DIALOGANDO SOBRE A AVALIAÇÃO NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: TENSÕES E PROBLEMATIZAÇÕES...
Cláudio Pellini Vargas
Doutorando em Educação – UFJF Agência de Fomento: FAPEMIG
Resumo: A proposta deste trabalho é discutir a avaliação escolar no campo da Educação Física (EF), tendo por cenário a crise da modernidade entendida na teoria de Zygmunt Bauman, ou seja, período no qual a racionalidade científica exerceu forte influência sobre o indivíduo. Para dar suporte a discussão, realiza-se uma revisão teórica sobre a temática da avaliação na EF escolar e aplicam-se entrevistas semiestruturadas a três professores de escolas públicas nos diferentes âmbitos: municipal, estadual e federal, destacando suas longas trajetórias, experiências e compreensões sobre seus próprios saberes docentes, sendo estes últimos compreendidos na ótica de Maurice Tardif. O contexto epistemológico da EF escolar é compreendido e narrado a partir das teorias críticas de Valter Bracht, e o debate articula-se com as ideias formativas de Philippe Perrenoud. Após as entrevistas, verificam-se duas formas básicas de avaliação: (1) ou os professores conceituam sem qualquer instrumento ou critério objetivo mais pormenorizado, refletindo uma prática “mais relativista”; ou (2) quando se tenta uma sistematização, os critérios utilizados são pessoais, desprovidos de conexão com os currículos ou mesmo com os projetos políticos pedagógicos, refletindo idiossincrasias e ainda, reproduzindo hegemonias. A pesquisa evidencia ainda o privilégio dado às questões atitudinais dos alunos em detrimento dos “conteúdos” ou da compreensão de Cultura Corporal, com destaque para a subjetividade dos docentes que norteava as avaliações escolares. Depreende-se das respostas uma sensível negação das hierarquias institucionais reguladoras, entre outras tensões. Por fim, o trabalho defende a valorização da avaliação por meio da lógica sensível na compreensão da Cultura Corporal no interior da escola.
Palavras-chave: Avaliação; Educação Física Escolar; Epistemologia
Problematização inicial, objetivo e justificativa
Parece-me um fato que, na contemporaneidade, a avaliação no âmbito escolar caminha por entre as diversidades das lógicas epistemológicas existentes, estando no cerne das contradições do sistema educativo, na articulação das escolhas e seleções, e no reconhecimento e negação das desigualdades (PERRENOUD, 1999). Sendo parte de constante reflexão sobre as ações dos indivíduos, a avaliação constitui um processo que se
aplica a muitas práticas e é auxiliada por muitas ciências, dentre as quais as educativas, que parecem ter maior relevância. Como o processo avaliativo não pode ser reduzido a questões meramente técnicas, as teorizações educacionais permeadas pelas humanidades ganham elevada importância quando tratamos da complexa luta objetiva e subjetiva do avaliar o outro.
Tendo em vista a crise da modernidade, a qual é entendida na perspectiva de Bauman (2001), período no qual a racionalidade exerceu forte influência na construção do pensamento ocidental, problematizo neste trabalho questões sobre avaliação e epistemologia na Educação Física (EF) escolar diante de sua própria crise de identidade (BRACHT, 2007; VARGAS, MOREIRA, 2012). Tomei por hipótese inicial a ideia de que, se a EF não é uma ciência nos moldes da modernidade, os alunos podem ser avaliados por métodos menos rígidos, respondendo melhor à diversidade contemporânea.
Primeiramente, argumento sobre a fragilidade da avaliação na EF, já que a área não apresenta uma sustentabilidade epistemológica por si própria. A seguir, utilizo-me de uma entrevista semiestruturada aplicada a professores de EF de escolas públicas na cidade de Juiz de Fora (MG). Abordo suas longas trajetórias e suas experiências com a avaliação, analisando suas realidades. Finalizo alertando sobre a importância de se assumir uma lógica sensível que permeia as relações existentes entre professor e aluno nas práticas corporais da EF e apresento novos questionamentos e tensões que emergem dessa escolha, incentivando novas investigações em outros cenários.
O trabalho tem por objetivo fundamental colaborar com as discussões didáticas e epistemológicas da área e, ainda, mitigar lacunas da discussão específica sobre avaliação, relacionadas aos professores de EF inseridos no cotidiano das escolas públicas. Parece-me negligenciado o aprofundamento do debate nos grupos de pesquisa das universidades brasileiras, na ANPEd ou mesmo no Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), o qual não possui GTT sobre Avaliação ou Didática na EF escolar, ficando a temática fragmentada, aparecendo apenas de forma tênue nos grupos de Epistemologia e/ou Escola. Conforme Santos e Maximiano (2013), o número de pesquisas sobre avaliação na EF escolar é insuficiente. Os autores, ao tomarem como fonte os periódicos e congressos científicos da área no período de 1930 a 2010, evidenciam a existência de quarenta (40)
escolar.
Caminhos metodológicos
Para sustentar a discussão, utilizo-me de uma entrevista semiestruturada aplicada a três professores de EF de escolas públicas nas três redes: federal, estadual e municipal, todas localizadas na cidade de Juiz de Fora (MG). Tomo por base interpretativa a análise de conteúdo. Busco enfatizar a EF escolar pública por acreditar na necessidade de sua profunda reformulação. Pretendo, ainda, identificar as semelhanças e enaltecer os contrastes percebidos nas práticas didático-avaliativas dos professores nos diferentes âmbitos. Outrossim, almejo dar visibilidade às dificuldades enfrentadas pelos mesmos, sugerindo uma extensão do diálogo com pesquisas que venham a ser realizadas em outras localidades do país.
