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Personas gregorianas: a poesia de Gregório de Matos e as convenções retóricas

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Academic year: 2020

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P E R S O N A S G R E G O R I A N A S : A P O E S I A D E G R E G Ó R I O D E M A T O S E A S C O N V E N Ç Õ E S R E T Ó R I C A S

A n t ô n i o D o n i z e t i PIRES*

A PERSONA LÍRICA GREGORIANA

O poeta baiano G r e g ó r i o de Matos e Guerra (16337/1636? - 1696) é considerado por grande parte da crítica como a primeira voz importante da poesia brasileira.

A critica t a m b é m assinala que, por n ã o se conhecer nenhum texto assinado pelo poeta, ou por ele publicado em vida, toma-se difícil o estabelecimento definitivo de seu texto, pois aparecem variantes nas v á r i a s edições disponíveis de sua obra (como a da Academia Brasileira de Letras, a de James Amado, a de Afrânio Peixoto). Da mesma forma, h á poemas em que a autoria de G r e g ó r i o de Matos é duvidosa, como na famosa série de sonetos

Desenganos da vida humana metaforicamente, hoje a t r i b u í d a a Fonseca

Soares.

A vasta p r o d u ç ã o de G r e g ó r i o de Matos (compilada em códices nos sécs. X V I I e X V I I I , mas que em vida do poeta j á circulava em manuscritos apócrifos) inclui poesia lírica, religiosa, satírica, graciosa, e n c o m i á s t i c a e fescenina. J o s é M i g u e l W i s n i k , organizador da antologia Poemas escolhidos (publicada originalmente em 1975 e escolhida como fonte para este trabalho), assim distribui a p r o d u ç ã o gregoriana:

a) Poesia de c i r c u n s t â n c i a : I - Satírica; I I - E n c o m i á s t i c a ;

* Docente do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília. Aluno do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Araraquara - SP.

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b) Poesia amorosa: I - Lírica; I I - Erótico-irônica; c) Poesia religiosa.

Amado ou odiado por v á r i a s g e r a ç õ e s de leitores e críticos brasileiros, endeusado e "melhorado" em algumas biografias (como a de Manuel Pereira Rabelo, exaustivamente comentada por J o ã o Adolfo Hansen em A sátira e o engenho), a obra de G r e g ó r i o de Matos é t r i b u t á r i a do Barroco literário, que a l c a n ç a seu apogeu no séc. X V I I e, no Brasil, estende-se a t é a estende-segunda metade do séc. X V I I I .

De modo geral, a poesia gregoriana filia-se ao cultismo g o n g ó r i c o , n ã o lhe sendo estranho, p o r é m , o conceptismo de Quevedo. G r e g ó r i o de Matos aproveita em larga medida as convenções poético-retóricas do período: m e t á f o r a s congeladas minerais ou naturais na c o m p o s i ç ã o do retrato da mulher (lábios de rubi ou cravos, faces rosadas como a aurora ou as rosas, cabelos dourados como o sol, e t c ) ; o uso do soneto à Petrarca ou C a m õ e s em versos d e c a s s í l a b o s (a medida nova) ou ainda a c o n s t r u ç ã o de poemas em forma de romances ou d é c i m a s g o n g ó r i c a s ; lugares-comuns barrocos como o desengano e a brevidade da vida; o topos horaciano do carpe d i e m ; a mitologia c l á s s i c a greco-latina; as figuras de linguagem (inversões, h i p é r b a t o s , quiasmos, hipérboles, antíteses, paradoxos); a m e t a f o r i z a ç ã o constante e convencional, onde aparecem bastante os v o c á b u l o s p ú r p u r a , cristal, fogo/neve, amor/dor, etc. N ã o raro, o poeta traduz e apropria versos, fragmentos de versos ou quartetos inteiros de, entre outros, Gongora, conforme os sonetos A Maria dos Povos, sua futura esposa e Terceira vez

impaciente muda o poeta o seu soneto na forma seguinte, analisados adiante,

os quais combinam partes de dois sonetos de Gongora, Ilustre y hermosísima

Maria e Mientras por competir con tu cabe lio. A presença de C a m õ e s se faz

sentir, entre outras c o m p o s i ç õ e s p o é t i c a s , no soneto Pretende o poeta

moderar o excessivo sentimento de Vasco de Sousa de Paredes na morte da dita sua filha, em que os primeiros versos aludem à s redondilhas Babel e Sião, do poeta renascentista, e ao salmo 137: Sôbolos rios, Sôbolas torrentes / De Babilônia, o povo ali oprimido...

A obra poética de G r e g ó r i o de Matos é e s p a ç o privilegiado da p a r ó d i a e da intertextualidade, e configura-se como uma obra aberta, em constante d i á l o g o com a t r a d i ç ã o clássica. Fiel ao princípio da i m i t a ç ã o ( n ã o a i m i t a ç ã o servil de modelos, mas a i m i t a ç ã o enquanto princípio intertextual, ou seja, enquanto a p r o p r i a ç ã o , c i t a ç ã o e p a r ó d i a - à s vezes séria, à s vezes jocosa - de poetas considerados exemplares), G r e g ó r i o de Matos, conforme comprova Segismundo Spina, continua um poeta quinhentista em cuja

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linguagem mesclam-se as influências petrarquianas e camonianas, mas t a m b é m o cultismo e o conceptismo barrocos.

O p r i n c í p i o clássico da i m i t a ç ã o , por m i m entendido como p r i n c í p i o intertextual, é evidente pelo menos de Petrarca ao Arcadismo: a partir do poeta italiano, prevalecem as c o n v e n ç õ e s retóricas como a i m i t a ç ã o de modelos, n ã o da natureza; a pintura do retrato da amada segue u m eixo vertical, dos cabelos ao busto, e usa as mesmas m e t á f o r a s minerais ou naturais, portanto convencionais; h á o enfoque das partes nobres da mulher e de alguns de seus gestos mais t ê n u e s e delicados; a t r a d u ç ã o / a p r o p r i a ç ã o de versos ou fragmentos de versos de poetas consagrados faz-se evidente em C a m õ e s , Gongora, G r e g ó r i o de Matos e nos poetas n e o c l á s s i c o s .

