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Passados 500 anos, o Auto da Barca do Inferno continua atual nas releituras de Sttau Monteiro e Jaime Gralheiro

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PASSADOS 500 ANOS, O AUTO DA BARCA DO INFERNO CONTINUA

ATUAL NAS RELEITURAS DE STTAU MONTEIRO E JAIME

GRALHEIRO

AFTER FIVE HUNDRED YEARS, AUTO DA BARCA DO INFERNO KEEPS

ATUAL IN THE STTAU MONTEIRO S AND JAIME GRALHEIRO S

REREADING

Flavia Maria Corradin Universidade de São Paulo

Resumo: Passados quinhentos anos da primeira representação de Auto da Barca

do Inferno (1517), o texto vicentino

continua infinitamente atual, como deixam patentes as inúmeras manchetes que habitam diferentes mídias e têm por objeto o Brasil. Deixemos, por hora, isto de lado para examinar, fazendo uso de procedimentos intertextuais, como o auto ressoou no Portugal salazarista e imediatamente pós-salazarista por meio de dois textos dramáticos: Auto da Barca

do Motor fora da Borda, de Sttau

Monteiro (1966) ou Na barca com Mestre

Gil, de Jaime Gralheiro, que conta com

duas versões, a primeira, escrita em

1973, a segunda, datada de

setembro/outubro de 1997.

Trabalharemos neste artigo com esta segunda versão, uma vez que ela está inscrita num momento em que Portugal vê o salazarismo como fato histórico, já que dista da revolução dos cravos cerca de um quarto de século.

Palavras-chave: intertextualidade; historiografia; contemporaneidade.

Abstract: After five hundred years of the

Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente s

play keeps on being now a days, to make clear, in different media scoping Brasil. Letting this issue apart for the moment for examining how the play outstands into other plays : Auto da Barca do Motor

fora da Borda , by Sttau Monteiro (1966)

or Na barca com Mestre Gil, by Jaime Gralheiro, which had two versions, the first ond written in 1973 and the second one written on September/October 1997. This paper will examine the second version since it focuses a moment Portuguese Salazarism as a historic moment far away half a century from the Revolução dos Cravos.

Keywords: intertextuality; historiography; contemporaneity

Palavra Inicial

Passados quinhentos anos da primeira representação de Auto da Barca do Inferno, o texto vicentino continua infinitamente atual, como deixam patentes as inúmeras manchetes que habitam diferentes mídias e têm por objeto o Brasil.

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Deixemos, por hora, isto de lado para examinar como o auto ressoou no Portugal salazarista e imediatamente pós-salazarista por meio de dois textos dramáticos: Auto da Barca do Motor fora da Borda, de Sttau Monteiro (1966) ou Na barca com Mestre Gil, de Jaime Gralheiro, que conta com duas versões, a primeira, escrita em 1973, a segunda, datada de setembro/outubro de 1997.

Conforme lembra Saramago, não há mais o que escrever, só há o que reescrever, portanto talvez seja conveniente lembrarmos alguns conceitos basilares que presidem o fazer artístico de quantos se voltam para a retomada do que já foi escrito. Assim, a óptica intertextual também é um caminho sempre seguro quando pretendemos enveredar por reedições ou revisões da história de um povo, já que a intertextualidade consiste, como sabemos, na re-produção/re-duplicação de uma realidade de papel, ou seja, literária. O procedimento intertextual é presidido pela ideia de intencionalidade, que gerará invariavelmente uma perspectiva crítica por parte do eu autor, mas também do eu leitor/espectador, tanto mais aprofundada quanto mais apetrechado intelectualmente este se revelar.

Talvez devamos dedicar algumas linhas para a ideia de estilização, já que este parece ser o conceito que levará, senão à refração denegridora do modelo, como acontece, no mais das vezes, com a paródia, à emulação aprimoradora do paradigma, ressaltando o que lhe está implícito, escondido, procedimento que, ao fim e ao cabo, defendia Horácio, quando falava que a imitação dos bons autores não pode ficar no nível da cópia servil (paráfrase), devendo revelar-se superadora.

