a possibilidade de numerais receberem interpretações exatas é objeto de controvérsia no âmbito da Semântica.

O presente artigo tem como objetivo rever brevemente esse debate e investigar de que modo crianças, a partir dos 2 anos de idade, na aquisição do português, se comportam frente a diversas formas de expressar numerosidade disponíveis na língua. Resultados experimentais preliminares relativos à interpretação de numerais e de quantificadores são reportados. O objetivo específico do experimento conduzido foi verificar se crianças na faixa etária em questão atribuem interpretação exata a numerais, distinguindo-os de quantificadores.

Este trabalho está organizado da seguinte maneira: na próxima seção discutimos brevemente a questão do papel da língua no desenvolvimento da cognição numérica e apresentamos as principais perspectivas no âmbito da Semântica, no que tange à interpretação de numerais e quantificadores. Na seção 3, apresenta-se um experimento de compreensão, conduzido com crianças

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de 2 a 3 anos de idade cujos resultados apontam para uma distinção entre quantificadores e numerais. Por último, os principais pontos da discussão quanto à interpretação de numerais são retomados e apresentam-se as considerações finais.

1. A Língua no Desenvolvimento de Habilidades Numéricas: numerais e quantificadores A capacidade de representar numerosidade relativa a quantidades pequenas e contrastar numerosidades aproximadas é encontrada tanto em crianças a partir dos 5-6 meses de idade, quanto em animais adultos e se desenvolve nos humanos antes da emergência da fala e da contagem simbólica. Esse “senso numérico” (Dehaene, 1997), isto é, o senso aproximado dos valores numéricos e suas relações diz respeito à nossa capacidade de reconhecer a diferença entre um único objeto e conjuntos formados por dois ou três objetos. A representação da numerosidade exata e a capacidade de lidar com operações aritméticas dependem em parte do nosso senso numérico.

Nas culturas nas quais as habilidades de contagem são manifestas, a linguagem é utilizada para fazer referência a numerosidade e operações matemáticas com números1. Há evidências de que a compreensão da rotina de contagem se desenvolve em estágios (Wynn, 1990). Primeiro, a criança compreende que um se refere a um objeto e que os outros nomes para números se aplicam a conjuntos maiores. Nessa etapa “um” se refere a “um indivíduo” e os restantes números fazem referência a “alguns indivíduos”. No experimento de Wynn (1990), quando se apresenta à criança uma figura com um único peixe e outra com três e se solicita a ela que mostre um peixe, ela aponta corretamente para a figura individual. A criança também já compreende que todos os outros nomes para números se aplicam a conjuntos com mais de um objeto. Ela nunca escolhe uma imagem com um único objeto quando se solicita que mostre dois ou seis. Por outro lado, nessa etapa a criança possui um entendimento limitado do sentido das palavras na rotina de contagem. Quando apresentadas duas figuras (por exemplo, uma com dois e outra com três peixes) e se solicita a ela que aponte para os dois peixes, a criança responde aleatoriamente. A criança não compreende ainda o escopo de aplicabilidade de palavras específicas para números que variam quando a numerosidade é alterada. Nesse momento “um” parece se referir a “um indivíduo” enquanto que os restantes números fariam referência a “alguns indivíduos” (“mais do que um”). Em seguida, as crianças passam a compreender o significado de “dois”, respondendo consistentemente quando solicitadas a entregar dois objetos, e produzindo arranjos com mais elementos quando interrogadas sobre números maiores. Posteriormente, as crianças mostram domínio da palavra “três”. Por fim, elas exibem a compreensão de todas as palavras na rotina de contagem.

O senso numérico é uma habilidade que os seres humanos compartilham com várias outras espécies e inclusive bebês muito novos já demonstram possuí-lo. Enquanto o senso numérico é a capacidade de distinguir e comparar quantidades pequenas e, portanto, não demanda um conceito de número propriamente dito, a capacidade numérica envolve lidar com os números como entidades abstratas e a capacidade de contar. Tanto o conceito de número natural quanto a contagem são destrezas a serem aprendidas, diferentemente do senso de número com o qual nascemos. Há evidências de que alguns primatas são capazes de aprender a contar até dez após treinamento, mas pelo que se sabe, apenas os seres humanos conseguem continuar a seqüência de contagem indefinidamente e têm a habilidade de enumerar conjuntos com quantidades arbitrárias de elementos (Devlin, 2003).