Pode-se dizer, portanto, que Classicismo, Maneirismo, Barroco e Arcadismo s ã o escolas ou movimentos artístico-poéticos marcados por u m programa estético estreitamente comum, pois ressalvadas as diferenças de postura de u m p e r í o d o face a seu antecessor (caso mais flagrante do Arcadismo em r e l a ç ã o ao Barroco), as quatro escolas s ã o c l á s s i c a s e partilham muitas p r e o c u p a ç õ e s formais comuns. Descontados o engenho e as complicadas artimanhas cultistas ou conceptistas do Barroco (o que, evidentemente, gerou incontestes obras-primas), ou o fingimento p o é t i c o do Arcadismo, como a fuga da cidade e a ida para o campo em busca de uma pretensa simplicidade á u r e a , bucólica e natural (o que t a m b é m gerou obras-primas de qualidade), ambos os movimentos partilham o uso de uma m e t á f o r a desgastada na c o m p o s i ç ã o do retrato feminino, a l é m do carpe d i e m horaciano, topos eminentemente clássico. Em termos expressivos, a forma fixa soneto e o verso d e c a s s í l a b o continuam a ser praticados pelos poetas, em sua m a c i ç a maioria.

Assim, a grande era clássica da literatura (evidente sobretudo na literatura portuguesa, mas bastante perceptível na literatura do j o v e m e selvagem Brasil, para onde foram transplantadas formas refinadas de c o m p o s i ç ã o p o é t i c a ) s e r á questionada somente com o advento do Romantismo, movimento caracterizado pela e x p r e s s ã o profunda do eu e pela recusa frontal de modelos pré-estabelecidos.

Se o Classicismo é pautado por procedimentos intertextuais como a a p r o p r i a ç ã o , a i m i t a ç ã o ou a p a r á f r a s e , o Romantismo usa sobretudo a c i t a ç ã o , a epígrafe ou a ironia. E m outros termos: ao invés da a p r o p r i a ç ã o de versos, fragmentos de versos ou estrofes inteiras de outros poetas, como era comum entre os clássicos dado o ideal de i m i t a ç ã o dos mestres antigos e/ou exemplares, os r o m â n t i c o s p r i m a m pela originalidade e citam outros poetas

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apenas como epígrafes, n ã o apropriando-se de versos alheios. O texto citado, assim, permanece fora do corpo do poema novo, original, pessoal e irrepetível de cada poeta. N o período clássico, friso, o texto imitado era incorporado, apropriado, à realidade e ao contexto do poema que então se fazia. O poeta r o m â n t i c o , se é u m inspirado, procura preservar seu poema da c o n t a m i n a ç ã o deliberada que os clássicos poetas a r t e s ã o s impingiam à s suas p r o d u ç õ e s literárias.

A poesia de G r e g ó r i o de Matos dialoga com esta vasta t r a d i ç ã o em pelo menos dois sentidos: o poeta baiano é fiel ao retrato petrarquiano principalmente na poesia lírica, quando procura valorizar a beleza da mulher amada a t r a v é s de uma d e s c r i ç ã o convencional, mimetizada de poemas de Petrarca, C a m õ e s ou Gongora, como no conhecido soneto A Maria dos

Povos, sua futura esposa. Por outro lado, a poesia satírica de G r e g ó r i o

subverte a t r a d i ç ã o , parodicamente, ao utilizar-se dos mesmos princípios retóricos acima apontados, como no soneto Desaires da formosura com as

pensões da natureza ponderadas na mesma dama, adiante analisado. Para

que fique claro o modo como o poeta baiano lida com fontes e influências, e as renova, cito abaixo três poemas líricos de sua lavra:

a) A Maria dos Povos, sua futura esposa (soneto) Discreta, e formosíssima Maria,

Enquanto estamos vendo a qualquer hora. Em tuas faces a rosada Aurora,

Em teus olhos e boca o Sol, e o dia. Enquanto com gentil descortesia O ar, que fresco Adônis te namora. Te espalha a rica trança voadora, Quando vem passear-te pela fria: Goza, goza da flor da mocidade, Que o tempo trata a toda ligeireza, E imprime em toda a flor sua pisada. Oh não aguardes, que a madura idade, Te converta essa flor, essa beleza,

Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.1

1 Cito abaixo os dois sonetos de Gongora com os quais Gregório dialoga

intertextualmente ao traduzi-los parcialmente e apropriá-los em seus poemas:

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-A persona lírica gregoriana, neste soneto em versos d e c a s s í l a b o s e sistema de rimas A B B A A B B A C D E C D E , aproveita em larga escala alguns lugares-comuns da t r a d i ç ã o p o é t i c a ocidental: em primeiro lugar, o retrato da mulher é composto apenas de suas partes nobres e espirituais (o rosto). E m segundo, o uso de m e t á f o r a s congeladas é evidente, pois tal como aparece em Gongora ou C a m õ e s , a amada de G r e g ó r i o é portadora de faces rosadas ( A u r o r a ) ; seus olhos possuem u m brilho que compete com o do p r ó p r i o Sol (aliás, seus olhos s ã o o Sol, como em outros poetas os olhos da mulher s ã o caracterizados como estrelas); sua boca (o conjunto de lábios e dentes) é clara como o dia. Lembro que as m e t á f o r a s correntes para dentes (pérolas) e para lábios (cravos, rubis) e s t ã o ausentes deste poema de G r e g ó r i o de Matos. Entretanto, nos dois ú l t i m o s tercetos aparece uma nova m e t á f o r a natural: a mocidade, a beleza da mulher é caracterizada como flor. Por ú l t i m o , é evidente o emprego do carpe diem horaciano nos dois ú l t i m o s tercetos, onde o poeta exorta sua amada a gozar sem remorsos o amor, a juventude e o momento presente, pois o tempo "imprime em toda a flor sua pisada".

