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História e conflito no "De correctione rusticorum"

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HISTÓRIA E CONFLITO NO “DE CORRECTIONE RUSTICORUM”

(c.572)

HISTORY AND CONFLICT IN “DE CORRECTIONE RUSTICORUM”

(c.572)

Néri de Barros Almeida Universidade Estadual de Campinas

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Resumo: De correctione rusticorum, carta

supostamente escrita pelo bispo Martinho de Braga em resposta a indagações de ordem pastoral a ele apresentadas por outro bispo de nome Polêmio, é célebre na tradição documental. A partir de seus elementos formais pretendemos discutir a que público foi dirigido o sermão incluído na carta bem como os objetivos visados por seu percurso argumentativo. Procuraremos mostrar que ao invés da lógica do conflito cultural - sob a qual foi muitas vezes abordado - o texto é testemunho de uma pastoral centrada na percepção histórica do tempo e que a referência que faz às superstições está subordinada a este imperativo.

Palavras-chave: História, memória, conflito, superstitio

Abstract: The De correctione rusticorum is

a text of notorious documental tradition. It is a letter allegedly written by Bishop Martin of Braga in reply to inquiries of pastoral character presented to him by another bishop called Polemius. Based on the consideration of its formal elements, we seek to discuss to which audience the sermon included in the letter was intended as well as the objectives aimed by its argumentative strategy. We will try to show that, instead of the logic of cultural conflict from which it was often approached, the text is a witness of pastoral work focused on the historical perception of time and that its references to superstitions are subordinated to this imperative.

Keywords: History, memory, conflict,

superstitio.

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Recebido em: 04/05/2016 Aprovado em: 14/07/2016

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“Como diz o Talmud, não vemos as coisas como elas são, e sim como nós somos.” Edward O. Wilson. Naturalista, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.56

Apresentação

Heródoto e Tucídides certamente não inventaram os registros de memória do passado. No entanto, ajudaram a criar uma de suas formas que, em determinados momentos e ambientes sociais, se tornou hegemônica. Em suas histórias os dois autores optaram por escrever sobre aquilo que repercutira de modo agudo sobre seus contemporâneos e de que todos se lembravam: os conflitos bélicos. Essa escolha marcou a escrita da história.

O conflito permaneceu no cerne da história política, onde os acordos e pactos estão circunscritos à perspectiva conflituosa e, mais recentemente, ocupou o centro da história cultural, onde a diferença é analisada em termos de eficácia em enfrentamentos sociais. Assim, se não nos sentimos mais atraídos pela concepção que atribui aos conflitos bélicos destaque isolado na escrita histórica, o conflito continua dominante como quadro de observação e explicação. No que se refere ao conflito, passado e presente seguem se confirmando mutuamente: o presente olha o passado para nele encontrar o conflito e o conflito do passado, legitima a percepção conflituosa de situações do presente. Da guerra, à luta de classes e desta aos conflitos culturais, a escrita da história conserva e renova o conflito como elemento estrutural.

A pergunta que decorre disso é: a história está preparada para explorar o que não é conflito?1 Desde o século XIX a escrita histórica tem importante papel social na compreensão global do presente. Estará apta a informar e participar de uma abordagem não conflituosa do mundo, em particular, daquilo que é ou pode se tornar conflito? Diante das questões fundamentais de nosso tempo a história tem recursos para localizar, identificar, compreender e valorizar o que está além dele? Nunca o mundo esteve tão perto de um colapso. Este se avizinha por dois caminhos principais: por um lado, o aquecimento global - um desafio extraordinário

1 A respeito de ambientes potencialmente preparados para isso, cito dois exemplo. A crítica ao conhecimento

baseado na oposição sujeito/objeto é uma das importantes conquistas das ciências humanas. Embora implique no fortalecimento da “relação com” e do “conhecimento de” em detrimento do “conflito com” e do “estudo de” esta ainda não produziu na escrita histórica a superação da hegemonia do conflito. No movimento feminista encontramos, provavelmente, os exemplos mais pungentes de crítica ao paradigma sujeito/objeto, nesse sentido, é significativo o que diz Luisa Muraro: "Com o feminismo, de fato, [nós mulheres] não nos tornamos sujeitos capazes de objetivar o outro do nosso lugar, mas eliminamos o paradigma sujeito/objeto enquanto tal, chamando o outro a ser termo de uma relação de troca" (MURARO, Luisa. Du féminisme à la politique des femmes. In VEAUVY, C. (ed.). Les femmes dans l'espace public: Itinéraires français et italiens, Paris: Editions de la Maison des Sciences de l'Homme/Le fil d'Ariane, 2004. p. 283). Um domínio da história em que o paradigma sujeito/objeto também pode, por princípio, ser colocado em questão, é aquele da afetividade. Mas mesmo nele, a subjetivação não é plenamente associada à valorização da relação em detrimento do conflito. Sobre a relação entre afetos e conflito, alguns exemplos podem ser encontrados no excelente trabalho coletivo coordenado por BRESCIANI, Márcia (ed.), NAXARA, Márcia (ed.). História e (res)sentimento: Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

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tendo em vista nossa ignorância a respeito do mundo natural - e por outro, ao aumento das desigualdades em um contexto de tensões que se apresentam sob a roupagem étnica e religiosa. Esses dois problemas têm o mesmo potencial de aumentar os desarranjos populacionais. A conjunção entre uma economia mundial em depressão, guerras e amplos deslocamentos humanos fazem prever desastres ainda maiores do que aqueles que temos assistido e o aumento do apelo a “soluções” violentas. A possibilidade de incremento dos conflitos mundiais nos obriga a dar maior atenção às oportunidades e formas de preparo de nossa cultura para soluções não violentas. Felizmente, ao mesmo tempo em que nos encontramos às portas da possibilidade de novos genocídios (seja de forma ativa ou passiva), nunca houve tantos interessados em investir esforços em favor da percepção de outros aspectos das relações humanas. 2 A história pode dialogar com essas tendências ao menos de duas maneiras: questionando a submissão dos documentos à lógica do conflito e valorizando as situações que se desviam de sua lógica.

Como perceberam Heródoto e Tucídides, o conflito expõe em um curto período de tempo e com intensidade aspectos fundamentais de uma sociedade, seu pensamento, desejos e intenções bem como as vulnerabilidades que produzem a hegemonia de uma vontade sobre as demais. As sociedades se tornam, mais “visíveis” nesses momentos de exceção. Conflitos são situações reais e expõem desigualdades e os mecanismos que as mascaram e nesse sentido são objetos capitais da escrita histórica. Mas nesse momento em que as questões ambientais, étnicas e religiosas evidenciam problemas com desfechos potencialmente catastróficos, se quisermos, talvez, evitar tragédias sobre as quais o século XX deixou lições inequívocas,

