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A FUNÇÃO DA MEMÓRIA DE/EM PONCIÁ VICÊNCIO, DE CONCEIÇÃO EVARISTO: SUA FUNÇÃO NA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA NO CONTEXTO LITERÁRIO DA NARRATIVA NEGRA.

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A FUNÇÃO DA MEMÓRIA DE/EM PONCIÁ VICÊNCIO, DE CONCEIÇÃO EVARISTO: SUA FUNÇÃO NA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA NO CONTEXTO LITERÁRIO DA NARRATIVA NEGRA.

Jaci Leal Pereira dos Santos. 1

Publicado em 2003, o livro Ponciá Vicêncio traz consigo importantes aspectos da cultura e identidade negras, marcados sob o ponto de vista de uma mulher. Esta é a protagonista, e toda a trama se desenvolve em torno dela. Conceição Evaristo, autora do livro em questão, narra as memórias do local onde ela cresceu, e do qual foi retirada, juntamente com sua família, por conta da expansão imobiliária ocorrida em Belo Horizonte. Muito mais do que um romance, Ponciá Vicêncio é a expressão de como suas lembranças constroem a memória histórica sociocultural e literária da mulher negra, marcada por situações deploráveis na obra, a exemplo de injustiças, esquecimentos, e de como estas ações memoráveis constituem identidades, dentro de um contexto de busca por igualdade. A obra é também um diálogo com a memória histórica da própria autora, nascida em uma favela em Belo-Horizonte. A autora migra em direção ao Rio de Janeiro, e lá participa de movimentos sociais negros, objetivando dar voz: à mulher negra, militante, pobre e excluída. Nesse contexto, pretende-se compreender os conceitos de Memória, História, e suas perspectivas, sob a concepção de Le Goff e Michel de Certeau. Atentando para as memórias narrativas da autora, que ouviu histórias diversas de sua mãe, avó e tias, pretendemos apontar as marcas da memória de Ponciá na intenção de entendê-la como mulher negra, que vai à luta com objetivo de formar sua identidade, e entender como os objetos e os espaços constroem esse legado, desde um sobrenome aos objetos artísticos – o trabalho com o barro.

Palavras- chaves: Memória; História; Mulher Negra; Identidade INTRODUÇÃO

Neste trabalho, pretende-se apresentar a produção escrita de Conceição Evaristo, contando um pouco sua trajetória, ou porque não dizer, sua história, bem como as marcas de uma memória que constrói os contornos das identidades dos homens e mulheres ditos afro-descendentes brasileiros, trazendo à tona os importantes papéis desempenhados pelas mulheres negras ao longo da luta pela liberdade ontem e hoje, na figura da protagonista Ponciá Vicêncio, obra publicada em 2003. Apropriando-se da ideia da autora em discutir a identidade negra do ponto de vista de uma mulher, proponho percorrer o caminho das memórias da autora, que tem várias obras publicadas sobre a temática. Neste aspecto, sugiro nos ater na narrativa de Ponciá Vicêncio, mostrando a presença da memória, para entender que estas se configuram como indícios para apresentar as memórias do local onde a autora cresceu e do qual foi retirada, juntamente com sua família, por conta da expansão imobiliária ocorrida em Belo Horizonte.

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Pretende-se perceber em Ponciá muito mais do que um romance, mas uma expressão de como suas lembranças constroem a memória histórica sociocultural e literária da mulher negra, marcada por situações deploráveis na obra, a exemplo de injustiças, esquecimentos, e de como estas ações memoráveis constituem identidades, dentro de um contexto de busca por igualdade. Escrevendo fatos e momentos importantes do passado dito afrodescendente, a escritora (re)inventa e (re)atualiza a memória afro-brasileira, pois, segundo Ecléa Bosi (1994, p. 53), “A lembrança é a sobrevivência do passado. O passado, conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de imagens-lembranças. A sua forma pura seria a imagem presente nos sonhos e nos devaneios.” Lembrar aqui, significa aflorar o passado, combinando com o processo corporal e presente da percepção e misturar dados imediatos com lembranças. A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo atual das representações.

