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A Alexandria dos Ptolomeus A legitimação do poder no Egito Ptolomaico ( a.c.)

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A Alexandria dos Ptolomeus – A legitimação do poder no Egito Ptolomaico

(332- 30 a.C.)

     

Guilherme Salvati Licenciado em História – UFMT

gui_gustavo@hotmail.com.br

Resumo: Durante o período Ptolomaico, para serem aceitos como legítimos faraós, os ptolomeus fizeram uso de

um projeto político que levava em conta os aspectos religiosos e culturais dos egípcios. Esse projeto foi iniciado com Alexandre, o Grande, que ordenou a construção da cidade de Alexandria, e continuado por seus sucessores, começando com a criação do deus Serápis, durante o reinado de Ptolomeu I Sóter, e a construção do museu e a biblioteca de Alexandria. Nosso intuito nesse artigo é destacar essas principais medidas, mostrando como elas foram essenciais nessa manutenção do poder, destacando a cidade de Alexandria e suas principais construções, assim como o estabelecimento do culto ao novo deus Serápis, que tinham como objetivo satisfazer imigrantes e nativos.

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Alexandre, o Grande, rei da Macedônia, chegou ao Egito por volta de 332 a.C. A chegada de Alexandre representou o fim do domínio persa no Egito, e o povo egípcio o recebeu como seu libertador, como afirma David (2011, p. 415), “ele assegurou que fosse permitido aos egípcios continuar com suas próprias práticas religiosas, ofereceu sacrifícios a seus deuses e foi investido como faraó pelos sacerdotes egípcios”. Antes da chegada de Alexandre no Egito, já havia gregos na região, porém ainda considerados estrangeiros. Com a chegada do rei macedônico, o Egito passa a ser visto, segundo Lewis (2001, p. 09), como parte do mundo grego e uma terra de oportunidades para as pessoas de diferentes locais do mundo helenístico. Em 331 a.C. Alexandre decidi fundar a cidade de Alexandria, junto ao Egito1. Riad e Devisse (2010, p. 168) afirmam que o local para a construção da cidade havia sido escolhido por Alexandre, o Grande, quando ia de Mênfis para o oásis de Amon, para se consultar com o oráculo no templo de Zeus-Amon em 331 a.C. De acordo com a narrativa do geógrafo Estrabão (64 - 24 a.C.), acredita-se que Alexandre teria escolhido essa área pela excelente localização geográfica2, o que permitiria a prosperidade econômica da região.

“A principal vantagem da cidade está no fato de ser o único lugar em todo o Egito igualmente bem situado para o comercio marítimo, em virtude da excelência dos seus portos, e para o comercio interno, pois o rio facilita o transporte de todas as mercadorias [...]”. (Estrabão,

Geografia. E. BERNAND, 1969 apud RIAD; DEVISSE, 2010, p. 168).

O projeto da cidade foi traçado pelo arquiteto Dinócrates de Rodes, e posto em execução imediatamente. Alexandre estabeleceu o formato da cidade, sua organização e seus principais pontos, a cidade seguia o mesmo modelo das cidades gregas da época. Sua principal característica era o predomínio de linhas retas. As ruas, em sua maioria, eram retilíneas e cruzavam-se em ângulos retos (Fig. 01).

Na época da morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C., a construção da cidade ainda não havia sido concluída, e provavelmente, só foi terminada durante o reinado de Ptolomeu II (285-246 a.C.). Após sua morte, o império de Alexandre foi dividido entre seus generais. Ptolomeu, filho de Lagos, o general macedônico encarregado das tropas no Egito ficou com       

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Os Ptolomeus referiam-se a cidade como Alexandria Junto ao Egito. Pois, a cidade era, ao mesmo tempo, o local de residência real e a capital ptolomaica, sendo assim parte integrante do território geográfico egípcio, mas, por outro lado, era um mundo à parte do restante do Egito, sobretudo culturalmente. (Cf. LOBIANCO, Luís Eduardo. A Romanização no Egito: Direito e Religião (séculos I a.C. – III d.C.), tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense, 2006, p. 33).