Fiel à preceptistica barroca, o sentido geral do poema revela algumas antíteses como juventude/velhice, vida/morte, dia/noite, e t c , as quais revelam alta carga metafórica, uma vez que evidenciam a aurora, o sol e o dia como m e t á f o r a s da juventude, enquanto a flor fenecida, pisada pelo tempo, bem como o escuro da sepultura ( f i m ú l t i m o da vida), o p ó , a cinza, a sombra mostram a m e t a f o r i z a ç ã o da velhice e, por conseguinte, da morte. O u seja, a vida é v ã e fugaz; o tempo passa r á p i d o como u m raio; a velhice e a morte n ã o tardam; por isso, adverte o poeta à amada: "Goza, goza da flor da mocidade".

Soneto 13 (1582): "Mientras por competir con tu cabello, / oro brufíido al sol relumbra en vano, / mientras con menosprecio en médio el llano / mira tu blanca frente al lilio bello; // mientras a cada lábio, por cogello, / siguen más ojos que al clavel temprano, / y mientras triunfa con desdén lozano / dei luciente cristal tu gentil cuello; // goza cuello, cabello, lábio y frente, / antes que lo que fué en tu edad dorada / oro, lilio, clavel, cristal luciente, // no sólo en plata o viola troncada / se vuelva, mas tú y ello juntamente / en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada."

Soneto 20 (1583): "Ilustre y hermosísima Maria, / mientras se dejan ver a cualquier hora / en tus mejillas la rosada Aurora, / Febo en tus ojos, y en tu frente el dia, // y mientras con gentil descortesia / mueve el viento la hebra voladora / que la Arábia en sus venas atesora / y el rico Tajo en sus arenas cria; // antes que de la edad Febo eclipsado, / y el claro dia vuelto en noche oscura, / huya la Aurora dei mortal nublado; // antes que lo que hoy es rubio tesoro / venza a la blanca nieve su blancura, / goza, goza el color, la luz, el oro".

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Tratando-se ainda de tropos, G r e g ó r i o introduz u m oximoro no segundo quarteto, "gentil descortesia", e logo a seguir u m h i p é r b a t o , assim caracterizado porque violenta a sintaxe, provocando estranhamento no leitor. D i z o poeta: " O ar, que fresco A d ô n i s te namora, / Te espalha a rica t r a n ç a voadora, / Quando vem passear-te pela fria". Parafraseando o poeta, o sentido dos versos é o seguinte: a amada, quando vem passear à brisa fresca da m a n h ã , tem seus cabelos espalhados pelo ar, corporificado em A d ô n i s (na mitologia grega, p r o t ó t i p o da beleza masculina), o qual namora a m o ç a . T e m -se, assim, mais uma figura de linguagem, a personificação, bastante usada por poetas do período. A personificação atinge, além da figura mitológica, outros elementos do poema, a A u r o r a e o Sol (em m a i ú s c u l a s ) , aliás figuras bastante cultuadas e alegorizadas na poesia e na mitologia greco-latinas e na vasta t r a d i ç ã o poética ocidental, e arbitrariamente introduzidas no Brasil. Por outro lado. a lírica gregoriana procede a uma estranha alquimia entre a t r a d i ç ã o horaciana e os preceitos então em voga no Barroco.

b) Terceira vez impaciente muda o poeta o seu soneto na forma seguinte (soneto)

Discreta, e formosíssima Maria, Enquanto estamos vendo claramente Na vossa ardente vista o sol ardente, E na rosada face a aurora fria: Enquanto pois produz, enquanto cria Essa esfera gentil, mina excelente No cabelo o metal mais reluzente, E na boca a mais fina pedraria: Gozai, gozai da flor da formosura, Antes que o frio da madura idade Tronco deixe despido, o que é verdura. Que passado o zenith da mocidade, Sem a noite encontrar da sepultura, É cada dia ocaso da beldade.

T a l qual o soneto anteriormente analisado, este poema apresenta versos d e c a s s í l a b o s e alguns lugares-comuns tradicionais, embora seu sistema de rimas seja A B B A A B B A C D C D C D . Assim, a insatisfação da persona lírica com o resultado atingido no poema anterior, leva-a a proceder a uma releitura das fontes e a u m intenso dialogar com sua p r ó p r i a obra. E claro que

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tal insatisfação é altamente retórica, como é evidente que o soneto (e outros poemas gregorianos) é uma v a r i a ç ã o sobre o mesma tema. O poeta c l á s s i c o , friso, n ã o buscava a alardeada originalidade dos r o m â n t i c o s , tampouco estava preocupado apenas em, egoticamente, exprimir e expressar suas e m o ç õ e s pessoais. Para o poeta clássico, pois, o importante é retomar ainda uma vez a t r a d i ç ã o e, a partir da m a n i p u l a ç ã o das v á r i a s fontes que esta lhe oferecia, construir u m poema que ombreasse com os melhores poemas de seus mestres e modelos antigos. Friso, inclusive, a constante p r e o c u p a ç ã o construtiva e artesanal dos poetas do período, em c o n t r a p o s i ç ã o ao inspirado poeta r o m â n t i c o .

C o m efeito, a v a r i a ç ã o sobre o mesmo tema evidencia o c a r á t e r de c o n s t r u ç ã o , assim como as amaneiradas m e t á f o r a s utilizadas por G r e g ó r i o de Matos: os olhos da mulher, mais uma vez, s ã o o sol; suas faces rosadas s ã o a aurora; seus cabelos s ã o dourados como o ouro; sua boca possui "a mais fina pedraria", ou seja, rubis (lábios) e p é r o l a s (dentes). N o primeiro terceto, a flor (metáfora de juventude) é trocada por verdura (isto é, v e g e t a ç ã o ou á r v o r e tenra, v i ç o s a ) , mas o sentido é o mesmo do soneto anterior. H á o uso do carpe d i e m horaciano, a conclamar a m o ç a para que goze o amor e a juventude (metaforizados na atmosfera solar, brilhante e v i ç o s a dos dois quartetos), antes que se torne cada mais velha e seja colhida pela morte (velhice e morte s ã o metaforizadas pelo tom crepuscular, frio e invernoso que fecha o poema. A velhice, inclusive, é tronco despido de folhas). Tais metáforas, mais uma vez, nos remetem à s antíteses vida/morte, dia/noite e juventude/velhice que permeiam gravemente o aspecto geral do soneto

c) Buscando a Cristo (soneto) A vós correndo vou, braços sagrados, Nessa cruz sacrossanta descobertos, Que, para receber-me, estais abertos, E, por não castigar-me, estais cravados. A vós, divinos olhos, eclipsados De tanto sangue e lágrimas abertos, Pois, para perdoar-me, estais despertos, E, por não condenar-me, estais fechados. A vós, pregados pés, por não deixar-me, A vós, sangue vertido, para ungir-me, A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me.