Na narrativa há alguns processos distintos relacionados à memória: as lembranças do avô, irmão, mãe, da viagem de trem, da trajetória da terra natal e a cidade escolhida para ficar, da casa, objetos, crendices e histórias contadas. Nas cenas, a memória da protagonista recorda algo vivido e ouvido, confundindo história narrada e história vivida. As provas destas marcas se encontram em um depoimento, dado durante o I Colóquio de Escritoras Mineiras, realizado em maio de 2009, na Faculdade de Letras da UFMG, onde Evaristo (2009) declara:

Aliás, nesse sentido, gosto de dizer que a minha relação com a literatura começa nos fundos das cozinhas alheias. Minha mãe, tias e primas trabalharam em casas de grandes escritores mineiros ou nas casas de seus familiares. Digo mesmo que o destino da literatura me persegue...[...]. A nossa casa vazia de bens materiais era habitada por palavras. Mamãe contava, minha tia contava, meu tio velhinho contava, os vizinhos e amigos contavam (EVARISTO, 2009, p. 4).

Nos relatos desse colóquio, a autora discorre sobre os elementos que marcaram sua memória: a vivência com a mãe, tio, tia e as pessoas à sua volta, que de uma forma ou de outra lhes proporcionaram essa história. Contudo, Jacques Le Goff (1996), relacionando a memória ao conceito de identidade, define a memória como “[...] um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje.” (LE GOFF, 1996, p. 476). Nesse contexto, tanto as memórias de Ponciá quanto de Evaristo constituem uma identidade histórica feminina marcada por processos, como mulher negra, que vai à luta com objetivo de formar sua

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identidade, e entender como os objetos e os espaços constroem esse legado, desde um sobrenome aos objetos artísticos – o trabalho com o barro e místicos – a história de que se passar por baixo de um arco-íris mudaria o sexo. Uma identidade construída na coletividade.

A TRAJETÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO SUAS “ESCREVIVÊNCIAS2

Será evidenciado nesse trabalho as memórias de Conceição Evaristo e como as mesmas marcarão a trajetória identitária negra, combativa e reivindicatória por direitos em busca da igualdade racial. Prova desta ação se deu com a participação ativa da autora em movimentos de valorização da cultura negra em nosso país3. Ação essa que a autora apresenta em suas narrativas e poemas. Pode se contar com várias escritas pela autora que apresentam a vontade da insubordinação. Nesse caso, com essa pesquisa pretendemos perceber na narrativa de Evaristo as marcas da memória histórica identitária entre autor e personagem, e como a autora dá voz a essa mulher, negra, excluída na narrativa, paralelo à forma de viver da historiadora e escritora. Focaremos a análise no papel da memória produzida pela autora no sentido de reivindicar os direitos e intensificar a busca pela identidade e a construção de um discurso livre da hegemonia. Para tanto, a intenção aqui é apresentar a biografia histórica da autora, tomando como base a obra de Ponciá Vicêncio para entender a inter-relação entre a memória e a história oral.

A escritora Conceição Evaristo de Brito nasceu em 1946, em Belo Horizonte, de origem pobre, mudou para o Rio de Janeiro na década de 70, onde reside atualmente. Mudou-se de Minas Gerais após ter concluído o Magistério e não ter conseguido trabalho. Conta a autora que na época precisava de alguém que lhe indicasse para conseguir um emprego digno, e como não tinha ninguém que a apadrinhasse, resolveu ir para o Rio de Janeiro. Lá, graduou-se em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino na capital fluminense e da rede privada do ensino superior. Ela é Mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica PUC-RJ, e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Em sua pesquisa estuda as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa. Participante ativa dos movimentos de valorização da

2 OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. “Escrevivências”: rastros biográficos em Becos da Memória, de Conceição

Evaristo. http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol17B/TRvol17Bi.pdf-Acessado em 07 de julho de 20015.

3 Depoimento durante o I Colóquio de Escritoras Mineiras, realizado em maio de 2009, na Faculdade de Letras da

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cultura negra em nosso país, estreou na arte da palavra em 1990, com a série Cadernos Negros, publicação organizada pelo grupo Quilombhoje, dedicada à literatura afrodescendente.