Feingenson et al (2004a e 2004b) consideram que o conceito de número nos seres humanos se baseia em informações provenientes de dois sistemas de representação: um sistema que representa magnitudes numéricas aproximadas e outro encarregado das representações precisas de indivíduos

1 Recentemente tem sido reportada a existência de culturas que parecem não fazer uso da contagem e cujas línguas aparentemente não contêm termos específicos para quantidade (Everett, 2005, 2007; Frank et al 2008). Não obstante, considera-se que nesses casos capacidade inata de desenvolver uma cognição numérica estaria presente, ainda que latente.

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distintos. O primeiro desses sistemas representaria números maiores de objetos ou eventos como conjuntos com valores cardinais que permitiriam a comparação numérica entre conjuntos. Já o segundo sistema representaria números menores, relativos a indivíduos distintos e exatos e daria conta das operações de adição ou remoção de um indivíduo do conjunto. Crianças pequenas são capazes de representar tanto indivíduos quanto conjuntos, mas falham na combinação de ambas as representações num “conjunto de indivíduos” (Spelke, 2003). Esse conceito (conjunto de indivíduos) é central na contagem, na aritmética simples e no que diz respeito a todos os conceitos ligados ao número natural. A hipótese defendida é que a linguagem poderia ser o suporte da combinação entre ambos os sistemas. Segundo Spelke (2000, 2003; Spelke & Tsivkin, 2001b; dentre outros), a língua permitiria o estabelecimento de relações entre representações dos diferentes sistemas nucleares, possibilitando a construção de representações ainda mais ricas e complexas. Em particular, o fato de a língua fornecer um repertório de termos vinculados a representações de quantidades exatas (os numerais) seria fundamental para a integração de informações provenientes dos dois sistemas de representação da numerosidade.

No entanto, a idéia de que numerais estejam necessariamente vinculados à representação de quantidades exatas é objeto de debate no âmbito da Semântica. A semântica dos numerais2 é um tópico de grande relevância para a compreensão de pelo menos duas questões principais: (i) a natureza e o desenvolvimento do conceito de número e (ii) a distinção entre significado e interpretação. No que tange ao significado dos numerais, duas abordagens teóricas se destacam. De um lado, propostas neo-griceanas que argumentam que os números, assim como termos escalares como algum ou todo, apresentam baixa delimitação semântica (lower-bounded semantics). Sob essa perspectiva dois significaria “pelo menos dois e possivelmente mais” e receberia interpretações exatas apenas via regra pragmática de implicaturas escalares. Do outro lado, um framework que assume que numerais possuem uma semântica exata (dois significa exatamente dois, nem mais nem menos) e que as aparentes interpretações em que o limite semântico é fraco ocorrem por restrições contextuais ou por referência a um sub-conjunto dentro de um dado arranjo de elementos.

Embora a interpretação dos numerais freqüentemente coincida com a representação da numerosidade exata dos conjuntos, há ocasiões em que os numerais podem vir a ser utilizados em contextos nos quais a quantidade total de itens é maior. Por exemplo, na sentença (1) dois significa exatamente dois, enquanto que em (2) o falante B parece estar aceitando uma interpretação de dois como equivalente a pelo menos dois e possivelmente mais, uma vez que um subconjunto de dois elementos está contido no conjunto de três elementos:

(1) Uma bicicleta tem duas rodas e um carro tem quatro. (2) A: Você tem dois filhos?

B: Sim, de fato tenho três.

