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Ritos Funerários na Grécia Antiga: Um Espaço Feminino

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Ritos Funerários na Grécia Antiga: Um Espaço Feminino

Sandra Ferreira dos Santos

Mestranda em História Comparada Universidade Federal do Rio de Janeiro E-mail: sandraferreirasantos@ig.com.br

Resumo: a morte é um acontecimento que angustia os homens de todos os tempos e locais, que procuram - de

acordo com a sua percepção e mitos - lidar com ela de formas diversas. Os rituais funerários e a forma como a morte é encarada pode dizer muito sobre uma sociedade e suas formas de representação do mundo. Para os gregos antigos, a morte não era um momento, mas um processo que envolvia o morto, os vivos e até mesmos os deuses. Para que tudo transcorresse da melhor maneira possível e o morto chegasse ao lugar que lhe era destinado, uma série de rituais deveriam ser realizados. Os rituais funerários na Grécia Antiga eram espaços femininos, organizados e apropriados pelas mulheres como forma de exposição e ação na sociedade políade.

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Introdução

A morte é um acontecimento que coloca em evidência as angústias sobre a finitude presentes em todos os homens. Os rituais funerários e a forma como a morte é encarada pode dizer muito sobre uma sociedade e suas formas de representação do mundo.

Segundo Geertz (1989, p. 67) os símbolos sagrados, configurados nos rituais, funcionam para sintetizar o ethos de um povo – o tom, o caráter e a qualidade de vida, seu estilo e disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo – o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas ideias mais abrangentes sobre a ordem. A religião ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada e projeta imagens da ordem cósmica no plano da experiência humana.

As informações mortuárias, portanto, representam a corporificação do comportamento social, econômico, tecnológico e religioso e reflete sentimentos e valores da sociedade (Humphreys, 1980, p. 79). Assim, os rituais devem ser examinados tendo como contraponto o cotidiano: ambos são parte de uma mesma estrutura, como as duas faces de uma mesma moeda, expressando os mesmos princípios sociais. Através da análise de rituais, podemos observar aspectos fundamentais de como uma sociedade vive, se pensa e se transforma (Peirano, 2003, p.43 e 51).

A morte para os gregos

A morte confronta os seres humanos com a consciência de sua própria existência e perenidade, à qual os homens reagem de maneiras distintas. Para os gregos, a morte significava a perda da individualidade, a transformação radical do ser e a sua incorporação ao cosmos. Era através dos rituais e monumentos funerários que os gregos procuravam evitar a perda completa da individualidade, pois a tumba individualiza aquele a quem se dedicava e, em conjunto com os ritos funerários preservavam a memória individual do indivíduo (Humphreys, 1980,p. 5-6).

Ao contrário do pensamento moderno, a morte para os antigos gregos não era um momento, mas um processo. O processo de morrer, no mais amplo senso, se estendia do momento em que se estabelecia que a pessoa estava morrendo (doença, inconsciência,

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ferimento e etc.) até a completa cessação das ações sociais direcionadas aos seus restos mortais, tumba, monumento funerário e outros objetos que o representassem (Humphreys, 1980, p. 263), ou seja, morrer para os gregos envolvia três estágios: estar morrendo, estar morto mas não estar enterrado e estar morto e enterrado. Cada um dos estágios exigia determinado comportamento dos sobreviventes. Era um processo no qual o morto e os vivos participavam (Garland, 1995, p. 13).

Após a morte de um dos membros da sociedade, as relações sociais devem se reorganizar e os direitos sobre as propriedades e as pessoas devem ser recolocados para preencher o vazio deixado pelo morto. Os familiares em luto devem se reajustar psicologicamente. Além disso, para os gregos antigos, após a morte, uma parte do morto deixava o corpo e começava um novo caminho em direção ao mundo dos mortos. Todo esse processo levava tempo e demandava diferentes tipos de atenção por parte dos vivos (Humphreys, 1980, p. 263, Garland, 1995, p. 13).