2 Cito três exemplos, partindo do mais recente. Em primeiro lugar o conceito de acordo assimétrico nas tratativas entre

partes desiguais em projetos de reação e prevenção ao aquecimento global. Em segundo lugar, podemos dizer que, em boa medida, a União Europeia nasceu da vontade de superação da abordagem conflituosa da política diante do desastre das duas Grandes Guerras. No que se refere à pequena região do mundo que chamamos de Europa, atingiu este objetivo fundamental ao estabelecer instâncias supranacionais para a solução de controvérsias. (Faço uma distinção bastante simples entre conflito e controvérsia pensando que controvérsias resultam de um nível de discordância entre partes diversas tratadas sem o uso de constrangimentos relativos à força e à exploração das desigualdades entre os envolvidos, ou seja, sem que se chegue ao conflito). Em que pese o fato de que do ponto de vista social a Europa viva uma crise, ela ainda é um exemplo de preservação da política do bem estar social se comparada aos Estados Unidos. Por fim, o caso complicado, mas importante dos direitos humanos. Já foi apontado por muitos que estes são uma força intervencionista. Alguns chegaram mesmo a apontar que eles foram criados justamente com esse objetivo (WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu. São Paulo: Boitempo, 2007. Uma crítica menos global e feita sob outro ponto de vista pode ser encontrada em JUDT, Tony. O silêncio dos inocentes: sobre a estranha morte da América liberal. In: JUDT, Tony. Reflexões sobre um século esquecido: 1901-2000. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. p.431-433), no entanto, esse tipo de visão é, no mínimo, parcial. Primeiramente porque ignora que os direitos humanos foram inseridos na pauta da ONU por iniciativa de movimentos sociais em um momento em que a Europa ainda estava prostrada pela destruição resultante da segunda Grande Guerra (HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. p. 204.). Depois, porque ignora que a noção de direitos humanos – a despeito de todos os seus problemas e limites – afetou positivamente a cultura e a política interna e externa de muitos países.

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precisamos considerar a conveniência de atentarmos para outras lógicas. Onde se encontram os recursos para a superação do conflito e a expansão dos pactos que aos poucos venham por abaixo a estrutura suicida em que se apoia nosso mundo náufrago? 3

Os termos da questão

O De correctione rusticorum, atribuído ao bispo Martinho de Braga (c.510/5-579/80)4 e produzido provavelmente na Galécia por volta de 572, é um texto cuja atualidade repousa, para alguns, em sua interpretação sob o signo de um conflito social cujas bases se encontravam na cultura. Como pretendemos argumentar, o texto, enquanto sermão, não foi construído sobre a noção de conflito social mas sobre aquela de conciliação da pessoa (o suposto auditor do sermão) com sua própria memória. Assim, para a admoestação dos rústicos (pro castigatione

rusticorum) presos a antigas superstições de pagãos (qui adhuc pristina paganorum superstitione detenti) é oferecida uma narrativa que rememora algo que todos deveriam saber

ou não deveriam ter esquecido (adnuntiare uobis in nomine domini quae aut minime audistis

aut audita fortasse abliuioni dedistis). Trata-se de realizar uma operação pastoral de efeitos

íntimos, sobre o sujeito que, em princípio, não permite que o historiador identifique fraturas sociais ou culturais claras. Peça de convencimento, o De correctone rusticorum merece ser

3 A escrita histórica acompanhou o movimento político de afirmação do conflito e de percepção conflituosa da vida.

Gostaria de questionar nesse texto o compromisso prioritário da escrita histórica com a lógica conflituosa. Os conflitos são reais e muitas vezes necessários. O que se mostra fantasioso é que nossa imaginação seja dominada pelos conflitos e que a política e a escrita histórica acentuem sua lógica. Nas condições em que vivemos hoje, a percepção do conflito como solução no horizonte próximo nos empurra na direção de tragédias de dimensões imprevisíveis. Resultante emblemática da modernidade e fatores de impacto – ainda não de todo revelado – sobre a escrita histórica, o Holocausto e Tchernóbil podem ser considerados os acontecimentos mais importantes do século XX. Ambos são exemplares da crença no belicismo como instrumento para a produção de realidade e dos perigos tremendos existentes nisso. Por um lado, como mostrou Timothy Snyder, o Holocausto estava no cerne do pensamento apresentado por Hitler em Mein kampf, embora as formas de realização do que depois veio a ganhar este nome, não estivessem ainda claras antes de 1942. Nesse texto tristemente célebre, a guerra é a engrenagem produtora de um verdadeiro ecossistema que o nazismo pretendeu implantar sobre as regiões e povos por eles dominados isolando uma zona de prosperidade material e cultural germânica de uma região de dominação de eslavos submetidos e orientados para o trabalho produtivo e outra destinada à aniquilação de toda a população judaica (SNYDER, Timothy. Terra negra: O Holocausto como história e advertência. São Paulo: Cia. das Letras, 2016. p.15-25). Por outro lado, Svetlana Aleksiévitch explorou a enorme contradição representada por Tchernóbil: uma usina para fins não militares cujo colapso deu origem a uma mobilização totalmente pautada sobre o modelo militar (deslocamento de tropas e equipamento bélico (!), evacuação forçada, segredo, nenhuma autoridade deliberativa para a comunidade técnica e científica, etc.). As narrativas transmitidas pela autora, colhidas ao longo de mais de vinte anos, testemunham amplamente a escala de desumanidade, desorganização e falta de efetividade dessa “guerra sem guerra”. A militarização do acidente aprofundou o desastre cujas repercussões sobre a vida no planeta ainda não foram totalmente reveladas. (ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil: Crônica do futuro. São Paulo: Cia das Letras, 2016).

4 Utilizamos aqui duas edições da obra: MARTINHO DE BRAGA. De correctione rusticorum. In NASCIMENTO,

Aires A. (ed.) In Instrução pastoral sobre superstições populares. Lisboa: Cosmos, 1997. p.106-125 e SÃO MARTINHO DE DUME. De correctione rusticorum. FERREIRA, Alcino Baptista (ed.)., GANHO, Lourdes Sirgado (ed.). In BERNARDO, Luís Manuel Ventura (ed.) et alii (ed.). Opusculos morais. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998. p. 93-111. A edição latina original foi preparada por BARLOW, Claude W. Martini Episcopi

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avaliado em sua dimensão argumentativa e em seus sentidos elementares a fim de que lhe sejam apresentadas questões coerentes com seus objetivos.

A interpretação do De correctione rusticorum é marcada pela condição a ele auferida de texto, ora Europeu, ora português. No primeiro caso, ele se tornou um exemplar célebre do dossiê que procurou documentar um padrão cultural e sociológico dominante em toda a região centro-ocidental do continente europeu entre os séculos V e XV. Este seria definido pela cisão fundamental entre clérigos letrados e camponeses incultos, que viveriam em permanente conflito por hegemonia cultural. O testemunho desse conflito residiria nas referências reiteradas dos textos eclesiásticos ao “paganismo” e às “superstições”. Estas seriam o registro de permanências de diferentes formas de paganismo (da reverência a elementos da natureza até a adoração a divindades antropomórficas do panteão cívico romano) contra as quais os clérigos se insurgiriam.5 Portanto, a unidade Europeia teria sido forjada na tensão entre dois polos de identidade cultural, um mais organizado e centralizador e outro mais difuso, espontâneo e libertário. No segundo caso, ao documentar o paganismo e a especificidade da heresia na Galécia (o priscilianismo), o De correstione rusticorum tornaria evidente a pujança e originalidade local dentro de um processo europeu comum. Dessa forma o documento pode se tornar um monumento das origens lusitanas.

