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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE NIETZSCHE

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Academic year: 2019

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http://escolanomade.org

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Preâmbulo 4

Vontade de Potência. Ativo e Reativo 8

Ressentimento e Má Consciência 19

O Sentido da Cultura 29

Niilismo e Eterno Retorno 35

Epílogo 53

Notas 58

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“Minha filosofia traz o pensamento vitorioso com o qual toda outra maneira de pensar acabará por sucumbir. É o grande pensamento aprimorador: as raças que não o suportam estão condenadas; as que o sentem como o maior dos benefícios estão votadas à dominação.” 1

Preâmbulo

Viver em um mundo humano sob o império do niilismo não é, de modo algum, uma objeção ao pensamento – o que tem o pensamento a ver com objeções! Percebemos que é exatamente aí, nesse ambiente lúgubre, que a necessidade de exercermos a plena potência do pensamento torna-se indispensável para criarmos novos modos de construir o mundo. Dessa forma, o pensamento poderá impor-se diante da mediocridade, afastando para longe muitas noções corrompidas como, por exemplo, o “bem-estar” tão cultuado pela civilização moderna. Criar modos de “bem-viver” é muito mais interessante: viver e não apenas sobreviver... Trazer para si a tarefa de tornar-se o que se é: esta é a provocação da filosofia de Nietzsche. Ler Nietzsche e, principalmente, viver nietzscheanamente em um mundo niilista, exige boas doses de prudência e desintoxicação. No lugar do ar impuro daquilo que degenera ao nosso redor, sentimos a pureza da atmosfera do devir; no lugar do corpo rígido, surge o corpo flexível: nasce em nós uma nova sensibilidade. 2 Produzir um novo corpo e um novo pensamento: isso não

se trata mais de um “humano”, mas de um além-do-humano.

Enquanto não acessamos esse outro corpo e esse outro pensamento através das nossas próprias experiências, reproduzimos apenas os produtos carimbados pela negação da vida. Corremos o risco de nos resignarmos por vivermos apenas como uma função social e não como uma alegre produção de nós mesmos. Teremos uma existência insossa, que torna a vida um grande fardo. Contra isso, Nietzsche fez da sua filosofia um verdadeiro combate em si mesmo contra os valores morais:

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Ao contrário do plebeu, que necessita desesperadamente de uma identidade para se defender, Nietzsche defendeu-se da seriedade mórbida do europeu da sua época ao experimentar intensidades onde a identidade é aniquilada. Grande riqueza de alguém que aprendeu a não levar o “eu” a sério... Saber dançar, jogar e rir, são provas de uma vida que singularizou-se por não fixar-se nas identificações sociais. A respeito disso, Pierre Klossowski diz: “[...] querer ser outro diferente do que se é para se tornar o que se é.”4 É evidente que a emoção psicológica experimentada nesses estados de dissolução

da identidade não é – ao contrário do que o plebeu pensa – uma enfermidade, mas expressa uma natureza saudável que conquistou o direito de não se identificar com formas a priori. A capacidade de mutação é uma grande saúde. Por isso que essa natureza mutante é incapturável pelos sistemas de poder vigentes; é impossível detê-la numa classificação “racional” qualquer. O que se costuma dizer como “verdadeiro”, “eu”, “imóvel”, “ideal”, ou então, “esquizofrênico”, “normal”, “bem”, “mal”, são mentiras que o homem, já capturado, utiliza como escudos contra a vida... Eis a denúncia de Nietzsche contra uma moral que está a serviço da covardia.

“A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos.”5

Com algumas exceções (entre elas, especialmente, Espinosa), a história da filosofia nos mostra o que prevaleceu na produção filosófica, de Sócrates até hoje: a depreciação da vida, a necessidade de julgá-la, de adquirir uma sabedoria como abrigo. É o filósofo como agente do Estado, como reprodutor de falácias institucionalizadas há tempos, como sintoma de um cansaço da vida. Atento a esses sintomas, Nietzsche colocou a nu o que move a produção de um sistema filosófico metafísico, dialético por excelência: a negação do devir como fundadora dos valores morais.

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O plebeu, para Nietzsche, é quem não transmuta e, por isso, degenera.7 O nobre, ao contrário, tem a capacidade de metamorfosear-se. É importante nos atentarmos a isto: Nietzsche não quer dizer que a nobreza e a plebe são classes sociais; a distinção que ele faz é muito mais refinada: é de postura de vida, é do elemento que dá valor aos valores, que pode ser de afirmação ou de negação da vida.8 Ao negar a vida, somente o plebeu

dá um aspecto fúnebre a ela.

Ao lermos Nietzsche é necessário interpretarmos o sentido que ele utilizou para as palavras: há, de fato, deslocamentos de sentido para as mesmas palavras em um mesmo texto ou aforismo. Podemos interpretar de várias maneiras, por exemplo, os sentidos das críticas de Nietzsche com relação aos judeus: como um ataque ao sacerdote judaico – o caluniador da existência ao criar a forma do ressentimento – que foi desejado, em determinadas circunstâncias, pelo seu povo; ou, então, como o povo mais forte existente numa Europa decadente do século XIX.9 Portanto, as críticas de

Nietzsche se dirigem a tudo o que é elevado e baixo, nobre e plebeu, ativo e reativo na vida humana, sem dirigir-se diretamente a identidades raciais, religiosas, sociais ou políticas, mas ao modo de vida dominante que está em devir... E o devir da humanidade é o do ressentimento e da má consciência, percorrendo até aos nossos dias. Podemos, então, compreender que a civilização moderna foi erigida por instintos vingativos. “Plebeu”, “escravo”, “Judéia”, podem significar “baixo”, “impotente”, “ressentido”. “Aristocrata”, “senhor”, “grego”, podem significar “elevado”, “potente”, “trágico”.