A partir de então, Conceição Evaristo vem trilhando o caminho de uma escritora versátil por transitar pela esfera de diversos gêneros como poesia, romance, contos e ensaios. Seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, foi publicado em 2003 no Brasil, e traduzido ao inglês em 2007. Posteriormente publicou o romance Becos da Memória, em 2006, seguido de uma obra poética com o título Poemas da recordação e outros movimentos, lançada em 2008; Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face, de 2005, Depoimento: Conceição Evaristo por Conceição Evaristo, em 2009. Vale ressaltar que, Becos da Memória foi escrito no final dos anos de 1979 e início de 1980. Ficou engavetado por aproximadamente 20 anos até sua publicação em 20064.

As obras de Conceição Evaristo, em linhas gerais, versam sobre questões relativas à memória, escrita feminina, resistência, o legado histórico e as influências do processo diaspórico na elaboração da identidade dos afrodescendentes. O conceito diaspórico, de acordo com Stuart Hall (HALL, 2009, p.28), remete à experiência judaica de exílio forçado, associada à dor e ao sofrimento, narrada na Bíblia, no Velho Testamento. Assim, por analogia, o conceito também se aplica ao deslocamento involuntário dos negros, oriundos da África, que se dispersaram pelo mundo por causa da escravidão. Nesse sentido, não se deve pensar na diáspora apenas com a perspectiva de movimento, mas encará-la como um evento que não aponta exclusivamente para o tráfico de escravos, mas para a ideia de travessia, a qual envolve o fluxo de pessoas e a manutenção das relações sociais, além do legado desse evento para os afrodescendentes. A travessia de Ponciá da vila Vicêncio para a cidade sem nome e a travessia de Conceição Evaristo de Minas Gerais ao Rio de Janeiro e a travessia metafórica da condição de subalterno para livre.

As memórias de uma escritora negra sobre personagens que apresentam aspectos da cultura e identidade negra

4 Depoimento durante o I Colóquio de Escritoras Mineiras, realizado em maio de 2009, na Faculdade de Letras da

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Bosi (2004, p. 39) defende que “A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento.” Ideia que coaduna com relatos da autora Conceição Evaristo, quando em depoimento diz:

“Sou filha de lavadeira, que possuía um diário que falava das suas questões cotidianas, afirma ainda a autora ter crescido rodeada por palavras. Enfatiza que não eram palavras escritas, mas uma intensa memória oral familiar, desveladas nas histórias que os mais velhos lhe contavam.” (EVARISTO, 2009)

O que a memória faz aqui é suscitar não só lembranças de um passado histórico, mas recuperar uma memória para a construção de uma identidade de uma mulher negra, escritora negra, mulher pobre, subalterna que sai da condição de silêncio para o discurso significativo. Resultado percebido pela luta de uma cultura de respeito, igualdade e reconhecimento através de políticas públicas afro-brasileiras5. Entende que a memória não é apenas individual, na verdade, também é coletiva, composta de lembranças desse indivíduo, mas perpassada pelas ideias de um grupo ou uma comunidade. Marcada nas lembranças de Evaristo, quando diz: “mamãe contava, minha tia contava, meu tio velhinho contava e os vizinhos contavam, eu menina repetia, contava.” (EVARISTO, 2009). Cabe ressaltar aqui a importância da família e das pessoas a sua volta como referência principal para a construção dessa memória individual e coletiva.

Assim como em Memória e Sociedade (2004), Bosi afirma que a voz do “velho sempre foi silenciada, a voz da mulher e, em particular, das mulheres negras, a oralidade e a memória foram silenciadas por muito tempo. Na contemporaneidade, com as políticas públicas e as Literaturas afro-brasileiras, e as lutas pela igualdade racial, a memória tanto de velhos, pobres, mulheres e negras têm ganhado destaque especial. Para Michelle Perrot (1989), a memória é profundamente gendrada, no sentido de que as práticas socioculturais presentes na construção desta são atravessadas por relações de gênero. Para a autora, a memória das mulheres, visto seu silenciamento na esfera pública e na esfera oficial é frequentemente “uma história do privado” (PERROT, 1989, p.15).

