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AS OUTRAS MARGENS DO RIO

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Academic year: 2020

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AS OUTRAS MARGENS DO RIO:

História e memória a partir de imagens de um bote entre o sertão e o litoral1

THE OTHERS RIVER BANKS:

History and memory from images of a boat between the hinterland and the coastline

Maria de Fátima Oliveira2

Ademir Luiz da Silva3 Resumo: Este artigo pretende mostrar,

a partir da análise da imagem de um bote do rio Tocantins, aspectos da cultura e cotidiano da vida ribeirinha nas longas viagens fluviais das cidades localizadas no Alto Tocantins até o porto de Belém (PA). Essas embarcações movidas à força humana (entre 12 e 24 remeiros) gastavam em uma viagem de ida e volta entre quatro e seis meses de duração, e foram o meio de transporte mais utilizado na região desde o século XIX até meados do século XX, quando da abertura da rodovia Belém-Brasília. A imagem em foco é vista pela perspectiva de um

lugar de memória (Nora, 1993) sendo,

portanto, um precioso documento histórico, vestígio do passado que faz parte da História da vida ribeirinha tocantinense.

Palavras-chave: Cultura ribeirinha, memória, imagem, fotografia.

Abstract: This paper aims to show, based on the analysis of the image of a boat from the river Tocantins, aspects of culture and everyday life in the river in the long fluvial trips from the cities located in the Upper Tocantins to the port of Belém (PA). These vessels moved by human power (among 12 and 24 rowers) spent in a round trip between four and six months of duration, and they were the most used means of transportation in the region since the nineteenth century until the mid-twentieth century, when the opening of the Belem-Brasilia highway. The image focus is seen by the prospect of a place of memory (Nora, 1993) being therefore a precious historical document, vestige that is part of the History of Tocantins river life.

Keywords: riverside Culture, memory, image, photograph.

1 Este artigo é resultado parcial do Projeto de Pesquisa “Caminhos Fluviais do Cerrado: imagens dos rios do Século XVIII ao XXI”, inscrito na Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-gradação da UEG.

2 Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professora na Universidade Estadual de Goiás (UEG) no curso de Licenciatura em História. Docente do programa de mestrado interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) da UEG. Realizou pós-doutorado na UFG. Correio eletrônico: proffatima@hotmail.com

3 Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás e professor na Universidade Estadual de Goiás, nos cursos de História e Arquitetura e Urbanismo. Docente do programa de mestrado interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER). Realizou pós-doutorado em Poéticas Visuais e Processos de Criação pela FAV/UFG. Correio eletrônico: alsconclave@gmail.com

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“Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade." (João

Guimarães Rosa, em entrevista a Günter Lorenz – Diálogo com Guimarães Rosa)

“Se eu pudesse contar a história em palavras, não precisaria carregar uma câmera” (Lewis Hine,

fotógrafo).

1. APRESENTAÇÃO: um rio de muitas margens e imagens

O escritor mineiro Guimarães Rosa (1908 – 1967) foi um erudito cosmopolita que dedicou seu imenso talento à tentativa de desvendar a alma do sertanejo. Para realizar esse projeto estético e intelectual, Rosa não se limitou ao gabinete, foi ao campo conviver com vaqueiros e jagunços na lida diária. Percorrendo caminhos e veredas em lombos de mulas e cavalos, tornou-se um homem do sertão. Mas não só, tornou-se também um homem do rio. Literal e literariamente. Suas frases líquidas, fluviais, cheias de sentidos dúbios e duplos, foram cunhadas tendo como matéria-prima seu ouvido atento à fala peculiar do sertanejo da terra e também do sertanejo do rio, o ribeirinho. Seu conto “A terceira margem do rio”, uma das narrativas publicadas no volume Primeiras Histórias, dá testemunho de seu esforço. Nesse conto Guimarães Rosa mostra como o sertão, a terra firme e muitas vezes árida, e o rio, o caminho fluído e incessante em seu movimento, estão imbricados. O sertanejo / ribeirinho, que vive em ambos os campos, indo cotidianamente de um para o outro, é o elo vivo que dá liga e sentido a esse conjunto.

Visando analisar tais elementos, recolhemos textos e imagens de época, com descrições repletas de significados, para uma melhor interpretação, nesse

metiê de “detetive” em busca de vestígios sobre a vida dos ribeirinhos do rio

Tocantins. Esses documentos de diferentes naturezas ajudam a entender melhor a História e a memória desse tempo/espaço da vida e costumes dos povos beira rio Tocantins. Nesse trabalho, destacaremos a questão das imagens, uma vez que

A crença de que a câmera nunca mente talvez seja um dos mais flagrantes exemplos do trabalho de ideologia que possa ser imaginado. A crença supõe que a imagem

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registrada pela câmera depende de processos naturais e óticos, então o que o fotógrafo representa será o que realmente está no mundo. A fotografia é importante para os estudos culturais, exatamente porque os estudos culturais tentam expor essas confusões entre natural e artificial4.

Esses vestígios escritos e imagéticos possibilitam compreender o cotidiano vivido pelos ribeirinhos na época, conhecendo suas mazelas, valores, rituais, sentimentos e emoções e permite destacar o importante papel desempenhado por esses botes, no ir e vir nas águas do Tocantins, com seus remeiros, popeiros e proeiros5 na labuta das viagens, geralmente

extenuantes pelo trabalho pesado, mas mesmo assim, cantando canções ritmadas pelos remos, levando pessoas e mercadorias do interior para o litoral e vice-versa.

Essa ligação íntima do ribeirinho com o rio é muito bem expressa também pelo estudioso do meio social e geográfico da região amazônica, Leandro Tocantins:

O rio enchendo a vida do homem de motivações psicológicas, o rio imprimindo à sociedade rumos e tendências, criando tipos característicos na vida regional. [...] As ocorrências da vida de cada um estão ligadas ao rio e não a terra [...] O rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase mística 6.

