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A geração estudantil da transição democrática: entre memória e esquecimento GISLENE EDWIGES DE LACERDA 1

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A geração estudantil da transição democrática: entre memória e esquecimento

GISLENE EDWIGES DE LACERDA1

Resumo: O período da transição democrática brasileira (1974- 1985) foi marcado atuação de

diferentes movimentos sociais, entre eles o movimento estudantil. Diferentemente da geração anterior, a geração de militantes do Movimento Estudantil que atuou entre meados dos anos 1970 e meados dos anos 1980, pautou-se na luta democrática como forma de resistência à Ditadura Militar brasileira e obteve significativas vitórias, sendo responsável pelo alargamento dos limites do projeto de transição "lenta, gradual e segura" apresentado pelo general Geisel. Contudo, a transição democrática ainda se constitui como um campo em disputa na memória sobre a Ditadura. As narrativas estudantis da geração da transição demandam pelo seu reconhecimento no tempo presente, demonstrando um ofuscamento da importância política dos estudantes neste contexto. O esquecimento desta geração é reflexo do modelo de transição pactuada vivenciado no Brasil e do processo de construção da memória sobre a Ditadura, marcado pelas políticas de memória do Estado, por ações de memória do próprio movimento e por produções memorialísticas sobre o movimento estudantil da transição em curso desde os anos 1970.

Palavras-chave: Movimento estudantil, transição democrática, ditadura, memória, União

Nacional dos Estudantes (UNE), geração da transição democrática.

A Ditadura Militar no Brasil iniciou-se em 1964 e manteve-se até 1985. Sua história foi marcada pela dicotomia entre repressão e resistência, no embate entre repressão e resistência. Ao longo de sua história é possível identificar duas gerações2 no movimento estudantil: a geração de 1968, que culmina na luta armada, e a geração da transição que participa da abertura e da redemocratização, esta foco deste artigo3. São gerações com propostas diferentes, expressas em um ethos diferente e também com memórias distintas. Essas duas gerações, de certa forma, disputam o protagonismo da luta contra a ditadura militar, a memória de liderança no movimento estudantil e também a identidade do movimento.

1 Doutora em História Social – PPGHIS / Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Departamento

de Educação / Curso de História da Universidade Nove de Julho.

2 O conceito de geração a partir de Jean-François Sirinelli baseia-se na compreensão de um processo de

transmissão cultural entre as gerações na definição de sua identidade, seja como seguidor ou como forma de ruptura com uma tendência. Sirinelli afirma que uma geração possui, portanto, uma identidade ao reconhecer sua origem ligada a um mesmo elemento fundador que concede uma experiência singular a um estrato da sociedade. A definição de geração também se baseia na mudança e ruptura trazida por um grupo que vai além da compreensão de sua idade. Sociologicamente as gerações não surgem do ritmo temporal estabelecido por uma sucessão de gerações biológicas. Elas cessam quando novos e grandes eventos históricos ou, mais frequentemente, quando lentos e não catastróficos processos econômicos, políticos e de natureza cultural, tornam o sistema anterior e as experiências sociais a ela relacionadas sem significado.

3 Este artigo é desdobramento da tese de doutorado “O movimento estudantil e a transição democrática brasileira: memórias de uma geração esquecida”, defendida pela autora em 2015, no PPGHIS-UFRJ.

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Além da distinção entre estas gerações quanto a posturas e táticas políticas utilizadas na luta contra a ditadura, a autora Maria Paula Nascimento Araujo destaca a diferença na forma de construção do depoimento por parte de cada geração. Para a autora “os depoimentos da primeira geração são organizados em torno de um ‘trauma’ (ou uma ‘situação-limite’), como prisões, a tortura, o exílio, a clandestinidade, o rompimento de laços familiares” (ARAUJO, 2006, p. 99).

Já os depoimentos da segunda geração analisados pela autora Maria Paula Araujo se “constituem em torno de uma experiência vivida como ‘vitoriosa’” (ARAUJO, 2006, p.101), fato que foi possível compreender a partir das entrevistas recolhidas para esta pesquisa4. Em geral, os depoimentos dos ex-militantes estudantis indicam alguns marcos da luta estudantil durante a transição, em especial, fazem referência às lutas iniciadas na Universidade de São Paulo (USP) como a missa de sétimo dia de Alexandre Vannucchi Leme, a passeata até o Largo de Pinheiros, a passeata no Viaduto do Chá, o III Encontro Nacional dos Estudantes (ENE) em Belo Horizonte, a invasão da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e o Congresso de Salvador. Para as lutas mais gerais, referem-se à Campanha da Anistia como experiência política fundamental de sua geração. Conforme destacado por Maria Paula Araujo (2006, p. 101), a Campanha da Anistia tornou-se uma bandeira unificadora das correntes de esquerda e das demais forças sociais de oposição ao regime. Todas estas lutas foram vistas de forma positiva pela geração da transição e reforçavam a interpretação de uma geração vitoriosa luta política por parte de seus militantes.