Aqui, eu gostaria de observar o texto de outro ponto de vista, aquele de sua lógica de produção, ou seja, pretendo abordá-lo como texto cristão, que tira seu sentido do pertencimento a um circuito de produção e circulação que é fundamentalmente eclesiástico. O De correctione

rusticorum se apresenta como um sermão. Este teria sido remetido em uma carta produzida em

resposta a um pedido de auxílio pastoral que teria chegado a Martinho de Braga, também por

5 A valorização do documento como registro de um embate entre cristianismo e superstições não é exclusiva do século

XX. A especificidade que se firma então é a valorização desse tipo de registro como testemunho de uma cultura de resistência na Idade Média (a esse respeito encontramos uma síntese importante em SCHMITT, Jean-Claude. História

das superstições. Lisboa: Europa-América, 1997). Não pretendemos negar sua existência nem criticar os esforços

para documentá-la mas apenas, por um lado, apontar para a real dificuldade para fazê-lo e, por outro, para a necessidade de reflexão a respeito da opção prioritária da história pela lógica do conflito e a possibilidade de que nisso resida um limite desnecessário à nossa percepção dos fatos. A edição do De correctione rusticorum, preparada por Aires A. Nascimento (NASCIMENTO, Aires A. (ed.). Instrução pastoral sobre superstições populares. Lisboa: Cosmos, 1997), é bastante influenciada pelo contexto interpretativo mencionado. No entanto, já nos anos 2000 o autor desenvolve importante reconsideração de ponto de vista a respeito do texto e sua autoria respectivamente (NASCIMENTO, Aires A. A religião dos rústicos. In: NASCIMENTO, Aires A. Ler contra o tempo: Condições dos textos na cultura portuguesa (recolha de textos em Hora de Vésperas). Lisboa: Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2012. Vol. II, p.977-996 e Ibidem, A cultura bracarense no século VI: uma revisão necessária, p. 1067-1084. Num plano mais geral uma crítica bastante influente à interpretação da recorrência de “superstições pagãs” na documentação sintetizada por Schmitt pode ser encontrada em KÜNZEL, R. Paganisme, syncrétisme et culture religieuse populaire au haut moyen age: réflexions de méthode. Annales ESC, 4-5, 1992, p. 1055-1069.

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meio de uma missiva. Desse ponto de vista, a obra integra a intensa rede epistolar que, entre a Antiguidade Tardia e a Alta Idade Média, consolida no plano político e doutrinário a unidade da

ecclesia (a Igreja em seu sentido de comunidade de fiéis) em torno dos escritos de alguns bispos

e abades. O De correctione rusticorum registra, no final do século VI a consolidação dos objetivos fundamentais dessa rede. Isso é testemunhado por dois fatos: em primeiro lugar, o texto, dirige a um público inequivocamente cristão, uma matéria que Agostinho (354-430) havia desenvolvido anteriormente para uso na catequese. Isso testemunha a aceitação de Agostinho como uma autoridade destacada, mas também uma transformação no uso da matéria por ele legada. Este segundo aspecto merece atenção no que pode fazer pensar que Martinho tinha diante de si uma comunidade de cristãos arredios, resistentes às verdades da fé, daí sua submissão ao discurso introdutório, reservado aos catecúmenos. Esta questão será desenvolvida a seguir, mas já adiantamos nosso ponto de vista – que consiste no segundo fato a destacar: o alvo do texto mais do que práticas pagãs é a consciência doutrinal de seus ouvintes. Procuraremos mostrar que o De correctione rusticorum ao utilizar de maneira original e adaptada às circunstâncias de sua composição modelos estabelecidos no século anterior testemunha a maturidade no manejo de uma matéria pastoral cristã que se tornou comum.

Rústicos e Cristãos

Superar as questões relativas à “europeicidade” e “lusitanidade” do De correctione

rusticorum em favor de sua abordagem do ponto de vista da sociabilidade eclesiástica expressa

por uma rede de autoridades envolvidas em um processo comum inerente à Igreja, torna necessário compreender o texto a partir de quem o escreve e seus fins. Não foram poucas as teses que defenderam que o texto para a “correção dos rústicos” era destinado a uma população iletrada e pagã ou recém-convertida constituída, sobretudo, por habitantes dos campos.

O texto se dirige a dois interlocutores: o destinatário da carta, Polêmio, ao qual Martinho se refere na segunda pessoa do singular (tu), e aqueles em cuja intenção6 teria sido encomendada a admoestação, aos quais se refere na segunda pessoa do plural (vós). Muita controvérsia foi gerada a respeito de a que público estava destinado o sermão, identificado na carta (parágrafo 1) uma vez que para referir-se aos “rústicos” o autor utiliza a terceira pessoa do plural (eles). A quem se dirigia o texto escrito pro castigatione rusticorum? No final dos anos 1990, Aires Nascimento propôs dar a rusticorum o sentido de “gentes rurais”, “homens dos campos”. Daí, a expressão ignorantibus et rusticis ganhar o sentido de “homens

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ignorantes dos campos”, onde a condição de campesino explicava a imputação de ignorância por parte de clérigos letrados. Essa opção impunha uma interpretação importante ao texto. Segundo ela, este seria dirigido a uma população campesina e inculta, e por isso, ainda ligada a crenças não cristãs remanescentes de origem romana e local. Embora rusticus possa aludir a “camponês” e essa seja uma acepção comum do termo, não é a única e pode ser questionada. O texto de Martinho permite esse questionamento.

Durante a segunda metade do século XX observamos a uma verdadeira onda de interesse pelo “popular” invadir a historiografia. Essa irrupção repercutia a crítica aos instrumentos para a abordagem do campo social que então se processava. Ela atingia também a própria noção de conflito, como apontamos anteriormente, fundamental à tradição historiográfica. Se entre o iluminismo e meados do século XX duas noções de conflito dominam a historiografia – o conflito político (que geralmente deságua em confronto bélico) e o conflito social (sobretudo no sentido de luta de classes) – estas são paulatinamente confrontadas à ascensão daquela de conflito cultural. Essa preocupação levou os historiadores a tomarem as referências documentais ao paganismo e à superstições como expressão desse conflito. Como se tratava de um conflito simultaneamente social e cultural as cisões foram colocadas entre letrados e iletrados e entre cidade e campo, aristocracia letrada e campesinato. Por meio de um complexo teórico de prestígio presente em praticamente todas as correntes historiográficas hegemônicas então, o que deveria ser objeto de inquirição (as referências documentais a paganismo e superstições) se tornou pressuposto investigativo.

O De correctione rusticorum obteve projeção nesse contexto. Sua leitura foi assim profundamente marcada pela busca do popular entendido como foco de resistência à dominação da Igreja. Diante disso, é fundamental discutir tanto a ideia de que o texto se refira a uma oposição entre camponeses - pagãos ou cristãos recém-convertidos ainda permeados de paganismo e iletrados - e religiosos letrados, porta-vozes de uma cultura letrada exclusivista e “imperialista”; bem como colocar em questão a própria afirmação de que o alvo primordial do sermão fosse o combate à superstição dos rústicos, entendidas como cultos a astros, fontes, pedras, animais, divindades do panteão romano, etc. A superstição dos rústicos foi interpretada por alguns como a religião dos camponeses, associada geralmente a elementos como cultos agrários e anímicos, sobreviventes ao verniz da religião cristã, dotados de vitalidade nova face ao recuo do domínio romano. No entanto,

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pretendemos argumentar que no De correctione rusticorum tais elementos desempenham o papel de instrumento persuasivo, não consistindo sua condenação, enquanto prática, no alvo principal da pregação.