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“Situada entre o Mediterrâneo, ao norte, e o lago Mareótis, ao sul, distante dos pântanos do Delta e, no entanto, próxima do braço canópico do Nilo”. (RIAD; DEVISSE, 2010, p. 168).

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essa região. Ptolomeu não se autoproclamou imediatamente rei ou faraó, governando por quase dezesseis anos como sátrapa (vice-rei). Somente em 306 a.C., quando todos os herdeiros legais de Alexandre já haviam falecido, é que Ptolomeu decidiu assumir o diadema real e fundou a Dinastia Ptolomaica3 em 305 a.C. (Cf. DAVID, 2011, p. 417).

Figura 01 – Mapa de Alexandria – Fonte: FLOWER (2010, p.12).

Com a Dinastia Lágida, a cidade de Alexandria se desenvolveu ainda mais em termos geográficos e demográficos, principalmente durante o governo dos três primeiros Ptolomeus, foram construídos edifícios, templos e as instituições mais importantes da cidade. Como relata o geógrafo Estrabão, “a cidade contém os mais lindos recintos públicos e também os palácios reais; pois cada rei, por amor ao esplendor, queria adicionar algum adorno aos monumentos públicos”. A cidade alcançou grande destaque econômico e cultural, se tornando um atrativo para povos estrangeiros. Alexandria atraiu Gregos, Persas, Macedónios, Judeus, Indianos, Africanos, Sírios, Mesopotâmicos e Gauleses, houve segundo Rocha Pereira (1993, p. 522), uma grande variedade de povos e de culturas, típico desse período pós-Alexandre. O nível cultural que a cidade atingiu atraiu também os sábios do império, e, enquanto os Ptolomeus       

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O Egito ptolomaico é um período da história do Egito que decorre entre 305 a.C. (ano em que o general Ptolomeu I Sóter, se tornou rei do Egito) até 30 a.C. Recebe a designação de ptolomaica devido ao fato dos seus soberanos terem assumido o nome Ptolomeu. É também conhecida como dinastia lágida em função do nome do “pai” do fundador da dinastia, Ptolomeu I, ser filho de Lagos da Macedônia.

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reinaram sobre o Egito, Alexandria foi considerada a capital intelectual do mundo mediterrâneo.

Peter M. Fraser, um dos principais pesquisadores sobre a Alexandria ptolomaica, em sua obra Ptolemaic Alexandria (1972), dividi a formação inicial da cidade em sete categorias: primeiramente, a população grega que consistia nos cidadãos, cidadãos parciais, gregos sem status civil definido, gregos com vínculos étnicos externos, a população egípcia nativa, os imigrantes não-gregos, entre eles os judeus, e por último, os escravos. Segundo Riad e Devisse (2010, p. 169), “os habitantes da cidade viviam em comunidades, sendo que a parte oriental era habitada por gregos e estrangeiros, o distrito do Delta próximo ao bairro real, pelos judeus, e a parte ocidental, pelos egípcios nativos, no distrito de Rakoti”. A sociedade nesse período estava dividida em camadas, no topo estavam o rei, os altos funcionários e o exército, seguido pelos intelectuais, negociantes, comerciantes, artesãos, marinheiros e os escravos. Sendo que a maior parte da população era formada pelos egípcios nativos, que na sua grande maioria eram os camponeses, artesãos, pequenos comerciantes, pastores, etc. A língua grega era a mais difundida na cidade, porém o egípcio era predominante nos bairros dos nativos, enquanto no bairro judeu predominava o aramaico e o hebraico4.

Segundo o filósofo Filo de Alexandria (25 a.C. – 50 d.C.), a cidade de Alexandria estava dividida em cinco distritos, dos quais restaram poucas informações, sendo que o mais importante era o bairro real, na zona do Grande Porto, entre o mar e a Via Canópica, a principal rua que a atravessava de leste a oeste, já que era a parte mais atraente da cidade, com grandes palácios e jardins, além de ser o local em que se encontrava as mais importantes construções do período ptolomaico: o Museu e a Biblioteca. (Fig. 02).