O rio, portanto, pode ser visto para além de seus aspectos geofísicos, numa dimensão mais abrangente que leva em consideração a

4

EDGAR, Andrew. Fotografia. In: EDGAR, A; SEDGWICK, P. Teoria cultural de A a Z:

conceitos-chave para entender o mundo contemporâneo. São Paulo: Contexto, 2003. p.

40.

5

Quanto às funções em um bote, é importante ressaltar, segundo Francisco Ayres da Silva, que o piloto era a figura de maior importância. Ele devia conhecer perfeitamente o rio, sendo o cargo com melhor remuneração, recebendo de 250$000 a 300$000 por viagem redonda, ou seja, de ida e volta a Belém. Os proeiros, com remuneração de 120$000 e os popeiros, que recebiam em torno de 150$000. O restante dos tripulantes, chamados "do meio", ganhava menos que os demais. Referência: SILVA, Francisco Ayres da. Caminhos de Outrora -

Diário de Viagens. Goiânia: Oriente, 1972. p. 19.

6 TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida: uma interpretação da Amazônia. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1973. p. 280.

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constante interação homem-natureza e nessa relação o bote tem papel fundamental, pois é por meio dele que o ribeirinho interage com o rio fazendo a integração regional do interior com o litoral. Mas, a expressão

terceira margem pode representar aqui também a situação das populações

ribeirinhas do rio Tocantins que durante séculos  desde o período colonial

 viveram nas suas margens, mas sentiam-se marginalizadas7 em relação ao

país e ao sul de Goiás.

A vida beira-rio Tocantins possuía peculiaridades. O olhar sobre o rio precisa ir além da visão deste como meio de abastecimento, de transporte ou de lazer. Nesse sentido, busca-se aqui valorizar esse espaço/tempo como um lugar de memória. É nessa perspectiva que a relação com o conto “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa, pode levar a uma melhor compreensão da relação do ribeirinho com o rio. É, de certo modo, um olhar por dentro no mundo desse ser que habita a beira-rio, é um mergulhar nas suas memórias em busca de sua íntima relação com o rio. Rosa (1975) retrata de forma muito especial a vida ribeirinha, a convivência do homem com o rio, numa estreita relação que revela dentre outras coisas, sua mentalidade, a rusticidade do seu cotidiano e a perfeita interação que há entre eles: “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais”8.

Chamamos atenção para uma diferença crucial entre a ficção e a realidade. Trata-se do desejo de retorno. No conto de Rosa o importante era fluir junto com o rio, para cima e para baixo, sem parar, sem se preocupar com o desembarque. Para os barqueiros do Tocantins a ida era uma necessidade e a volta uma esperança. O barqueiro solitário de Rosa faz uma viagem metafísica. Sua terceira margem do rio é a margem invisível e imponderável do destino a que ele se impôs e queria legar ao filho. No rio Tocantins, e disso sabem muito bem os ribeirinhos que nele vivem e dele vivem, não há apenas duas margens físicas e uma terceira margem metafísica. Existem muitas outras na formas de corredeiras perigosíssimas, que se configuram em barreiras naturais ao longo do rio. Mas essas margens de pedras molhadas precisam ser vencidas, pelo bem dos que ficaram: filhos, como no conto de Rosa, mas também esposas, avós, parentes, amigos e outros da comunidade. Uma viagem de barco se assemelhava a uma

7Importante salientar que, com a abertura da rodovia Belém-Brasília na década de 60 do século XX, esse sentimento de marginalidade ou de exclusão não acabou, tomou outra forma, pois os ribeirinhos que ficaram na margem direita do rio não tinham acesso a esta estrada. 8 ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: Primeiras Estórias. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. p. 37.

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corrida de obstáculos. Essas corredeiras, essas margens, se avolumavam ao longo do trajeto.

Justamente por isso as exigências da preparação para a viagem eram por si só uma odisséia.

2. A PREPARAÇÃO E A PARTIDA

No Tocantins a denominação comum para o dono do bote era a de

patrão. Na maioria das viagens ele acompanhava o bote até Belém, para

proceder às transações comerciais. Quando não era possível ele próprio fazer a viagem, enviava uma pessoa de sua confiança para esse fim. No Quadro I destacamos os nomes de alguns desses proprietários com botes que percorriam o Rio Tocantins. Nota-se que alguns dos nomes relacionados possuíam diversas embarcações, enquanto outros tinham seu nome ligado a apenas uma. Nesse caso, é possível que tivessem uma atuação mais efetiva na condução do barco.

Quadro I - Relação de alguns botes de Porto Nacional e seus respectivos proprietários (1891-1907).

Bote Proprietário

Bantim Capitão José Theodoro

Conde d’Eu Major Joaquim Ayres da Silva D. Pedro Major Mizael Pereira

Santo Antônio Idem

Cruzeiro do Norte José Ayres da Silva Suzana Pedro Ayres da Silva

Tocantins Idem

Alcântara Frederico Ferreira Lemos

Mineiro Idem

Intendente Idem

Bemquerer Idem

Onça Idem

Passarinho Idem

Crixás Josué de Oliveira Negry

Prainha Idem

Tico-Tico Idem

Brazileiro Ten. Cel. M. Bezerra Brazil Campo Bello Idem

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Paraense Srs. Lemos & Negry Perseverança Idem

Tamandaré Major Raymundo Ayres da Silva Humaytá Viúva Dona Rachel de C. Ayres

Tiradentes Idem

Porto Nacional Idem

O Lidador Capitão Raphael F. Belles

Corveta -

Aquidaban -

Fonte: Oliveira, Maria de Fátima. Portos do Sertão: cidades ribeirinhas do Rio Tocantins. Goiânia: PUC Goiás, 2010. p. 50.