5 Exemplo disso são as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicos- Raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em que variações de palavras “resgate” aparecem diversas vezes. http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s-Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf, acessado em 13 de julho de 2015.

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Na obra de Conceição Evaristo encontramos personagens, sobretudo paralelas à “história do privado”, por serem excluídas socialmente. Dentre eles favelados, meninos e meninas de rua, mendigos, desempregados, beberrões, prostitutas, “vadios’ etc., marcas que podem ser percebidas em Ponciá, na trajetória de suas personagens; uma trajetória de subalternos, desempregados e de sobrenome emprestados, visíveis na narrativa da vida de: Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Luandi, Nêngua Kaianda, Zé Moreira, Bilisa e Negro Gilmério. Por isso que, vale ressaltar a influência das escritas afro-brasileiras, no sentido de romper com essas barreiras. No caso de escritoras negras como Conceição Evaristo, a importância da oralidade e da arte se intensifica, já que frequentemente incorporam à sua obra a oralidade típica das tradições africanas recheadas de sentidos de luta contra a hegemonia, quanto a ação de Luandi em seu trabalho com barro, expressa a memória ancestral através da arte. Evaristo (2003, p. 126), acredita que os trabalhos de barro feito por Ponciá Vicêncio e sua mãe “contavam parte de uma história. A história dos negros talvez”. Conceição Evaristo apresenta em sua obra o fazer artístico (a obra de barro), revelando a importância que atribui à criatividade e à expressão artística como na luta dos negros por seu lugar na sociedade e na história.

MEMÓRIA, HISTÓRIA E SUAS PERSPECTIVAS UM EMBRICAMENTO ENTRE AS MEMÓRIAS NARRATIVAS DA AUTORA E AS MARCAS DA MEMÓRIA DE PONCIÁ

O estudo da memória e da história vem sendo pesquisas individuais quanto coletivas. Também não é uma ação de hoje, nos primórdios, registra o Velho testamento no livro de Deuteronômio a necessidade da memória histórica, quando reza o texto a necessidade de narrar (contar) e escrever os feitos históricos do povo para que as futuras gerações tomassem conhecimento. Thompson (2010) relata:

Estas palavras que hoje lhe ordeno estarão no teu coração. Tu as ensinarás repetidamente a teus filhos e delas falarás assentado em tua casa, andando pelo caminho, deitando-te e levantando-te. Também as atarás em tuas mãos, por sinal, e te serão por faixa em tua testa. E as escreverás nos batentes das portas de tua casa (THOMPSON, 210, p. 147).

A memória retém lembranças, evoca o passado como forma de salvar o tempo do esquecimento, percebe-se aí que memória e história constroem a identidade individual e

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coletiva, a obrigatoriedade de transmitir a história constrói a memória de um povo, uma nação. Para Certeau (1990, p. 131), “longe de ser relicário, ou a lata de lixo do passado, a memória vive de crer nos possíveis, e de esperá-las, vigilantes, à espreita”. E Le Goff (2003, p. 419), afirma que a memória é vista como “[...] propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.

Em Ponciá existe uma relação diaspórica entre a trajetória da escritora e a história de Ponciá narrada pela mesma. A diferença entre as duas é só uma questão de trajetória que se movimenta para pontos diferentes. A escritora Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946. Formou-se professora no antigo curso Normal, em 1971, e depois se mudou para o Rio de Janeiro, onde foi aprovada em um concurso municipal para magistério e, posteriormente, no curso de Letras na Universidade Federal daquele Estado, participando de Movimentos sociais que buscavam respeitar a identidade da mulher, negra e pobre. Já a protagonista feminina e negra de Ponciá Vicêncio percorre outro caminho em sua formação, que passa pela diáspora de forma não linear, entrelaçando o passado e o presente através da memória e devaneios, tomada por momentos de ausência de si mesma, Ponciá Vicêncio vai mergulhando cada vez mais profundamente em suas memórias. Evaristo (2003),

Nas primeiras vezes que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si, ficou atordoada. O que havia acontecido? Quanto tempo tinha ficado naquele estado? Tentou relembra os fatos e não sabia como tudo se dera. Sabia apenas que, de uma hora para outra, era como se um buraco abrisse em si própria formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo com o qual ela se confundia. (EVARISTO, 2003, p. 45)