A existência dessas duas possíveis leituras se coloca como um desafio na hora de dar conta da semântica dos numerais. Vários teóricos, partindo de uma perspectiva neo-griceana, têm argumentado que sentenças como (2) revelam uma semântica lexical de limites fracos e que a

2 De forma geral, os numerais são palavras ou expressões que exprimem número, número de ordem, múltiplo ou fração. É possível classificá-los em cardinais, ordinais, multiplicativos e fracionários. Na literatura específica sobre cognição numérica, assim como na literatura de cunho lingüístico sobre a questão, costuma-se utilizar o termo palavras para números (number words) para designar os numerais comumente chamados de cardinais. Gelman & Gallistel (1978), por sua vez, estabeleceram uma distinção entre numerlogs (palavras de contagem convencionais) e numerons (rótulos que seguem os princípios da contagem, mas que não precisam ser verbais ou sequer perceptíveis no comportamento do sujeito). Neste trabalho utilizaremos indistintamente os termos “palavras para números” e “numerais” para fazer referência às palavras de contagem convencional (um, dois, três, quatro, cinco...).

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interpretação exata só surge por meio de inferências pragmáticas, considerando esse fenômeno como sendo um tipo de implicatura escalar (Horn, 1972 & 1989; Gadzar, 1979; Levinson, 1983)3.

Implicaturas escalares são um tipo de implicatura conversacional generalizada baseada em quantidade4. A máxima instrumental na geração desse tipo de implicaturas é a primeira máxima de quantidade de Grice:

(3) Faça a sua contribuição tão informativa quanto requerido (levando em consideração os propósitos do intercâmbio em curso).

Seguindo a proposta de Grice, essa vertente teórica entende que termos escalares fracos, como algo e um pouco, não teriam um limite lexicalmente codificado e, por conseguinte, seriam semanticamente compatíveis com termos fortes como todo. Termos escalares receberiam interpretações bem delimitadas semanticamente via processo de inferência pragmática. Esse tipo de inferência é motivado pela expectativa implícita do ouvinte de que o falante esteja fazendo a sua contribuição à fala respeitando o princípio de cooperação e, mais especificamente, a máxima de quantidade. Na perspectiva neo-griceana, é possível estabelecer um paralelo entre termos escalares e as palavras para números. Assim, numerais são considerados simplesmente como um outro conjunto de termos escalares (Horn, 1972, 1989; dentre outros).

Um tratamento alternativo da análise das implicaturas, ainda numa ótica neo-griceana, é proposto por Levinson (2000). O autor expande a noção de implicatura conversacional generalizada de Grice (1975)5, argumentando que existem interpretações preferenciais, ou default. Assim como Grice, Levinson leva em consideração a capacidade humana para gerar inferências, mas afirma que certos comportamentos seriam derivados de inferências default. Assim, ao invés de trabalhar com as máximas griceanas, Levinson lança a hipótese da existência de heurísticas inferenciais. Essas heurísticas proveriam interpretações preferenciais a despeito das intenções dos falantes em contextos particulares.

Outros autores como Koening (1991) e Breheny (2004), por sua vez, têm argumentado a favor da idéia de que os numerais possuem uma semântica exata, sendo interpretações lower-bounded obtidas apenas via composição semântica ou interpretação pragmática.

Em síntese, ambas as perspectivas – neo-griceana e da semântica exata – buscam explicar o fato de que a interpretação seja predominantemente exata assim como a existência de ocasionais ocorrências de interpretações aproximadas, ainda que a controvérsia permaneça. Nesse sentido, o estudo da interpretação dos numerais por parte de crianças, que ainda não dominam completamente

3 Existem diferenças entre as versões pragmática (Horn, 1989) e default da perspectiva neo-griceana para as implicaturas escalares (Levinson, 2000) que fogem ao escopo deste trabalho.

4 Grice distingue três tipos de implicaturas: convencionais, conversacionais particularizadas e conversacionais generalizadas. As primeiras formam parte do conteúdo de certas expressões e não requerem um contexto específico (Ex. Ana conseguiu passar no exame, na qual a idéia de esforço ou dificuldade fica implícita na expressão conseguir + infinitivo). As implicaturas conversacionais particularizadas dependem de um contexto específico e, ao contrário das implicaturas convencionais, podem ser canceladas ou anuladas. Já as implicaturas conversacionais generalizadas também podem ser anuladas, mas não dependem de um contexto particular (Ex. Carla vai se encontrar com um rapaz hoje, em que o indefinido um implica que esse homem não é o namorado nem um membro da família) (Reyes, 2000).