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A vós, lado patente, quero unir-me, A vós, cravos preciosos, quero atar-me, Para ficar unido, atado e firme.

Como exemplo da poesia lírico-religiosa de G r e g ó r i o de Matos, este soneto em versos d e c a s s í l a b o s e rimas A B B A A B B A C D C D C D , f o i escolhido porque mostra claramente as v á r i a s facetas da persona lírica do poeta brasileiro e sua inserção na poesia mística barroca, representada sobretudo pelos e s p a n h ó i s S ã o J o ã o da Cruz e Santa Teresa d ' À v i l a . Outrossim, o soneto gregoriano apresenta, em larga medida, o mesmo teor místico e sensual de alguns poemas do metafísico inglês John Donne.

Com efeito, a estética barroca a que G r e g ó r i o se filia é bastante explorada neste poema, seja pelo jogo de antíteses como abertos/cravados ou perdoar/condenar, ou ainda pela c a r a c t e r i z a ç ã o do Cristo na cruz como u m e s p e t á c u l o sangrento, d r a m á t i c o e violento, cujo martírio é exacerbado pelo jogo de luz e sombra que ilumina o poema. O soneto, inclusive, parece

evidenciar os momentos finais da tortura imputada a Cristo, pois é patente sua o s c i l a ç ã o entre a vida e a morte, a dor e o prazer, a piedade e o m a r t í r i o , a alegria e o sofrimento, a resignação e o orgulho, temas estes bastante caros ao Barroco. A isso somam-se o sangue e as l á g r i m a s vertidos por Jesus, os 'cravos preciosos" onde a persona pretende atar-se para "'ficar unido, atado e firme". O Cristo, pois, n ã o é apenas adorado enquanto entidade espiritual, mas corporificado em carne, sangue, ossos, lágrimas. O poema de G r e g ó r i o , ao c o n t r á r i o de S ã o J o ã o da Cruz (cuja alma encontra o êxtase no m a t r i m ô n i o com o Senhor), evidencia que a u n i ã o mística envolve necessariamente o sensual, o corpo, a m a t é r i a . Por outro lado, o poema revela (e desvela) o c a r á t e r antitético e paradoxal do Barroco, pois p r o p õ e uma síntese impossível, inatingível mesmo, entre o corpo e a alma, entre o divino e o terreno, entre a vida e a morte.

Finalmente, mesmo tratando de forma original u m tema caro aos místicos e s p a n h ó i s , o soneto gregoriano insere-se numa t r a d i ç ã o maior, européia, colonizadora, branca, católica e culta, da qual o poeta baiano f o i u m digno representante em terras do N o v o Mundo.

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A PERSONA SATÍRICA GREGORIANA

A poesia satírica de G r e g ó r i o de Matos valeu-lhe, a l é m do degredo no final da vida, o apelido de Boca do I n f e r n o devido ao c a r á t e r ferino, crítico, s a r c á s t i c o e obsceno de suas sátiras dirigidas a seus c o n t e m p o r â n e o s de v á r i a s cepas: governantes, leigos e religiosos, prostitutas e homossexuais, negros, brancos e mulatos etc.

J o ã o A d o l f o Hansen filia a obra satírica de G r e g ó r i o de Matos à s c o n v e n ç õ e s poético-retóricas da é p o c a . Segismundo Spina, entre outros, lembra que a pornografia realista e escatológica de G r e g ó r i o finca suas raízes nas cantigas de e s c á r n i o e de maldizer do Trovadorismo p o r t u g u ê s .

A respeito da s á t i r a enquanto s u b g ê n e r o literário, e para que fique clara a i n s e r ç ã o da poesia de G r e g ó r i o de Matos nesta categoria, algumas c o n s i d e r a ç õ e s se fazem pertinentes:

a) A s á t i r a nasceu em Roma e a l c a n ç o u seu apogeu com a obra de Juvenal e H o r á c i o , entre outros. Todavia, na G r é c i a do s é c . I I a. C , o filósofo cínico Menipo, d i s c í p u l o de Diógenes, tornou-se conhecido como o criador da s á t i r a menipéia, u m t i p o de texto (em prosa e verso) crítico e zombeteiro, escrito a partir da mistura de elementos da realidade e da fantasia, da r a z ã o e do delírio, da decência e da obscenidade etc. A obra escrita de Menipo, infelizmente, n ã o chegou a t é n ó s , mas influenciou bastante, entre outros, a p r o d u ç ã o de Luciano de S a m ó s a t a ( s é c . I I d. C ) , autor de Diálogos e

Memórias de um burro. A obra de Luciano, se resgata a sátira m e n i p é i a e

da-nos uma vaga idéia de como era a escrita do filósofo-bufào Menipo, inicia uma t r a d i ç ã o que se estenderá por v á r i o s séculos, pois muitos escritores antigos (como V a r r ã o , Petrônio e Apuleio) ou modernos (como Rabelais, Chaucer e Swift) foram p a r t i d á r i o s da s á t i r a menipéia. N o caso específico da literatura brasileira, a crítica tem apontado certa influência da s á t i r a à Menipo na obra de Machado de Assis, notadamente em seu romance