As primeiras linhas do De correctione rusticorum são dedicadas à exposição do conteúdo da carta de Polêmio: solicitar a Martinho considerações escritas para a admoestação de rústicos presos a antigas superstições de pagãos e que prestam culto e veneram mais os demônios do que a Deus (pro castigatione rusticorum, qui adhuc pristina paganorum superstitione detenti cultum

uenerationis plus daemonis quam deo persoluunt). A intenção de Polêmio ou, de Martinho, ao

transpor para suas próprias palavras em que consistia o pedido que lhe havia sido endereçado, foi primeiramente, a de efetuar uma separação entre dois tempos. Um antigo, cujos elementos de certo perduram, embora ainda seja pertinente nos perguntarmos como perduram. E um tempo presente, imediato, da comunicação entre os dois bispos e deles com o alvo de sua pastoral. Tais rústicos evidentemente são “presa” de tais superstições mas estas encontram-se ligadas a um outro tempo (pristina paganorum superstitione) qualificado como precedente, anterior. Assim, cumpre compreender sua lógica temporal, colocada pelo autor fora da temporalidade própria e exclusiva das coisas sobre-humanas. Com o uso do adjetivo pristina (antigas, primitivas, precedentes), à primeira vista desnecessário à construção do texto, Martinho procura ao mesmo tempo aproximar as superstições de sua audiência (nelas reside a razão da admoestação a que estão sujeitos) e afastá-la (trata-se de coisas passadas, imperceptivelmente estabelecidas no tempo presente que já não é mais o delas). Esse procedimento aparece ainda sob outra forma.

O primeiro dos 19 parágrafos do De correctione rusticorum, tem a forma de uma carta que encaminha o texto da admoestação. Nele Martinho informa que preparou um texto segundo a vontade expressa de Polêmio, ou seja, entendendo que a boa estratégia para a exortação de “rústicos presa de antigas superstições pagãs” é desenvolver considerações sobre a “origem dos ídolos e de suas perversidades”. O objetivo fundamental da argumentação, portanto, não são “superstições pagãs” (adoração a árvores, fontes, etc), mas a origem dos ídolos. Nela reside, a verdadeira natureza das “práticas” supersticiosas, algo muito mais antigo e geral, diante do que aquilo que acontece no presente, embora digno atenção, ganha uma dimensão menor. O fundamental é mostrar que essa origem se situa no vasto tempo histórico cuja totalidade e sentido os homens têm dificuldade em reter em suas memórias. Martinho pretende mostrar que essa memória daquilo que não se sabe ou foi esquecido pode ser apreendida no conjunto dos episódios fundamentais da história humana que por sua vez integra a grande narrativa da Criação. Assim,

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o episódico (as supertições) só pode ter sua natureza devidamente decifrada à luz da totalidade que, no De correctione rusticorum, é histórica. A resposta que o próprio Polêmio sugere ao problema apresentado, e com a qual Martinho aquiesce, parece deslocada do tema das superstições tal como encarado pela historiografia que, a partir da análise das recriminações presentes nos textos eclesiásticos as entende como termo de um conflito cultural.

Logo no primeiro parágrafo o termo “rústico” aparece três vezes de forma significativa. Nesse pequeno trecho Martinho afirma que escreve para rústicos para logo em seguida afirmar que seu sermão também é rústico, produzindo um jogo de palavras:

contingere et cibum rusticis rustico sermone condire. Isso acontece imediatamente antes de

apresentar a qualidade que torna seu sermão rústico: o caráter breve (breuiato), resumido (compendii). Esse tipo de correspondência entre público e sermão mostra que o termo “rústico” se refere ao conhecimento limitado de algo e não à condição rural da assistência. Reforça essa interpretação o fato de que no parágrafo 14 o autor volta a falar do caráter resumido da matéria de que seu texto se ocupa. Nesse trecho, o autor trata o público por filli

karissimi e não por rustici como acontecera no parágrafo inicial do texto. A opção pastoral

pelo tratamento amoroso e terno da audiência como filli karissimi, permite outros recursos para a referência ao aspecto sintético da obra. No trecho, o autor produz novamente um jogo de palavras mas no contexto paternal introduzido pela fórmula filli karissimi recorre à candura infantil da simplicitas para referir-se ao texto: pauca ex multis simpliciter diximus.7

As semelhanças entre o De correctione rusticorum e o De catechizandis rudibus de Agostinho – ambos se apresentam como cartas em resposta a solicitações de ordem pastoral a que atendem por meio de uma explanação sintética da história universal – fez com se afirmasse que o texto de Martinho também teria por alvo a catequese. No entanto, o texto é claro ao identificar os rusticorum qui adhuc pristina paganorum superstitione detenti, a homo

baptizatus (parágrafo 9), homo christianus (parágrafo 11), fideles e baptizati (parágrafo 14) e, filli karissimi (parágrafos 2 e 14).8 Não se trata primeiramente de pessoas que não foram catequizadas, mas daquelas já instruídas na doutrina. O sermão pretende argumentar que estes,

7 O De correctione rusticorum e o De catechizandis rudibus de Agostinho - que se ocupa de como falar de

forma adequada ao público recém-convertido -, propõem que o melhor caminho para conduzir suas admoestações é a narrativa resumida (Agostinho usa o termo summatim) do princípio de todas as coisas até o presente. SAN AGUSTÍN. Escritos vários. In Obras completas. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 1988, v. XXXIX, III, 5, 2. Uma questão a considerar no De correstione rusticorum é a associação realizada pela retórica cristã entre humildade e estilo sublime própria ao sermo humilis tal como descrito em AUERBACH, Eric. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Editora 34/Duas Cidades, 2007, p.15-76.

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apesar de se considerarem bons cristãos, ainda são presas de antigas superstições dos pagãos. O cerne da argumentação consiste em demonstrar as relações entre as superstições antigas e as do presente. No entanto essa relação não reside fundamentalmente na forma, mas no sentido. Boa parte daquilo que é classificado como superstição no texto se refere a um passado superado. O próprio termo “pagão” se remete a práticas do passado pré-cristão, no sentido daquilo que é anterior à Encarnação.9 A dialética entre passado e presente no texto não defende a ideia de um presente idêntico ao passado, mas dotado de especificidades o que dificulta a própria consciência do que seja ou de onde esteja a superstição. A atualização da “coisa” face à permanência de seu “significado” é acompanhada pela própria inclinação da pessoa ao esquecimento. O passado apresenta a origem dos ídolos e de suas más ações no diabo e seus demônios, criaturas espirituais cuja Criação é o evento em torno do qual se encontram eternidade e tempo histórico - Deus criou o homem para ocupar o lugar dos anjos caídos e estes engendraram sua Queda.

