Fábio Lopes com ares explícitos de um sentimento de solidão corrosiva. Certamente, não se sentiam mal por terem abominado o trabalho de Subterrâneo: o corpo distribuído, mas por terem sido verdadeiramente tocados, interpelados profundamente por algo. Cada observador-participante da sua maneira e, por mais que saíssem disfarçados nos seus aspectos blasés, a sensação era subentendida e garantia a certeza de um efeito unânime causado.
O trabalho não podia ser apreciado por um grupo a um só tempo; era permitida a entrada de um observador por vez na sala do NEC (Núcleo de Experimentação Coreográfica) da cidade do Porto, onde estava disposto um computador no chão com imagens em movimento de homens em ações de sexo explícito. Eram frames diversos, ou melhor, trechos do filme “Mates” de António da Silva, que, assim como no filme original, exibiam a troca de cenas homoeróticas em alta velocidade de diversas transas acompanhadas por um som interminável de um cão latindo.
Resumidamente, a imagem a ser vista, em uma sala de 6 x 6m, era apenas um computador a exibir cenas eletrizantes de homens fazendo sexo selvagem – sexo animal. O computador, com as tais imagens em movimento, era algo tão pequeno naquele espaço, mas auferia uma monstruosa dimensão que mal podia caber naquele lugar. A sala se tornou ampla ao lado da proporção real da obra, mas minúscula em relação ao avassalador tema que ela propôs: a apavorante solidão contemporânea com o advento da tecnologia.
Subterrâneo: o corpo distribuído. Performance-instalação de Fábio Lopes
A visita à performance-instalação de Fábio Lopes – desenvolvida com colaboração de António da Silva e Paulo Brás – era feita com um aparelho de telemóvel (telefone celular) recebido logo na entrada e, ao adquiri-lo, o espectador não era orientado com nenhuma instrução; contava, portanto, unicamente com o imprevisto. Então, em um pequeno corredor, num canto da sala, uma luz acesa – vinda de outro cômodo – indicava o acesso a um minúsculo banheiro, onde o vaso sanitário e o bidê estavam abarrotados de terra e ladeavam arranjos de flores com cartões tais quais vemos em um velório, no entanto, havia um número de telefone indicado em um desses papéis.
Subterrâneo: o corpo distribuído. Performance-instalação de Fábio Lopes
Ao discar para o número ali recomendado, o performer atendeu. O medo de ser observado ao falar, de ter a conversa gravada ou de ser surpreendido pelo próprio artista que estava ausente no espaço tomava conta de quem vivenciava aquela experiência. O diálogo era exclusivo para cada caso; não havia como ser repetido. Podia ser um lamento, um desabafo sobre as impressões acerca do que estava sendo ali visto, uma troca inflamada de confissões de desejos, enfim, tudo podia ser conversado. Acredito que o diálogo do outro espectador tenha sido tão particular quanto o meu, tão único quanto o que eu estabeleci com o artista.
O telefone disposto naquele banheiro nos faz lembrar de portas de banheiros públicos masculinos, onde há revelada a ânsia de certos sujeitos em frases curtas com seus contatos de e-mail e telefone, sendo um meio eficaz para estabelecerem encontros com qualquer desconhecido. Por fetiche talvez, ou ainda, pela desesperada vontade de rescindir com o vazio da solidão através do sexo feito com avidez, sem amor, com desespero.
O meio tecnológico proporciona uma maior facilidade na comunicação, mas isola os sujeitos por detrás dos artefatos criados. Muitos optam pelo sexo virtual ou pelo exagerado número de encontros estabelecidos por meio destes mecanismos, seja através de um site de relacionamento ou de um telefone deixado na porta de um banheiro público com frases curtas a explicar de forma sucinta o que é desejado se o encontro dos corpos for concretizado.
Frames obtidos a partir do filme Mates de António da Silva mostrados durante a performance-instalação Subterrâneo: o corpo distribuído de Fábio Lopes
Subterrâneo: o corpo distribuído faz alusão aos corpos contemporâneos
caracterizados pelo elo entre a presença e ausência ao mesmo tempo. No caso, o espectador estava lidando com a voz do performer naquele espaço juntamente com a sua obra, com os objetos colocados no recinto, mas estava distante do corpo do artista. Trata-se de um corpo fisicamente ausente, mas virtualmente presente; é um corpo fantasmagórico, virtual, que pode proporcionar prazer sem a preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis, risco que propicia uma paranoia generalizada desde as duas últimas décadas do Século XX. Ao telefone com o performer, poderia ser estabelecida uma conversa dotada de erotização, ou ainda, poderíamos optar por não revelarmos nossa voz e nosso gênero se estabelecêssemos um diálogo meramente através de mensagens escritas.
Os conceitos presentes nessa performance-instalação nos remetem para os pensamentos de Le Breton quando este afirma o seguinte:
de um processo de criação que visa concretizar um espetáculo maior e, embora seja uma experimentação para atingir uma outra expressão artística, a sua autonomia enquanto manifestação está garantida bem como a sua perpetuação no mais profundo sentimento do público, que leva na memória o denso argumento da obra.
Nota
[1] LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 2003. Pág. 24.