Em torno do Auto da Barca do Motor fora da Borda, Luís de Sttau Monteiro (* Lisboa, 1926/ + Lisboa, 1993)

Escrita em 1966, auge das Guerras Coloniais, que marcam o princípio do fim do regime ditatorial de direita que mancha o século XX português, a peça revela, por meio do diálogo intertextual com o Auto da barca do Inferno (1517), de Gil Vicente, antes de tudo, o engajamento do autor com a redemocratização do país, se é que podemos pensar ter havido um Portugal democrático de 1910, com a Proclamação da República, a 1974, com a Revolução dos Cravos, uma vez que a

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alternância de governos, que marcou o início do século XX português até a implantação do Estado Novo, no início da década de 30 do século passado, impede pensarmos ter havido nessa quadra da história um país genuinamente aliado ao ideário democrático.

O fundador do teatro português, Gil Vicente, tem sido conclamado a reeditar seu feito, criação, recriação do teatro nacional, sempre que o momento histórico põe esta forma de conhecimento em perigo.

A peça de Sttau Monteiro parte de uma óptica que implica a releitura do auto vicentino, imprimindo-lhe uma nova perspectiva, uma vez que o paradigma quinhentista possibilita retratar os problemas da sociedade portuguesa da sua contemporaneidade, imersa num universo marcado pelo medo, pela censura, pelo catolicismo beato, ao fim e ao cabo, pelo retrocesso num período da história da humanidade em que os avanços nos âmbitos da ciência e da cultura são nítidos, notadamente depois do final da segunda guerra mundial. Assim, a releitura proposta pelo dramaturgo português não apenas retoma um momento do Portugal passado, mas faz isso por meio da recuperação de uma peça, que por sua vez já examinou o Quinhentos, com o intuito de apresentar uma visão da década de 60 do século XX luso. Portanto, o passado torna-se ponto de partida para a (re)visão do presente.

Se a ditadura salazarista não permitiu que os ensinamentos propalados por Bertold Brecht (*1898/+1956) chegassem em sua inteireza a Portugal, uma vez que a obra do autor alemão foi das mais censuradas no período, Sttau Monteiro, que vive fora de Portugal por longos períodos, pôde conhecê-la em sua totalidade, aproveitando dela o que lhe parecia adequado aos seus propósitos dramatúrgicos.

Assim, seu Auto da Barca do Motor fora da Borda apresenta procedimentos retomados a Brecht, presididos pelo Verfremdungseffekt, na medida em que o estranhamento temporal alicerça o texto contemporâneo, quando já na primeira cena, surgem dois arrazes ─ um vicentino e um contemporâneo. A partir do confronto, ou melhor, do paviciano atrito , ou ainda, do brechtiano estranhamente provocado pelos dois arrazes, ou melhor, entre os dois tempos em que estão

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inscritos, Sttau Monteiro vai reler o maniqueísta conflito vicentino, caracterizado pela disputa entre o Bem e o Mal encarnados no Anjo e no Diabo, transformando-o num conflito temporal, deflagrado na tentativa de as personagens-tipo vicentinas insistirem em representarem o auto para que foram criadas num tempo que lhes é totalmente estranho. Assim, o termo estranho está sendo tomado em seu sentido etimológico, em que estranhar consiste em achar extraordinário, oposto aos costumes, aos hábitos, isto é, diferente daquilo que a História oficial retrata, ou na acepção que lhe confere Brecht, ou seja, de provocar distanciamento. Tal conflito, cerne da peça contemporânea, pode ser explicitado pelo diálogo entre o Arrais Vicentino e o Burguês monteiriano: Mudaste o auto a mestre Gil? / Não fomos nós, foi o tempo"1

O distanciamento épico, ao provocar o estranhamento, recurso paródico por excelência,revelado entre o Quinhentos e o Novecentos objetiva, ao fim e ao cabo, levar o leitor/espectador à reflexão, tarefa primordial da perspectiva brechtiana, empreendida por Sttau Monteiro, que reconhece ser o teatro, por sua característica de reunir pessoas, um convite à reflexão seja no âmbito do indivíduo, seja no do coletivo. Delineia-se, assim, o motivo por que esta forma artística é visada, perseguida e proibida em períodos ditatoriais, uma vez que a reflexão implica necessidade de alteração do e no status quo, inviável em tempos de exceção. Sem prescindir do prazer, o teatro didático, conforme aponta Barthes2, não exclui o prazer, mas transforma a dialética em fonte de prazer: "o épico é aquilo que corta (repica) o véu, desagrega a pez da mistificação...".