Podemos afirmar pelos elementos acima apresentados que o texto é dirigido a cristãos e que a terminologia empregada não indica de forma inequívoca a posição social desse público.10 O termo rústico se aplica ao domínio do conhecimento, à extensão e profundidade

da compreensão de algo. O que parece se confirmar pelo tom do sermão que de fato é mais uma amorosa admoestação do que uma condenação. Considerando que cristãos e rústicos constituem o sujeito único do sermão, a rusticidade é apenas mais um dos termos que o qualificam ao lado de: ignorância e esquecimento. Resta discutir se o sermão se refere a um público que tem domínio frágil da doutrina cristã por se tratar de recém-convertidos e/ou de pessoas alheias à cultura doutrinal cristã apresentando assim, resistência à fé cristã.

O sermão pode ser lido segundo critérios retóricos tradicionais: Exordium (parágrafo 2),

Narratio (parágrafos 3 a 7), Confirmatio (parágrafos 8 a14), Refutatio (parágrafos 15 a 17), Exhortatio (parágrafo 18) e Epilogum (parágrafo 19).11 Essa estrutura, no entanto, está

9 O termo aparece nos parágrafos 1, 11 e 18 sempre na segunda terceira do plural em clara alusão a não-cristãos. A

respeito da polêmica sobre o significado do termo “pagão” nas fontes cristãs, veja-se: ROBLIN, M. Paganisme et rusticité: un gros problème de mots, Annales ESC, v. 8, 1953, p. 173-183 e PINHEIRO, Rossana Alves Baptista.

Edificação da memória nos escritos de Martinho de Braga: Caminhos da expansão do cristianismo na “Gallaecia”

do século VI. Franca: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, dissertação de mestrado, 2004.

10 O De catechizandis rudibus de Agostinho apresenta um trecho dedicado aos cuidados quando o

catequizador se dirige a ouvintes de compreensão limitada. O trecho vem logo após as recomendações para falar aos eruditos e oradores, o que pode indicar que a limitação do público pode não ser das mais graves e que esta não se refere propriamente a um ambiente social específico. SAN AGUSTÍN. Escritos varios. In

Obras completas. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 1988, v. XXXIX; X, 15, 9-12.

11 NASCIMENTO, Aires A. (ed.). Instrução pastoral sobre superstições populares. Lisboa: Cosmos, 1997,

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permeada por quatro fases temporais qualitativas12: entre a Criação e o Dilúvio, entre o Dilúvio e a Encarnação; entre a Encarnação e a Ressurreição; após a Ressurreição. Por meio destas eras o ouvinte é conduzido à história da Salvação e a compreender a historicidade, ou seja, o caráter terreno, passageiro, daquilo que está associado ao que o texto chama de superstições. Assim, as superstições aparecem apenas após o Dilúvio. O termo que surge duas vezes (parágrafos 1 e 11) - assim como o termo rústico, que como vimos qualifica conhecimentos limitados a respeito de algo - se aplica tanto a pagãos quanto a cristãos. No entanto, o texto distingue as superstições antigas, acontecidas entre o Dilúvio e a Encarnação, e aquelas presentes, posteriores à Encarnação, em outros termos, à cristianização.

Antes do Dilúvio, temos a criação do homem para ocupar o lugar dos anjos, expulsos do céu devido à soberba. Esse fato provoca a inveja do diabo que arquiteta a Queda do homem. Antes do Dilúvio o homem, esquecido de Deus comete crimes o que faz com que o gênero humano seja destruído à exceção de Noé e de sua família. Depois do Dilúvio, novo esquecimento e os homens passam a venerar o sol, a lua, as estrelas, fogo, águas profundas e fontes. Vendo isso, o diabo se apresenta aos homens como deuses lançando mão da figura de homens criminosos cujas más ações se reproduzem entre os homens. Essa é a história da origem dos ídolos e de suas perversidades. Ela constitui a Narratio (parágrafos 3 e 7), mas também toda a narrativa histórica até o tempo da Encarnação. À luz dessa narrativa, o conteúdo do parágrafo seguinte parece incongruente uma vez que abre uma discussão sobre os dias da semana que prossegue no parágrafo 9 e se desdobra em outras temáticas temporais13 até o parágrafo 18 -

Exhortatio - que traz uma admoestação a que o dia do domingo seja respeitado. No entanto há

coerência temática nesse grupo de parágrafos, que constitui boa parte da Narratio (parágrafos 8 a 12), e ela não é fortuita.

O texto não apresenta um conflito entre paganismo e cristianismo. Ele aponta existirem entre cristãos elementos por eles ignorados, que operam como as antigas superstições de pagãos. E em que consiste o que se ignora? Que Júpiter, Marte, Juno, Vênus, Mercúrio, Saturno foram homens e criminosos. Essa é a mesma ignorância de que padeciam os pagãos. No entanto, enquanto sabemos que os pagãos de fato prestavam culto a essas figuras, o que o sermão censura

12 Referimos-nos ao fato de que passado e futuro, ou seja, a anterioridade ou posteridade em relação ao tempo

presente não são o bastante para definir as etapas históricas. Elas se constituem por seus sentidos. Assim, o passado se apresenta de formas diferentes constituindo as fases 1, 2 e 3 sendo que esta inclui, parcialmente, também o presente. A fase 4, em princípio, é a eternidade.

13 O parágrafo 10 se ocupa das calendas de janeiro, o 11 dos dias de festa e o 12 do erro que consiste em

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é algo que nos parece mais prosaico: que para cada dia da semana cristãos invoquem nomes de “demônios” (parágrafo 8). A superstição evocada por Martinho consiste na persistência do uso dos nomes pagãos para os dias da semana.14 A veneração portanto, parece estar relacionada à própria lembrança. O que permite compreender que, ao final do sermão, concluído o percurso de lembrar-se o que foi esquecido – a verdade histórica do cristianismo – se recomende o esquecimento das iniquidades (parágrafo 17).

Por fim, os parágrafos que introduzem a problemática do tempo astronômico permitem um último comentário a respeito do público visado pelo sermão. No décimo parágrafo, o autor defende uma posição que, como sabemos não terá posteridade: a de que o início do ano não se dá nas calendas de janeiro, mas no equinócio de primavera. Ora, é justamente aos que pensam diferentemente disso que o bispo chama de ignorantibus et rusticis. Aqui temos uma proposta certamente coerente com a visão teológica da Criação esboçada nos parágrafos iniciais do texto, no entanto, o argumento utilizado para sustentá-la reside na perfeição lógica: “Ora, toda a divisão perfeita pressupõe igualdade, tal como acontece a oito das calendas de Abril em que o dia tem tantas horas como a noite”, sendo evidente que o ano comece aí. 15 Porque cobrar esse tipo de

conhecimento astronômico de “homens ignorantes dos campos”? Nada permite supor que o trecho carregue uma crítica à prática de cultos astronômicos. O fato de que o objetivo de Martinho aqui seja menos o zelo astronômico do que o desejo de fazer uma crítica indireta às celebrações de Janeiro – já realizada por Cesário de Arles (c.470-542) – não explica a opção por argumentação tão complexa. Caso o texto tenha sido produzido realmente com a intenção de uso pastoral, é preciso pressupor confiança na capacidade do público para compreender seus termos. Por este caminho também chegamos à hipótese de que o termo “rústicos” não diga respeito a uma cultura deficiente ou diversa, mas à falta de conhecimento sobre coisas específicas. Não pretendemos avançar sobre que público seria esse, apenas afirmar que as pistas para identificá-lo parecem repousar em informações que nos remetem ou a outras funções do texto – que não a de sermão a ser proferido de uma cátedra – ou a um público de conformação cultural mais próxima à do orador, do que aquela normalmente imaginada.