      

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Sobre a cultura escrita no Egito ptolomaico ver Dorothy J. Thompson, no livro Cultura escrita e poder no

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Figura 02 – Representação de Alexandria, em destaque a Via Canópica. Fonte: Ilustração de J.C. Golvin

Nos dias de hoje, é difícil determinar a localização desses monumentos, já que partes importantes da cidade encontram-se abaixo do nível do mar, e o restante soterrado sob a cidade moderna. Dessa forma, a descrição desses monumentos da cidade antiga, é com base nas descrições de autores da antiguidade e nas descobertas dos arqueólogos.

Uma das construções mais importantes é o Farol de Alexandria, considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo5. A Torre foi erguida em Faros, uma pequena ilha situada em frente do porto de Alexandria. Foi destruído inteiramente no século XIV, quando um forte terremoto atingiu a ilha em 1375. Moedas antigas e representações em mosaicos nos dão uma ideia de sua forma, além de relatos de historiadores árabes (Fig. 03). Segundo Riad e Devisse (2010, p. 171), o Farol foi projetado por Sóstrato de Cnido, por volta de 280 a.C., durante o reinado de Ptolomeu Filadelfo. O Farol media cerca de 135 m de altura, e foi construído

      

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Não se sabe ao certo quem escolheu as Sete Maravilhas do Mundo Antigo, a mais antiga referência a elas está em um poema do escritor grego Antípatro de Sídon, o engenheiro grego Fhilon de Bizâncio também faz referência a lista, que na antiguidade era conhecida como “Ta hepta Thaemata”, que significa ‘as setes coisas dignas de serem vistas’. A lista incluía os Jardins Suspensos da Babilônia (605 a.C.), a Estátua de Zeus (450 a.C.), o Templo de Ártemis (550 a.C.), o Mausoléu de Helicarnassus (350 a.C.), o Colosso de Rodes (300 a.C.), o Farol de Alexandria (280 a.C.), e as Pirâmides de Gizé (4.500 a.C.). Ver: J. Ribeiro Ferreira e Luísa de Nazaré Ferreira, As Sete Maravilhas do Mundo Antigo: fontes, fantasias e reconstituições (Lisboa, 2009).

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principalmente com pedras calcárias, e os ornamentos em mármore ou bronze6. Por volta de 1480, o sultão Kait Bey aproveitou as pedras retiradas das ruínas do Farol para a construção de um forte para defesa litorânea.

Figura 03 – Moedas da época romana que reproduzem o farol de Alexandria – Fonte: www.torredeherculesacoruna.com

Porém, a construção mais importante de Alexandria, foi sem dúvida, o Museu e a Biblioteca. Em um documento judaico chamado Carta de Arísteas7, escrito entre 180 – 145 a.C., é atribuido a Demétrio a fundação da Biblioteca de Alexandria sob as ordens de Ptolomeu I Sóter, que sugeriu que fosse construído um local que abrigasse toda a cultura contemporânea. Em pouco tempo, como comenta Riad e Devisse (2010, p. 172) coletaram mais de 200 mil manuscritos, porém o número total mais aceito pelos historiadores está na casa dos setecentos mil documentos. Dessa forma, concentrou-se na Biblioteca toda a produção grega, além da versão para o grego da literatura de outros povos. Assim, a biblioteca foi de fundamental importância para a disseminação e preservação da cultura grega. Os historiadores Jacob e F. Polignac (2000, pp. 17-18), consideram que a ambição dos ptolomeus era aliar poder e cultura em um só local.

Como dito, uma parte importante da cidade encontra-se abaixo do nível do mar, e o restante soterrado sob a cidade moderna, assim, não resta praticamente nada da cidade antiga, por isso temos que confiar, sobretudo, em descrições feitas por autores da antiguidade e nas descobertas dos arqueólogos. Entre esses autores, temos o relato do geógrafo grego Estrabão, que visitou Alexandria no final do século I a.C., e fez toda uma descrição sobre o funcionamento geral do Museu e da Biblioteca.