Outros signos da releitura monteiriana colaboram para o exercício reflexivo proposto pelo dramaturgo. São eles o cenário, ou seria o adereço cênico, o vestuário e a linguagem.

Quanto ao cenário, no lugar das barcas do Anjo, para onde se encaminham as almas em busca da salvação, mas onde, como sabemos, só encontram abrigo o Parvo e os Quatro Cavaleiros de Cristo, e do Diabo, na qual acabam por embarcar

1STTAU MONTEIRO, Luís de. O auto da barca do motor fora da borda. Lisboa: Ática, 1966, p. 19-21. 2BARTHES, Roland. Brecht e o discurso: contribuição para o estudo da discursividade. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 275.

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todas as outras personagens-tipo, na peça contemporânea há apenas uma embarcação que traz um motor fora da borda. Adereço nitidamente metafórico, na medida em que contribui para apontar a situação de estar à deriva em que se encontra o Portugal contemporâneo ao Autor, no auge da guerra colonial, nos estertores do salazarismo, período em que o regime se mantém, notadamente, pela força exercida pela polícia política. O estar sem rumo visto por Sttau Monteiro justifica-se, na medida em que para o dramaturgo não há como prosseguir depois de quase meio século de ditadura, em que o povo é levado a agir de acordo com a proposta estreita de um governo de direita, que se mantém exclusivamente pela força, que manipula tudo e todos em prol da manutenção do regime. O dramaturgo encontra, pois, semelhanças com o período retratado na peça vicentina, caracterizado pelos desmandos do final do governo manuelino, em 1517, quando o rei se vê diante da corrupção, das falcatruas, dos desajustes sociais advindos da falta de alicerce moral de uma população, que deixa de lado o engrandecimento da Pátria em prol do enriquecimento individual. Na verdade, parece estarmos diante de um cenário que extrapola o universo português, embora sirva exemplarmente para esta quadra da história lusa, uma vez que ambos os textos buscam tratar de tema que parece nunca abandonar o homem de qualquer tempo ou lugar: corrupção, falcatrua, apego ao material em detrimento do espiritual ou moral. Portanto, discutir o sentido político e ético do homem quinhentista é também fazê-lo em relação ao universo do Novecentos. Não será do homem de todos os tempos e lugares? A diferença parece estar exatamente na visão dos dois autores. Enquanto Gil Vicente acredita, talvez ingenuamente, que o rumo dos homens e da Pátria possa ser corrigido por meio do retorno aos ideais medievos de honra e nobreza, além da recuperação de uma igreja cristocêntrica, Sttau Monteiro não vê saída para Portugal se não com a queda do salazarismo. Talvez ponha em cheque inclusive o fato de que a redemocratização do país constitua solução para a situação à deriva em que se encontra o país há quatrocentos anos.

Vestuário e linguagem, porque incidentes sobre as personagens-tipo, talvez devam ser examinadas em conjunto. E, para não nos alongarmos demasiadamente, de uma forma, diríamos, bastante superficial.

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A vestimenta e o linguajar com que se expressam as personagens-tipo vicentinas, ao reproduzir quase fielmente o texto de 1517, revelam evidente anacronismo no texto monteiriano, levando ao riso. O choque entre as duas posturas, aliado à presença em cena de uma única barca com o motor fora da borda a que aludimos, colaboram para a construção do efeito de distanciamento, propósito basilar do intertexto, uma vez que deve ficar claro estarmos diante de uma representação, outro recurso bebido a Brecht. Ressaltemos ainda o fato de que os atores desempenham diferentes papeis de modo a que o público reconheça estar diante de uma peça de teatro, quebrando a ilusão de realidade do público. Tal recurso fica evidente na fala do Arrais Contemporâneo: "não ruma - anda à deriva"3, que é completada pelo Arrais Vicentino: "Barca do demo, do demo e não de mestre Gil... do demo, com mil raios que até de longe fede a enxofre! [...] Ah mestre, que não te conheço a barca! Eu, que da tua barca fiz de arrais, não te conheço a barca!"4.

Não podemos nos esquecer ainda de que o Arrais Contemporâneo se dirige ao público, ápice da quebra da quarta parede, promovendo a interação completa entre texto, atores, cenário... e público, objetivo último do teatro engajado, que privilegia a conscientização.