Conhecer o processo de construção do bote, o aproveitamento de cada espaço e as funções de cada indivíduo no bote contribui para apreender seus significados - tanto material quanto imaginário - pois ele é um elemento da cultura e do contexto histórico no qual foi produzido. De acordo com algumas fontes, os botes maiores que navegavam o rio Tocantins conduziam até 40 toneladas de mercadorias e eram movidos por 24 remeiros, doze de cada lado, o que pode parecer exagero, levando em consideração os obstáculos enfrentados no percurso. Nas longas viagens os botes eram geralmente acompanhados por duas ou três pequenas embarcações chamadas igarités e montarias. Segundo Silva,

As igarités são símiles do bote, apenas com uma casa ou toldo, a da popa. São de tamanho diverso. As montarias são símiles de igarités em ponto menor e sem casa alguma [...] As igarités são aliviadoras do bote [...] as montarias são as canoas onde viaja o patrão em cobrança, venda e mesmo em arranjo de alimentação para a tripulação9.

O autor informa que as embarcações no Tocantins eram, em sua maioria, construídas de casco escavado, com tábuas laterais imbricadas, ao contrário das do São Francisco e Tietê, que eram somente de casco escavado. Quanto ao uso da madeira para sua fabricação, enquanto no Tocantins usava-se geralmente o landi, no Tietê, segundo Sérgio Buarque de Holanda (1990), usava-se a peroba e o tamboril. Sobre as diferenças entre as embarcações do Tocantins e São Francisco, Silva esclarece que

9 SILVA, Francisco Ayres da. Caminhos de Outrora - Diário de Viagens. Goiânia:

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Ele [o bote] é um similar da barca que trafega o São Francisco, talvez mesmo trazido dali para o Tocantins. Há, todavia, a notarem-se algumas diferenças. Ali as pás são longas, o remeiro aciona a extremidade à pá com ambas as mãos, sendo o ponto de apoio uma correia ou corda ligada aos lados da barca. Por outro lado, naquele rio, os remeiros só acionam as pás ou varas quando não há vento. Se o vento sopra, utilizam-se de grandes velas, que impelem a barca com tal velocidade que pouco desmerecem das barcas a vapor que ali são empregadas. Lá, como aqui, há o piloto, o barqueiro e o remeiro, com a diferença, porém, que aqui barqueiro é o remeiro e lá, barqueiro é o dono da barca10.

10 SILVA, Francisco Ayres da. Caminhos de Outrora - Diário de Viagens. Goiânia:

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Figura 1: Desenho retratando um bote em construção no início do século XIX.

Fonte: Burchell 1829. Apud: FERREZ, G. O. Brasil do Primeiro Reinado, visto pelo botânico William Burchell - 1825-1828. Rio de Janeiro: Fundação João Moreira Salles/Fundação Pró-Memória, 1981.

O autor explica com riqueza de detalhes as características de um bote:

[...] tem o leme perfurando o toldo da popa, de modo a que o timoneiro ou piloto esteja bem a par do que lhe está à frente. É uma adaptação necessária, imposta pelo maior número de perigos aqui existentes. No São Francisco as barcas têm o leme adaptado à maneira nos nossos pequenos batelões, isto é, são completamente afastados da casa da proa, existindo entre esta e o leme um espaço forrado, onde o piloto coloca um banco a fim de se sobrepor ao toldo e realizar melhor suas visidas [?]. Nos nossos botes a parte perfurada pelo leme, parte forrada a tábua, recebe o nome de

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cantareira e serve para nela depositarem-se objetos de necessidade e constante utilidade na viagem, de ordinário, bolos, doces, potes com água, lamparinas, etc. Nas barcas não há forro de proa, pois que é aí onde os remeiros assentam suas vogas e as manejam. Há ainda uma enorme diferença entre as pequenas embarcações do São Francisco e do Tocantins, pois que aquelas são feitas de uma única tora de madeira grosseira e toscamente perfurada e ajaezada. Ao madeiro assim feito chamam-no de paquete, que pode ser ora maior ora menor. Entre nós, o madeiro perfurado é o início da canoa ou do batelão, a que se adaptam diversas tábuas denominadas falcas. Para isso se servem de madeiras curvas pregadas ao fundo do casco, em diversos pontos, os dormentes 11.

Quais mercadorias se transportavam nessas rústicas embarcações? Esses botes levavam todo tipo de artigos produzidos na região e traziam bens de primeira necessidade que eram o sal, ferramentas e pólvora, e as tão almejadas novidades do litoral como tecidos, chapéus, calçados e ornamentos. O Frei dominicano Estevão Gallais descreve o que viu durante o período que esteve em missão religiosa na região nos primeiros anos do século XX:

Cada ano, pelo mês das chuvas, ou seja, em março, carregam seus barcos e afrontando as temíveis cachoeiras e as corredeiras, de que o Tocantins está cheio, toca-se para o Pará a vender seus produtos. De lá trazem sal, tecidos, ferramentas, mercadorias de toda espécie. Não gastam menos de seis meses nessa viagem, e o transatlântico que empreendesse a volta ao mundo chegaria mais depressa ao ponto de partida que o bote fazendo viagem de ida e volta ao Pará, com o seu carregamento12.

11 SILVA, Francisco Ayres da. Caminhos de Outrora - Diário de Viagens. Goiânia:

Oriente, 1972. p. 32 – 33.

12

GALLAIS, Estevão M. O Apóstolo do Araguaia: Frei Gil missionário dominicano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1942. p. 123.

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Quadro II - Movimento de barcos pelo rio Tocantins de Porto Imperial (TO)/Belém (PA) em 1857.

Fonte: Cerqueira (1979). Apud: OLIVEIRA, Maria de Fátima. Portos do Sertão: cidades ribeirinhas do rio Tocantins. Goiânia: PUC, 2010.