5 As implicaturas conversacionais generalizadas são parte de um outro nível de análise que os neo-griceanos consideram necessário em uma teoria do significado, estando este entre o significado semântico do enunciado (codificado e mais abstrato) e o significado pragmático do falante, ou significado do enunciado. Esse nível é chamado de enunciado-tipo (type) e se refere a questões de interpretações preferenciais trazidas pelas estruturas dos enunciados, e não em razão de contextos particulares. Semanticamente, esse nível é caracterizado por ser uma parte codificada (interpretações default de alguns elementos lingüísticos) e, pragmaticamente, compartilha com as implicaturas conversacionais particularizadas a característica da cancelabilidade. As implicaturas são canceláveis quando podem ser eliminadas sem que haja contradição.

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a rotina de contagem, tem sido apontado como uma fonte particularmente informativa, tendo em vista que: (i) crianças apresentam um desempenho caracteristicamente fraco no que diz respeito ao cálculo de implicaturas escalares (assim como das implicaturas em geral); (ii) considera-se que a partir do estudo da aquisição dos números/numerais é possível examinar de que forma a interpretação se vê afetada pelo aprendizado do seguinte item na seqüência de contagem; (iii) a investigação com crianças pequenas pode ser informativa a respeito da interpretação das palavras para números antes de qualquer contato com a matemática formal (Huang, Snedeker & Spelke, 2004).

Hurewitz et al (2006) reportam resultados compatíveis com uma preferência por interpretações exatas tanto nos adultos quanto em crianças a partir dos 3 anos de idade. Esse mesmo comportamento não foi observado frente a quantificadores como algum ou todos. Para os autores, os dados indicam que as crianças passam por processos de aprendizado e avaliação diferenciados para numerais e quantificadores. Huang, Snedeker & Spelke (2004), por sua vez, conduziram uma bateria de experimentos com adultos e crianças de 2 e 3 anos de idade com o intuito de superar o problema da distinção entre interpretações exatas e cálculo de implicaturas. Os autores criaram um paradigma experimental alternativo visando a discriminar aspectos semânticos e pragmáticos da interpretação. Os resultados relatados demonstram que quando as implicaturas escalares são canceladas durante a tarefa experimental, tanto adultos quanto crianças fornecem consistentemente interpretações exatas para as palavras para números. Segundo os autores, esses dados constituem a primeira evidência não-ambígua da semântica exata das palavras para número.

Neste estudo, essa questão é abordada por meio de um experimento que visa a explorar o tipo de interpretação semântica que crianças da faixa de 2-3 anos de idade (2;7 a 3;2) atribuem a numerais (1,2,3 e 4) e a quantificadores (um/uns/alguns/todos). Nesse teste foram exploradas ainda duas particularidades no que tange aos numerais e quantificadores que distinguem o português do inglês – língua em que tradicionalmente são conduzidos os experimentos informados na literatura. No português, assim como também em outras línguas românicas como o espanhol, o D(eterminante) indefinido masculino singular “um” e o numeral “um” são homófonos. O português conta ainda com o plural do indefinido“uns”que não existe no inglês. Esse quantificador partilha as mesmas características que “alguns”, de modo que no português encontramos duas formas (uns e alguns) que equivalem a uma única forma no inglês (some). Ao explorar essas peculiaridades da língua, pretende-se verificar em que medida a criança diferencia um indefinido de um numeral, em função do contexto que favoreça uma ou outra interpretação, e em que medida as formas uns e alguns apresentariam demandas diferenciadas para a criança.

2. A Interpretação de Numerais e Quantificadores na Aquisição do PB

O experimento aqui reportado se baseia no paradigma clássico Give me a number, formulado por Wynn (1992). No nosso caso, essa tarefa foi utilizada para avaliar a compreensão não só dos numerais, como foi feito originalmente por Wynn, mas também dos quantificadores.