“A Judéia conquistou com a Revolução Francesa mais uma vitória sobre o ideal clássico [...] nunca se ouviu na terra júbilo maior, nem entusiasmo mais estridente!”10

“Não deixemos de notar as quase benévolas nuances que a aristocracia grega, por exemplo, põe em todas as palavras com que distingue de si mesma o povo baixo [...] ao ponto de quase todas as palavras que aludem ao homem comum terem enfim permanecido como expressões para ‘infeliz’, ‘lamentável...’”11

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“[...] a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração – mas por que empregar sempre essas palavras, que há muito estão marcadas de um intenção difamadora? [...] A exploração não é própria de uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive, como função orgânica básica, é uma conseqüência da própria vontade de potência, que é precisamente vontade de vida.”12

Para encontrarmos o máximo que podemos da potência dos escritos de Nietzsche, implica apreendermos a região onde a força dá o sentido e a vontade dá o valor à coisa. Interpretar e avaliar é a tarefa do filósofo do futuro, diz Nietzsche. Esse filósofo é um genealogista porque avalia o valor dos valores e interpreta o sentido das forças que estão em relação... Dos diversos comentadores de Nietzsche, podemos avaliar o uso que cada um fez da obra dele e interpretá-los pelos caminhos que foram traçados, para distinguirmos onde o pensamento nietzscheano caiu numa rede representativa, e onde foram criadas aberturas que potencializaram o seu pensamento. Gilles Deleuze produziu uma obra indispensável sobre Nietzsche, chamada “Nietzsche e a Filosofia”, de 1962; repetindo a dose, com uma obra menor, “Nietzsche”, de 1965. Não há dúvida de que houve um bom encontro entre eles, um diálogo espiritual. Diz Deleuze, na conclusão do livro de 1962: “Tentamos neste livro romper alianças perigosas. Imaginamos Nietzsche retirando a sua jogada de um jogo que não é o seu.”13

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“Aquilo que eternamente tem de retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço –: esse meu mundo dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio, esse mundo secreto da dupla volúpia, esse meu ‘para além de bem e mal’, sem alvo, se na felicidade do círculo não está um alvo, sem vontade, se um anel não tem boa vontade consigo mesmo –, quereis um nome para esse mundo?... – Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!”14

Vontade de Potência. Ativo e Reativo

Há em Nietzsche, antes de tudo, uma filosofia que implica o modo como sentimos o nosso próprio corpo, ou seja, como agimos e reagimos no contato com os outros corpos. Tocar, cheirar, saborear, ouvir: experimentações que vivemos num mundo onde não há origem nem conclusão, mas misturas, passagens, relações entre forças, metamorfoses. É neste mundo que podemos experimentar aquilo que nos diz Deleuze: “a vida ativa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida.”15 Ao

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“A vida [...] aspira a um sentimento máximo de potência: ela é, essencialmente, uma aspiração a maior quantidade de potência: aspirar não é outra coisa senão aspirar à potência: o que existe de mais subjacente e de mais interior é essa vontade.”16

A imanência é eternamente produzida pelas relações; ela é eternamente “volúpia, ambição de domínio, egoísmo”17: assim falou Zaratustra sobre o aumento de potência,

onde não há limites pré-estabelecidos, pois a potência aumentada expande os limites. Então, já que uma força está sempre em relação com outra força, nunca há igualdade entre elas, porque necessariamente existe uma que é dominante e outra que é dominada. E como uma relação nunca se repete do mesmo modo, o filósofo genealogista sempre reinterpreta o sentido das forças, sem querer encontrar um objetivo para elas.

“[...] de que algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova [...] de que todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se é uma nova interpretação, um ajuste, no qual o ‘sentido’ e a ‘finalidade’ anteriores são necessariamente obscurecidos ou obliterados [...] Logo, o ‘desenvolvimento’ de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus em direção a uma meta [...] Se a forma é ‘fluida’, o sentido é mais ainda...”18

Como toda força existe em relação, até o mais covarde dos homens é, simultaneamente, produto (ele é afetado) e produtor (afeta outros corpos) de realidade. Não há como existirmos fora da imanência. O que nunca deixará de existir é sempre o mais imediato, que está sempre aberto a novas interpretações e avaliações. Por isso a realidade pode gerar angústias e aflições, mas também pode ser fonte de diferenciação alegre e prazerosa.

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sentido seja direcionado a uma ficção. Antes de cair em um nada de sentido, surge algum sentido para a vida. Justifica-se a existência através de um modelo separado da imanência: temos o “bem”, o “belo”, o “justo”, a “verdade”, como “idéias puras”, transcendentes. A moral define o mundo em que vivemos como inferior, por ser o mundo das aparências, da falsidade, já que tudo muda, nada é concluído... “É preciso acreditar em um mundo onde nada mude e, por isso, seja verdadeiro”, assim diz essa vontade de negação – assim dirigiu-se Platão com sua vontade de idéias puras. Portanto, esse outro mundo é afirmado. Nesse ponto, é necessário, mais uma vez, que o genealogista avalie os valores que estão em curso:

“[...] faz parte disso avaliar os lados unicamente afirmados da existência; compreender de onde provém essa valoração e quão pouco ela é obrigatória para uma medição de valor dionisíaca das coisas: eu extraí e compreendi o que propriamente diz sim aqui (o instinto dos que sofrem, em primeiro lugar, o instinto do rebanho por outro lado, e aquele terceiro, o instinto da maioria contra as exceções –)”19

Mas a vontade de negação pode ter um outro uso que proporciona a sua própria transmutação em uma vontade de afirmação plena. Nesse caso, a negação serve apenas como função da afirmação, precede a afirmação destinada a dominar: não mais os meios quereres (um querer moral, de utilidade pública 20), mas um querer inteiro... Os

produtos da negação são negados (os subterfúgios que a humanidade afirma para suportar a existência); o inédito, o que não obedece a nenhuma forma prévia, em suma, o devir, é afirmado. Eis a diferença fundamental: enquanto o plebeu nega a vida para afirmar uma ficção, o nobre afirma a vida ao afirmar o devir. O lado “proibido” da vida (constatação niilista) é considerado inocente ao ser, enfim, desejado.