Pelos quadros acima se pode verificar o volume de mercadorias transportado e que o número de botes da cidade de Porto Nacional, por exemplo, era ainda bastante significativo na virada do século XIX para o XX. A utilização do rio como “caminho” no período se deve à carência de outros meios de comunicação, pois a região do Alto Tocantins não contava Barcos T ri p u la çã o L o ta çõ es L u g a r d e p a rt id a Tempo da viagem Observações D esci d a S u b id a D en o m i-n a çõ es N o me d o s b a rc o s

Bote Imperador 21 2.000 @ Porto

Imperial

25 dias 6 meses Além do sal (mercadoria de maior peso nas importações), foram importados outros gêneros, como: fazendas, secos e molhados, farinha de trigo, chumbo, pólvora, aço e ferro em barra.

A cada bote, acompanha uma montaria [um tipo de canoa] com três pessoas.

Os dados completos do quadro original mostram que os únicos produtos relacionados na exportação são os couros de gado, mas sabe-se que transportavam uma infinidade de outras mercadorias produzidas na região.

Igarité - 9 150 @ Idem Idem Idem

Bote Memória de S. Anna 17 1.800 @ Idem Idem Idem

Igarité Catraia 7 100 @ Idem Idem Idem

Bote São José 21 2.000 @ Idem Idem Idem

Igarité - 9 250 @ Idem Idem Idem

Igarité Boa Sorte 11 300 @ Idem Idem Idem

Bote Santo Antônio 19 1.400 @ Idem Idem Idem

Igarité - 7 150 @ Idem Idem Idem

Bote Bom Jesus 17 1.700 @ Idem Idem Idem

Bote Sr. do Bonfim 11 300 @ Idem Idem Idem

Bote Santa Anna 17 1.500 @ Idem Idem Idem

Igarité - 9 220 @ Idem Idem Idem

Bote Sra. das Neves 21 2.500 @ Idem Idem Idem

Bote Bom Jesus 19 1.400 @ Idem Idem Idem

Igarité Galiota 7 150 @ Idem Idem Idem

Bote Olímpio 11 250 @ Pedro Afonso 23 dias 4 meses

Bote Sra. de Natividade 21 1.900 @ Manoel Alves 27 dias 6 meses

Igarité - 7 150 @ Idem Idem Idem

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com rodovias nem ferrovias, concorrendo com os botes, apenas os difíceis e longos caminhos dos tropeiros.

3. A VIAGEM

A partida de um bote13

“É o dia da partida. Em terra fazem-se as últimas despedidas. Uma banda de música aguarda, a postos, a hora de acompanhar, ao som de notas sonoras, aquele que vai ser o timoneiro do possante batel, que em breve será entregue às ondas prateadas do majestoso Tocantins [...]. O barco tosco que vai por aí além Tocantins abaixo, não pode ainda se acobertar só com a auriverde flâmula brasileira [...]. A bandeira que o timoneiro empunha, com o respeito e a veneração de um crente, é a bandeira do Divino [...]. É para ela que a maruja se volta em momentos de borrasca, de perigo. Chega-se enfim ao Porto Real, ponto de partida. Já o povo se acotovela em diferentes posições; vão todos levar as últimas despedidas, o adeus último de boa e feliz viagem. O bote, carregado, apenas balouçando ao fluxo e refluxo d’água, está ainda a receber os últimos componentes da sua carga. Aqui são cães que entram, quase que arrastados, para serem amarrados em diferentes pontos; para ali vai uma enorme capoeira de galinhas, logo, em seguida aposta de outra e mais outras; acolá já estão espécimes variegados de papagaios, araras, etc. Cães uivam, galinhas cacarejam; papagaios, araras, num grasnar confuso e comovente, como que dizem o adeus último à terra amada de que se vão partir para todo o sempre [...]. O bote é solto, e então, morosamente, pesadamente vai rio acima para depois fazer a manobra e seguir rio abaixo. É então que

13 Nos dicionários brasileiros encontram-se diversas definições para o termo bote, mas segundo Póvoa, no Dicionário Tocantinense de termos e expressões afins, o bote é descrito simplesmente como uma embarcação fluvial que transporta cargas e passageiros entre o Alto Tocantins e Belém. Recebe também a denominação de batelão em algumas localidades. Referência: PÓVOA, Osvaldo. Referência: Dicionário Tocantinense de Termos e

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a tripulação de pé agita lenços, chapéus, dizendo aos que ficam, o último adeus...”14.

Esta descrição, publicada no jornal local de Porto Nacional (TO) no alvorecer do século XX, retrata a partida de um bote saindo desta cidade no Alto Tocantins em direção à cidade de Belém no Pará.

A interpretação do documento de 1902, intitulado Cena de nossa

vida íntima, que retrata a saída de um bote de Porto Nacional em direção a

Belém representa de forma singular aspectos do modo de vida ribeirinho que perduraram por um longo período. A rústica embarcação movida a remos, utilizada no rio Tocantins para o transporte de mercadorias e pessoas, é, além de objeto concreto, também um espaço simbólico, passível de representação de sonhos, desejos e lutas, como a solenidade do momento da partida, com a presença da banda de música, a bandeira do Divino, o cortejo e a emoção das despedidas. Após a saída dos botes, a cena descrita permite imaginar o vazio e a tristeza que toma conta da cidade:

[...] as lágrimas parece quererem instantaneamente jorrar [...]; a idéia, talvez, de ser homem, o hábito dos dias de borrasca, das intempéries da carreira fazem-no, porém, refluí-las para o coração, ficando apenas essa fisionomia característica de um sentimento, de uma dor, a custo refreada15.

Outro ponto que se pode destacar é descrito no trecho seguinte que representa bem o sentimento de abandono em que a população daquela região se encontrava com relação aos poderes públicos, daí a bandeira levantada no bote não ser a do Brasil, mas, sim, a bandeira do Divino Espírito Santo:

O auriverde pendão brasileiro ainda não foi desfraldado, por essas plagas, ao som de hinos anunciantes de haverem caído no domínio protetoral dos governos as incultas e ínvias extensões por onde deva transitar; é necessário, portanto, que a maruja que segue, se acoberte sob a égide exclusiva da providência16.