As memórias desses sujeitos que tiveram grande participação política surgem como forma de evidenciar um silenciamento sobre a militância politica na transição, contribuir com a sua versão sobre a história e de pedir justiça frente aos desafios enfrentados no contexto da transição democrática, hoje sem ter espaço numa memória “oficial” do período, marcada pela versão dos militares ou pela oposição que se tornou vítima do Estado.

A “derrota” da luta armada, isto é, a derrota de um conjunto de organizações políticas de esquerda com pensamentos e visões, muitas vezes antagônicos, inclusive sobre a própria maneira de conduzir as ações militares, que divergiam em relação às analises estruturais e conjunturais do país, entre outras coisas, mas que estavam unidas pela adesão à luta armada,

4 Este trabalho se baseia em 20 entrevistas com militantes do movimento estudantil que atuaram entre 1973 e

1984, durante minha pesquisa de doutorado no PPGHIS – UFRJ, que foram realizadas e analisadas segundo a metodologia da História Oral. As entrevistas transcritas integralmente encontram-se disponibilizadas no Laboratório de História do Tempo Presente, no IFCS, UFRJ.

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vai se refletir na maneira como as organizações sobreviventes e os novos militantes que chegam- a partir dos anos 1970 vão encarar o novo momento.

A conjuntura a partir de 1974 os obrigou a novos comportamentos políticos, mas a forma pela qual se movimentaram nesse cenário não foi linear, ao contrário, fora marcada por permanente tensão e crítica. Viveu-se um processo de crítica e autocrítica na tentativa de definir teoricamente a melhor tática e o melhor programa, mas, acima de tudo, viveu-se o esforço de levar e cultivar na prática a tática e o programa e de verificar sua aplicabilidade no confronto com a realidade.

A memória que consagra o papel da luta armada tende a diminuir tanto o papel do movimento estudantil quanto de toda a oposição que integrou o processo político de transição democrática, reduzindo, portanto, a importância de seus sujeitos e do próprio processo transicional. Os depoimentos coletados nesta pesquisa indicam que essa questão se apresenta, mesmo que difusa, na geração de militantes estudantis do período de 1974 a 1985, a “geração da transição”, que, consciente da memória dominante que coloca a geração da luta armada com uma carga heroica, demanda seu lugar na memória na busca de ampliar o olhar sobre a ditadura e perceber que ela ultrapassa a luta armada e a repressão.

Em contraposição à memória construída pautada na violência e na vitimização que heroifica a geração de 1968, a memória da geração da transição democrática que se sustenta na afirmação positiva sobre seu papel político mostra uma visão compartilhada, desde meados dos anos 1970, em que a consciência de seu significado histórico e vitorioso na luta democrática é evidenciada.

Questionado sobre sua lembrança sobre o processo político vivido, Ricardo Chaves, estudante de Medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e líder estudantil no fim dos anos 1970, falou do sentimento de frustração que se mesclava à emoção de uma leitura de vitória no campo da organização social.

A ditadura caiu em 1985. E a queda da ditadura aqui foi uma transição, colégio eleitoral, teve as Diretas, aí Tancredo morre. E aí veio o Sarney. Muito ruim! Ver o Sarney ser presidente do Brasil depois disso tudo é lamentável! [...] As Diretas foram um baque. [...] Foi uma transição que não teve revolução. Não teve porrada a ponto de... Mas, ao mesmo tempo, um milhão de pessoas nas Diretas aqui no Rio, é fantástico!5

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A fala de Ricardo Chaves é muito emblemática no que diz respeito à compreensão do sentimento do militante político daquele contexto. Os resultados da luta política nas Diretas Já, com a derrota da Emenda Dante de Oliveira, seguida da morte de Tancredo Neves, de imediato geraram uma sensação de frustração mas que não se sobrepôs a outra sensação que surgia concomitantemente: o desejo de contemplar vitórias e não desconsiderar toda a experiência militante adquirida. Ambiguidade esta que também está presente quando se pensa a aprovação da Lei da Anistia em 1979. Por um lado, o regime impôs à sociedade a anistia que convinha a ela; por outro, conforme afirma o presidente da Comissão da Anistia Paulo Abrão (2010, p. 179), “a sociedade civil obteve sua mais significativa vitória desde a decretação do AI-5, ao alterar a correlação de forças sociais que obrigou o governo militar a aprovar alguma lei de anistia”. Mesmo sendo parcial, através dessa lei, muitos direitos políticos foram recompostos, causando tal dualidade na análise daqueles que viveram aquele momento. Todo esse sentimento interfere na memória que se forma dessa geração sobre a ditadura, mas que busca ver nesse passado militante elementos de vitória.