“Disso faz parte compreender os lados até agora negados da existência, não somente como necessários, mas como desejáveis: e não somente como desejáveis em vista dos lados até agora afirmados (eventualmente, como seus complementos ou condições prévias), mas em função de si próprios, como os mais poderosos, mais fecundos, mais verdadeiros, lados da existência, nos quais sua vontade se enuncia com maior clareza.”21

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capacidade receptiva da força; por “comandar” uma capacidade de agir (veremos que o sentido de “obedecer” e de “comandar” difere-se totalmente conforme a qualidade da vontade dominante). A força reativa é receptiva, reguladora, distributiva, conservadora. A força ativa é expansiva, agressiva e criativa 22. Para Nietzsche, há uma hierarquia

entre as qualidades das forças: a força ativa é primária. Mas uma força ativa somente triunfa quando há uma vontade de potência afirmativa dominante. Surge um devir ativo das forças, caracterizado pelo domínio da força ativa sobre a força reativa. É a noção de criação como qualidade primária à noção de adaptação:

“[...] a primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a ‘adaptação’.”23

Essa relação entre as forças é invertida quando a adaptação torna-se primária. Isso se dá com o triunfo da vontade de negação e das forças reativas; surge, então, um devir reativo das forças. Constitui-se um casamento bizarro entre a negação e a reação: os filhos desse casamento são produzidos por aqueles que apenas conhecem o aspecto utilitário da vida.

“[...] colocou-se em primeiro plano a ‘adaptação’, ou seja, uma atividade de segunda ordem, uma reatividade; chegou-se mesmo a definir a vida como uma adaptação interna, cada vez mais apropriada, a circunstâncias externas.”24

Através dessa inversão, a vida humana submete-se apenas à sua conservação e, para isso, tem a constante necessidade de controlar as forças ativas. Os valores que são gerados e mantidos passam a servir apenaspara manter a sobrevivência de um modo de vida que precisa investir em “idéias puras”, separadas da realidade. Princípio do julgamento da vida: a realidade é dura, violenta, cruel e, portanto, deve ser julgada... É o nascimento do lugar do juízo.

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objetivo alcançado – o “projeto” atingiria o seu happy end... Há em Nietzsche um ataque explícito ao livre-arbítrio:

“[...] a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato: não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o ‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo.”25

Ora, se tudo que existe na imanência está em relação, o “sujeito” que antecederia a ação seria algo separado da realidade, sem relacionar-se com nada, ensimesmado, o que é um absurdo total! Como poderia algo existir – e ter uma vontade – sem estar na experimentação, sem afetar e ser afetado? É o mesmo que dizer que o ser está separado do devir! É o que leva Nietzsche a dizer simplesmente que não existe tal substrato (o que é, evidentemente, um ataque à filosofia kantiana); portanto, o substrato é uma ficção. Por isso Nietzsche diz que a ação é tudo.

Mas mesmo naquele que precisa acreditar no “sujeito”, essa falsa cria, continua a ter uma vontade de potência (de volúpia, ambição de domínio e egoísmo), mas sob o signo da carência. Através da obediência, o homem reativo busca algum prazer – ou aumento de potência – na sua conservação e, igualmente, espera que através disso consiga impedir os sentimentos de dor e de tristeza – ou diminuição de potência: daí a necessidade de buscar uma proteção através da moral. “Você será bom se, no mínimo, não me causar tristeza; mas será mau se isso acontecer”, é o seu julgamento. Inevitavelmente, obedecer, ou receber, possui apenas um sentido para ele: carregar. Carregar valores estabelecidos, tornar-se cada vez mais útil ao modo gregário de viver, tornar-se cada vez mais competente... O homem reativo conhece apenas a obediência às leis instituídas – sejam divinas ou humanas –, limitando-se numa “livre” escolha entre o “bem” e o “mal”, “útil” e “inútil”, “justo” e “injusto”, “falso” e “verdadeiro”.

Já é possível compreendermos o que é o sintoma de degeneração do homem para Nietzsche. A avaliação dos valores passa a priorizar tudo que é útil à conservação; o sentido é o da adaptação às forças exteriores. Experimenta-se a vida apenas sob o seu aspecto utilitário. E somente a partir desse ponto o homem reativo pode esperar duas coisas para a sua vida: proteção do acaso e doses de prazer.

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via sedentária porque encontra vantagens, pequenas felicidades, acreditando ser essa postura muito mais cômoda do que criar para si as condições de gozo.

“A cega diligência, essa típica virtude de um instrumento, é apresentada como [...] a mais saudável droga para o tédio e as paixões: mas silencia-se a respeito de seu perigo, de sua suprema periculosidade.”26

“Muito freqüentemente observo que sim, a cega diligência traz riquezas e honras, mas também priva os órgãos daquela finura que tornaria possível a fruição de riquezas e honras, e noto, igualmente, que esse grande antídoto para o tédio e as paixões torna embotados os sentidos e faz o espírito refratário a estímulos novos.”27

Ser ativo, para o homem reativo, é agir em vista de uma finalidade, em busca de uma premiação, de um reconhecimento. A ação, nesse caso, precisa ser autorizada pelo poder; justamente por isso, é uma falsa atividade. Trabalha-se demais, não se tem tempo para nada e, quando há um tempo livre, não sabe o que fazer com ele. Ele sempre tem necessidade de sentir-se “ativo”:

“Eles são ativos como funcionários, comerciantes, eruditos, isto é, como representantes de uma espécie, mas não como seres individuais e únicos; neste aspecto são indolentes. – A infelicidade dos homens ativos é que sua atividade é quase sempre um pouco irracional. Não se pode perguntar ao banqueiro acumulador de dinheiro, por exemplo, pelo objetivo de sua atividade incessante: ela é irracional. Os homens ativos rolam tal como pedra, conforme a estupidez da mecânica.”28

Para o homem reativo, as ações passam a ter equivalência com o “dinheiro”, o “prestígio” e o “bem-estar” que ele sonha obter. O que estiver excluído disso, ele não dará a menor importância, não irá perder tempo com coisas “inúteis”. Cursos, profissões, livros, filmes, sexo, suas relações precisam ser mediadas pelo poder para que ele sinta-se garantido por pertencer a uma realidade previsível. A depressão, que sempre o ameaça, é constantemente varrida para debaixo do tapete nas horas dedicadas ao entretenimento em frente à televisão, nos passeios com a família, nas relações extraconjugais.