14

O INCENTIVO (Jornal). Porto Nacional, nº.10, 1902.

15 O INCENTIVO (Jornal). Porto Nacional, nº.11, 1902. 16 O INCENTIVO (Jornal). Porto Nacional, nº.11, 1902.

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Outra imagem que merece atenção nos relatos é a do remador, energia humana responsável pelo movimento e velocidade dos botes. Há situações em que ele é descrito como uma figura valorizada, visível e indispensável; já em outras circunstâncias, ele “desaparece”, fica escondido, como se o remo tivesse vida própria, substituindo o remador. Essa contradição na valoração do remador é evidente nos documentos sobre o rio Tocantins, ora ele aparece como um trabalhador competente, quase um herói, quando, por exemplo, salva o barco, passageiros e mercadorias na travessia das cachoeiras. Em outras situações ele é visto como problemático, preguiçoso e encrenqueiro. Seu trabalho, apesar de reconhecido como árduo e perigoso era muito mal remunerado, com péssimas condições de trabalho, como deixa transparecer os escritos do Brigadeiro Lysias Rodrigues na década de 1930:

Nunca pensamos que alguém pudesse chamar almoço ao que o mestre Abílio apresentou como tal; arroz cozido misturado com pedaços de carne de vaca. A carne de vaca cortada em mantas é aqui exposta ao sol, mas em vez de ficar como no sul do país, carne seca, fica uma coisa horrível, malcheirosa, nojenta. Não tivemos coragem de comer isso. [...] Bastava ver que pagava aos remadores de Peixe a Porto Nacional, a miséria de vinte mil réis com a alimentação que já nos referimos17.

Mesmo havendo unanimidade nos relatos sobre a competência dos remeiros na difícil tarefa de conduzir o barco, verifica-se que era desprezível o tratamento dispensado a eles, o que gerava, às vezes, situações de revolta durante as viagens, como no episódio relatado a seguir:

À noite houve um símile de greve entre tripulantes: Recusaram a ceia porque, como disseram, o toucinho dado para sua confecção era de barrão18; tinha almíscar de barrão! Vê-se bem que o motivo é fútil e apenas deixa transparecer que por aqui também há espíritos de revolta19.

17

RODRIGUES, Lysias A. Roteiro do Tocantins. Goiânia: Lider, 1978. p. 67 – 85. 18 Barrão: o mesmo que varrão. O porco que não é capado. Ver: PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da Língua Brasileira. Goiânia: Sociedade Goiana de Caultura/IPEHBC/Centro de Cultura Goiana, 1996. p. 136.

19 SILVA, Francisco Ayres da. Caminhos de Outrora - Diário de Viagens. Goiânia:

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Sérgio Buarque de Holanda recolhe a máxima de que “muita febre de barqueiro é preguiça recolhida à frente dos travessões; e a presença do patrão é melhor do que bisulfato [sic] de quinino para curá-los” (1990, p. 33). Outro aspecto a destacar é que no mundo do bote, junto à força humana utilizada para impeli-lo por meio dos remos, era imprescindível a existência de outro combustível: a cachaça. Como demonstra Lysias Rodrigues no diálogo a seguir: “Antes de continuarmos a navegar, observamos que o Ciríaco estava meio triste. Que é isso Ciríaco? Está no prego? - Não sinhô, é que a pinga se acabô”20.

Uma fotografia realizada durante uma expedição do Instituto Oswaldo Cruz, datada como sendo do biênio 1911/1912, flagrou a atuação dos remeiros no rio Tocantins, rebocando um pequeno barco (igarité) através das corredeiras. Os fotógrafos oficiais da expedição foram o cineasta paulista João Stamato (1886 – 1951) - diretor do longa-metragem mudo

Coração de Gaúcho (1920) e do curta Convêm Martelar (1920) - e José

Teixeira, do qual não foi possível recuperar outros dados biográficos ou profissionais.

Trata-se de uma imagem representativa das dificuldades enfrentadas pelos barqueiros que se aventuravam na longa viagem entre o sertão e o litoral. Mas, para além dessas percepções explícitas, o que tal fotografia comunica?

Primeiro, é preciso compreender o contexto histórico da imagem, retomando o ambiente cultural no qual ela foi produzida. Para isso é preciso estabelecer como essa nova tecnologia de fabricação de imagens, a fotografia, era compreendida na virada do século XIX para o XX, para, a partir daí, refletir acerca das novas percepções sobre a relação entre memória, história e imagens na contemporaneidade.

20

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Figura 02: Barqueiros enfrentando corredeiras no Rio Tocantins (1911-1912).

Fonte: THIELEN, Eduardo Vilela et all. A Ciência a caminho da roça: imagens das expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz ao interior do Brasil entre 1911 e 1913. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1991

Philippe Dubois, professor de Liège e mestre de conferências na Universidade de Paris II, especialista em cinema, vídeo e fotografia, defende que a percepção acerca do fenômeno fotográfico passou por três momentos: a fotografia como espelho do real, como transformação do real e como traço de um real.

A fotografia como espelho do real. Trata-se aqui do primeiro discurso (e primário) sobre a fotografia. Esse discurso já está colocado por inteiro desde o início do século XIX (...) a fotografia nelas é considerada como a

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imitação mais perfeita da realidade. E, de acordo com os discursos da época, essa capacidade mimética procede de sua própria natureza técnica 21.

Portanto, a fotografia seria uma forma diferente, talvez mais rápida e fácil, de “pintar” a realidade, de produzir retratos de paisagens, objetos e pessoas. Em princípio, nesse momento, não se entendia a fotografia como uma ferramenta que pudesse ser usada para realizações estéticas. As imagens produzidas não precisavam necessariamente chocar ou gerar emoções. Poderiam ser descritas como uma maneira pobre e mecanizada de reproduzir o trabalho do pintor. Contudo, essa percepção pobre e simplista do fenômeno fotográfico não perdurou, ficando cada vez mais clara a superação dos limites do uso da fotografia, que poderiam ser muito mais amplos.