Memórias póstumas de Brás Cubas;

b) A sátira, como g ê n e r o específico, existiu apenas em Roma (com H o r á c i o e Juvenal, Lucílio, P é r s i o e Séneca) ou na Inglaterra dos sécs. X V I I e X V I I I (com Dryden, Pope, Swift e Defoe). Assim, afora esses limites precisos, n ã o h á como se falar em g ê n e r o satírico na literatura brasileira, por exemplo, mas em textos satíricos que marcam nossa literatura desde o Barroco. Esta primeira d i s t i n ç ã o se faz necessária, pois enquanto a s á t i r a (pelo menos em Roma antiga e na Inglaterra moderna) pode ser tomada como g ê n e r o , o s a t í r i c o e s t á presente em todas as literaturas e deve ser entendido como uma

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c o s m o v i s ã o , ou seja, um modo de olhar a sociedade e de denunciar suas mazelas;

c) A s á t i r a n ã o forma u m g ê n e r o independente, como o lírico, o épico ou o d r a m á t i c o , mas se manifesta em v á r i a s modalidades literárias como romances, contos, novelas, poemas, pecas de teatro, e t c , ou ainda em textos n ã o -literários. A sátira, assim, contamina v á r i o s g ê n e r o s e s u b g ê n e r o s ao t o m á - l o s como veículos de v i t u p e r a ç ã o dos costumes ou de membros da sociedade; d) A sátira, n ã o sendo u m gênero específico como o lírico, o épico ou o d r a m á t i c o , aparece ligada mais diretamente ao s u b g ê n e r o c ô m i c o , ao lado de modalidades do riso como a p r ó p r i a c o m é d i a , o chiste, o travesti, a farsa, o momo e a caricatura, entre outras. Para Northrop Frye, a sátira transita entre o c ô m i c o e o t r á g i c o ;

e) A sátira, tida como g ê n e r o menor, só recentemente tem merecido o estudo sistemático dos pesquisadores, havendo ainda parca bibliografia sobre o assunto. Carlos Erivany Fantinati aponta para pelo menos dois aspectos c o n s i d e r á v e i s , no Brasil e alhures, que s ã o responsáveis por essa v i s ã o u m tanto preconceituosa nos estudos sobre a sátira e o satírico: em primeiro lugar, a obra satírica é por essência e definição uma obra híbrida, aparecendo "sempre em simbiose com outras formas e g ê n e r o s , cuja o r i e n t a ç ã o interna passa a determinar" (apud Fantinati, 1994, p. 205). Em segundo lugar, do ponto de vista t e m á t i c o , a s á t i r a

se caracteriza como um texto que incorpora temas-tabus, ignorados pelos gêneros artísticos tidos como elevados, fazendo, nesse caso, uso de um vocabulário que choca ao alcançar até mesmo o nível do obsceno, interdito ao universo dos três grandes gêneros tradicionais. (Fantinati,

1994, p. 206)

f) A maioria da crítica tende a aceitar a origem latina do termo sátira. A e x p r e s s ã o satura lanx, muito antiga, designava um prato cheio de cereais e vegetais do culto a g r á r i o de Ceres, deusa da agricultura. Satura, forma feminina de satur, radical sat, significa muito, bastante, cheio, saturado e, por e x t e n s ã o misturado. A mistura, o hibridismo e a heterogeneidade, pois, s ã o c a r a c t e r í s t i c a s fundamentais da sátira;

g) Carlos Erivany Fantinati considera que a sátira, para ser plenamente constituída, deve combinar três elementos:

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1. O ataque agressivo, o qual deve partir do satirísta (ou, melhor dizendo, da persona satírica) irritado com o abuso de outrem, como o retrato d i f a m a t ó r i o que G r e g ó r i o de Matos pinta do governador A n t ô n i o Luis da C â m a r a Coutinho, adiante analisado;

2. A norma, vista por Fantinati como " u m ideal positivo contraposto à a m e a ç a d o r a realidade negativa" (Fantinati, 1994, p. 206). Para G r e g ó r i o de Matos, o referido governador representa uma a m e a ç a à norma vigente na é p o c a , por isso o satiriza;

3. A indireta, a qual "refere-se à forma como o satirísta faz seu ataque agressivo" (Fantinati, 1994, p. 207). Ainda tomando como exemplo o poema de G r e g ó r i o de Matos, a forma adotada pelo satirísta é a pintura de u m retrato d i f a m a t ó r i o do governador, com o qual, valendo-se da caricatura, da hipérbole e de t r a ç o s obscenos, caracteriza-o como narigudo, homossexual, incapaz.

J o ã o Adolfo Hansen caracteriza a sátira, e particularmente a poesia satírica de G r e g ó r i o de Matos, como uma modalidade literária onde é patente o respeito à s convenções retóricas tradicionais. Hansen estuda a poesia satírica gregoriana em seu contexto específico (a Bahia do s é c . X V I I ) , e d e t é m - s e na persona satírica, n ã o na figura do autor, evidenciando o c a r á t e r retórico convencional da poesia de v i t u p e r a ç ã o do poeta baiano. Assim, em conferência escrita em 1990 e proferida em 1991 na F C L - U N E S P , c â m p u s de Araraquara, Hansen defende o seguinte ponto de vista:

A sátira, como a conhecemos, é um subgênero do cômico como maledicência, ocupando-se de vícios que causam horror. Apresenta-se como dialogismo de vozes paralelas: uma delas é a da 'persona' satírica, em chave didático-moral; a outra, a dos mistos incongruentes e obscenos. Na constituição da 'persona' e dos tipos, operam convenções retóricas partilhadas pela recepção; são as do gênero demonstrativo da retórica, que fornece os lugares-comuns de pessoa como modalizadores ou argumentos para a vituperação. Os lugares são preenchidos por descrição de aspectos físicos e narração de ações do tipo satirizado, segundo transferências metafóricas de qualidades da oposição 'animado/inanimado'. Assim, antes de ser psicológica ou expressiva, ou verista ou realista, a sátira é um gênero retórico-poético de convenções para a caricatura. Nela, a desproporção ou dissimetria das

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misturas está a serviço da proporção e simetria do sentido virtuoso proposto. (Hansen, 1990, p. 15-16)