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com quem lhe “protege”. O engodo de qualquer poder é exatamente a oferta de proteção e de prazer: isso o poder promete, na medida em que os homens se submetem às suas leis.

“Certamente, existem as veredas e as pontes e os semideuses inumeráveis que se oferecerão para te levar para o outro lado do rio, mas somente na medida em que te vendesses inteiramente: tu te colocarias como penhor e te perderias.”29

De fato, o devir reativo dá as cartas, triunfa. O Estado, Deus, igreja, família, escola... Não há como não ter uma sensação de desperdício ao vermos muitos jovens desejando receber um aprendizado absolutamente asqueroso nas universidades: já preparados desde o berço, eles chegam às universidades com a única intenção de conseguir o tão desejado diploma. O ensino transformou-se numa reprodução em massa de escravos, que não podem pensar por si próprios: seu sistema de avaliação serve apenas para fornecer credenciais utilitárias à sociedade reativa. Forma(ta)dos, reproduzem, nas suas atividades profissionais, tudo o que sustenta os valores vigentes.

“Aprender a pensar: não se tem mais em nossas escolas nenhuma noção do que isso significa [...] não há agora a mais remota lembrança de que é necessário ao pensamento uma técnica, um plano de estudo, uma vontade de domínio – de que o pensar deve ser aprendido, como o dançar é aprendido, como um tipo de dança...”30

Num excelente filme-documentário, Estamira diz que as pessoas vão à escola para copiar. 31 É essa a função da escola nas sociedades capitalistas: reproduzir

trabalhadores e cidadãos obedientes, injetando esperanças de um futuro promissor. Mas já deveriam saber o que é esse “futuro promissor”: ser obediente na empresa, no lar, na sociedade, para realizar os “sonhos de uma vida melhor” – acumular quinquilharias dentro de casa; aos domingos, levar o filho ao parque e fazer compras com a família; receber a visita dos pais e sentir um carinhoso tapa nas costas, acompanhado de um sorriso de aprovação de um pai que diz: “Parabéns meu filho! Estou orgulhoso de você!”... Sim, é pelos pequenos prazeres que o homem reativo suporta a sua existência...

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prazer e, finalmente, conquistar a felicidade!”, assim imagina esse animal doente. Comandar, para ele, vira um objetivo a ser conquistado a qualquer preço. “Chega de ser servo, agora chegou o grande momento de ser senhor!” Ele sente que viver de pequenos prazeres à custa de sofrimento e obediência não é mais o suficiente para lhe dar a “grande felicidade”. Dinheiro, prestígio, glória: há em todo servo uma forte tendência para tornar-se senhor. O poder como algo que lhe falta... E como é fácil dar-lhe um sinal de que a vida pode ser muito mais interessante! Basta fornecer-lhe o chicote para que ele sinta-se bem melhor... Momentaneamente, o homem reativo imagina que fez as pazes com a vida... O seu aumento de potência segue refém da representação: o deslocamento de servo para senhor não passa de uma grande ilusão! Uma simulação de comando – é disso que se trata. Pela incapacidade de receber, o homem reativo imagina que comanda, que pode "dar" (“Você deve ser grato a mim porque eu pago o seu salário”). Ele está sempre à espera das vantagens, de que o outro se submeta aos seus interesses mesquinhos. Eis a moral dos escravos, que se merecem: os que procuram proteção e prazer sob as asas de um poder e os que procuram alcançar o poder para fruir, o máximo possível, as riquezas e as honras... É importante que isto seja dito: é impossível que o homem reativo seja dadivoso, pois o seu modo de vida é, inevitavelmente, parasitário. Por trás de máscaras sociais como “pessoa de bem”, “trabalhadora”, “justa”, “grande profissional”, “bom marido”, “boa esposa”, existe um ódio contra todos aqueles que ousam desobedecer as suas regras... Sintoma de degeneração do homem, perda do sentido da cultura... Nietzsche dizia que o seu saber vinha das narinas: ele farejava a decomposição. Isto quer dizer: quem não cria, degenera.

A inversão desse cenário pavoroso acontece quando a força ativa adestra a força reativa, triunfando na obediência e no comando. A adaptação surge apenas como efeito desse processo. No trecho seguinte, Nietzsche nos diz sobre a primazia da vontade de potência afirmativa e das forças ativas:

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Um homem é ativo porque experimenta a arte de obedecer (ou de receber) e de comandar (ou de agir), fora da representação. Portanto, a força reativa passa a cumprir, de fato, a sua função secundária, que é receber e processar fluxos. A função primária é cumprida pela força ativa e dominadora. Ao contrário da obediência do homem reativo, o homem ativo, nas relações com as forças do acaso, experimenta as variações da sua potência – as intensidades – para ter ciência daquilo que ele pode no encontro. Receptivo ao inédito, pela experiência ele aprende a selecionar os encontros que o tornam mais forte e a evitar os que o enfraquecem. Note-se bem: “evitar”, aqui, não quer dizer “negar”, porque não se trata de julgamento moral, mas, sobretudo, de experimentar os encontros que, na maioria das vezes, não dependem de nós para acontecer. O ressentimento não o domina... Há excelentes passagens no “Ecce Homo” sobre o cuidado que Nietzsche tinha com a escolha da alimentação, do clima, dos livros. Trata-se de um cuidado de si mesmo, que podemos reaprender:

“Aquele ‘fatalismo russo’ de que falei mostrou-se em mim no fato de que durante anos apeguei-me tenazmente a situações, paragens, moradas, companhias quase insuportáveis, uma vez que me haviam sido dispostas pelo acaso – era melhor do que mudá-las, do que senti-las como mutáveis – do que revoltar-se contra elas...”33

“[...] essas pequenas coisas – alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do egoísmo – são inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora tomou-se como importante. Nisto exatamente é preciso começar a reaprender.”34

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a sua metamorfose: daqui a algum tempo, o veremos escrever e falar de modo diferente; sua postura irá mudar, sua voz estará mais forte, o seu olhar estará mais confiante. 35

Esse espírito livre é sábio porque encontra as idéias mais ousadas, os lugares mais acolhedores. A arte do encontro é a sua especialidade. Ao contrário do homem reativo, ele está livre da inveja (afinal, o que há para ele invejar se a sua vontade não é a da falta?). Portanto, o espírito livre pode admirar e amar aquilo que é grande... Ele sabe escolher os seus alimentos e por isso ama-os... Zaratustra já dizia que o espírito é um estômago. Saber selecionar a alimentação é um sintoma de saúde:

“De que aprenderam mal e não o que havia de melhor e tudo cedo demais e demasiado depressa: de que comeram mal, daí lhes proveio aquele estômago estragado – um estômago estragado, com efeito, é seu espírito: esse lhes aconselha a morte! Porque na verdade, meus irmãos, o espírito é um estômago! [...] Conhecer: este é o prazer para quem tem a vontade do leão!”36

Amor ao conhecimento é amor à obediência... Pois somente assim o espírito livre pode comandar e distribuir. Ele torna-se grande demais para exigir algo em troca, porque transborda de riquezas... Virtude dadivosa: o espírito livre sente que é eterno no seu esgotamento ao doar-se; e suas obras passam a viver por si próprias, alimentando os espíritos que sabem recebê-las. As obras sobrevivem à sua carne e seu sangue. Não há estoques – pois os estoques não sobreviverão a ele –, nenhum arquivo erudito: tudo é prazerosamente distribuído... Comunismo cosmológico: a vida que ama a si mesma se produz dadivosamente.

“Tornar-vos vós mesmos oferendas e dádivas, é essa a vossa sede; e, por isso, tendes sede de acumular, na vossa alma, todas as riquezas. Insaciável, aspira vossa alma a tesouros e jóias, porque insaciável é a vossa virtude em querer dar presentes. Obrigais todas as coisas a ir a vós e a estar em vós, para que voltem a fluir do vosso manancial como dádivas do vosso amor.”37

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afastar de si toda perspectiva suicida? Inventaram a felicidade como refúgio das inquietações diárias.

“[...] tudo isso o oposto da felicidade no nível dos impotentes, opressos, achacados por sentimentos hostis e venenosos, nos quais ela aparece essencialmente como narcose, entorpecimento, sossego, paz, ‘sabbat’, distensão do ânimo e relaxamento dos membros, ou, numa palavra, passivamente.”39

Os senhores, ao contrário, vivem felizes porque sabem que a felicidade faz parte da ação. Para eles, a felicidade é uma superação 40: o aumento de potência cria novos

modos de interpretar e de avaliar.

“[...] sendo homens plenos, repletos de força e portanto necessariamente ativos, não sabiam separar a felicidade da ação – para eles, ser ativo é parte necessária da felicidade.”41

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“E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido[...] O ressentimento é o proibido em si para o doente – seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação.” 42

Ressentimento e Má Consciência

A humanidade, como a conhecemos, é constituída por um devir reativo das forças. Portanto, é fundamental pensarmos sobre como isso se deu. Vimos que os valores foram invertidos através da nociva aliança entre a vontade de negação e a força reativa. Mas há também dois sintomas essenciais que constituem esse devir reativo: o ressentimento e a má consciência. Sobre isso, diz Deleuze: “Honra a Nietzsche por ter sabido isolar essas duas plantas, o ressentimento e a má consciência.”43

Em razão disso, é importante pensarmos sobre as relações de poder. Um pensador francês do século XVI, Etienne de La Boétie, tocou num dos pontos principais da filosofia: por que as multidões vêem alguma vantagem em prover o poder? No “Discurso da Servidão Voluntária”, ele diz:

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“[...] os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam ter outro bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu nascimento”45

La Boétie não chegou a produzir uma crítica radical que nos leve a entender melhor esse estranho fenômeno de um povo que busca a sua própria servidão. Mas encontramos essa crítica em Espinosa e Nietzsche: são os pensadores que mais foram a fundo na crítica da servidão humana. Em Nietzsche, o problema é colocado da seguinte forma: quem, em nós, é cúmplice do poder? Quem, em nós, quer obedecer ao poder e almeja, também, ter o poder?...

Nos encontros que experimentamos, há uma tendência do domínio das forças reativas ao fixarem-se em imagens – em toda imagem afeto. Podemos querer encontrar uma causa exterior aos desprazeres ou prazeres que experimentamos, já que a imagem, em vez de ficar no estado latente – de “digestão”, inconsciente –, fixa-se temporariamente na consciência. Assim, a imagem torna-se, momentaneamente, um bloqueio para novos fluxos que o corpo recebe. Ressentir a imagem pode ser uma experiência prazerosa ou um verdadeiro tormento. Mas isso é apenas o primeiro aspecto do ressentimento (que pode se tornar venenoso), o que Nietzsche chama de psicologia animal: um momentâneo deslocamento das forças reativas, caracterizando um estado bruto. 46 Para quem é ativo, ou seja, quando a força ativa está no comando, o

ressentimento não chega a dominar: a imagem desloca-se da superfície (“consciência é superfície”47) para a profundidade. Eis o que Nietzsche chama de verdadeira reação, “a

dos atos”48, que acelera o processo: a força ativa adestra a força reativa para receber as

excitações novas, e não para ruminar as imagens do passado que sobem à superfície. Não há tempo para ficar atolado na lama da conservação das marcas; o homem ativo passa por esse processo rapidamente. Um excesso de força ativa e um querer inteiro constituem a sua saúde.

“Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência [...] para que novamente haja lugar para o novo.”49

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aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos. Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus malfeitos inclusive – eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento.”50

A reação a esse primeiro aspecto do ressentimento caracteriza-se através de duas maneiras: cozinhar o acaso na panela para transformá-lo num alimento 51 (reação ativa)

ou sentir-se um injustiçado, uma vítima do destino, que quer encontrar uma causa pelo que sofreu (reação reativa). Na segunda reação, não há dúvida de que “a lembrança é uma ferida supurante”52. O mundo torna-se cinzento, um mar de injustiças, um

sofrimento interminável: o devir tornar-se algo abominável. Os fluxos que chegam são interpretados pelas imagens do passado: tudo o que é novo é submetido ao velho. Gradualmente, o esquecimento, como força inibidora, deixa de funcionar.

“O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue ‘dar conta’...”53

Esse dispéptico precisa de um alívio para o seu sofrimento, de uma causa para o seu infortúnio, de um antídoto para esse veneno. Já podemos entender melhor o que acontece: os momentos em que podemos ter uma inclinação a um domínio da vontade de negação e da força reativa – um niilismo emergente – são quando as marcas alojam-se na consciência. O envenenamento ocorre quando alojam-se perde o devir ativo para entrar em um devir reativo, ou seja, de ruminação das marcas, tornando a vida pesada... O ressentido não se abre mais às experimentações inocentes do devir por medo de aumentar o seu sofrimento, de que se repita o que, antes, deu errado: é o lamuriento. Então, essa ovelha doente vai precisar de um pastor – e o pastor vai precisar dessas ovelhas ressentidas para formar o seu rebanho. Nietzsche introduz o agente fundamental no processo de fomentação de doentes: o sacerdote ascético judaico 54. Em um cenário

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niilismo suicida”55. Percebemos que não há poder que não se mantém sem a vida

impotente: quanto maior o número de fracos, melhor. Fórmula básica para a formação de igrejas, por exemplo... O mundo passa a ser interpretado pelos signos: acredita-se que no signo abriga toda a explicação do que acontece... O que não pode ser controlado, o simulacro, passa a ser a causa das injúrias. O sacerdote, que é também um ressentido, encontra, através do poder, uma maneira de direcionar o desejo dos seus sofredores, dando um sentido à vida deles. 56

A moral é o lugar do juízo, com valores que interessam somente à vida dos “malogrados, atrofiados, amargurados, envenenados”57. Ocorre a inversão do “bom e

ruim”, para o “bom e mau”. Ao contrário da distinção que os homens ativos estabeleceram entre “bom” (o criador, o comandante) e “ruim” (o animal de carga, o sofredor), o sacerdote inventou a distinção moral entre “bons” (nós, as vítimas) e “maus” (eles, os culpados). Portanto, através dessa visão invertida, toda ovelha que segue o seu pastor imagina o seu oposto como “mau”. E quem é o oposto? O animal de rapina, aquele que age sem pensar nas conseqüências, que não segue o que está estabelecido e, por isso, é uma ameaça ao rebanho. Por ser obediente ao sacerdote que lhe “protege” do acaso, o homem do ressentimento se considera “bom” porque, antes de tudo, o seu oposto é “mau”.

“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro, um ‘não-eu’ – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação.”58

“[...] imaginemos ‘o inimigo’ tal como o concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu ‘o inimigo mau’, ‘o mau’, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um ‘bom’ – ele mesmo!...”59

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“Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências, triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força [...] apenas sob a sedução da linguagem [...] a qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um atuante, um ‘sujeito’ é que pode parecer diferente.”60

A acusação do homem do ressentimento dirige-se sempre a uma ação, ou a uma força que, ao se expressar, causou-lhe algum dano. Ele imagina que a realidade, em algum momento, voltou-se contra ele – ele, uma pessoa tão “boa”, que “escolheu” o caminho do “bem”, tornou-se “vítima” de alguém que poderia ter “escolhido” o mesmo caminho da subtração das forças ativas, respeitando o “direito” dos outros, dos seus iguais, da sua comunidade. Mas o que está em jogo é sempre uma relação entre forças: dominado pela força reativa, essa “vítima” do acaso não pode, de fato, agir – e fez disso uma virtude. O homem do ressentimento “tomou a roupagem pomposa da virtude que cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos fracos [...] fosse um empreendimento voluntário, algo desejado, escolhido, um feito, um mérito.”61 O homem

ativo, ao contrário, apenas age pela natureza das suas forças agressivas:

“O homem ativo, violento, excessivo, está sempre bem mais próximo da justiça que o homem reativo; pois ele não necessita em absoluto avaliar seu objeto de modo falso e parcial, como faz, como tem que fazer o homem reativo.”62

O forte sempre está em real perigo. Através da acusação dos fracos (que encontram no forte a causa de algum desprazer sofrido, por não ter respeitado os sentimentos deles, por não ter pensado na felicidade do rebanho, etc.), há o risco permanente de entrar em um devir reativo. É o que leva Nietzsche alertar que “os doentes são o maior perigo para os sãos”63. Nota-se o enorme risco do homem forte ser

contaminado pelo veneno mortal do ressentimento (o que pode transformá-lo também num morto-vivo), porque ao ser acusado (principalmente por pessoas tão próximas a ele, que querem apenas o “bem” dele... a instituição familiar, neste ponto, é insuperável...), corre um gigantesco risco de envergonhar-se da sua ação e sentir-se culpado pelo seu ato...64 A multiplicação do rebanho e a expansão dos valores nocivos à vida apenas

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sistema de aniquilação dos homens ativos, o poder sacerdotal cresce a tal ponto que os tipos saudáveis tornam-se cada vez mais escassos. É possível constatarmos que o mundo humano que conhecemos foi constituído por doses cavalares do veneno rancoroso contra tudo o que é alegre e saudável por si mesmo.