Percebe-se que mesmo sendo aparente, existe movimentos psicológicos dispares entre autora e protagonista, ambas caminhavam com a intenção de escreverem uma nova história, ou seja, uma missão política de inventar um outro futuro para si e para o seu coletivo, imbuídas de um dever de construir uma memória histórica do povo afro-brasileiro. Interessante ressaltar que a obra Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, que narra problemas do cotidiano das mulheres afrodescendentes sob um ponto de vista claramente feminino e negro, num contexto atual que nos permite propor o presente estudo, foi seu primeiro romance publicado em 2003, coincidindo assim com a publicação da Lei 10.639/03, que altera a Lei 9.395/96 das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e determina a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura

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brasileira e africana nas escolas do Brasil. A boa recepção da obra de Evaristo, que passou a integrar em 2004 a bibliografia indicada para o vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais, foi motivo para a reimpressão da obra em 2006, pela Mazza.

Apresentando a trajetória da mulher negra em Ponciá Vicêncio

Na obra de Ponciá Vicêncio, Conceição Evaristo traça a trajetória de uma mulher negra, a protagonista que dá nome ao livro, mora com a mãe, na Vila Vicêncio, onde se concentra uma população de descendentes de escravos, local onde trabalha seu pai e seu irmão na lavoura para a família Vicêncio, dona das terras e do sobrenome dos habitantes da vila, como a família de Ponciá. O romance narra a infância da menina na vila junto da mãe e do artesanato com o barro que as duas fazem. Narrativa em terceira pessoa, do discurso indireto livre durante toda narrativa. Ponciá seguia crendices populares brasileiras, uma delas era por acreditar que passando por debaixo do arco-íris mudaria de sexo. Mostrava-se diferente desde criança, principalmente por sua semelhança física com o avô Vicêncio. Este, ainda escravo, num momento de loucura, mata a esposa e se mutila, cortando o próprio braço. Esse braço cotó que Ponciá imita desde pequena. Embora ela fosse criança de colo quando o avô paterno morreu, apresenta tais semelhanças. Todos dizem que a menina carrega consigo a herança do avô. Nêngua Kainda, uma velha sábia da região, é quem mais enfatiza isso à menina e aos seus familiares.

Após perder o pai, Ponciá decide partir para a cidade grande em busca de uma vida melhor. Sua viagem é feita de trem e demora dias sofridos. Ela chega ao lugar sem referências, dorme uma noite na porta da igreja e depois consegue um emprego como doméstica. Enquanto junta seu dinheiro para comprar um barraco e trazer a mãe e o irmão para morar com ela na cidade grande, na vila Vicêncio, Luandi, seu irmão, também decide migrar, para a tristeza de sua mãe. O rapaz faz a mesma viagem que a irmã e chegando à cidade, arruma emprego de faxineiro numa delegacia, através da indicação do soldado Nestor, negro que ele conhece na estação de trem. Maria Vicêncio, sua mãe, decide viajar sem rumo até que chegue a hora de ir ao encontro dos filhos. Enquanto isso, Ponciá volta à vila em busca dos seus, mas não encontra ninguém, apenas a certeza, através de sua conversa com Nêngua Kainda, de que um dia, além de cumprir sua herança, ela reencontrará a mãe e o irmão. De volta à cidade, Ponciá se junta a

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um homem que conhece na favela. Inicialmente apaixonada, sofre depois com suas agressões físicas.

As perdas de Ponciá foram muitas: a ausência dos familiares e os sete abortos que sofreu. Luandi, na cidade, aprende a ler e a escrever e se aproxima cada vez mais do sonho de ser policial. Conhece Bilisa, uma prostituta, também negra, por quem se apaixona e juntos fazem planos. Na favela, Ponciá, em seu delírio com saudades do barro, decide retornar à cidade natal, e lá, na estação de trem reencontra a família. O desfecho do livro traz, além do reencontro dos três, o encontro de Ponciá consigo e com o cumprimento de sua herança ancestral, junto do rio, do arco-íris e do barro. Afinal, nessas histórias, temos a viagem como um topo importante na construção do caráter dos heróis. A maioria desses clássicos protagonistas sai de casa em busca de si mesmos numa viagem que os separa da família e contribui para seu amadurecimento. Ponciá vai em busca de dias melhores na cidade, mas acaba desterritorializada numa favela, vegetando ao lado de um marido que não a compreende. Sua trajetória do espaço rural para o urbano representa sua condição diaspórica, não configurando o sentido de diáspora citado por alguns estudiosos, ela se constitui numa metáfora desta e parecida com a de tantos brasileiros dentro do seu próprio país em busca de uma vida melhor.