Outro exemplo vem da citação a divindades como Vênus, Mercúrio, Marte, Saturno e Júpiter. Considerando-se que o público a que se destina o sermão é constituído por uma

14 Uma leitura cuidadosa do texto mostra a preocupação de Martinho com o emprego de nomes pagãos

atribuídos não apenas aos dias da semana como a outras coisas.

15 Utilizamos aqui integralmente a tradução proposta por NASCIMENTO, Aires A. Instrução pastoral sobre

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população campesina cuja cultura não se encontra em continuidade com a alta cultura do clero, então, que significado especial teria para ele divindades ligadas ao panteão cívico de um império desaparecido? Porque justamente essas divindades, ligadas a um circuito erudito de manifestação de uma autoridade já tornada ineficaz? Isso nos permite voltar à censura ao uso dos nomes dessas divindades para a identificação dos dias da semana.

Bem diverso desse exemplo, porém, é aquele da repreensão a stultissimo errore dirigida ao homo christianus que venera (ueneratur) ratos e roedores (parágrafo 11). No entanto, justamente aqui, onde à lógica pareceria adequada à referência a “ignorantes dos campos” encontramos apenas a referência a cristãos. No entanto é preciso mais uma vez observar o contexto da referência. Fala-se em dia e festa de ratos (mures) e roedores (tineas, traças ou vermes, o sentido exato é incerto) como expressão do desejo de produzir prognósticos, de antever

e propiciar o futuro. A admoestação não se dirige ao gesto mas a seu sentido, não se ocupa do

culto mas de seu fundamento. Embora os três exemplos sejam diferentes entre si, eles têm em comum um elemento conceitual importante: todos recriminam a confusão entre Criador e criatura, quando se venera coisas que foram criadas quando a veneração é devida apenas ao Criador. Tal confusão acontece primeiramente na memória, que mantém a celebração, seja involuntariamente (como no caso dos nomes dos dias da semana e no início do ano em janeiro) seja por motivos práticos (com a tentativa de se impedir a deterioração por pragas de alimentos armazenados). No fundamento dessas práticas nas quais os cristãos comuns (ao menos aqueles que compõem a audiência presumida do texto) não veem incompatibilidade com sua fé, revela o texto, reside a ação do demônio (um tema comum nos escritos do período e que tem sua tradução mais forte nas representações de santos quebrando ícones de ídolos antigos habitados por demônios): non intellegistis aperte quia mentiuntor uobis daemones in istis obseruationibus

uestris...? O texto realiza um percurso de rememoração que pretende levar seu público a realizar

a distinção entre Criador/objeto de adoração e criatura/sujeito de adoração. O instrumento dessa pedagogia é a promoção de uma memória histórica.

“Antigas superstições de pagãos”

Ao falar em superstições o De correctione rusticorum alude a cultos pagãos sobreviventes - romanos ou locais - dotados de conteúdos dirigidos a uma crítica de resistência ao cristianismo? Em que consistem as superstições?

O sermão de Martinho não pressupõe que se fala a uma plateia de condenados ou de sediciosos. A causa das faltas ligadas a antigas práticas pagãs é reportada ao

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esquecimento de Deus e sua manipulação pela astúcia demoníaca. Os gestos pagãos entram como exemplo no sermão e não como tema do mesmo. Se há um tema central a evocar é a verdade contida no sentido do tempo transcorrido a partir da Criação. A ele estão subordinados os principais movimentos da história que permitem que o homem peque por esquecimento, ou seja, por ignorância, por rusticidade. Mas se a suprema ignorância pode ser chamada de esquecimento de Deus, coloca-se o problema de lembrar. Esquecer e lembrar fazem parte da estrutura intrínseca do sermão. E o De correctione rusticorum é motivado pela preocupação em promover instrumentos de lembrança que são simultaneamente históricos e astronômicos.

Aires do Nascimento notou bem que as admoestações do sermão atribuído a Martinho de Braga se dirigiam aos cristãos. A partir disso procurou compreender a natureza das superstições no De correctione rusticorum separando aquelas que lhe pareciam mero artifício narrativo – como algumas ligadas ao paganismo romano.16 Tal perspectiva se mostrou

insuficiente na medida em que a tentativa de compreender os elementos que iam além do mero artifício, partia do pressuposto de que era possível pensar essas supertições fora de sua expressão textual, quando no texto permanecem pistas importantes para sua compreensão. A própria menção aos deuses do paganismo romano - que nada tem de periférica à argumentação do texto - oferece um exemplo importante a esse respeito.

A preocupação com o nome das coisas à qual nos referimos acima, embora se refira a coisas e lugares de maneira geral – o parágrafo 8 traz uma referência importante de censura à nomeação imprópria –, é dirigida fundamentalmente aos dias da semana. Isso explica porque após a crítica ao uso corrente de nomes pagãos para designar os dias da semana, o texto se embrenhe em uma sucessão de parágrafos dedicados a temas ligados ao tempo, começando pela apresentação dos dias da semana por meio do relato bíblico dos 7 dias da Criação. O incômodo que Júpiter, Marte, Juno, Vênus, Mercúrio, Saturno causam a Martinho não resulta de sacrifícios e devoção a eles prestados mas do fato de constituírem uma forma que não veicula a memória cristã dos dias da semana que contêm os sentidos da Criação. 17 À memória evidentemente frágil

16 Vide os comentários a respeito, tecidos em suas excelentes notas críticas ao De correctione rusticorum

(NASCIMENTO, Aires (ed.). Instrução pastoral sobre superstições populares. Lisboa: Cosmos, 1997, p.147-168).

17 Um pequeno esclarecimento sobre esses nomes que se mantêm em quase todas as localidades cristãs dentre as quais

Portugal consiste uma significativa exceção cuja razão já foi reiteradamente atribuída à pastoral de Martinho de Braga. Assim aos dias de Marte, Mercúrio, Júpiter, Vênus, Sábado sucederam respectivamente a terça-feira, a quarta-feira, a quinta-feira, a sexta-feira e o sábado. A segunda-feira ocupa o lugar do dia da lua, atributo mais comum de Diana, mas também de Juno, tradição à qual o autor do sermão evoca. Por fim, com relação ao domingo, a referência ao dia

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dos nomes pagãos dos dias da semana, praticamente desprovida de conteúdos, Martinho associa todo tipo de torpeza demoníaca - o público precisa ser levado a perceber no uso desses nomes a marca do paganismo e dos crimes que, como cristão, abomina.18

Os deuses pagãos são evocados pelo autor para que sejam exibidos os fundamento demoníacos dos nomes dos dias da semana (que não podem homenagear a homens, simples objetos da Criação divina) e não para revelar cultos efetivos que rivalizam com o cristianismo do ponto de vista das práticas, embora interfiram em seus fundamentos conceituais que precisam ocupar por completo o coração (toto corde) do homem batizado.19 Ou seja, mesmo que estejamos falando de primórdios da Idade Média, a fé aí retratada não abre mão de seus fundamentos, o que nos remete a um cristianismo bem mais exigente e interiorizado do que aquele imaginado por alguns estudiosos.20

O que se pretende com a recriminação aos deuses não é fechar templos ou cercear cultos – coisa do passado – mas realizar uma operação doutrinária por meio de instrumentos históricos da memória. As sete revoluções do sol que constituem os dias da semana devem “diferenciar as obras de Deus”, criadas ao longo dos sete dias da criação: na primeira

do sol é substituída aqui pela referência à Minerva que está associada ao irromper da primeira ou da derradeira luz do dia que surge no momento em que o sol, não é visível no horizonte, mas nele se insinua por meio de sua luminosidade.