Alon Feuerwerker, estudante de Medicina na USP na época, ex-militante da tendência Caminhando e vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1979, representa o grupo que possui essa memória positiva sobre a luta pela anistia e seus resultados:

Agora, o fato é que, naquela época, a anistia foi feita na ditadura! E a ditadura ainda levou mais cinco anos pra acabar. E a força que a gente tinha era aquela. Foi errado fazer? Claro que não foi! Porque voltaram os caras, os caras saíram da cadeia, isso engrossou o movimento pela volta da democracia, e a ditadura acabou tendo um fim6.

As memórias de Alon Feuerwerker sobre a transição fornecem elementos para entender outra perspectiva que se concentra na interpretação da transição como uma fase que encerra uma “guerra’, portanto, geradora de alívio social e pessoal entre aqueles que militaram pelas liberdades democráticas. Um resultado que gera memória de satisfação pela vitória do qual não há frustração com a derrota. Esta visão leva-nos a compreender que a sensação de vitória é um elemento presente na geração daqueles que militaram na transição, e que há um revisitar desse passado de forma positiva por essa geração que compartilha a consciência de uma longa luta efetiva que conseguiu colocar fim no regime militar.

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Nas falas dos entrevistados a afirmação da Anistia, das Diretas e da Constituinte aparecem como conquistas possíveis e coerentes com a busca dos movimentos que se organizaram na luta pela Anistia. Uma conquista possível, que, apesar de seu caráter negociado, não perde a dimensão de vitória.

Contudo, para a geração anterior e também para as posteriores que atuaram no movimento estudantil, o longo processo de transição possibilitou a abertura para a negociação entre diferentes segmentos políticos e sociais, com a predominância das elites políticas, apesar da interferência dos movimentos sociais, como o movimento estudantil. O processo de transição negociada é o oposto à ideia de confronto, luta e revolução, mais valorizadas em termos de imaginário político. A transição negociada remete a acordo, burocracia e corrupção. Por isso, os atores que participaram da transição são desvalorizados em relação aos atores do momento anterior, que se constituiu na memória como uma fase heroica.

Neste mesmo sentido, o processo de transição democrática e os rumos da justiça de transição no Brasil contribuíram para a configuração da memória sobre o período, ou melhor, na existência de buscas pelos sentidos do passado.

Segundo o filósofo Paul Ricoeur, existe uma relação de complementaridade entre memória e história. Para o autor, a memória é, em primeiro lugar, matriz da história enquanto escritura e, em segundo lugar, está na base da reapropriação do passado histórico enquanto memória instruída pela história transmitida e lida; isto é, a memória demonstra como o passado é assumido no presente a partir de uma história oficial transmitida. A mesma sociedade em diferentes épocas também utiliza da memória de um acontecimento específico de diferentes formas com fins políticos, com valores que se deseja agregar em sua identidade. A memória tem uma substância social, a matéria prima, aquilo que é lembrado, e nos demonstra que o modo de lembrar é individual tanto quanto social. Dessa forma, para analisa-la é necessário compreender quais fatores sociais estão interpenetrados na narração do sujeito. Afinal, lembrar é uma forma de reconstruir e repensar, a partir de ideias e representações atuais, as experiências do passado.

Todos estes fatores devem ser levados em conta numa análise sobre a transição democrática. Em especial, a memória sobre este período traz características e influências políticas. A memória dos sujeitos históricos que aturam no processo de transição democrática brasileira é marcada pelas suas posições políticas de antes e de hoje, por suas reelaborações do passado que viveram e em especial da luta pelo sentido do passado, ou seja, a busca de dar

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ao passado vivido por eles um sentido para si próprios, para o grupo que participaram e em especial para a sociedade que hoje ainda traz as marcas deste tempo.