A passagem em que a menina faz a viagem de trem para a cidade confirma essa associação: mesmo em uma viagem que durou três dias e três noites o coração de Ponciá tinha esperança em dias melhores. Apesar do desconforto, da fome, da broa de fubá que acabara ainda no primeiro dia, do café ralo guardado na garrafinha, dos pedaços de rapadura que apenas lambia, para que durassem até ao final do trajeto, ela trazia a esperança. Ponciá haveria, sim, de traçar o seu destino (EVARISTO, 2003 p. 35).

CONCLUSÃO

Para Machado (2013)6, Ser uma escritora negra brasileira de prestígio é ser uma escritora negra brasileira, o que significa ocupar um lugar importante dentro de um campo que, por sua vez, está em uma posição subalterna no campo mais amplo da literatura brasileira. (MACHADO, 2013, p. 8). No caso da autora, fez-se mestra em Literatura Brasileira pela

6 MACHADO, Bárbara Araújo. No artigo “Caminhos e trajetória intelectual de Conceição Evaristo. Publicado

Conhecimento histórico e diálogo social, em Natal – RN: 22-26 de julho de 2013 pela Mestranda de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e bolsista CAPES.

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Pontífice Universidade Católica do Rio de Janeiro em 1996 e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense em 2011, produzindo uma reflexão teórica própria sobre literatura negra brasileira e literatura africana. (EVARISTO, 1996, 2005). Mostrando que sua entrada na academia só tem sentido pelo motivo de associar a academia à militância. Assim como sua participação cada vez mais intensa em movimentos negros cariocas, se fixava por recitar textos literários em favelas, presídios e bibliotecas públicas, além de participar de atividades como organização de encontros nacionais de escritores negros.

A intenção do olhar para a produção literária publicada por Conceição Evaristo é com o objetivo de perceber que suas “escrevivências” surgem para dar voz a essa mulher negra, pobre, sem visibilidade, possibilitando o reconhecimento identitária. Saindo do lugar de telespectador para autor/autora. Para tanto, a obra de Ponciá Vicência serviu como pano de fundo para mostrar que a trajetória diaspórica da autora em fugir em busca de autonomia se funde com a trajetória da protagonista Ponciá e de sua família. Ponciá (2003), não é só um romance, é a expressão de como suas lembranças constroem a memória histórica sociocultural e literária da mulher negra, marcada por situações deploráveis na obra, a exemplo de injustiças, esquecimentos, e de como estas ações memoráveis constituem identidades, dentro de um contexto de busca por igualdade.

REFERÊNCIAS

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos – 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 7. Ed. Belo Horizonte: autêntica, 2010.

EVARISTO, Conceição por Conceição Evaristo. Depoimento concedido durante o I Colóquio de Escritoras Mineiras, realizado em maio de 2009, na Faculdade de Letras da UFMG, cópia retira do site: LITERAFRO – www.letras.ufmg.br/leterafro , acessada em 11 de julho de 2015.

EVARISTO, Conceição. Literatura Negra: Uma poética de nossa afro-brasilidade. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1996.

EVARISTO, Conceição. Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face. Cópia cedida pela autora, 2005.

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EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad.:Adelaine La Guardia Resende [et al.]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

LE GOFF, Jaques. História e Memória. 4. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. PERROT, Michelle. Práticas da Memória Feminina. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, vol.9, nº 18, p.9-18, agosto/setembro, 1989.

THOMPSON, Frank Charles. (Traduzida por João Ferreira de Almeida). Bíblia Thompson - São Paulo: Editora Vida, 2010.

Referências

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