18 No que se refere aos dias da semana Cesário de Arles apresenta uma reflexão bastante similar à do De correctione

rusticorum. Em um dos sermões dedicados às calendas de janeiro, propõe que os dias da semana ao invés de serem

chamados pelo nome dos falsos deuses o sejam pela maneira como aparecem nas escrituras “Primeiro dia”, “Segundo dia”, e assim por diante, CAESARIUS OF ARLES. Sermons (187-238). MUELLER, Mary Magdeleine (ed.). Washington: The Catholic University of America Press, 1973, (The Fathers of the Church, 66), v. 3, CC, 4. O tema da honra a determinados dias e calendas também aparece em CÉSAIRE D´ARLES. Sermons au peuple (1-20). DELAGE, Marie-Jose (ed.). Paris: Cerf, (Sources Chrétiennes, 175), v.1, LII, 2. No mesmo sermão ele também se refere a juramentos e perjúrios (no contexto de reflexão sobre o martírio), elaboração de poções e remédios mágicos entre outras “vãs superstições”. No sermão sobre os bons e maus cristãos, Cesário reproduz em boa medida as faltas destacadas no De correctione rusticorum: roubo, falso testemunho, perjúrio, adultério e falta de frequentemente à igreja (Ibidem, XVI, 2.). Embora a coincidência, mesmo que parcial, entre os temas e enfoques dados pelos autores a eles seja algo significativo, ainda permanece relevante de nosso ponto de vista, a abordagem desse material à luz da lógica argumentativa e intenções de cada sermão.

19 Em pontos em que o texto parece com clareza remeter a práticas locais, o que temos é ainda a censura a outras

formas de marcar o tempo (dia da lagarta e dos ratos), novamente insistindo sobre a natureza de criatura desses elementos, mas sem desprezar suas razões: a necessidade de o homem conhecer o futuro de fartura ou penúria.

20 Uma delas bastante conhecida é aquela expressa por André Vauchez de que a “espiritualidade” da alta Idade Média

era fundamentalmente sensível, dependendo estritamente de sua vinculação a gestos e rituais (VAUCHEZ, André. A

espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.). Vauchez evidentemente trata do período

em que o aparato ritual do cristianismo se torna mais denso, a partir do século VIII, no entanto fica implícito o fato de que para os períodos anteriores ele via um vazio de profundidade espiritual que os ritos - segundo ele, um recurso materialista - veem minimizar. Aqui também se observa a pressão de uma distinção profunda entre um clero ilustrado e uma massa indistinta de cristãos que dominam fracamente os conteúdos da própria fé. O autor inclusive lança mão de aspas a fim de deixar claro que a vida religiosa interiorizada depende de quesitos que não correspondem às realidades da Idade Média, pelo menos até o século XII, século em que as condições de uma interiorização se apresentariam. Ponto de vista sustentado pelas teses que defendem então o surgimento do indivíduo. No De

correctione rusticorum temos o exemplo de uma pastoral conceitualmente exigente e também ciosa de um processo

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revolução a luz, na segunda o firmamento do céu, na terceira a terra separada do mar; na quarta o sol, a lua e as estrelas, na quinta os quadrúpedes, os voláteis e os animas aquáticos, na sexta o homem, na sétima, o Descanso. Nessa memória repousa o acesso ao domínio do conhecimento fundamental da fé: a distinção entre Criador e criatura. Na sequência da Criação, pretende-se identificar tudo o que é criatura e, portanto, tudo que é externo à esfera sagrada, o que é profano. Neste último terreno, se incluem as superstições.

As partes do De correctione rusticorum podem ser organizadas em dois grandes blocos simétricos: um primeiro, histórico, que resume os principais acontecimentos da Criação ao Dilúvio, do Dilúvio à Encarnação e da Encarnação à Ressurreição (estando representados nessa última fase o tempo presente e as Promessas divinas) (parágrafos 2 a 14) e um outro doutrinário, em que, por meio do Batismo e da Confissão (parágrafo 15-17), os principais pontos da doutrina explicitados historicamente no primeiro bloco são retomados. Ambos convergem para o tema da Ressurreição e assim, introduzem o parágrafo final do sermão, dedicado ao Domingo, que a celebra.

A história, da Criação aos tempos atuais, é fonte de doutrina. Ela desenvolve aquilo que ao final do texto é retomado por meio da evocação do credo e da confissão batismal, que propõem ao plano da memória uma síntese ainda mais condensada da doutrina. É difícil afirmar que essa replicação dos objetivos da pastoral por meio da memória histórica e da memória puramente doutrinal, seja um artifício para atender a mentes pouco sensíveis às sutilezas teológicas. Como vimos, nem sempre a argumentação parece corresponder a esse tipo de imperativo. A necessidade que se mostra mais premente nesse caso é aquela de consolidação de sentido doutrinário por meio do tempo: da memória histórica e do calendário. Assim, na primeira parte do texto temos, em linhas gerais, a história da Criação mostrando a distinção entre Criador e criatura e a confusão entre ambos engendrada primeiramente pelo esquecimento humano (de Deus) e em seguida pela intervenção do demônio junto ao homem. As superstições resultam justamente dessa confusão que submete o homem a venerar e honrar o que é criatura. Esse tipo de veneração, ou superstição, é verificada por Martinho (ou Polêmio) entre a assistência pastoral, no uso de nomes e na percepção do tempo. Assim, o sermão censura em sua audiência o uso do nome de divindades (parágrafo 8), a celebração de festas (parágrafos 10 e 11) e o desejo de conhecer o futuro (parágrafos 11 e 12). A preocupação com tais coisas - que o sermão apresenta como inócuas - está em flagrante relação com a falta de reverência em relação ao domingo, que provoca enorme indignação ao pregador.

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O sermão mostra que faltar ao templo e não respeitar o domingo como dia do Senhor é cometer idolatria/superstição (inadequação no culto) – é importante notar que aqui se contam igualmente, o nome de deuses romanos, as adivinhações e o trabalho no dia do domingo. O sermão é uma explicação da parte (a falta ao domingo como idolatria) pelo todo (a história da Criação e, por conseguinte, a identificação do que é criatura). Os dias da semana são um livro onde se pode ler simultaneamente a súmula da Criação e da doutrina por meio dos acontecimentos. O domingo é o mais importante deles. Nele é celebrada a Ressurreição que remete ao futuro do homem. A fé que é proclamada individualmente no batismo, por meio da renúncia ao diabo, da confissão de crença no Pai, no Filho e no Espírito Santo e a declaração da espera da ressurreição e da vida eterna, se realisa na comunhão dos fiéis durante o domingo que celebra a ressurreição e a eternidade de Cristo. Neste dia a comunidade cristã é chamada a viver a plenitude de todos os tempos (passado, presente e futuro). O domingo guarda a memória resumida e plena da história da salvação em um tempo e lugar. Não respeitar o domingo, é esquecer-se de onde reside todo o sentido verdadeiro, é incorrer em supertição.