A transição de caráter negociado traz diferentes sujeitos ativos no processo para atingir a democracia. Os militares afirmam ter controlado a esquerda com a dura repressão e que o país estava em uma situação segura para a transição na qual eles seriam os agentes controladores. A oposição, no entanto, alargou os limites deste projeto de abertura dos militares e transformou em um processo de intensa participação social. Contudo a posição era diversa. Diferentes movimentos sociais, representantes de diferentes seguimentos da sociedade e diferentes grupos de esquerda, cada um com uma ideologia diferente que norteava suas ações. Formou-se um bloco pelas liberdades democráticas, mas este bloco era diverso.

Uma questão central a se pensar na análise das transições, de acordo com Barahona de Brito, é a relação de forças e poder que se estabelece entre os agentes favoráveis e contrários à implementação de medidas transicionais. Em termos gerais, para a autora, “quanto mais uma transição ocorre com a derrota da velha elite autoritária e dos agentes da repressão, maior é a margem de manobra para o desenvolvimento de políticas de verdade e justiça”. As transições por ruptura oferecem maior âmbito de ação, particularmente quando há derrotas em guerras, tanto por forças nacionais como estrangeiras. Em contraste, no caso das transições negociadas ou “pactuadas”, como o caso brasileiro, normalmente oferecem menor margem de ação, pelo fato das forças dos regimes autoritários ainda vigorarem, de modo que a elite democratizadora tenha de se esforçar habilmente para reverter a balança de poder em seu favor. Contudo, “é importante ter em mente que raramente transições seguem modelos teóricos, e que haverá um espectro muito variado de situações transicionais entre os dois extremos, que podem incluir elementos de ambos” (BARAHONA, 2009: 64).

De acordo com Paul Van Zyl, para implementar a justiça de transição é necessário um conjunto inclusivo de estratégias formuladas para enfrentar o passado assim como para olhar o futuro a fim de evitar o reaparecimento do conflito e das violações. Considerando que, com frequência, as estratégias da justiça transicional são arquitetadas em contextos nos quais a paz é frágil ou os perpetradores conservam um poder real, devem-se equilibrar cuidadosamente as exigências da justiça e a realidade do que pode ser efetuado a curto, médio e longo prazo (ZYL, 2009: 32).

No caso do Brasil, a justiça transicional que se seguiu em tempos democráticos levava marcas da transição política vivida no contexto ditatorial, que devido ao seu caráter de

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negociação, concedeu anistia a perpetradores e a oposicionistas. No caso brasileiro, não houve o julgamento de militares. Já a reparação das vítimas, a busca pela revelação da verdade e a repactuação da sociedade só teve início muito posteriormente e ainda se encontra em vias de consolidação. Em curto prazo, com o governo ainda controlado pela mesma elite dominante durante a ditadura, não houve avanços na justiça de transição; em médio prazo alguns avanços se seguiram e a longo prazo é que se verifica mais substancialmente os avanços na justiça de transição.

Este caráter lento da justiça de transição no Brasil fez com que o debate sobre os anos de ditadura vividos no país ficasse fora da pauta da sociedade e não fossem debatidos amplamente. No entanto, mesmo assim, a memória sobre a ditadura militar foi delineada ao longo destes anos que se passaram desde seu fim, influenciada por diversos elementos capazes de interferir na formação de uma memória coletiva, como o cinema, a literatura, a historiografia e os lugares de memória.

Em outra instância, verifica-se que também o Estado contribuiu para a formação desta memória coletiva sobre a ditadura que privilegia a luta armada, a tortura e dura repressão, e que omite a ação da sociedade civil no processo político a partir de 1974. Dentre as iniciativas, destacamos a memorialização como instrumento das políticas reparatórias que têm se consolidado no Brasil.

Entre as iniciativas está a da memorialização, com a construção de espaços de memória e eventos de memorialização sobre o período. A outra é a de reparação. A Comissão da Anistia repara moral e financeiramente as pessoas que foram perseguidas e sofreram violências. A Comissão coloca seu foco nas vítimas, visto que somente vítimas podem ser reparadas. Ora, uma vez que a “geração da transição” se enxergue como uma geração vitoriosa – mesmo que parcialmente –, ela não tem lugar nesta memória a ser reparada. Esta geração não representa vítimas, mas sim aqueles militantes que participaram da “transição negociada”, que permanecem sem um lugar definido nesta história, pois o caráter “negociado” também contribuiu para a não validação dessa memória.

A longa transição política que o país viveu mobilizou diferentes grupos, partidos e organizações de esquerda, com diferentes propostas políticas, táticas e estratégicas. A memória acerca desse período evidência a diversidade entre esses diferentes grupos também dentro do movimento estudantil e demonstra a existência de uma memória ainda em disputa.