Em torno de Na barca com Mestre Gil, de Jaime Gralheiro (*São Pedro do Sul, 1930/ + São Pedro do Sul, 2014)

Como dissemos, a peça conta com duas versões, a primeira, escrita em 1973, a segunda, datada de setembro/outubro de 1997. Segundo o Autor, a reescritura deve-se ao fato de que

os problemas a que Gil Vicente respondia em , já não são os mesmos a que ele terá de responder , nos limiares do século XXI. Por isso, houve necessidade de, praticamente, reescrever toda a peça (Não há, mesmo, nenhuma cena que não tenha sido mexida, algumas recriadas, quase integralmente; uma foi, até, acrescentada [na

3 STTAU MONTEIRO, Luís de. O auto da barca do motor fora da borda. Rio de Janeiro (não será

Lisboa?): Ática, 1966, p. 12.

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verdade foram duas: cena IX do 1º ato; cena X do 2º ato] e outras suprimidas]5.

Qual a intenção de Gralheiro ao trazer à tona, passados mais de quatro séculos, a dramaturgia vicentina? Segundo nos afirma, suas razões estariam, num primeiro momento, na melhor compreensão dos alçapões confusos de nosso passado coletivo . Talvez possamos perceber questões mais práticas, o que não invalida a anterior, para ressuscitar a dramaturgia do introdutor do teatro em Portugal. Trata-se de uma tentativa para divertir, no sentido etimológico do termo ─ isto é, de desviar a atenção de ─, os olhos da censura salazarista sobre as atuações do CENICO – Grupo de Teatro Popular (CGTP) , criado em 1971, em São Pedro do Sul, e formado por estudantes, trabalhadores e alguns intelectuais, dentre eles José Oliveira Barata e Manuela Cruzeiro, além do próprio Jaime Gralheiro. Neste contexto, o Grupo começa por montar dois espetáculos: Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, na temporada de 1971-1972, e Sapateira prodigiosa, de Frederico Garcia Lorca, na temporada de 1972-1973. Ambas as programações foram interrompidas na sétima representação pela censura salazarista.

Buscando fugir à censura, o Grupo decidiu montar, na temporada de 1973-1974, um texto de Gil Vicente, o patrono do teatro português, convencidos de que a censura não proibiria um espetáculo do introdutor do teatro português, uma vez que estavam frescas as comemorações do 4º centenário do Mestre.

Assim para atenuar o distanciamento no nível da linguagem e notadamente os valores explorados pelo dramaturgo quinhentista e aqueles revelados na contemporaneidade, às vésperas do de abril, o CENICO decidiu respeitar o entendimento popular de Gil Vicente, com o sacrifício de certos pormenores formais, uma vez que os interesses culturais do povo trabalhador a que se dirigiam ou queriam dirigir justificavam esse pequeno sacrifício formal 6. 0 Grupo considerou que a melhor maneira de homenagear um clássico é extrair dele os valores prestáveis para a sociedade em que se está inserido, uma vez que, segundo

5 GRALHEIRO, Jaime. Na Barca com Mestre Gil. Lisboa: Editorial Caminho, 1999, p. 10. 6 Idem, ibidem, p. 12.

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Gralheiro, Quando um clássico deixar de responder aos problemas que afligem os trabalhadores, deixou de ser clássico e passou a ser múmia. O seu lugar é no museu

dos mortos isto é: o esquecimento 7.

Ainda segundo o Autor, respeitando a lei, o texto foi enviado para o serviço de Censura, retornando de lá totalmente mutilado. O Grupo, com o apoio da SPA (Sociedade Portuguesa de Autores), recorreu junto aos órgãos competentes, uma vez que, no exemplar enviado para a Censura, nada havia que separasse o texto vicentino dos acréscimos impostos pelo dramaturgo coetâneo. Para censurar a peça, teriam que passar um pente fino, relendo a obra de Gil Vicente. Não o fizeram, cortaram tudo. Nesse intercurso se deu o 25 de abril, daí a peça ser a última obra do Autor proibida pela censura salazarista. Pouco depois, a peça foi representada, com grande alarde, a fim de fazer com que nunca se esquecessem da época que findava.

Gostaríamos de ressaltar o fato de que, já à época, Gralheiro percebe que a peça era um veículo para introduzir o aluno (trabalhador) no mundo vicentino. Segundo o Autor, Na barca com Mestre Gil não é uma tese, ou ensaio, sobre Gil Vicente e o seu tempo, não! É, sim, a recriação artística de um Homem e da sua circunstância. Ao escrevê-la pretendemos contar uma parábola histórica, com base documental 8.