      

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“O promontório extremo da ilhota de Faros é um rochedo batido pelo mar de todos os lados, sobre o qual fica uma Torre espetacular, construída em mármore branco, com vários andares, e que tem o mesmo nome da ilha”. (Estrabão, Geografia 17.1.6 e 9 apud LEÃO; MANTAS, 2009).

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Segundo Flower (2010, p. 55), o Museu era dividido em três partes principais, que compreendia um passeio (peripatos), uma galeria (exedera) e um santuário às Musas (mouseion), de onde se supunha provir a inspiração artística, filosófica e científica. O geógrafo Estrabão descreveu os edifícios da seguinte maneira:

“Os palácios reais também compreendem o Museu, que abrange um passeio, uma êxedra e um vasto salão, no qual os filólogos se reúnem para as refeições. Existem também recursos gerais para a manutenção do colégio; o responsável pela direção do Museu é um sacerdote nomeado pelos reis, ou, em nossos dias, por César”. (Estrabão, Geografia apud RIAD; DEVISSE. 2010, p. 172.)

Assim, os intelectuais viviam em um edifício próximo ao Museu, onde recebiam moradia e alimentação e se dedicavam integramente aos estudos (Fig. 04). Esses recursos atraíram os grandes sábios do mundo grego, que lá fizeram algumas das mais importantes descobertas da Antiguidade, principalmente geógrafos, cosmógrafos e astrônomos8.

Após inúmeras tragédias o Museu e a Biblioteca foram destruídos. Segundo Flower (2010, pp.106-108), o primeiro incidente ocorreu, provavelmente, durante a campanha de Júlio Cesar, ele incendiou os navios atracados no porto de Alexandria para impedir que caíssem nas mãos dos inimigos, as chamas alcançaram os depósitos de livros, alguns autores dizem que as chamas não chegaram a atingir a biblioteca, mas sim as lojas dos livreiros. Ninguém sabe exatamente quantas obras se perderam, e os relatos são contraditórios9. Esse acontecimento foi uma perda trágica para a cultura e marcou a primeira de uma série de calamidades que a biblioteca alexandrina original10 sofreria.

      

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Entre os vários estudiosos, destacam-se: Eratóstenes de Cirene (276 – 194 a.C.), matemático grego, conhecido por calcular a circunferência da Terra; Estrabão (64 – 24 a.C.), geógrafo grego, autor da obra Geografia, um tratado de 17 livros contendo a história e descrições de povos e locais conhecidos na época; Euclides (330 – 260 a.C.), matemático, conhecido como o “Pai da Geometria”, autor de Os Fenômenos, importante obra sobre astronomia, e do tratado sobre geometria, Os Elementos; Arquimedes de Siracusa (287 – 212 a.C.) matemático,

descobriu a relação entre o diâmetro e a circunferência, porém sua contribuição mais importante foi a invenção que ficou conhecida como o “parafuso de Arquimedes”, um dispositivo que ainda hoje e utilizado no Egito para elevar a agua; Apolônio de Perga (262 – 190 a.C.) matemático, foi o fundador da trigonometria; Diodoro da Sicília (90 – 30 a.C.), historiador grego, autor da obra Biblioteca Histórica; Herófilo da Ásia Menor (335 – 280 a.C.), médico grego, conhecido como o “Pai da Anatomia”; Mâneton (Século III a.C.), historiador e sacerdote egípcio. (Cf. RIAD; DEVISSE. 2010, pp. 174-176).

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Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), filósofo romano, fala de 40 mil, enquanto o autor latino Aulo Gélio (130- 180 d.C.) e Amânio Marcelino, historiador do século IV, falavam de 700 mil.