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Na sociedade contemporânea, interessada nos debates internacionais sobre os direitos humanos, nunca se discutiu tanto sobre o respeito ao "outro", às minorias, aos direitos fundamentais e sobre o direito à justiça. As políticas de memória foram “contaminadas” por novas memórias, em função do questionamento de antigas situações de dominação e das novas configurações sociais e culturais. As novas políticas precisam responder ao desafio de estabelecer o que deve ser preservado e o que deve ser esquecido, a partir de onde e desde quem. O esquecimento como ato, como fazer social, ganha espaço para delimitar a visibilidade e a invisibilidade da memória.

No entanto, esta disputa entre memória e esquecimento não ocorre sem conflitos, e é evidente a variedade de elementos e interesses do presente, como no caso das memórias “subterrâneas” que se opõem à “memória oficial”, que se pretende nacional e coesa. Nesta disputa, diante da pluralidade dos discursos e dos atores sociais no cenário político do presente, os empreendedores de memória são ―agentes sociais que (…) mobilizam suas energias em função de uma causa (JELIN, 2002: 48), atuam no sentido de empreender ações para promover suas demandas e memórias e fazem com que elas se tornem questões públicas. Estas ações se dão no debate público e em um cenário de conflito, no qual há uma luta entre “empreendedores da memória”, que pretendem o reconhecimento social e legitimidade política de uma(sua) versão ou narrativa do passado.

Percebemos o quanto elementos como a produção bibliográfica, os lugares de memória instituídos pelo Estado, políticas de memória e a produção cinematográfica tem colocado no centro da ditadura militar a tortura e a repressão e não tem deixado espaço para um momento distinto, marcado por outras formas de repressão e outras formas de luta política pelos diferentes agentes de oposição: a transição democrática.

Além destes elementos destacados aqui, muitos outros constituidores de memórias poderiam ser acrescentados. No entanto, o objetivo deste artigo não foi o de dar respostas ou encerrar discussões, pelo contrário, pretende dar alguns indicativos para uma discussão ainda principiante e que necessita ser aprofundada: afinal, qual é o lugar da transição democrática na memória sobre a ditadura militar no Brasil?

O autor Andreas Huyssen (2004), ao estudar as relações entre memória e esquecimento faz uma abordagem sobre o discurso de vitimização que surge como forma de legitimar a memória. Para o autor, a sociedade atual valoriza muito mais as memórias de trauma e violência estatal, onde está presente uma espécie de obrigação permanente de

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recordar, de evocar o passado e torná-lo presente para que ele se torne objeto de indagação. Este processo de vitimização pode ser associado à memória sobre as Esquerdas durante a Ditadura no Brasil. A geração da década de 1960, em especial a geração da luta armada e da resistência em 1968 e nos anos posteriores, devido a sua atuação nos anos duros da ditadura e da intensa repressão, da violência e tortura às quais foi submetida, ganhou uma atribuição de vítima do regime militar, e essa vitimização lhe concede um status de “herói”. No entanto, a geração que participou da transição democrática levantando a bandeira pelas liberdades democráticas reivindica um espaço na história e na memória sobre a ditadura. Esta disputa traz à tona a busca de se compreender o lugar da memória da transição democrática dentro da perspectiva da luta contra a ditadura civil militar.

A questão da disputa de memória existente no tempo presente sobre esse passado nos mostra também que a transição democrática no Brasil permanece incompleta. A Constituição de 1988 foi o marco político da concretização da democracia no país, mas a transição na memória não foi finalizada. As políticas de memória não acompanharam a consolidação da democracia política no país e, apesar de ter dado os primeiros passos na década de 1980, ainda hoje apresenta traços inacabados.

Desta forma, a disputa de memória entre gerações de ex-militantes estudantis e a construção da memória sobre a transição democrática evidenciam a busca de um significado por parte dos grupos sociais envolvidos na luta pela transição de sua própria atuação e relevância política que crie uma memória sobre a resistência: seus atores, seu conteúdo, suas vítimas, seus heróis, seus símbolos e seus avanços.

Vivemos hoje um momento de revisão da nossa historia recente. A comissão da anistia e a comissão da verdade reacenderam o debate no cerne social. Neste meio onde se busca construir uma narrativa sobre o passado varias são as vozes que vem falar sobre o passado com o objetivo de projetar uma imagem para o futuro. A memória sobre a ditadura é um campo aberto, espaço de disputa, onde muitos sujeitos demandam seu protagonismo e onde muitas instituições lançam mão dela com fins políticos.

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