Portanto, Gralheiro retoma a obra vicentina, transportando-a para os finais do século XX, na medida em que redimensiona a História, daí poder-se falar no conceito brechtiano de parábola histórica que consiste, segundo Patrice Pavis,

num gênero de duplo fundo : o plano da anedota, da fábula, que usa uma narrativa facilmente compreensível, contada de modo agradável, que é atualizada no espaço e no tempo ⎯ evoca um ambiente fictício ou real, no qual se presume que os acontecimentos sejam produzidos; e o plano da moral ou da lição, que é o da transposição intelectual, moral e teórica da fábula. Nesse nível profundo e sério é que aprendemos o alcance didático da peça, podendo ⎯ nesse caso ⎯ estabelecer um paralelo com a nossa atual situação . Portanto, paradoxalmente, a parábola é um meio de falar

7 Idem, ibidem, p. 12. 8 Idem, ibidem, p. 10.

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do presente, colocando-o em perspectiva e travestindo-o numa história e num quadro imaginários9.

A peça de Gralheiro trava diálogo com os seguintes textos de Gil Vicente: Auto da visitação, Romagem dos Agravados, Auto da feira, Clérigo da Beira, Auto Pastoril da Serra da Estrela , Carta de Gil Vicente a D. João III, Breve Sumário da História de Deus, Auto da Lusitânia, Auto da Índia, Farsa de Inês Pereira e fundamentalmente com o Auto da Barca do Inferno, além de trazer alusão ao Auto [da Barca] do Purgatório.10

Embora não objetivemos apontar exaustivamente como Gralheiro revela o diálogo com a obra vicentina, gostaríamos, entretanto, de apontar exemplos de como Na barca com Mestre Gil dialoga com o Auto da Barca do Inferno, objeto, ao fim e ao cabo, da presente efeméride, bem como conferir-lhes sentido.

A partir da segunda cena, do Ato II, Gralheiro procede à colagem do Auto da Barca do Inferno, que, como sabemos, representada em 1517, na câmara de D. Maria, mulher de D. Manuel, aponta as mazelas e corrupções presentes nas almas que desfilam diante dos barqueiros, cujos tipos revelam características da sociedade daquele e deste tempo. Na cena IX desse ato, o autor também dialoga, por meio de mecanismos intertextuais já apontados, com o Auto da Barca do Purgatório, exatamente trazendo à tona o Lavrador a exemplificar o honesto trabalhador, que se opõe a todos os outros que desfilaram anteriormente. Dediquemos, pois, especial atenção à última cena deste segundo ato, que promove a atualização, recurso sobremaneira utilizado ao longo da peça, do Inferno judaico-cristão para os Infernos que presenciamos no século XX. Vejamos como Gralheiro, quase surrealistamente, pinta-nos o Inferno, no diálogo travado entre o Jornalista, o Diabo e Dinato:

Jornalista: Eu ardi na Inquisição, Fiquei sem cabeça na guilhotina E forca!

Fui levado com Lorca Para a vala comum

9 PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 276.

10 Além dos textos vicentinos citados, Na barca com Mestre Gil também dialoga com outros textos,

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Vi o céu explodir em Guernica, Passei Auchwitz e o Vietname, Fugi no Cambodja

E, para que alguma coisa de mim fique, Perdi-me nas matas da Guiné,

De Angola e Moçambique, E fui parar à Bósnia e ao Irão! Não! não foi um milhão!

Foram milhões e milhões de crianças, De homens e mulheres,

Ou se quiseres:

Continentes inteiros a explodir

De raiva e de impotência, tombando sob a violência Que o homem soube erguer

Para liquidar o outro! Pobres diabos!