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Foi edificada recentemente uma nova Biblioteca, inaugurada em 2003 nos arredores da sua antecessora. Ela também tem a ambição de se tornar um dos maiores e mais importantes polos culturais dos nossos tempos. Sua ala principal, batizada como Biblioteca Alexandrina, soma-se a outros quatro conjuntos especializados, laboratórios, um planetário, um museu científico e outro caligráfico, além de uma sala para congressos e exposições.

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Figura 04 – Representação dos complexos da Biblioteca de Alexandria – Fonte: http://vidaemperspectiva.blogspot.com.br/

Após a conquista romana do Egito, o declínio e a ruina foram progressivos. O Museu e a Biblioteca sofriam os problemas da época. Muitos dos estudiosos abandonaram o país, e os livros foram levados a Roma. A propagação e o triunfo do cristianismo deram fatal. Não há razões para crermos que ainda existissem após o século V (Cf. RIAD; DEVISSE. 2010, p. 176).

No período ptolomaico, os reis promoveram uma política pró-Egito, e ambas as comunidades, gregas e egípcias, cresceram juntas. Os casamentos inter-raciais não se tornaram comum, mas houve um aumento no número de casamentos entre gregos e egípcias. Predominantemente, prevaleciam nessas famílias as tradições egípcias, mas foram adotados aspectos da cultura e educação helenísticas. Como comenta David (2011, p. 422), os gregos começaram a assumir nomes egípcios e a aprender a língua nativa, alguns também aceitaram os deuses egípcios, isso fica evidente com relação aos procedimentos funerários e de sepultamento, os gregos adotaram o costume da mumificação e reconheceram o papel das deidades associadas à morte à ressurreição. Como dito, eram adotados, em certa medida, costumes helenísticos, alguns egípcios também adotaram nomes gregos, aprendiam a língua e usavam vestimentas gregas. Esse processo de helenização, no entanto, foi provavelmente superficial e, em maior proporção, ambas as comunidades continuaram a preservar as próprias

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tradições. Nesse período desenvolveu-se uma experiência religiosa complexa, por mais que ambas as comunidades mantivessem suas próprias crenças e costumes, houve também um processo de hibridização, que pode ser visto de duas formas: cultos nacionais foram formalmente estabelecidos com o objetivo de unir ambas as comunidades e houve também um processo natural no qual ambas as comunidades adotaram e fundiram elementos das duas tradições.

As práticas religiosas e mágicas tinham uma ligação direta com a política, já que através delas o faraó se legitimava como soberano diante do povo egípcio e justificava suas ações como permissão dos deuses, nesse sentido, concordando com Gralha (2009, p. 21), a religião era usada como forma de controle social e, de certa forma, como “propaganda” do governo. Ainda segundo o autor, essa “propaganda religiosa” se manifestava no plano material, principalmente, por meio da construção de templos (arquitetura). No Egito Ptolomaico, os gregos eram a minoria da população, e viviam principalmente nas cidades de Alexandria, Ptolomais e Naucrátis, e seus templos eram modestos em escala e estrutura, e restam poucas evidências arqueológicas ou literárias da sua existência. Já os templos tradicionais para os cultos egípcios aumentaram, e isso prova duas coisas: primeiramente, que a população nativa era maioria no período, e segundo, e mais importante, os Ptolomeus estavam tendo sucesso em seu projeto político-religioso, o que possibilitava a eles legitimarem seu poder diante do povo egípcio e assumirem o papel de faraó. Os grandes festivais e procissões anuais, também serviam para atingir a todos os segmentos sociais. E mesmo que essa legitimidade não fosse aceita por todos ela causava, significativamente, um grande impacto social. No Egito Faraônico é possível identificar alguns planos político-religiosos, o mais importante e ousado aconteceu durante o Novo Império (1400- 1320 a.C.), quando o faraó Akhenaton (1353- 1335 a.C.), promoveu fortes mudanças envolvendo política e religião, acabando com o politeísmo e estabelecendo Aton como único deus celestial.