O período imediatamente após a morte é aquele em que os familiares mais próximos têm que lidar com demandas conflitantes. Por um lado, é esperado que eles, de alguma forma, acompanhem o morto na sua saída da sociedade e por outro lado, precisam se envolver com uma intensa atividade social, reafirmando relações e vínculos, mobilizando recursos para o funeral e para o entretenimento das visitas, legitimando uma ordem social alterada pela morte. O contato com o corpo é geralmente considerado poluidor e aqueles que tem contato com ele, na maioria das sociedades, devem se afastar do intercurso social (Humphreys, 1980, p. 266-267).

Não é surpreendente que diante destas demandas conflitantes, seja a mulher, na maioria das sociedades, que assuma o papel de lidar com o corpo e com o desligamento da vida social, enquanto o homem lida com os aspectos públicos do funeral (Humphreys, 1980,p. 267).

A mentalidade grega entendia todos os seres como partes do cosmos e, apesar de após a morte tudo se transformar, não existia a morte definitiva, mas somente uma transformação. O cosmos era eterno, perfeito e justo e todos os seres fariam parte dele eternamente como fragmentos que se transformam, mas que não deixam jamais de existir (Ferry, 2006, p.56). Apesar desta mentalidade tranquilizadora, a manutenção da existência se dava com a perda da individualidade e era para tentar evitar isto, ao menos em parte, que os cultos e ritos funerários se realizavam.

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perder de uma vez por todas a sua individualidade e a se misturar ao aglomerado amorfo do cosmos. Por isso, era importante preservar a memória dos feitos do morto, gravados em palavras mortais ou em pedra. A inscrição funerária, escultura ou estátua que era colocada sobre a tumba grega era o produto da convergência de duas diferentes ideias: o sema ou sinal que indicava o local de sepultamento – que podia ser somente um montículo de terra, mas podia também ser algum objeto fixado nela, que simbolizasse o status da pessoa em vida – e o

kolossos, um substituto de pedra do morto, que também significava a fixidez da morte. Podia

ser usada também para espantar fantasmas perturbadores e criava uma relação perpétua entre uma divindade e aquele que oferecia a estátua. Mas, na verdade, o que os gregos desejavam com a colocação de monumentos funerários era garantir para o morto perpétua lembrança por parte dos parentes e estranhos (Humphreys, 1980, p. 269-270).

A imagem predominante do morto comum na Grécia Antiga é de um ser que evoca mais pena do que medo. Sua psyché toma a forma de uma minúscula figura alada que permanece próxima à sua tumba, chamada de eidolon (imagem) e skiá (sombra), indicando que os mortos eram meras sombras de suas formas anteriores (Garland, 1995, p. 12). Eles, no entanto, poderiam - se não diretamente, ao menos de forma indireta - ajudar ou prejudicar os vivos.

O lugar de cada um

Para os gregos, o cosmos determinava um lugar para cada um dos seres e, atingir a vida boa significava encontrar o seu próprio lugar neste cosmos ordenado. Por este motivo, os mortos não poderiam permanecer no mundo dos vivos, eles precisavam chegar ao mundo dos mortos, o lugar apropriado para eles. Essa viagem não se dava de uma vez, pois diversas etapas deveriam ser cumpridas. A chegada e a entrada no mundo dos mortos dependiam não só da pessoa que morreu, mas também dos vivos, que deveriam cumprir rituais propiciatórios para ajudar o morto a encontrar o caminho e a ser aceito no seu novo lugar.

Além disso, não só o morto devia descer ao submundo e se integrar a uma nova sociedade, mas também o grupo deveria estabelecer a sua identidade após essa perda. A separação era um processo bilateral, que requeria vigorosos esforços de ambas as partes (Garland, 1995, p. XII).

Os gregos pareciam acreditar que mesmo estando no submundo, ainda era possível a comunicação com os mortos e que estes poderiam ajudar ou prejudicar os vivos, dependendo

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das ações praticadas pelos últimos com relação aos rituais funerários.