“São para mim desagradáveis as pessoas nas quais todo pendor natural se transforma em doença, em algo deformante e ignominioso - elas nos induziram a crer que os pendores e impulsos do ser humano são maus; elas são a causa de nossa grande injustiça para com a nossa natureza, para com toda natureza! Há pessoas bastantes que podem se entregar a seus impulsos com graça e despreocupação: mas não o fazem, por medo dessa imaginária ‘má essência’ da natureza!”65

Os fracos não suportam a felicidade dos fortes. O que os ressentidos não conseguem entender é que os saudáveis não têm vergonha de rir, de ser egoístas, de estarem felizes no meio de tantos sofredores. Por não saberem o que é o amor, o que eles mais desejam é o amor de alguém – até de Deus. Querem ser cada vez mais mimados, nunca se dão por satisfeitos, e esse é o perigo deles: quando os agrados cessam, eles acusam quem quer que seja de não amá-los mais, injetando doses do mortífero veneno da culpa...

Mas o triunfo das forças reativas não elimina as forças ativas dos fracos. Por não estarem no comando, as forças ativas tomam uma outra direção, voltando-se para dentro do homem.

“Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem [...] A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência.”66

Esse movimento de interiorização das forças ativas, segundo a hipótese de Nietzsche, somente foi possível através do surgimento do Estado. Não nos fundadores de Estado, mas como conseqüência da magnitude desse ato.

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liberdade não tivesse sido eliminado do mundo, ou ao menos do campo da visão, e tornado como que latente. Esse instinto de liberdade tornado latente à força – já compreendemos –, esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má consciência.”67

As forças ativas, não vazadas, não cessam de multiplicar as dores. Ao ser domesticado pelo Estado, o homem tornou-se, gradualmente, um animal cruel consigo mesmo.68 Como é evidente, todo aquele que sofre quer livrar-se das suas dores. No

ressentimento, já como aspecto formal, o culpado é identificado e punido. A esperança daquele que sofre é que, após a consumação da vingança, as dores desapareçam, já que o culpado teve o “fim que mereceu”.

“[...] pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais precisamente, um agente culpado suscetível de sofrimento – em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar os seus afetos [...] pois a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie.”69

Mas, apesar disso, o sofrimento não vai embora. Por mais que os culpados sejam punidos, permanecer vivo ainda continua a ser um fardo. Dominado pelas forças reativas, o sofredor continua a não agir, tornando-se obediente, preocupando-se em respeitar as regras estabelecidas. É a ovelha que todo pastor gosta porque está sempre prestativa.

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alguém deve ser culpado”), volta-se contra a própria ovelha... Antes mesmo que o ódio do ressentimento se dirija contra o próprio sacerdote, ele inverte a direção da acusação:

“De fato, ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse estranho pastor – ele o defende também de si mesmo [...] ele combate, de modo sagaz, duro e secreto, a anarquia e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é continuamente acumulado. Descarregar este explosivo, de modo que não faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor, é a sua peculiar habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve fórmula o valor da existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmente: o sacerdote é aquele que muda a direção do ressentimento.”70

O sacerdote cristão diz para o sofredor: “Você é o único culpado por estar sofrendo! Somos todos pecadores, por isso viver na Terra é uma enfermidade!”. Ele deu um novo sentido para a dor (“Adão”, “pecado original”...); este movimento é o segundo aspecto da má consciência, que é o aspecto formal. Através dessa fabulação inventada por Paulo de Tarso 71, o cristianismo, ao contrário do judaísmo, universalizou-se,

espalhando-se por outros cantos do mundo: a interpretação da dor como pecado foi suficientemente contagiosa para expandir o seu poder.

“Paulo [...] contra Roma, contra o ‘mundo’, o judeu, o judeu errante par excellence... O que ele adivinhou foi o modo como poderia atear um ‘incêndio universal’ com a ajuda do pequeno movimento sectário dos cristãos, à parte do judaísmo; como com o símbolo ‘Deus na cruz’ conseguira reunir num poder imenso tudo quanto era inferior.”72

E para manter o seu reino, o sacerdote fere para depois “curar.”73 E qual é a

“cura” que ele oferece? Expiar a culpa, não pelo ódio, mas pela compaixão... O sacerdote cristão serve-se disso para fundar o seu reino: a fórmula “Jesus morreu pelos nossos pecados” foi forte o suficiente para reverter o ódio do Deus judaico para o amor do Deus cristão – “Perdoai-os Pai, pois eles não sabem o que fazem!”. Nietzsche diz que esse “amor” foi o golpe de gênio do cristianismo:

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homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...”74

O credor é “fiel”, tem os pecadores “dentro do seu coração”... A dívida atinge proporções estratosféricas. O mundo dos doentes constitui-se pelo “amor ao próximo”, que é o amor do fraco pelo mais fraco... Com que interesse? Para salvar a própria alma! No dia do “juízo final”, o céu será a recompensa para aqueles que, apesar de terem levado uma existência sofrível, permaneceram fiéis às palavras de Deus; já o inferno será o destino inevitável dos pecadores incuráveis, possuídos pelas forças demoníacas. Vitória da insanidade, da doença, da fraqueza sobre a Terra. Multiplicação dos malogrados; o poder como a única coisa que resta para os enfermos se agarrarem... As igrejas estão de portas abertas para abrigar os seus “clientes”: o mau-cheiro que sai de dentro delas é insuportável para quem está acostumado a atmosferas mais saudáveis...