No caso particular da foto dos remeiros do Rio Tocantins, não é possível precisar qual dos fotógrafos oficiais da expedição, Stamato ou Teixeira, produziu a imagem. Esse fato não diminui seu valor enquanto documento, tampouco sua potencialidade enquanto fenômeno estético. Desse modo,

Faz sentido que uma pintura seja assinada e uma foto não (ou que pareça mau gosto assinar uma foto). A própria natureza da fotografia implica uma relação equívoca com o fotógrafo como auteur; e quanto maior e mais variada a obra de um fotógrafo talentoso, mais ela parece adquirir uma espécie de autoria antes corporativa do que individual. Muitas fotos publicadas pelos maiores nomes da fotografia parecem obras que poderiam ter sido feitas por outros profissionais de talento do mesmo período22.

Cada vez mais a natureza divergente entre pintura e a fotografia se disseminou. Uma vez que tal perspectiva tornou-se hegemônica, a diferença entre os dois gêneros de produção de imagens deixou de ser encarado simplesmente como algo técnico e passou a ser conceitual.

A despeito de todas as maneiras como, a partir da década de 1840, os pintores e os fotógrafos influenciaram-se e pilharam-se mutuamente, suas técnicas são basicamente opostas. O pintor constrói, o

21

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas / SP: Papirus, 2012. p. 27.

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fotógrafo revela. Ou seja, a identificação do tema de um fotógrafo sempre domina nossa percepção do tema – como não ocorre necessariamente numa pintura23. Nesse novo contexto, “o século XX insiste mais na ideia de transformação do real pela foto”24. Nesse sentido, uma foto posada, ou de

algum modo planejada, não é mais vista como registro puro da realidade. Se houver uma mínima intencionalidade, seja da figura retratada, seja do fotógrafo, da procura do melhor ângulo e luz à arrumação de objetos de cena, passando pela correção da postura corporal, ou ainda um sorriso não espontâneo, a transformação do real está configurada.

Contemporaneamente, tal perspectiva se refinou e se tornou mais complexa.

De fato, os dois grandes tipos de concepção que passamos em revisa até aqui – a foto como espelho do mundo e a foto como operadora de codificação das aparências – têm como denominador comum a consideração da imagem fotográfica como portadora de um valor absoluto, ou pelo menos geral, seja por semelhança, seja por convenção (...). Ora, o tema dessa última parte do trabalho é justamente teorias que consideram a foto como procedente da ordem do índice (representação por contigüidade física do signo com seu referente). E tal concepção distingui-se claramente das duas precedentes principalmente pelo fato de ela implicar que a imagem indiciária é dotada de um valor

todo singular ou particular, pois determinado

unicamente por seu referente e só por este: traço de um real25.

Nesse sentido, a imagem dos remeiros rebocando o bote deixa de ser uma simples referência a um ato comum àquela atividade profissional e passa a ser imbuída de diversos sentidos e significados que dão pistas da sociedade na qual a imagem foi recolhida. Percebemos, por exemplo, que a maior parte das figuras na imagem está nua. Numa análise mais tradicional e superficial, tratava-se de um procedimento comum entre os remeiros, para lhes dar mais liberdade de movimento e, ao mesmo tempo, preservar suas roupas, que eram poucas e deveriam durar por toda a viagem, mantendo-se

23

SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 109. 24 DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas / SP: Papirus, 2012. p. 36.

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em condições razoáveis para os momentos em que passavam pelas diversas comunidades ribeirinhas ao longo do percurso. Ou seja, se as roupas não eram estritamente necessárias para o trabalho, eram descartadas. Para além desse pragmatismo, observando a imagem por um filtro interpretativo mais simbólico, a nudez pode ser interpretada como um fator de integração dos barqueiros à natureza e ao rio. Podem ter sido, talvez inconscientemente, retratados pelo fotógrafo como homens naturais ao estilo de Rousseau.

Outra informação que salta aos olhos de quem observa essa imagem é o fato de que, aparentemente, todos os remeiros serem negros. Isso certamente dá pistas da organização social de Porto Nacional no início do século XX, no tocante a oportunidades de trabalho aos ex-escravos recentemente libertos. Porém, por escapar do escopo e dos limites desse trabalho, não desenvolveremos tal tema nesse momento.

Outro aspecto referente à Figura 2 que deve ser levado em consideração são as dificuldades técnicas para realização de uma imagem como essa, no início do século XX, sobretudo quanto ao tamanho e peso dos equipamentos envolvidos e necessário tempo de exposição à luz do material fotográfico. Houve tempo para ser posada? É certo que ela foi composta como uma imagem que pretendia dar uma sensação de perigo, de urgência e, por paradoxo que possa parecer, movimento. Trata-se de uma fotografia de aventura, na qual o fotografo retrata uma cena de ação, ocorrida durante uma expedição reconhecidamente perigosa. E é fundamental lembrarmos que os fotógrafos da expedição, Stamato e Teixeira, participavam dela sem regalias, correndo os mesmos perigos que os remeiros, sentindo as mesmas intempéries do tempo.

Existe um heroísmo peculiar difundido pelo mundo afora desde a invenção das câmeras: o heroísmo da visão. A fotografia inaugurou um novo modelo de atividade autônoma – ao permitir que cada pessoa manifeste determinada sensibilidade singular e ávida. Os fotógrafos partiram em seus safáris culturais, educativos e científicos, à cata de imagens chocantes. Tinham de capturar o mundo, qualquer que fosse o preço em termos de paciência e de desconforto, por meio dessa modalidade de visão ativa, aquisitiva e gratuita26.