Demonstrar ingratidão para com os mortos era perigoso, não exclusivamente porque eles tivessem poderes para fazerem mal à pessoa pessoalmente, mas porque podiam se queixar à Perséfone e, com isso, desencadear um castigo para a comunidade como um todo, em forma de más colheitas e infertilidade. Um morto que se julgasse vítima de ingratidão ou desleixo, poderia ser desagradável, irritável e malevolente e devia ser apaziguado pelas oferendas e libações dos vivos. Ao contrário, um morto “satisfeito” pela perfeita elaboração dos ritos também poderia ajudar os vivos. Oferendas e orações eram realizadas junto às tumbas, solicitando esta ajuda. Mais próximo da sua tumba, aparentemente, o poder do morto era maior e ele poderia oferecer proteção contra o sofrimento. O morto podia perceber quando figuras amigas ou hostis se aproximavam da sua tumba e podia tocá-los. A ajuda do morto também era solicitada para pequenas vinganças contra inimigos. Era comum a prática de colocar nos cemitérios e túmulo placas com imprecações e maldições (katadesmoi). Como dito acima, mesmo que o morto, pessoalmente, não tivesse poderes para fazer o bem ou o mal, eles eram considerados intermediários úteis com as entidades ctônicas (Garland, 1995, p. 3-8). A ideia de que o morto continuava tendo direitos legais é um princípio da teoria legal grega na Antiguidade. Sólon transformou em crime de ofensa falar mal ou contar mentiras sobre os mortos. Em alguns casos, o herdeiro podia processar o ultrajante. Negar os ritos funerários do morto era considerado ato de hybris contra o morto. As pessoas podiam ser processadas por não cumprirem com o dever de realizar os ritos nas tumbas para seus pais e avós. Isto ofendia os deuses e merecia punição (Garland, 1995, p. 8).

Os ritos funerários

Os gregos tinham um notável zelo para com seus mortos, que se consubstanciava nos ritos de lamentação, no enterro e nas manifestações rituais desempenhadas também na tumba que era, em geral, marcada por construções e objetos de diversos tipos. A tumba não só abrigava o corpo inerte e constituía a nova morada do morto, como guardava um importante conteúdo simbólico, veiculando significados sobre o ritual da qual era subproduto e sobre as relações sociais nele envolvidas (Argolo, 2001, p.1).

Sob esta perspectiva, portanto, sejam quais forem as questões que tivermos em mente quando olhamos para as tumbas - religioso, político, econômico, social e artístico - a análise

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dos enterros é a análise de uma ação simbólica, através da qual as pessoas desvelam a estrutura social em que estão inseridas, os aspectos de seu cotidiano, suas crenças, mitos e valores (Morris, 1992, p.1). Os rituais deixam, assim, de estar associados unicamente ao universo religioso e passam a englobar as várias esferas da vida social. O contexto funerário concebido dessa forma totalizante, abre possibilidades de discutir as implicações da morte em outros domínios e ilumina questões como status, hierarquias políticas, diferenciação social e conflitos ideológicos (Morris, 1992, p.2, Argolo, 2001, p.3).

A primeira cerimônia realizada após o falecimento, a próthesis, compreendia um conjunto de rituais preparatórios, onde o corpo recebia uma série de cuidados e era ‘velado’ na casa do seu grupo familiar. Contando com a participação de parentes femininos e masculinos - embora as tarefas que exigiam contato direto com o morto devessem ser realizadas pelas últimas. Findada a preparação, que transcorria possivelmente ao som de cantos fúnebres, o corpo era submetido à lamentação e às últimas homenagens prestadas pelos presentes. A etapa seguinte, provavelmente no terceiro dia após o falecimento, antes do amanhecer, tratava-se da ekphorá, uma procissão fúnebre que transportava o corpo até o local do sepultamento (Argolo, 2006, p. 51)

O sepultamento em uma tumba atestava na prática que a viagem começara e que os vivos fizeram o que lhes competia para que ela transcorresse em segurança e o morto alcançasse seu destino devido. Embora precisem ser melhor esclarecidas, as consequências de um corpo insepulto podem ser compreendidas pelos viéses do simbolismo religioso e das implicações sociais. Sob o primeiro aspecto, os autores antigos (tragediógrafos e historiadores) consideravam esta prática como um insulto à dignidade humana e uma ameaça à entrada do corpo no Hades. No imaginário coletivo, os ataphói poderiam ser tidos provavelmente como seres condenados a vagar pela terra, embora não se possa afirmar se eram temidos pelos vivos e/ou vistos como fontes de influências malignas sobre os mesmos (Garland, 1985, p. 101-103, Argolo, 2006, p. 53).