Com a chegada de Alexandre, o Grande, ao Egito, houve uma renovação na parte administrativa e militar, e também se ampliaram as relações mercantes, porém, era necessário adotar um projeto político que levasse em conta os aspectos religiosos e culturais. Foi durante o reinado de Ptolomeu I Sóter que se estabeleceu uma nova divindade conhecida como Serápis, um deus que contemplava ambas as culturas (grega e egípcia), e que tinha como objetivo unir os dois povos.

“De fato, na nova divindade inventada convergiam traços do touro egípcio Ápis que ao morrer se assimilava a Osíris, bem como semelhanças físicas, qualidades e poderes dos deuses gregos

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Zeus, Hélio, Dioniso, Hades, Posídon [Poseidon] e Asclépio. Os aspectos de soberania eram-lhe conferidos pelos deuses solares Zeus e Hélio e também por Posídon. De Dioniso, Ápis e Osíris recebia os vectores de fertilidade agrícola do mundo natural. Hades, Asclépio e também Osíris forneciam-lhe os elementos funerários, associados à vida no Além, à medicina e à magia”. (SALES, 1999, p. 363-364).

Percebemos assim, que Serápis reunia aspectos culturais gregos e egípcios. Segundo Sales (2007, p. 314), a representação típica dessa nova divindade era a de um homem maduro, com barba, bigode e longos cabelos encaracolados, vestindo uma típica túnica helenística e um manto, calçando sandálias e usando na cabeça um cesto ou vaso, também chamado

calathos11, que representava a fertilidade e a abundância da produção agrícola do Egito, que também indicava sua ligação com a deusa helênica Demeter, chamada “Mãe da Terra”, deusa grega da agricultura (Fig. 05).

Figura 05 – Busto de Serápis – Museu de Alexandria, Egito Fonte: http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/

Percebemos que a criação e a elevação do culto ao deus Serápis, se deu pela necessidade de promover uma coexistência e contemplar as culturas de ambos os grupos étnicos, de um lado os gregos e do outro os nativos egípcios. Essa junção foi possível através

      

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Cesto grego que continha frutas, também usado como medida agrária, portanto era um símbolo de fertilidade do mundo helênico (Cf. LOBIANCO, 2012, p. 64).

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da criação de uma divindade hibrida, culturalmente falando, que serviria para conciliar ambas as crenças.

Contudo, segundo David (2011, p. 426), de todas as divindades do mundo helenístico, o culto a Ísis, a de Nomes Inumeráveis, foi o que mais se difundiu, sendo que a deusa egípcia também foi alvo da política religiosa dos lágidas12. Os gregos a identificaram como Afrodite e Hathor. Ísis era representada vestindo uma túnica grega com o característico nó sobre o peito (Fig. 06). Assim o casal Osíris-Ísis da tradição faraônica deu lugar a Serápis-Ísis, que marcou todo o período ptolomaico. Como comenta Sales (2007, p. 317), em Alexandria, Serápis era a deidade mais cultuada, no entanto, na chóra, maioria demográfica do país, Serápis nunca alcançaria a devoção popular de Ísis.

Figura 06 – Representação de Ísis. 117- 134 d.C Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ísis

Durante o reinado de Ptolomeu IV Filopator (221- 204 a.C.), dá-se a integração do deus Harpócrates, o Hórus criança, como filho de Serápis e de Ísis, criando-se, assim, segundo Riad e Devisse (2010, p.166), uma nova tríade, formada por Serápis como Deus-Pai, Ísis como Deusa-Mãe e Harpócrates como Deus Filho (Fig. 07). Segundo Sales (2007, p.       

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“O hino a Ísis, descoberto em Zos, diz o seguinte: “Sou aquela a quem as mulheres chamam deusa. Ordenei que as mulheres fossem amadas pelos homens, reuni marido e mulher e inventei o casamento. Ordenei que as mulheres gerassem filhos, e que os filhos amassem seus pais”. (TARN, W. 1930. Citado por RIAD; DEVISSE, 2010, p. 166-167)”.