Ao mesmo tempo, é nítido que o fotografo não tirou uma foto impensada, no calor do momento, movimento unicamente pela adrenalina

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gerada pelo obstáculo a ser superado. O enquadramento cuidado, a valorização das formas e volumes, denuncia sua visão estetizada, dialogando com a noção de sublime na arte. Trata-se de uma imagem que se torna interessante, para além de seu aspecto de documento de uma época, pela mistura de lirismo e exposição da fragilidade humana diante do poder da natureza. “Para tirar uma boa foto, reza a regra comum, é preciso que a pessoa esteja vendo a foto. Ou seja, a imagem deve existir na mente do fotógrafo, no momento, ou antes do momento, em que o negativo é exporto”

27.

Como ilustração cabe comparar com a célebre fotografia da “Gruta Num Iceberg - O Terra Nova à distância”, de Herbert Ponting (1870 – 1935), de 1911, a mesma época da imagem dos remeiros.

Como todas as imagens de Porting, esta cena é composta de forma cuidadosa e artística para proporcionar um efeito específico. A inclusão dos exploradores e a silhueta distante do navio da expedição, o Terra Nova, fazem com que a fotografia seja bem mais do que um estudo geológico: trata-se de um tour de force fotográfico que transmite com eloqüência a natureza épica da viagem e a bravura heróica daqueles que se aventuram numa paisagem estranha28.

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SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 133.

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Figura 03: O Terra Nova à distância (1911), de Herbert Ponting (1870 – 1935)

Fonte: HACKING, Juliet (Org.). Tudo sobre fotografia. Rio de Janeiro: Sextarte, 2012. p. 186.

Assim como a viagem do Terra Nova, a expedição do Instituto Oswaldo Cruz foi realizada com objetivos científicos, na qual o registro era um fator preponderante. O que antes, no século XVIII ou XIX, era feito em bico de pena, nos desenhos dos viajantes naturalistas, cabia agora à lente das máquinas fotográficas. Os fotógrafos da expedição constituíam assim membros fundamentais da tripulação.

A condição de índice da imagem fotográfica implica (...) que a relação que os signos indiciais mantêm com seu objeto referencial seja sempre marcado por um

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princípio quádruplo de conexão física, de singularidade, de designação e de atestação. Já se evocou suficientemente o princípio de base de conexão física entre a imagem foto e o referente que ela denota: é tudo o que faz dela uma impressão29.

As diferentes rotas de viagens e suas peculiaridades, de rio para rio, certamente eram foco de discussão entre os barqueiros. As imagens, eventualmente, poderiam confirmar ou negar tais dados. A fotografia não é “tanto um instrumento da memória como sendo uma invenção dela, ou de um substituto” 30.

Sobre as diferenças dos barcos dos rios Tocantins e São Francisco, o frei dominicano francês Jean Marie Audrin31 afirma que nos botes do

Tocantins não se usavam velas como no São Francisco, porque o vento é intermitente e, principalmente, porque os cascos eram de pouco calado, portanto perigosos para esse tipo de tração (eólica). Uma peculiaridade observada é que, nas viagens em que se levavam mulheres, os tripulantes cobravam mais caro, pois a presença do sexo feminino nas viagens os privava da liberdade tanto nos momentos dos banhos como nas travessias de cachoeiras. Como mostra a foto 02, para essas atividades eles se desvencilhavam das roupas tanto para ter mais liberdade nos movimentos como para economizá-las, pois sua bagagem era muito reduzida32.

Com base em Sérgio Buarque de Holanda também é possível estabelecer algumas comparações entre a navegação praticada no Tocantins e as Monções do rio Tietê. Ele afirma que as embarcações eram cobertas de lona, brim ou baeta, para proteção dos passageiros, tripulação e mercadorias, sendo também comum o uso de toldo e mosquiteiro. Quanto à posição dos remeiros, ressalta que no Tietê eles se concentravam nos três primeiros metros da proa e remavam em pé, o que contrasta com a prática no Tocantins em que as embarcações eram cobertas com palhas de palmeiras e os remeiros remavam, na maior parte do tempo, sentados ao longo das bordas laterais. As embarcações no Tietê, segundo o autor, mediam em torno de onze metros, e “[...] por volta de 1720, começaram a

29 DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas / SP: Papirus, 2012. p. 51 – 52.

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SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 181. 31 Frei José Maria Audrin viveu por três décadas na região. Após chegar ao Brasil, em 1903, partiu no ano seguinte para o Brasil Central. Trabalhou em Conceição do Araguaia (PA) até 1921 e de desta data até 1928 dirigiu o convento de Porto Nacional, participando ativamente da vida dessa gente, em atividades do seminário, em desobriga religiosa, como professor e ainda como animador de bandas de música que ele próprio organizava.

32 AUDRIN, J. Maria. Os Sertanejos Que Eu Conheci. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1963. p. 99 – 101.

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descer com regularidade o Tietê, procurando o coração do continente”33.

Acrescenta ainda que essas canoas transportavam em torno de 400 arrobas (4,5 a 6 toneladas). Como visto anteriormente, alguns botes do rio Tocantins eram bem maiores, com capacidade de até 40 toneladas, segundo alguns autores.

Um elemento comum às duas situações (Tietê e Tocantins) e que merece atenção é a presença dos povos indígenas em suas margens. Segundo as fontes, esses povos eram numerosos e nos dois casos são constantes as reclamações de que eles infestavam a região. Pode-se deduzir, pelas afirmações de Holanda, que a navegação pelo Tietê e seus afluentes, embora tenha sido intensa, foi praticamente abandonada bem mais cedo que a do rio Tocantins, que permaneceu como meio de comunicação com o Pará até meados do século XX.