No período clássico, inumação e cremação eram ambas praticadas; a escolha de uma ou de outra dependia do desejo do moribundo ou da preferência da família. O enterramento, preferencialmente assinalado com um marco tumular como prova de sua realização, era visto como uma prática indispensável para o desfecho dos funerais, a garantia da colaboração dos vivos no delicado processo de passagem que se iniciava para o morto. Além de ocuparem um lugar importante na história da família, construída e contada através dos sepultamentos, acreditava-se em geral que, ao romperem o elo com o mundo dos vivos, os mortos rumavam

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para um novo lugar, um domínio subterrâneo próprio para abrigá-los. De fato, o tema da passagem para o Hades foi um dos aspectos da escatologia da morte que mais se desenvolveu na Ática no século V, sendo representado em pormenores no teatro e nos lécitos de fundo branco. Ela era imaginada como uma longa viagem, realizada em várias etapas com a ajuda dos psychopompoí (condutores de almas) Hermes Chthónios e o barqueiro Caronte. Uma vez desfalecido, o indivíduo tinha sua alma transportada por Hermes do mundo superior para as margens das águas infernais, aonde era entregue aos cuidados de Caronte, que, em seguida, fazia a travessia em direção à Terra dos Mortos propriamente dita (Sourvinou-Inwood, 1995, pg. 306, Argolo, 2006, p. 51)

Os cuidados com os mortos não se constituíam apenas nas providências relacionadas ao funeral – que a partir de Sólon, estava especificado em lei - mas consistiam em observâncias rotineiras que deveriam ser realizadas pela família do morto. Muito dos cuidados com os mortos estava nas mãos das mulheres da família. A legislação limitava sua ação fora de casa no momento do funeral, mas no seu interior, na ocasião da próthesis, ela podia agir livremente e conduzia o ritual. As atividades que ocorriam dentro de casa eram responsabilidade da mulher. As suas tarefas no cuidado com o corpo, coincidiam com suas tarefas diárias: banhar, vestir, perfumar, arrumar. Assim como banhavam e vestiam os recém-nascidos, também faziam com o morto. As lamentações eram conduzidas pelas mulheres e os hinos rituais que eram cantados nestas lamentações, também ficavam a cargo delas (Pomeroy, 1998, p. 104-107).

É preciso salientar que os ritos associados especificamente aos funerais e ao sepultamento, constituíam tão somente o evento inicial de uma performance ritual contínua, que prosseguia com as frequentes visitas de familiares às tumbas para a renovação dos ritos e das homenagens aos mortos, e não raro ultrapassava o escopo de uma geração (Argolo, 2006, p.48). Ou seja, além dos rituais realizados no momento funeral propriamente dito, muitos outros eram realizados na tumba em datas estipuladas pelo costume e em intervalos regulares. No terceiro e nono dias após o funeral, eram realizadas oferendas de alimentos junto à tumba, feitas pelas mulheres da família. Na interpretação tradicional, a cerimônia ta trita — a celebração do terceiro dia — era realizada três dias após o funeral. No nono dia após o funeral, alguns membros da família e amigos se reuniam novamente, diante do túmulo, para realizar os ritos apropriados — ta enata. Não se conhece praticamente nada sobre tais cerimônias, exceto terem sido mencionadas em tribunais de justiça e que tinham a participação das mulheres da família do morto. Outros ritos aconteciam na tumba, a

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triakostia (ritual dos 30 dias) e os ritos anuais (Garland, 1995, pg. 39-40; Florenzano, 1996,

pg. 76; Arruanategui, 2006, pg. 158).