Buscou-se verificar se crianças, na faixa etária pesquisada:

(i) mostram um comportamento semelhante ao reportado por Wynn, qual seja, um domínio progressivo da rotina de contagem, sendo que a contagem de números maiores pressupõe a habilidade de contagem daqueles que os antecedem;

(ii) tratam de forma diferenciada quantificadores e numerais, atribuindo a esses últimos uma leitura +exata.

Para isso, foi utilizada uma tarefa de manipulação de objetos. As variáveis independentes consideradas individualmente foram:

(i) avaliador de quantidade (quantificadores/numerais); (ii) quantificador (um, uns, alguns e todos);

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(iv) categoria gramatical de um avaliador de forma ambígua (um), em função do contexto em que é apresentado (um numeral/um quantificador);

(v) avaliador indefinido plural (uns/alguns).

Em todas as análises conduzidas, a variável dependente foi o número de respostas compatíveis com a instrução fornecida pelo experimentador (respostas-alvo).

2.1. Metodologia Participantes

Participaram 11 crianças, das quais 6 meninas na faixa de 2-3 anos de idade (2;7 a 3;2). O experimento foi conduzido integralmente em uma creche da cidade do Rio de Janeiro. Todas as crianças eram monolíngües, de classe social média e sem queixas de linguagem.

Materiais

Foram utilizados três conjuntos de seis objetos de brinquedo (biscoitos, abacaxis e pirulitos) e três caixas de madeira. Além disso, na fase de familiarização, foi utilizada uma caixa de tamanho maior e cinco objetos de pano também “comestíveis” (banana, cenoura, tomate, pirulito e bala). Foi utilizado ainda um boneco, que era apresentado como o autor da “bagunça” nas caixas do experimentador.

Decidimos colocar seis objetos em cada conjunto para testar melhor a compreensão do numeral cinco. Se a criança efetivamente já consegue contar até cinco deverá deixar um elemento de fora ao ser solicitada para manipular cinco objetos. No entanto, se a criança ainda não possui uma idéia clara do significado de cinco poderá responder não deixando nenhum dos objetos do conjunto de fora. Os resultados mostraram que nenhuma das crianças testadas interpretou corretamente o numeral cinco, motivo pelo qual esse item foi desconsiderado nas análises realizadas.

Apenas estímulos com nomes masculinos foram utilizados. Os estímulos experimentais (três por condição) foram distribuídos de forma aleatorizada em três listas divididas, por sua vez, em três blocos de quatro (no caso dos quantificadores) e cinco estímulos (no caso dos numerais). Todos os estímulos foram contrabalançados.

Figura 1: Materiais utilizados no teste

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O teste foi apresentado à criança como uma brincadeira na qual ela devia ajudar o experimentador a arrumar a “bagunça” feita por um boneco de aspecto estranho. Para isso, a criança devia mexer no conteúdo de um conjunto de caixas seguindo as instruções do experimentador.

Em primeiro lugar, foi realizada uma fase da familiarização durante a qual a criança entrou em contato com o experimentador e com os objetos utilizados durante o teste, podendo manipulá-los à vontade. Nessa fase, foi utilizada uma caixa de tamanho maior e objetos de pano com os quais foi ensaiada a dinâmica que seria utilizada posteriormente no teste: tirar objetos da caixa e entregá-los ao experimentador e colocar objetos dentro da caixa. Além disso, durante a familiarização, as crianças também tiveram contato com as caixas que seriam utilizadas durante a fase de teste, reconhecendo os objetos nelas contidos.

Uma vez que a interação entre o participante e o experimentador atingia um grau satisfatório, começava o experimento propriamente dito, que foi dividido em duas partes. Na primeira, apenas estímulos contendo quantificadores foram utilizados. Na segunda parte, foram avaliados somente os numerais. Para dividir as duas fases, depois de concluída a primeira etapa, o experimentador fazia algumas perguntas envolvendo números (Exemplo: a idade da criança) e anunciava que seria feita “uma brincadeira de contar”. O procedimento e os objetos utilizados foram idênticos em ambas as etapas experimentais. Um conjunto de objetos era entregue à criança junto com a seguinte instrução: Bota X biscoitos na caixa ou Dá para mim X biscoitos da caixa.