O trabalho consiste, essencialmente, num corte de cunho qualitativo de pesquisa. Nas escolas federal e estadual, havia cinco professores de EF licenciados que exerciam o cargo de Professor da Educação Básica e na municipal havia quatro. Os entrevistados foram escolhidos atendendo a três critérios básicos: (1) maior tempo de docência na instituição que os demais, o que sustento ser indicativo de maior influência sobre os docentes mais jovens da mesma escola; (2) maior tempo de formação e docência que o entrevistador, fato que traz relevância no que diz respeito às longas trajetórias dos entrevistados; e (3) não possuir titulação Stricto Sensu, condição que parece favorecer maior autenticidade nas falas por não conhecerem mais detalhadamente os pormenores de uma investigação científica. Os encontros foram gravados, duraram em média 60 minutos e todo processo aconteceu com a autorização dos entrevistados.
Ressalto que o tempo médio de formação de cada professor é de vinte anos, o que me parece suficiente para que possam ter uma avaliação crítica sobre o próprio trabalho pedagógico em sua área de atuação na EF e sobre seus saberes (TARDIF, 2002). Por fim, convém ainda informar que os professores das redes Estadual e Municipal foram formados em universidades públicas federais do estado de Minas Gerais, enquanto o da rede federal graduou-se em instituição privada no estado do Rio de Janeiro.
Utilizo um questionário semiestruturado: (1) Conceitue EF com suas palavras; (2) Como você compreende, de um modo geral, o processo de avaliação na escola? (3) Como você compreende o processo de avaliação na EF escolar? (4) Você avalia seus alunos na EF escolar? Em caso negativo, explique o por quê. Em caso positivo, explique detalhadamente o processo; e (5) Nos últimos anos, parece ser um entendimento comum a percepção de que os alunos estão se afastando das práticas de EF na escola. Você considera que isto esteja ocorrendo? Em caso afirmativo, a quais motivos você atribui tal evasão?
Considerações finais: desdobramentos e tensões...
Após as entrevistas, verifiquei duas formas básicas de avaliação no campo: (1) ou os professores conceituam sem qualquer instrumento ou critério objetivo mais pormenorizado, refletindo uma prática “mais relativista”; ou (2) quando se tenta uma sistematização, os critérios utilizados são pessoais, desprovidos de conexão com os currículos ou mesmo com os projetos políticos pedagógicos, refletindo idiossincrasias e ainda, reproduzindo hegemonias (caso do esporte de rendimento e aptidão física, assunto já superado na academia). A pesquisa evidencia ainda o privilégio dado às questões atitudinais dos alunos em detrimento de “conteúdos” ou da compreensão de Cultura Corporal, com destaque para a subjetividade dos docentes que, extrapolando as ordens objetivas relacionadas aos documentos da área, norteava as avaliações escolares. Depreende-se das respostas dos professores uma sensível negação das hierarquias institucionais reguladoras, pois cada um apresentou sua própria forma de avaliar.
Para além de corroborar com a hipótese inicial levantada, outras tensões surgiram como desdobramentos sensíveis da investigação: (1) em que medida os registros avaliativos dos professores de EF, que abordam somente o atitudinal, denunciam como eles valorizam a construção do conhecimento e a compreensão da Cultura Corporal? (2) Pressupondo a
Cultura Corporal como a identidade epistemológica da EF, constituindo-se como sua
característica insular de objeto de estudo e sendo entendida como uma semiose completa com um crescimento contínuo e interminável, que relatório, diário ou prova poderá traduzir a intensidade, as emoções ou a beleza dos movimentos contextualizados a uma determinada
conceitual, não reduz nossa compreensão da escola a uma instituição apenas voltada para a importância das palavras e dos números, em detrimento das atitudes, das práticas, do fazer e do realizar? (4) Como (re)pensar estratégias para o desenvolvimento de um processo
criativo-avaliativo por parte dos docentes, reinventando suas próprias formas de avaliação?
Concluindo, busco compreender a realidade da EF escolar, para assim exercer a ideia – talvez “utópica” – de sua completa desburocratização avaliativa, substituindo-a por uma lógica sensível de análise e interpretação, dando autonomia ao professor na escola. Sustento ser necessário compreender essa realidade o quanto mais profundamente possível, para que a radicalidade de minha imaginação não seja meu próprio obstáculo (SANTOS, 2010). Em outras palavras, é como dizia Paulo Freire, quando tantas vezes nos mostrou que temos que lutar para tornar possível o que não parece possível, tarefa essa entendida como um constante redesenhamento do mundo.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. BRACHT, Valter. Educação Física & Ciência: cenas de um casamento (in)feliz. 3ª ed. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2007.
PERRENOUD, Philippe. Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens – entre duas lógicas. Porto Alegre: Artmed, 1999.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 13ª ed. São Paulo: Cortez, 2010.
SANTOS, Wagner dos; MAXIMIANO, Francine de Lima. Avaliação na educação física escolar: singularidades e diferenciações de um componente curricular. Rev. Bras. Ciênc. Esporte, Florianópolis, v. 35, n. 4, p. 883-896, out./dez, 2013.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. VARGAS, Cláudio Pellini; MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. A crise epistemológica na educação física: implicações no trabalho docente. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 42, n. 146, agosto de 2012.