As visitas regulares à tumba de um parente era, para um ateniense do período clássico, um ato de importância comparável ao próprio enterramento. A omissão desse dever por uma filha ou filho era uma falta grave e podia ser usada em um processo pela posse da herança (Garland, 1995, pg. 104; Florenzano, 1996, pg. 66).

A oferenda de comida e bebida era um dos pontos principais dos ritos nas tumbas (Garland, 1995, pg. 110). Fitas e flores também eram levadas para decorar a tumba, além de outros itens significantes para o morto. Aipo era comumente oferecido aos mortos, ritual talvez ligado com a fertilidade do solo (Garland, 1995, pg. 116). Eram as mulheres as responsáveis por manter a tumba, realizar oferendas e manter, portanto, a memória e a construção/projeção pública da família, em uma atividade pública de grande visibilidade (Stears, 1998, pg. 123).

O final do luto, aparentemente era marcado por uma cerimônia. Existem fontes que mencionam ritos de conclusão do luto no trigésimo dia após o funeral — o triakostia, triakas ou triakades. Durante o período Arcaico e Clássico, esse período não era especificado em Atenas. A literatura da época diz que a família retornava à vida cotidiana depois de concluir os ritos costumeiros — ta nomizomena (Arruanategui, 2006, pg. 159).

Em cada local da Grécia, o período de luto tinha uma duração diferente. O período de luto também variava para cada parente, dependendo da proximidade com o morto e o grau de poluição a que esse esteve exposto (Garland, 1995, pg.40). O fim do luto marcava o fim do período perigoso para os familiares. A partir deste momento, o morto já havia sido aceito no Hades (Garland, 1995, pg. 41).

O papel das mulheres nos rituais funerários gregos

Destacada a importância fundamental dos rituais funerários para a sociedade grega antiga, resta analisar a participação feminina nestes rituais e nos questionarmos sobre a necessidade da sua presença. Enfim, por que as mulheres eram fundamentais em algumas fases do ritual, principalmente na próthesis e nos rituais realizados nas tumbas?

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Antes de nos atermos especificamente aos rituais funerários, é necessário destacar que as mulheres não eram, na verdade, fundamentais somente nos rituais funerários, mas em todos os ritos de passagem, em especial nascimentos e casamentos. Além disso, é possível notar a incrível semelhança entre os rituais de casamento e de funeral na Grécia antiga e estabelecer uma ligação entre morte, casamento e fertilidade, através do mito sobre o rapto de Perséfone. Chamo a atenção para este fato porque estas ligações poderão, mais adiante, nos ajudar na compreensão da necessidade da presença feminina nos rituais funerários e demais ritos de passagem.

Já não é mais aceitável pensar que as mulheres eram escolhidas para lidar diretamente com a morte - principalmente no preparo do corpo para o funeral - porque eram naturalmente poluídas, devido ao contato constante com o sangue – tanto menstrual como do parto. Tampouco podemos concordar que os homens, por serem mais poderosos, deixassem para elas as tarefas mais poluidoras, em virtude do menor status feminino (Stears, 1998, p. 117/118). Os homens também lidavam com o corpo na ekphorá e no sepultamento/cremação, não sendo, portanto, este ato sempre deixado a cargo das mulheres.

Além disso, as pessoas mais expostas à poluição da morte, na verdade, não eram aquelas que lidavam diretamente com o corpo, mas sim os parentes mais próximos. O grau de parentesco indicava o maior ou menor grau de poluição. Quanto mais próximo do morto, maior o grau de poluição a que se estava exposto e maior o nível do ritual que devia ser realizado para se livrar desta poluição (Stears, 1998, p.117).

O que devemos destacar é que a participação da mulher era fundamental, não porque ela fosse vista como inferior e, assim, mais apta a realizar o “trabalho sujo”, mas sim porque ela era detentora de um saber ritual. Em virtude disso, elas não podiam ser substituídas em determinadas funções rituais, ou em alguns cargos religiosos, que eram ocupados por sacerdotisas (Sourvinou-Inwood, 1995, p.9).