O percurso retórico do sermão, portanto, consiste em linhas gerais, na revelação da natureza supersticiosa de determinadas práticas, e, sobretudo, dos conceitos nela contidos, com o objetivo de surpreender e comover o público para, em seguida, chamar sua atenção para o verdadeiro alvo da admoestação: o respeito ao domingo. Domingo que é dia e local de celebração, verdadeiro lugar de memória.21 No entanto, como dissemos, boa parte dos elementos apresentados como práticas supersticiosas integram um passado pagão, que em princípio, está superado. A exceção é oferecida pelo trecho inicial no parágrafo 16 que traz uma sequência de práticas censuradas que o autor associa diretamente a seus supostos ouvintes (vós). Aqui, as verdades proferidas se referem não apenas àquilo que se esqueceu mas também aquilo que não se sabe. Nesse caso também encontramos, sobretudo, observâncias temporais. O trecho, significativamente, termina apontando para o domingo quando lembra que não se pode cultuar ao mesmo tempo a Deus e ao diabo (ou seja, não se pode reverenciar ao Criador e à coisas criadas).

A estratégia argumentativa do sermão mostra que pregador e audiência partilham o mesmo horror diante das superstições e dos pecados e crimes que engendram (adoração

21 A narrativa do período entre o Dilúvio e a Encarnação traz a história “evolutiva” dos locais de culto, das

florestas e montes para os altares e templos sendo natural fazer crer que o sermão pretendesse fazer a audiência chegar à conclusão da excelência histórica dos locais de culto cristãos. A eles o texto faz referência direta quando trata do domingo.

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aos demônios e a forças criadas da natureza, prostituição, violação, incesto, litígios, furto, fraude).22 Nesse quesito, o texto não parece indicar discrepâncias de ordem cognitiva ou cultural. Trata-se, de um testemunho dos resultados da catequese e doutrinamento e não de um estágio primário destes dois processos. A superstição é uma parte a ser corrigida que não ameaça o conjunto social, mas cada um individualmente. Engodo demoníaco23 integra a história da salvação que pode ser lida por cada um no livro dos dias da semana.

Se o diabo induz ao engano, a história revela a verdade e dela, as memórias precisam reter uma síntese. O sermão não é dominado pela lógica do conflito, nem da ameaça, mas pela lembrança de que todos se reconhecem parte de uma unidade que demanda conhecimento e memória. O respeito ao domingo é o princípio dessa memória que evoca num espaço e tempo determinados todos os sentidos dessa comunidade cuja unidade é um pressuposto do sermão. Os demais dias da semana, são fonte de história e doutrina, no tempo que rememora a posição de cada ser na hierarquia da adoração (criador e criatura, criaturas espirituais e criaturas carnais) e nos acontecimentos em que as ações de origem demoníaca se distinguem dos atos santos.

Conclusão

Rossana Alves Baptista Pinheiro sustentou que o De correctione rusticorum se organiza em torno da dialética memória-esquecimento.24 Eu queria notar que, a sua maneira, para o autor, a natureza dessa memória tem de ser histórica: testemunhada, cronológica, linear, articulada, explicativa, pois é a história que distingue a religião da supertição e que erige uma identidade - a transformação da comunidade cristã, de fato religioso, em fato social.

O sermão aos catecúmenos de Agostinho, cujo eixo é a história humana a partir da criação, o sermão sobre as calendas de Cesário de Arles baseado na lembrança da historicidade de Janus e a admoestação sobre o respeito ao Domingo de Martinho, participam de uma mesma rede textual responsável pela difusão de uma determinada cultura histórica.25 Se o texto de história na Idade Média circula pouco e está ligado a

22 Os crimes mencionados são cometidos tanto pelos falsos deuses quanto pelos homens, que segue seus exemplos. 23 Veja-se, a título de exemplo, a similaridade entre a lista de superstições apresentada por Agostinho

(AUGUSTINE. De doctrina christiana. GREEN, R.P.H. (ed.). Oxford/New York: Clarendon Press, 1995, XXI-XXV).

24 PINHEIRO, Rossana Alves Baptista. Edificação da memória nos escritos de Martinho de Braga:

Caminhos da expansão do cristianismo na “Gallaecia” do século VI. Franca: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, dissertação de mestrado, 2004. Veja-se também: PINHEIRO, Rossana Alves Baptista.. Escrita da história e memória cristã na Gallaecia entre os séculos V e VI, In VOJNIAK, Fernando (ed.). História e linguagens: Memória e política. Jundiaí: Paco Editorial, 2015, p.89-110.

25 Observe-se que a comunidade aqui não se constitui como território e muito menos como Europa, incluindo

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problemas locais, o texto pastoral veicula a história universal profunda e com ela conforma uma memória social e uma identidade individual.

Nesse sentido, encontramos uma importante contribuição do cristianismo para a valorização da história na Idade Média e mesmo para a centralidade da memória histórica na cultura comum. Se no mundo antigo as histórias eram importantes para o registro dos feitos de uma sociedade e para a oratória na vida política, na Idade Média é fundamental que a história se transforme em memória histórica comum. Todos os homens precisam compreender seu destino que simultaneamente se revela e se realiza através da história. Isso coíbe o pecado, carrega a chave do conhecimento verdadeiro (que pros antigos jamais estaria na história). A pastoral é o meio de comunicação dessa chave de autocompreensão histórica, que eleva a história, pela primeira vez, a elemento da vida comum.

A estratégia pastoral do De correctione rusticorum – sensibilizar a audiência de que ela peca porque mesmo odiando o paganismo, sem o saber, age e, sobretudo, pensa como pagã - só é compreensível se essa audiência se reconhece como sujeito na relação com a autoridade que a exorta e, para isso, ela não pode se entender em conflito. Assim, o De correctione

rusticorum não demanda primeiramente uma leitura pelo ângulo do conflito pois este não é

próprio de sua composição. Seu autor procura mostrar incongruências entre partes que desejam a convergência. Em sua amorosa – entenda-se anti-conflitiva – admoestação ele pretende comover seu interlocutor mostrando a ele que, a despeito de se reconhecer como cristão e abominar o paganismo e a superstição, este se deixa levar por tais práticas que não consistem naquilo que se identifica por ver ou por ter ouvido falar, mas por meio de elementos mais profundos. O autor acredita claramente que seu público é capaz de compreender - e quer compreender - essa profundidade que se remete às sutilezas da doutrina. A história conta essa doutrina, os dias da semana sintetizam os conteúdos e sentidos da história da Criação. Desse ponto de vista, o paganismo é revelado mais do que combatido sendo, portanto, parte constitutiva do processo pastoral.26

26 MEIRINHOS, José Francisco. Martinho de Braga e a compreensão da natureza na alta Idade Média (séc.VI):

símbolos da fé contra a idolatria dos rústicos, Estudos em homenagem ao professor doutor José Marques. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006, v. II, p.395-414, fala em em “desconstrução de superstições”.

Referências

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