Cada sessão experimental durou em média 12 minutos. 2.2. Resultados e Discussão

Os dados foram submetidos a cinco análises, em função das variáveis independentes consideradas. Na análise correspondente à primeira variável definida (avaliador de quantidade), um teste t(student) foi conduzido e revelou que não houve diferença estatisticamente significativa (t= 1,07 p= 0,31) entre o número de respostas-alvo para numerais e quantificadores (médias: quantificadores 3,63 e numerais 3,27). 0 2 4 6 8

Média de respostas-alvo para quantificadores e numerais (max score = 8)

quantificadores numerais

Para as segunda e terceira análises, foram conduzidas duas análises da variância tendo quantificador e numeral como fatores intra-sujeitos, respectivamente. Os resultados revelam um efeito altamente significativo de quantificador (F(1,10) = 23 p <.00001) com maior número de respostas esperadas para todos e o menor número para uns, assim como também um efeito de numeral (F(1,10) = 17,79 p <.00001), com maior número de respostas exatas para um e dois. As médias correspondentes foram as seguintes: quantificadores 1,18 para um; 1,9 todos; 0;18 uns e 0,36 alguns; numerais: 1,36 para um; 1 dois; 0,27 três e 0,18 quatro.

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0 0,5 1 1,5 2

Média de respostas-alvo para quantificadores (max score = 2)

um todos uns alguns

0 0,5 1 1,5 2

Média de respostas-alvo para numerais (max score = 2)

um dois três quatro

Na quarta análise, relativa à variável categoria gramatical de um avaliador de forma ambígua (um), um teste t(student) foi conduzido, obtendo-se um efeito significativo (t = 2,88, p = .01) com maior número de respostas correspondentes à interpretação de quantidade exata para o elemento “ambíguo” um na condição numeral (médias: 1,19 para um-quantificador e 1,64 para um-numeral).

0 0,5 1 1,5 2

Média de respostas-alvo para um em função do contexto (max score =2)

um-quantificador um-numeral

A quinta e última análise, correspondente à variável avaliador indefinido plural (uns/alguns), revelou que, apesar de um maior número de respostas-alvo ter sido registrado para o indefinido alguns (médias de 0,18 para uns e 0,36 para alguns), essa diferença não se mostrou estatisticamente significativa (t = 0,8, p = .44). 0 0,1 0,2 0,3 0,4

Média de respostas-alvo para o indefinido plural (max score = 2)

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Os resultados, como um todo, mostram-se bastante compatíveis com as fases estipuladas por Wynn, no que diz respeito aos numerais, e revelam que a interpretação de quantificadores apresenta demanda diferenciada, possivelmente pelo fato de envolverem uma escala na qual apenas os valores terminais são claramente definidos, apresentando os elementos intermediários valores relativos. A interpretação preferencialmente exata para um como numeral parece compatível com a tese oposta à neo-griceana, sugerindo que há um tratamento diferenciado para quantificadores e numerais, sendo a leitura [+exata] privilegiada para os últimos. Novos testes visando obter resultados mais conclusivos se encontram em andamento.

Conclusões

Os numerais parecem diferir de outras formas de codificação de quantidade, como por exemplo, os quantificadores, em vários aspectos dentre os quais: a precisão/exatidão dessa codificação, a sistematicidade do sistema numérico, a sua organização hierárquica, o fato de se tratar de elementos de uma progressão infinita e de serem não-referenciais. Todavia, há quem afirme que numerais e quantificadores podem receber o mesmo tipo de leitura aproximada. No âmbito desta pesquisa essa questão tem sido abordada experimentalmente com o intuito de determinar se há ou não diferenças na interpretação de numerais e quantificadores por parte de crianças que ainda não passaram por ensino formal. Ainda que os presentes resultados sejam preliminares e outros procedimentos experimentais sejam necessários para que cheguemos a uma posição conclusiva, estes estão em concordância com a literatura em Psicologia Cognitiva que aponta para a necessidade de se atribuir à mente humana uma concepção de numerosidade exata, a qual, na língua, se realiza caracteristicamente pelos numerais.

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Referências

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