O que vocês têm ainda que aprender!11

Se pensarmos que o tribunal da Inquisição foi a primeira instituição responsável por iniquidades, que privou a liberdade de pensamento e expressão na Idade Média, época em que, digamos, as leis eram outras, passando pelos anos de terror que sucederam a Revolução Francesa, em 1789, em que, a visão de mundo passa a ser diferente, uma vez que os valores aí instalados deveriam inaugurar uma nova postura frente ao mundo, aquela encabeçada pela burguesia, percebemos que nada muda. O século XX vai ser marcado por guerras que, em última instância, revelam a falta de sensibilidade do homem contemporâneo, herdada do homem de todos os tempos, em relação às diferenças de pensamento. A citação alude ao franquismo durante a Guerra Civil Espanhola, aos campos de concentração nazistas durante a Segunda Grande Guerra Mundial, às intervenções norte-americanas no Vietnã e no Camboja, para chegar às Guerras Coloniais durante o salazarismo, à guerra da Bósnia e à revolução islâmica no Irã. Estranha, porém, que Gralheiro não faça referência a duas outras manifestações que marcaram o século XX: a Primeira Grande Guerra Mundial e a Revolução Russa. A não referência a essa última talvez esconda a frustração do comunista Jaime Gralheiro, que via nas esquerdas uma possibilidade de mudança social. Em 1997, era já possível perceber que a Revolução (?) dos Cravos não conseguiu acabar com

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as iniquidades sociais, econômicas, políticas que marcam o Portugal seu contemporâneo.

Essa cena traz também alusão à obra De profundis, Valsa lenta, de José Cardoso Pires, em que mais ou menos autobiograficamente, reflete acerca do acidente vascular que acometeu o escritor em 1995, responsável pela perda temporária da memória, além de afetar-lhe a capacidade comunicativa. Por meio do mecanismo da inversão, Gralheiro brinca com a sem-saída de todos aqueles que chegaram ao cais infernal e nunca mais voltaram.

Gralheiro não deixa de lembrar a função social e política do Jornalista, única personagem efetivamente acrescida no intertexto em relação aos paradigmas, na medida em que afirma minha missão não é, propriamente, ensinar, mas tão somente, dar notícia, informar, prevenir , para terminar sua peça retorna ao final do Auto da Barca do Inferno.

Palavra final

Tendo examinado as peças supracitadas em confronto com o paradigma vicentino, estamos aptos a tirar algumas ilações.

Em primeiro lugar, qual é a função delas? Parece termos deixado claro que as peças (poderíamos sem cair no exagero dizer que a dramaturgia monteiriana e também agralheiriana) intentam brechtianamente apontar os problemas da sociedade de seu tempo (de sempre?), com o intuito de levar à reflexão, à interveniência, em última instância, à ação. Assim, talvez aquelas ovelhinhas que habitam o ensimesmado e orgulhosamente só Portugal, possam ser alertadas por um contingente muito menor de ovelhinhas, as chamadas ovelhas negras, dentre as quais se destacam os artistas que, mesmo duramente perseguidos e reprimidos por quase cinquenta anos de ditadura, nunca arrefeceram no ideal de apontar caminhos para o povo português, que, desde Alcácer Quibir, se encontra mergulhado no mundo das sombras, já que a realidade lusa não passa de mera reminiscência da verdadeira realidade revelada no extramuros português.

Em segundo lugar, recorrendo à intertextualidade, perspectiva crítica por excelência, ao confrontar o universo vicentino, inscrito no período áureo da

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história portuguesa (ou será no início da decadência do império lusíada?) com o princípio da derrocada do salazarismo, Sttau Monteiro e Jaime Gralheiro buscam, por meio da derrisão, da inversão paródica, atingir a estilização, caracterizada, como vimos, pela emulação superadora, notadamente no que tange ao aspecto ideológico, que é reformado nos intertextos, na medida em que são explorados tudo aquilo que estava oculto, subentendido, aprofundando questões que invadem a literatura portuguesa, nomeadamente a cena lusa a partir da década de 60 do século passado.

Se tomarmos Na barca com Mestre Gil, fica evidente, pois, que os fragmentos dos autos vicentinos prefigurariam (vieirianamente?) a realidade coetânea a Jaime Gralheiro? É como se os excertos fossem modelares para o seu tempo, apontando as mazelas de uma sociedade que, mesmo pós 25 de abril, se via imersa numa teia de corrupções e falcatruas que os ideais democráticos não conseguiram superar? Estaria Jaime Gralheiro tentando dizer que o pensamento vicentino, de índole cristã, não encontrou eco no seu tempo nem no nosso tempo, uma vez que o Homem é maquiavelicamente corrupto por natureza? O Jornalista seria o porta-voz de Gralheiro, tentando conscientizar uma sociedade marcada por revoluções, guerras, matanças, iniquidades, a qual crê em que apenas a Ciência e a Razão possam ser caminhos para a solução de tais problemas?