Apesar das dificuldades ressaltadas, era evidente a presença de um espírito alegre e musical entre os navegantes do rio Tocantins. O ritmo dos remos era um convite à música, que os animava nas horas difíceis, como nas passagens dos trechos encachoeirados, e amenizava o peso da monotonia das longas viagens:

Os canoeiros do Tocantins de quando em vez cantam suas “catiras” e “toadas” para se distrair. Durante o dia, e principalmente nesta noite, tivemos a oportunidade de ouvir coisas muito interessantes, não tanto pela letra ou música, mas, principalmente pelo modo de cantar. Eles cantam em coro e um deles faz contracanto em voz de falsete. Original e agradável de ouvir34.

Audrin fornece ainda outros detalhes interessantes sobre as viagens fluviais no Tocantins. Segundo ele, no período da saída dos barcos, as cidades portuárias se transformavam com o grande movimento de pessoas das localidades próximas e de produtores agrícolas da região. A cidade de Porto Nacional no antigo norte de Goiás era uma das mais animadas, pois além de ser passagem obrigatória dos botes que vinham mais do sul  como Paranã e Peixe  recebia ainda a população mais interiorana, que trazia suas mercadorias em tropas, para serem transportadas para Belém. A época das chuvas era o momento certo para a saída dos botes em direção a Belém, carregados com as mercadorias destinadas ao comércio. O mês de março, na cheia de São José, era o mais apropriado, mas a partir de janeiro já começava o movimento de descida, ou seja, de partida para Belém,

33 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 229. 34

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dependendo do calendário pluviométrico, que variava um pouco de ano para ano. Portanto, os navegantes usavam o período das cheias para descer o rio, aproveitando a força das correntezas.

4. A CHEGADA: de volta ao sertão

Para os barqueiros do Tocantins, não era possível marcar a data do retorno aos portos de partida – a viagem de ida e volta demorava em torno de seis meses. O máximo que arriscavam eram previsões do tipo: "Chegarei

de tal mês em diante", ou "Quando o rio vazar", ou ainda "Estarei de volta no finzinho da seca". Após a chegada, sua mais importante missão era ir à

igreja agradecer a sorte de estar de volta com vida e muitas vezes orar pelas almas de companheiros que não regressaram.

Sendo essas viagens demoradas, perigosas, desconfortáveis, em rústicas embarcações e em péssimas condições de higiene e saúde, o retorno às cidades ribeirinhas representava o fim de uma epopéia. Momentos antes da chegada ao porto, os botes eram ancorados e os navegantes se preparavam para o grande momento, vestindo as melhores roupas e fazendo a barba, como mostra a imagem 04.

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Figura 04: Chegada dos botes em Porto Nacional (1912)

Fonte: Acervo particular Jamil P. Macedo. Publicada por Artur Neiva e Belisário Pena.

Nesse momento da triunfal chegada dos botes, após meses fora da cidade, os moradores também se dirigiam ao porto após terem se arrumado em grande estilo para recepcioná-los, como pode ser visto na imagem 05: senhoras com vestidos longos e xales, os homens vestidos com seus melhores ternos e a presença das freiras e padres dominicanos.

O sentimento de pertencimento entre a gente ribeirinha, o que poderíamos chamar de processo de identificação35, pode ser observado por

meio de uma cena descrita em revista que circulava na época onde bem mostra o ritual de chegada dos botes, após vários meses entre ida e volta:

A população corre ao porto em massa para assistir a atracação das embarcações. Estas, antes de atracar, param do lado oposto do rio, onde a marinhagem toma

35 Sobre o processo de construção das identidades, “Sabemos que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação” (SANTOS, 2000, p. 135).

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banho e muda de roupa. Daí trazem a vara dos batelões embandeiradas até o porto e durante esse tempo fazem grande algazarra e da terra soltam-se foguetes. Todas as bandeiras que ornamentavam os botes eram as do Divino36.

Figura 05: Ribeirinhos no porto aguardando a chegada dos botes (Porto Nacional, início do século XX).

Fonte: Acervo particular Milton Ayres.

Tomando como premissa que às transformações de ordem material e econômica, seguem as mudanças no cotidiano e na mentalidade, um exemplo que ilustra bem tal situação nas margens do Tocantins é a substituição de rústicas embarcações, os botes, por lanchas a vapor e depois pelos barcos a motor. O uso do bote demandava muito mais tempo e esforço

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físico que o uso dos motores, mas o contato com o rio era mais intenso na época em que só havia as embarcações movidas a remo, pois tanto o tempo gasto nas viagens quanto o número de pessoas envolvidas nesse tipo de transporte era muito maior. Com o advento do motor, diminuiu-se a necessidade de braços para o serviço da navegação; além disso, o viajante passa a conviver com a poluição sonora e do ar, resultante do barulho e da fumaça dos motores. Tais mudanças, com a substituição dos botes movidos a remos pelos acionados a motores, fazem parte de um processo longo e lento, mas que foi significativo para mudanças no modo de vida do ribeirinho.

A consciência dessas perdas, por mais que representem complexos processos sociais de longa duração, sempre provocam nostalgia. Naqueles que vivenciaram, mas também em seus descendentes, que passam a conviver com o peso dessa carga simbólica em suas comunidades. O passado que foi e não volta. Nesse contexto, tempos difíceis muitas vezes são ressignificados como tempos heróicos, épocas trágicas como eras épicas. Imagens fotográficas, sobretudo as belas e sublimes, ajudam muito nessas construções de memória coletiva, afinal, “muitas vezes algo nos perturba mais em forma de fotografia do que quando o experimentamos de fato”37. São como as muitas margens do rio, que não podemos tocar

enquanto navegamos, mas sabemos que estão lá, delimitando, e guiando, os caminhos do bote e, principalmente, dos remeiros.

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Imagem

Figura 1: Desenho retratando um bote em construção no início do  século XIX.
Figura 02: Barqueiros enfrentando corredeiras no Rio Tocantins (1911- (1911-1912).
Figura 03: O Terra Nova à distância (1911), de Herbert Ponting (1870 –  1935)
Figura 04: Chegada dos botes em Porto Nacional (1912)
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Referências

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