A poesia satírica de G r e g ó r i o de Matos, pois, t a m b é m é grandemente pautada pelas convenções retóricas, as quais incluem desde o modo de escritura da sátira (a pintura dos retratos, que segue u m eixo vertical da c a b e ç a aos p é s ; os tipos de m e t á f o r a s ; a linguagem chula ou obscena; o comedimento e a sensatez da persona satírica em contraste c o m o rebaixamento do satirizado; a caricatura; o exagero hiperbólico; o hibridismo; a mistura; o baixo corporal, etc.) a t é a r e c e p ç ã o por parte do ouvinte ou leitor, uma vez que o humor é t a m b é m pautado por convenções. Dentre essas c o n v e n ç õ e s retóricas incluem-se ainda a lição moral, o efeito saneador ou c a t á r t i c o , a v e i c u l a ç ã o da m á x i m a horaciana que v ê a arte como doce e útil, pois a s á t i r a deve ensinar (punir, castigar) divertindo. A q u i aplica-se ainda outra m á x i m a , r i d e n d o castigat mores, bastante usada por satiristas e dramaturgos como G i l Vicente.

A c o n c e p ç ã o de Hansen privilegia a sátira como obra aberta. A i n d a que ligada à t r a d i ç ã o , a sátira está indissoluvelmente ligada à cultura que a viu nascer. A obra s a t í r i c a de G r e g ó r i o , assim, além de claramente cumprir seu p r o p ó s i t o histórico-social, entabula u m vasto diálogo com outros poetas satíricos, romanos ou medievais portugueses, por exemplo. O p r ó p r i o poema satírico é por definição e essência u m e s p a ç o tenso, onde a voz sensata e moderada da persona satírica m a n t é m u m ríspido diálogo com o satirizado, geralmente mostrado de forma negativa. E m outras palavras, a s á t i r a gregoriana, como a poesia lírico-amorosa ou lírico-religiosa do poeta baiano, é e s p a ç o privilegiado da intertextualidade e da p a r ó d i a , conforme este trabalho tem procurado demonstrar.

N a citada conferência Anatomia da sátira, J o ã o Adolfo Hansen parte de Quintiliano para expor os lugares-comuns que, desde Menandro, s ã o usados para a c a r a c t e r i z a ç ã o do satirizado o u para o retrato e n c o m i á s t i c o do elogiado. Tais preceitos retóricos, portanto, s ã o encontráveis tanto na poesia lírica quanto na satírica e s ã o usados para compor o retrato moral e físico desta o u daquela personagem, e levam em c o n s i d e r a ç ã o sua c o n s t i t u i ç ã o física, sua origem familiar e racial, sua e d u c a ç ã o e i n s t r u ç ã o , sua fortuna e c o n d i ç ã o pessoal e social, bem como o nome, o sexo e a idade do vituperado ou elogiado. N o plano formal, essas regras frisam que a s á t i r a deve ser ornada c o m m o d e r a ç ã o , e escrita em linguagem clara e acessível. O uso de barbarismos, neologismos e/ou termos chulos evidentemente é permitido, a

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exemplo do que G r e g ó r i o de Matos faz na série de sonetos em que vitupera os índios Caramuru s

Isto posto, passo a uma breve a n á l i s e de alguns poemas satíricos gregorianos:

d) Desaires da formosura com as pensões da natureza

ponderadas na mesma dama (soneto)

Rubi, concha de perlas peregrina, Animado cristal, viva escarlata, Duas safiras sobre lisa prata, Ouro encrespado sobre prata fina. Este o rostinho é de Caterina, E porque docemente obriga, e mata, Não livra o ser divina em ser ingrata, E raio a raio os corações fulmina. Viu Fábio uma tarde transportado Bebendo admirações, e galhardias, A quem já tanto amor levantou aras: Disse igualmente amante, e magoado. Ah muchacha gentil, que tal serias, Se sendo tão formosa não cagaras!

Este poema, em versos d e c a s s í l a b o s e sistema de rimas A B B A A B B A C D E C D E , formalmente e s t á inserido na longa t r a d i ç ã o do soneto, a forma c l á s s i c a por excelência, nascido por volta do séc. X I I I e introduzido em Portugal no s é c . X V I . E m termos de conteúdo, vale-se da t r a d i ç ã o petrarquiana e de congeladas m e t á f o r a s minerais maneiristas para pintar o retrato da bela Caterina: " R u b i , concha de perlas peregrina, / Animado cristal, v i v a escarlata, / Duas safiras sobre lisa prata, / Ouro encrespado sobre prata fina". A persona l í r i c o - s a t í r i c a , assim, c o m e ç a a d e s c r i ç ã o da m o ç a a partir de suas partes nobres (rosto e busto) e, a t r a v é s de u m eixo vertical, chega a suas partes baixas, inserindo no poema, de forma satírica, o corpo todo da formosa dama n u m momento de satisfação de uma necessidade física.

Esta s á t i r a configura-se ainda como uma p a r ó d i a jocosa ao retrato feminino tradicional, pois G r e g ó r i o apropria-se da t r a d i ç ã o n ã o para com ela

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dialogar seriamente, mas para desconstruí-la e desarticulá-la a t r a v é s de seu diálogo irônico e escarnecedor.

N o poema e s t ã o presentes alguns lugares-comuns c l á s s i c o - b a r r o c o s : as personagens F á b i o (o amante) e Caterina (a amada); as antíteses, como divina/ingrata ou amante/magoado; as m e t á f o r a s congeladas. Em termos propriamente satíricos, h á o uso da hipérbole, notório no verso " A quem j á tanto amor levantou aras"; a p r e s e n ç a da caricatura, pois o retrato da m o ç a é propositalmente distorcido; a e x p l o r a ç ã o do corpo no que tange explicitamente ao baixo corporal; o uso de uma linguagem mista, onde o termo chulo "cagaras" exacerba de maneira contundente a pureza e a riqueza vocabular; o uso da e x p r e s s ã o espanhola muchacha. O c a r á t e r de mistura e hibridismo da sátira evidencia-se ainda no p r ó p r i o retrato de Caterina, pintada de forma enaltecedora e, ao mesmo tempo, vituperada. Neste sentido, o uso de inanimadas m e t á f o r a s minerais - e n ã o naturais - na c a r a c t e r i z a ç ã o do rosto da mulher, provoca um certo choque antitético com a naturalidade e espontaneidade de seu ato de satisfação física.

e) Fragmentos do romance Retrato do governador

Antônio ÍMÍs da Câmara Coutinho

Vá de retrato por consoantes, que eu sou T i mantes de um nariz de tucano pés de pato.