O papel desempenhado pela mulher na sociedade estava fundamentalmente ligado à manutenção da comunidade. Esta manutenção se dava a partir da sua função reprodutora de indivíduos e de valores sociais, que passava aos filhos ao longo de sua formação. Segundo Blundell (1998, pg. 160), o papel que elas exerciam na manutenção da coesão e da estabilidade da família as tornou cooperadoras indispensáveis nas atividades rituais. Esta autora também enfatiza que a participação feminina na religião era favorecida pela crença de que a mulher teria uma conexão intrínseca com o divino e por isso, seria mais apropriada para a função ritual (Blundell, 1998, pg.1). Assim, a vida e as práticas religiosas das mulheres

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eram tidas como essenciais para a sociedade, mesmo que realizadas na esfera privada (Blundell, 1998, pg.9).

Acreditava-se que a ação feminina na próthesis, por meio da correta realização dos ritos, garantia a partida pacífica do morto para o Hades e a contenção do miasma da morte. Uma de suas tarefas, portanto, era a contenção da desordem e da poluição (Sourvinou-Inwood, 1995, p.9). As mulheres, desta forma, eram responsáveis pela saúde ritual da casa e, pela ligação que esta possuía com a cidade, da pólis como um todo. O conhecimento ritual na Grécia clássica era uma força potente, pois a religião possuía um valor social que hoje já não vemos (Stears, 1998, p. 120).

Percebemos, assim, que muito embora as regulamentações funerárias que vigoraram a partir das leis e Sólon tenham limitado a participação feminina, as mulheres tinham papel fundamental nos rituais funerários e isto se dava por vários motivos. Em primeiro lugar, como já dito anteriormente, porque possuíam um saber ritual e porque podiam demonstrar o sofrimento da família pela perda de um dos seus membros sem a contenção exigida dos membros masculinos da família, garantindo as honras devidas e os lamentos adequados (Stears, 1998, pg. 115 e 121; Dillon, 2003, pg 292).

Também é importante destacar que as lamentações realizadas pelas mulheres nos rituais funerários guardavam uma relação estreita com questões envolvendo a herança. A

performance dos rituais era o principal veículo para se assegurar o parentesco com o morto;

tratava-se de uma forma concreta e eficaz de demonstrar participação ativa nos assuntos familiares. As lamentações entoadas pelas mulheres da família forneciam evidências concretas sobre as relações familiares que estavam na base dos processos de partilha dos bens e da redistribuição dos papéis familiares no oikos. Uma vez que era justamente o grau de parentesco que determinava os direitos de herança, a referência aos funerais era recorrente nos processos de disputa do direito sobre o patrimônio deixado pelos indivíduos falecidos. Mais do que a presença, o patrocínio dos funerais era citado como prova da relação estreita entre o morto e seu herdeiro em potencial (Garland, 1995, pg. 28 ; Pomeroy, 1998, pg. 121; Stears, 1998, pg. 124 ; Argolo, 2006, pg. 54). Além disso, como os ritos funerários continham enunciados sobre o morto e sobre os que lhe prestavam homenagens, ambos tinham destacadas suas virtudes e o comportamento condizente com os costumes e requisições da

pólis.

O cumprimento das atividades rituais apontava para a conservação da harmonia nas relações familiares e o bem-estar do oikos, elementos também fundamentais para a