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318), o deus Harpócrates era representado por um menino de pé, nu ou com uma simples

clâmide (manto) no braço esquerdo, usando a coroa pschent (a dupla coroa branca e vermelha

da antiga realeza egípcia) e com o dedo na boca, o que fez com que os imigrantes gregos o identificassem como deus do silêncio.

Figura 07 – Harpócrates, o filho de Serápis e Ísis. Fonte: http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/

Quando Ptolomeu I Sóter criou Serápis, como deus tutelar de Alexandria, pretendia-se que a deidade funcionasse como um elo entre as populações helénicas e egípcias, que tanto étnico quanto culturalmente eram bastante diferentes. Esse era um dos objetivos inicias dos ptolomaicos: realizar a conciliação funcional da história política e cultural do jovem mundo helenístico e da história cultural e política do velho mundo egípcio.

“A introdução do culto de Serápis na cidade capital dos Ptolomeus respondeu à necessidade de harmonização intercultural dos dois mais importantes agrupamentos populacionais de Alexandria e constituiu um fator de superação das antíteses vencidos/vencedores, antigos/modernos, autóctones/estrangeiros, entretanto desenvolvidas com a ocupação grega do Egito e que eram, na viragem do séc. IV a.C., um dos maiores problemas colocados ao poder político”. (SALES, 2007, p. 318).

Apesar de Alexandria ser uma cidade essencialmente grega (população e arquitetura), os reis lágidas sabiam que estavam dirigindo um país diferente, um lugar cheio de história e

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tradição, e a criação desse novo deus foi como uma resposta à complexidade étnica e cultural da sociedade alexandrina. O deus Serápis satisfazia imigrantes e nativos, e permitia ao poder político manter a sua hegemonia sobre a população.

Considerações finais

Percebemos portanto que os ptolomeus fizeram uso de um projeto político de legitimação de poder, esse projeto teve início com a construção da nova capital, Alexandria, iniciada por Alexandre, o Grande, e finalizada durante o reinado de Ptolomeu I Sóter, que ordenou ainda outras importantes construções como o Museu e a Biblioteca, que serviam como propaganda política e mostrava o poder dos Lágidas. Logo no início de seu reinado, Ptolomeu I Sóter percebeu que as práticas mágicas e religiosas eram a base de manutenção do poder e da legitimidade dos faraós egípcios, teve início então o processo de criação de uma nova divindade, conhecida como Serápis, que carregava características gregas e egípcias, e a formação de uma nova tríade, além de um aumento significativo na construção de templos. Como afirma Sales (2007, p. 318), a religião constituiu um território particularmente estimulante e profícuo para o encontro das etnias e das culturas existentes no Egito.

O período ptolomaico durou até o ano de 30 a.C., depois disso o Egito passou a ser do domínio de Roma. Isso aconteceu durante o reinado de Cleópatra VII, uma das mulheres mais importante na história da humanidade. Como comenta Lobianco (2006, p. 38), Cleópatra era uma mulher interessada em seu povo, ela foi a primeira dos Ptolomeus a aprender a falar a língua egípcia, e também apadrinhou a religião egípcia, a anterior à chegada dos Lágidas. Cleópatra deu continuidade à política de restauração dos templos, e representou a si própria como a deusa Ísis e seu filho Cesário como o deus Hórus. Após a derrota na batalha de Ácio, em 30 a.C., seguido da morte de Marco Antônio, Cleópatra se suicida, e Otaviano Augusto, senhor do mundo romano, torna-se o novo Faraó do Egito, sendo reconhecido pelo clero local como um deus vivo.

“A queda de Antônio e de Cleópatra é um momento chave de nossa história. Com eles, morrem a República Romana e a Época Helenística. Um novo mundo inteiramente regido pela onipresença de Roma, se impõe. É o início do reino imperial e o fim da independência do Egito, logo reduzido à província romana”. (MARTIN, 1990 apud LOBIANCO, 2006, p. 37).

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Referências bibliográficas

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Referências

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