Pelo cabelo começo a obra, que o tempo sobra para pintar a giba do camelo. Causa-me engulho o pêlo untado, que de molhado parece que sai sempre de mergulho.

Não pinto as faltas dos olhos baios, que versos raios nunca ferem senão a coisas altas.

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Mas a fachada da sobrancelha se me assemelha a uma negra vassoura esparramada.

Nariz de embono com tal sacada, que entra na escada duas horas primeiro que seu dono.

(...)

Ao p é da altura do naso oiteiro, tem o sendeiro, o que boca nasceu, e é rasgadura.

Na gargantona, membro do gosto, está composto o órgão mais sutil da voz fanchona. Vamos à giba: mas eu que intento, se não sou vento para poder trepar lá tanto arriba? (...)

Dos santos passos na bruta cinta uma cruz pinta; a espada o pau da cruz, e ele os braços. Vamos voltando para a dianteira, que na traseira o cu vejo açoitado por nefando.

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(...)

Seguem-se as pernas, sigam-se embora, porque eu por ora não me quero embarcar em tais cavernas.

(...)

Os pés são figas a mor grandeza, por cuja empresa tomaram tantos pés tantas cantigas. Velha coitada suja figura, na arquitetura da popa da nau nova está entalhada.

(...)

Este romance, composto de 29 quintetos em versos polimétricos e sistema de rimas A B B - A (onde o quarto verso perfaz uma r i m a órfã), pinta o retrato do governador a partir de u m eixo vertical, indo da c a b e ç a aos p é s . Assim, a persona satírica diz-se Tunantes, pintor grego do s é c . I V a. C , e, previamente qualificada, procede à d e s c r i ç ã o do governador, o qual t e m "nariz de tucano, p é s de pato" e corcunda de camelo. O retrato c o n s t r ó i - s e na seguinte ordem: cabelos, tidos por sujos e empastados; olhos; sobrancelhas, tidas por velha vassoura; nariz, t ã o grande "que u m rei coroado / o pode ter por copa / de cem pratos"; boca; garganta; costas, t a m b é m personificadas em "alto monte onde f o i tentar o diabo / a Jesu Cristo"; cintura; n á d e g a s , â n u s e sexo, partes bastante vituperadas pela persona satírica a f i m de evidenciar a homossexualidade do governador e a suposta r e l a ç ã o sodomita que ele mantinha com seu s e c r e t á r i o L u í s Ferreira; finalmente, pernas e p é s .

O satirista, segundo as convenções, rebaixa a c o n d i ç ã o do governador pintando-o como u m velho ridículo e sodomita (é ressaltado, aqui, o tema do sexo desonesto), além de frisar seu gosto pela a p a r ê n c i a em detrimento da essência. D o mesmo modo, vale-se do baixo corporal, da

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hipérbole e da caricatura: as sobrancelhas do governador são comparadas a

"negra vassoura / esparramada", sendo patente aqui a transferência de

animado para inanimado; da mesma forma, seu nariz adquire proporções

grotescas, sendo personificado desmesuradamente, como mostram os versos

"Nariz que fala / longe do rosto, / pois na Sé posto / na Praça manda pôr / a

guarda em ala" ou "Você perdoe, / nariz nefando, / que eu vou cortando / e

inda fica nariz / em que se assoe". A corcunda do governador Coutinho é

também objeto de personificação, havendo aqui transferência de animado para

inanimado, pois suas costas são "alto monte", "Etna abrasador" e "Alpe

nevado". Mais uma vez é vituperada a homossexualidade de Coutinho, pois

em suas costas

fabricaverunt peccatores,

ou seja, pecadores trabalharam.

Mais adiante, a condição do governador é ainda mais ridiculamente rebaixada

porque, segundo a persona afirma, a sodomia é própria dos padres, não de

governadores, os quais deveriam zelar pela ordem, dar exemplos e ser

honestos e condizentes com sua alta distinção e condição. Assim, "na traseira

/ o cu vejo açoitado / por nefando. / Se bem se infere / outro fracasso, /

porque em tal caso / só se açoita quem canta / o miserere". Ora, o

miserere nobis,

tende misericórdia de nós, é uma das partes da missa, e como são os

padres que rezam a missa, parece evidente que o satirísta condena tais vícios

em religiosos, mas ainda mais em governadores.

As expressões em latim intercalam-se às expressões chulas e

obscenas; ambas misturam-se a uma linguagem clara, de fácil entendimento,

o que denuncia a necessidade de comunicação imediata da sátira, oral ou

escrita, com as pessoas da comunidade onde esta surgiu: no caso, a Bahia do

séc. XVII. Por outro lado, evidencia-se no poema em apreço praticamente

todos os tópicos preceituados pelos retores, inclusive a convenção humorística

no tocante à recepção do texto.

A persona, finalmente, não abre mão de sua função moral, de

denúncia do mau governo de Coutinho e de seus vícios, bem como dos vícios

de uma parte considerável da sociedade da época, os religiosos. O satirísta

emprega a máxima ridendo castigat mores de forma exemplar, ou seja, faz

rir ao mesmo tempo em que procura sanear a sociedade de seus tipos

perniciosos. Além disso, a persona caracteriza a si própria não como um

profeta que clama no deserto, mas como um soldado que, no fragor do campo

de batalha, luta pela verdade e denuncia as torpezas, os vícios e as mazelas

sociais. Esta postura assumida por Gregório de Matos deixa claro, de forma

bastante evidente, o caráter urbano e social inerente à poesia satírica.