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manutenção da comunidade e da polis. O empenho de um filho ou filha na condução dos funerais de seus pais, assegurava por meio desta ação a continuidade da memória familiar pela próxima geração e, imbricados no mesmo processo, reforçavam/reafirmavam a identidade do grupo para si e perante a comunidade mais imediata, sobretudo os oikoi com que formavam uma rede de relações mais estreita, calcada no convívio cotidiano. A identidade do oikos era a pedra angular de uma triangulação entre a identidade individual e a identidade políade, esta amplamente ancorada também nos mitos de autoctonia. A possibilidade de extinção do oikos preocupava os atenienses de tal maneira que foi preciso recorrer a mecanismos/dispositivos sociais de exceção (como a adoção intra ou extra-familiar e o epiclerato) para evitar que ela se concretizasse. Confirmando esta preocupação, é possível encontrar muitos casos de disputa jurídica cujos debates giram em torno do tema da ‘saúde’ do oikos, isto é, coloca-se em questão se o mesmo sofre ou não um vazio de uma descendência legítima (preferencialmente descendente masculinos diretos) para dar prosseguimento à linha paterna (Pomeroy, 1998, p. 121, Closterman, 1999, p. 282, Argolo, 2006, p. 55).

A realização dos ritos apropriados, como dito anteriormente, garantia que o morto seria bem acolhido no Hades e que encontraria seu lugar no submundo, mantendo a ordem social e evitando que este pudesse se vingar dos vivos. Estes ritos eram importantes em sua totalidade, para manter viva a memória do defunto e de sua família, única forma conhecida pelos gregos para que alguém conquistasse a eternidade (Rodrigues, 1983, pg. 80-81).

Os ritos de passagem serviam para marcar momentos na história das famílias e as mulheres como detentoras do conhecimento ritual e como testemunhas e produtoras dos eventos a eles relacionados, podem ter se tornado figuras poderosas na casa e podem ter sido o cerne do auto-conhecimento e memória do oikos. As lamentações/canções de lamento eram fundamentais para demonstrar este conhecimento, pois louvavam e confirmavam a existência do oikos e dos ancestrais, além de preservar a sua memória (Stears, 1998, pg. 123).

Uma forma de compreendermos a importância da mulher na realização destes rituais é compartilharmos do pensamento da maioria das sociedades antigas, a partir do qual se acreditava que a mulher, por ser solidária de outros centros de fecundidade cósmica - a terra, a lua – e de possuir, ela também, ciclos como a natureza, adquiriu também prestígio e poder para influir sobre a fertilidade – dos solos e dos homens - e sobre o mundo dos mortos (Eliade, 1972, p.237). É desta forma que podemos explicar o papel preponderante da mulher nos rituais ligados à fertilidade da terra, aos casamentos e aos rituais funerários.

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A agricultura como técnica profana e como forma de culto, se cruza com mundo dos mortos em dois planos distintos. O primeiro é a solidariedade com a terra; os mortos, como as sementes são enterrados ou habitam o mundo subterrâneo, penetram na dimensão ctônica acessível somente a eles. Além disso, a agricultura é por excelência uma técnica de fertilidade e de vida que se reproduz, multiplicando-se. Os mortos são atraídos por este mistério do renascimento, da palingenésia e da fecundidade sem descanso. Semelhantes aos grão enterrados, os mortos esperam seu regresso à vida sob uma nova forma (Eliade, 1972, p.316). A relação entre os mortos, as colheitas e a sexualidade é tão estreita que, muitas vezes, os cultos funerários, agrários e genésicos (podemos incluir aqui os de casamento) se fundem quase completamente (Eliade, 1972, p.317). Podemos perceber, na verdade, que existem conjuntos de rituais míticos nos quais a morte e o renascimento se interpenetram e se convertem em momentos distintos de uma mesma realidade transumana (Eliade, 1972, p.320).

A relação dos mortos com a fertilidade e a agricultura se observa mais claramente quando estudamos as divindades ligadas a estes domínios. Na maioria das vezes, uma divindade ctônico-vegetal, se converte igualmente em uma divindade funerária (Eliade, 1972, p.318) – temos na Grécia o exemplo de Perséfone. Neste viés, ninguém melhor do que a mulher, também uma representante da fertilidade e dos ciclos da natureza, para lidar com os domínios da morte, da fertilidade e do (re)nascimento.

Para o homem antigo, a fecundidade da mulher influía na fecundidade dos campos, mas a opulência da vegetação ajudava, por sua vez, a mulher a conceber. Os mortos colaboram tanto com uma coisa quanto com outra, esperando ao mesmo tempo a energia e a substância destas fontes para reintegra-los no fluxo vital (Eliade, 1972, p.321).