Assim, poderíamos aventar a hipótese de que ambos os textos dialogam com o sinfronismo, conceito pelo qual os clássicos suscitariam a simpatia e uma leitura comprometida, que gerasse afetividade em relação ao Criador, trazendo-lhe o espírito e o estilo para a contemporaneidade, conforme nos lembra Raúl Castagnino,

coincidencia espiritual de estilo, de módulo vital, entre el hombre de una época y los de todas las épocas, de los próximos o los dispersos en el tiempo y el espacio [...]. No han escrito las obras clásicas sus autores; las va escribiendo las posteridad. [...] El Sinfronismo es, pues, una capacidad que se traduce como conducta fundada en la simpatia [...]. El Sinfronismo prescinde de la temporalidad, opera al margen del tiempo12.

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Portanto, tal procedimento viria corroborar a visão de ambos os autores, uma vez que, conforme aponta Gralheiro, como já salientamos,

a melhor maneira de homenagear um clássico é extrair dele os valores prestáveis para a sociedade em que estamos. Quando um clássico deixar de responder aos grandes problemas que afligem os trabalhadores, deixou de ser clássico e passou a ser múmia. O seu lugar é no museu (dos mortos) isto é: o esquecimento13.

Além disso, ler e encenar autores clássicos capacitariam, ainda segundo o Autor, o estudante, o trabalhador, o Homem a reivindicar, e mesmo agir em prol da construção de uma sociedade mais justa, livre das iniquidades sociais, como percebemos nos excertos vicentinos, os quais continuam tão atuais como no Quinhentos. Leiamos o que o otimista Arlequim da peça de Gralheiro, inscrito no limiar do século XX, nos diz:

Vamos ter hoje, entre nós

Mestre Gil Vicente e veremos, se tantos anos após, inda com ele aprendemos14,

a contrastar com uma visão ainda bastante pessimista presente no Batel de Monteiro que, imerso nos estertores do salazarismo e na difícil Guerra Colonial, que marcam os anos sessenta do século passado português, afirma:

[...] Vou-me daqui, que este batel é vosso e não meu... Volto para o batel de mestre Gil, que este não entendo eu... Barca sem rumo, onde irá parar? Comprar nela passagem? Outro que não eu! Este batel já daqui não sai... Barca parada não serve para navegar... 15.

Com certeza, a visão sinfrônica opõe-se ao conceito sartriano de literatura comprometida, engajada, em última instância, arma de combate, que visa a produzir mudanças na sociedade sua coetânea. Sartre deseja que o escritor abrace estreitamente a sua época na medida em que ela é feita para ele e ele é feito para ela 16. O discurso de cunho nitidamente político do Autor não esconde certa idealização e utopia quando nas páginas finais de Que é a literatura? afirma

13 GRALHEIRO, Jaime. Na Barca com Mestre Gil. Lisboa: Editorial Caminho, 1999, p. 12. 14 Idem, ibidem, p. 15.

15 STTAU MONTEIRO, Luís de. O auto da barca do motor fora da borda. Lisboa: Ática, 1966, p. 69. 16 SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 2004, p.58.

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que O mundo pode muito bem passar sem a literatura. Mas pode passar ainda melhor sem o homem 17. Percebemos que, ao fim e ao cabo, tanto o sinfronismo, apelando para o emocional, para o sentimento, quanto o conceito de engajamento, divulgado por Sartre, que se insinua pelo racional, atinjam o mesmo fim: a literatura deverá conscientizar, transformar, agir sobre a sociedade de qualquer tempo, sincrônica ou diacronicamente.

Desde há muito, o teatro é considerado o gênero que mais fortemente atinge o público, uma vez que ele apela para o sentido visual, além do auditivo, é, pois, a representação de uma ação, por isso nos períodos em que há forte repressão, é exatamente ele que vai ser mais fortemente censurado. No caso de Sttau Monteiro e Jaime Gralheiro, estamos diante de um teatro de resistência, cuja capacidade de transformação advém exatamente do verbo caro factum est: É ou não verdade que o teatro/É a vida no palco transformada?

Artigo recebido em: 15.04.2018 Artigo aceito em: 24.07.2018

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