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f) À cidade da Bahia (soneto) Triste Bahia! ó quão dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a t i , tu a mi empenhado, Rica te v i eu já, tu a m i abundante. A t i trocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A m i m foi-me trocando, e tem trocado, Tanto negócio e tanto negociante. Deste em dar tanto açúcar excelente Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote. Oh se quisera Deus, que de repente Um dia amanheceras tão sisuda Que fora de algodão o teu capote!

Este célebre soneto, onde ecoam alguns versos de Rodrigues Lobo ("Formoso Tejo meu, q u ã o diferente / te vejo e v i , me v ê s agora e viste: / turvo te vejo a t i , t u a m i m triste, / claro te v i eu j á , t u a m i m contente"), em mais uma amostragem do alto teor intertextual e p a r ó d i c o da obra gregoriana, é composto em versos d e c a s s í l a b o s e tem como sistema de rimas A B B A A B B A C D E C D E . A persona satírica, ao dialogar com a cidade da Bahia personificada, relembra outros e melhores tempos, j á passados, bem diferentes da e s p o l i a ç ã o atual imputada pelos comerciantes estrangeiros, alcunhados pejorativamente de "Brichote". A l é m de satirizar claramente as n a ç õ e s estrangeiras, vistas de forma negativa, a sátira se caracteriza ainda pelo t o m saudosista de uma idade de ouro perdida, pois a persona denuncia as mazelas atuais com vistas à volta a u m passado glorioso, quando a cidade da Bahia se revelava mais "abundante", produtora de "tanto a ç ú c a r excelente".

N ã o h á no poema o p o s i ç ã o campo/cidade, mas é clara a antítese m e t r ó p o l e s (os estrangeiros espoliadores, inclusive portugueses) vs. c o l ô n i a (a terra farta, que tudo d á , mas que v ê suas riquezas minguadas devido à g a n â n c i a espoliativa do colonizador ou invasor). Outros pares de opostos como passado/presente ou riqueza/pobreza evidenciam claramente a i n t e n ç ã o do satirista em voltar-se para o passado, valorizando-o como u m tempo mítico, farto, feliz, dourado. O soneto de Rodrigues Lobo parcialmente citado

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é profundamente lírico e t a m b é m explora as antíteses passado/presente, alegria/tristeza, claro/turvo (o Tejo, claro ou turvo, é m e t á f o r a da alegria o u tristeza do poeta); contudo, o poema de G r e g ó r i o de Matos, ao proceder de modo a n á l o g o , esbate o lirismo em favor de u m t o m mais épico.

O tema da cidade é ressaltado em outro conhecido soneto gregoriano, intitulado Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia, no qual a cidade é vista como palco de infâmia, desgoverno, fofoca, l u x ú r i a , usura, pobreza, roubalheiras. A persona satírica mostra-se bastante indignada e deixa claro que os habitantes é que s ã o viciosos, n ã o a cidade. Como em outros poemas satíricos de G r e g ó r i o , h á o p o s i ç ã o entre brancos e mulatos: estes s ã o satirizados e rebaixados, de forma rude, e caracterizados como "desavergonhados". Ressalte-se que esta v i s ã o do mulato (tema que s e r á constantemente retomado pela literatura brasileira posterior) evidencia, satiricamente, sua c o n d i ç ã o de ser mestiço, inferior, de sangue n ã o - p u r o como o branco ou o negro, r a ç a s das quais surgiu. De certa forma, a s á t i r a gregoriana ao mulato (ou, melhor dizendo, à m e s t i ç a g e m ) pode ser entendida como uma v i t u p e r a ç ã o e m b l e m á t i c a a toda a n a ç ã o brasileira.

À GUISA DE C O N C L U S Ã O

A poesia lírica brasileira de G r e g ó r i o de Matos, bem como sua poesia satírica, continuam o fio da longa t r a d i ç ã o greco-latina. A poesia gregoriana, em nossa literatura nascente, n ã o é u m fator isolado, mas u m importante desdobramento da literatura ocidental da Europa em terras tropicais. Ligada indissoluvelmente à Bahia do s é c . X V I I e aos problemas coloniais da j o v e m n a ç ã o , e s t á t a m b é m profundamente atada à s c o n v e n ç õ e s retórico-poéticas da t r a d i ç ã o lírica e satírica ocidental, conforme este trabalho procurou demonstrar a partir da análise de alguns poucos poemas.

A s s i m , o requintado fazer poético de G r e g ó r i o de Matos mergulha profundamente na t r a d i ç ã o greco-latino-renascentista e traz à tona os modelos, temas, t é c n i c a s e c o n v e n ç õ e s retóricas (líricas e s a t í r i c a s ) c o m os quais molda-se pouco a pouco a nascente literatura brasileira. Pode-se dizer, pois, que o encontro do Brasil com a poesia é realmente u m confronto, uma vez que se impingiu a uma sociedade oral, sem escrita, uma vasta p r o d u ç ã o culta, com sólidas raízes fincadas na t r a d i ç ã o européia. O trabalho de G r e g ó r i o de Matos, no s é c . X V I I , consolida o trabalho pioneiro de j e s u í t a s como o Padre Anchieta, que se valeu de autos e poemas escritos e dramatizados na c a t e q u i z a ç ã o dos indígenas.

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Por outro lado, é inegável o alto índice intertextual, dialógico e p a r ó d i c o da p r o d u ç ã o p o é t i c a de G r e g ó r i o de Matos: em sua poesia, lírica e satírica, mescla-se a t r a d i ç ã o greco-romana, a t r a d i ç ã o renascentista e as complexas cogitações estéticas do Barroco e n t ã o vigente. Seja no tocante à forma escolhida pelo poeta, seja nos c o n t e ú d o s veiculados por sua poesia, G r e g ó r i o soube moldar sua voz ao diálogo encetado pela matriz e u r o p é i a . Este diálogo, e s t á claro, carrega em si toda a a r r o g â n c i a do colonizador. Contudo, sobretudo a poesia satírica gregoriana, apesar de brasileira e bastante ligada à realidade da Bahia do séc. X V I I , ao dialogar séria ou parodicamente com a t r a d i ç ã o , é uma clara defesa da decantada civilização e u r o p é i a em terras do N o v o Mundo.

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Referências

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