Devido à importância dada aos rituais funerários e à sua interferência em tantos setores da vida, observar essas regras e cumprir os ritos de forma adequada dava às mulheres uma posição elevada na opinião da comunidade, aumentando seu status como realizadora de seus deveres rituais.

Podemos imaginar sem ir demasiado longe que as mulheres devem ter percebido que o reconhecimento público de pessoas de fora do grupo familiar que compareciam ao funeral ou que as viam realizando os rituais nas tumbas - ao perceberem seu comportamento apropriado, seu cuidado e conhecimento ritual (incluindo a lamentação) - era uma forma de adquirir reputação e honra para ela e para o oikos como um todo. A atitude feminina correta mostrava também que ela sabia conduzir bem a sua casa e que assegurava os direitos de seu guardião legal (kyrios) à herança. A participação nestes rituais deve ter sido, portanto, bastante

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desejada pelas mulheres (Stears, 1998,p. 122).

Os rituais funerários na Grécia Antiga eram espaços femininos, organizados e apropriados pelas mulheres como forma de exposição e ação na sociedade políade. É muito provável que as mulheres percebessem sua centralidade no rito funerário e utilizassem isto a seu favor, para adquirir status e um certo tipo de poder (Stears, 1998, p. 122), uma vez que os

rituais de visita da tumba valorizavam a imagem da mulher como pessoa individual e como membro do grupo. Ela se tornava visível e poderia ser elogiada por toda a sociedade e também pelos visitantes que estivessem neste espaço público. Os cemitérios nas cidades gregas encontravam-se em locais de grande movimentação, em geral nas entradas da cidade (Stears, 1993, p. 140 – 150, Clairmont, 1983, 44 – 45, Burton, 2003, p. 20-21) e, por esse motivo e pela importância dos ritos realizados neste local, podem ser considerados como espaços de poder. Não é de se estranhar que a polis tenha tentado limitar a participação feminina nos rituais funerários em alguns momentos, considerando-a como perturbadora (Corley, 2006, p.2-3).

O impacto das lamentações femininas e da realização dos ritos funerários em geral não estavam, portanto, restrito à esfera doméstica. Na observância dos rituais funerários as mulheres conseguiam transpor as fronteiras entre o público e o privado de uma maneira mais direta e física (Stears, 1998, p. 124).

Nesse contexto é possível propor uma discussão acerca de um embate no e pelo espaço público, envolvendo a construção de uma visibilidade feminina. Esta visibilidade, ou esta

exposição, a sociedade políade permitia — e permitia ver-se através dessa exposição como

sociedade — no uso que fazia dos contextos funerários (Andrade, 2003, p.4).

É preciso lembrar que, numa sociedade como a da polis grega, separar religião e política não é inteiramente possível. Porém, ao concordarmos com a afirmação de que não se podem separar, numa polis grega, sociedade, política e religião, devemos estar atentos para o fato de que ao observarmos o “religioso” observaremos o “político”, mas não certamente o

mesmo político a ser observado no uso das instituições. Deste modo, o “político” sozinho, no

sentido estrito que a ele conferimos na atualidade, não dá conta da dimensão total do político numa polis grega, assim como o “religioso”, sozinho, não pode dar conta da ubiquidade do fenômeno religioso nas sociedades políades. O “político” em uma polis grega está ligado à vida na polis, à relação com a cidade em muitos aspectos e não somente com a esfera institucional (Andrade, 2003,p.4).

Assim sendo, tendo colocado todas as funções da realização dos ritos funerários na Grécia Antiga e, considerando que muitos destes rituais eram realizados no espaço público,

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devemos nos questionar se estes ritos também não possuíam um aspecto político por excelência. Se deles dependia a continuação do oikos e da polis, se deles se esperava a continuação do grupo em sua autoctonia e se as mulheres tinham um papel importante e insubstituível nestes ritos, não estariam elas contribuindo e participando indiretamente deste universo político da cidade?

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Referências

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