O sacerdote diz: “livrai-vos das tentações da carne”. Quando isso não acontece (o que é inevitável – e isso as igrejas usam muito bem...), o doente vê a dívida aumentar, pois, afinal de contas, o risco de viver a dor que ele sente nesta vida numa outra vida, eternamente no inferno, causa-lhe um grande tormento! A sua salvação é correr em direção ao sacerdote para confessar os seus pecados na esperança de redimir-se. Grande estratégia do poder sacerdotal: rolar a dívida, tornando-a impagável, para manter o devedor sempre sob o seu jugo – e o uso dos desejos sexuais, por exemplo, estão a serviço desse nefasto sistema de aprisionamento da vida. Sem a instauração do mecanismo da dívida impagável, não há poder... Não há como o poder se sustentar sem o arrependimento dos seus servos... O penitente abaixa a cabeça diante do sacerdote para pedir-lhe clemência... O que é a cruz, senão um símbolo da culpa que está espalhado por todos os cantos para quer o devedor nunca se esqueça da sua dívida?... Indo mais além: o que é a dívida familiar, ou seja, a dívida para com os nossos pais? Com o empregador? Com a sociedade? São armadilhas do poder... Não foi por acaso que Nietzsche disse que a má consciência é uma planta hedionda...

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sacerdote (o médico das almas doentes e guia indispensável para “resolver” as infelicidades da existência), ressentimento e má consciência como aspectos formais (a culpa é do outro, a culpa é minha) e oideal ascético (a salvação da alma, a esperança de alcançar uma vida feliz)... Por isso Nietzsche diz que “o homem é, em termos relativos, o animal mais falhado, o mais doente, o mais perigosamente desviado dos seus instintos – sem dúvida também, com tudo isso, o mais interessante!”75 A obediência, o comando,

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“Como gostaríamos de aplicar à sociedade e a seus fins um ensinamento que pudesse ser extraído da consideração de todas as espécies do reino animal e vegetal – para elas, somente importa o exemplar individual superior, o mais incomum, o mais poderoso, o mais complexo, o mais fecundo –, que prazer não haveria aí, se os preconceitos enraizados pela educação quanto à finalidade da sociedade não oferecessem uma pertinaz resistência!”76

O Sentido da Cultura

Na “Genealogia da Moral”, Nietzsche diz que durante o mais longo período do homem – a pré-história –, o trabalho do homem sobre o homem foi o meio para a produção de um tipo mais corajoso, soberano, capaz de prometer o futuro. Trata-se da cultura como produção do gênio... Nas sociedades primitivas a justiça é “a atividade genérica que adestra as forças reativas do homem”77. O castigo é o meio utilizado para

que o indivíduo soberano seja produzido; somente aquele que domina as suas forças reativas pode se tornar um legislador. Trata-se, portanto, do sentido e do valor que o castigo possui para a atividade genérica.

Já nas sociedades históricas – sociedades com Estado, igrejas, etc. –, a justiça nasce da planta venenosa do ressentimento e o castigo produz a planta da má consciência: nelas, o sentido da justiça é para vingar-se de um dano sofrido, e o do castigo é para produzir a culpa naquele que sofre a punição. Ora, se nas sociedades com Estado o castigo visa produzir a culpa, está claro que o que se pretende com isso é aumentar a dívida para com o poder, de maneira que aquele que sofre o castigo, ao sentir-se culpado pelo seu ato, continue submetido às normas vigentes. Por isso Nietzsche ataca os genealogistas da moral reativos, que “descobrem no castigo uma ‘finalidade’ qualquer, por exemplo a vingança, ou a intimidação”78. Nas sociedades

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a sua dívida, e não para que a má consciência seja inoculada nele. Por isso diz Nietzsche que:

“A ‘má consciência’, a mais sinistra e mais interessante planta da nossa vegetação terrestre, não cresceu nesse terreno – de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar lidando com um ‘culpado’. Mas sim um causador de danos, com um irresponsável fragmento do destino.”79

Nesse caso, o castigo, como ritual de crueldade, serve para equivaler a dor ao dano causado para a comunidade. Com isso, consegue-se produzir no torturado uma outra memória, que é a memória de que há sempre um trabalho – o maior de todos – a ser realizado: o da produção ética do futuro. Produzir um tipo forte, para uma sociedade forte, é o que deseja a justiça primitiva.

“‘Como fazer do bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento?’... Esse antiqüíssimo problema, pode-se imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que sua mnemotécnica.”80

Não há um sentimento de revolta naquele que sofre um ritual de crueldade. E porque essa revolta não acontece, já que o nosso mundo civilizado apenas conhece o castigo no seu uso mais vulgar, ou seja, reprimir para produzir o sentimento da culpa? Porque nos rituais de crueldade não é um Estado ou um sujeito injustiçado que exerce o poder de castigar, mas sim a própria tribo que, nesses rituais, demonstra toda a sua alegria através das suas grandes festas... Há um grande gozo coletivo; fazer sofrer dá prazer à tribo... Ao contrário da má consciência – que é o sentido interno da dor – a dor no mundo primitivo tem um sentido externo: ela é sempre a alegria de alguém que a contempla... Segundo Nietzsche, era assim também no antigo mundo grego, onde a dor era a ocasião para os deuses rirem:

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“Por muito e muito tempo, esses gregos se utilizaram dos seus deuses precisamente para manter afastada a ‘má consciência’, para poder continuar gozando a liberdade da alma: uso contrário, portanto, ao que o cristianismo fez do seu Deus.”82

No mundo pré-histórico, a dor serve como um excitante, como uma nova disposição das forças, como uma reação, como uma maneira de produzir um homem forte, como uma alegria para os deuses. A dor é uma oportunidade para prestar homenagens à vida, como uma das condições indispensáveis para que um povo possa superar-se. Portanto, tem o sentido contrário ao da moral judaica-cristã, onde a dor é sempre uma oposição à vida.

O castigo, na atividade genérica, é utilizado para potencializar as forças do torturado. Ao adestrar as suas forças reativas, o torturado paga a sua dívida para com a tribo, porque, afinal de contas, o que o credor mais deseja é que a dívida seja paga, o que não acontece, vale recordar, com o credor das sociedades históricas... No mundo primitivo, os torturados podem pensar assim: “algo aqui saiu errado” e não “eu não devia ter feito isso”83... A tribo fica mais forte ao produzir alguém responsável pelas

suas forças reativas, adestrando-as para prometer o futuro. Memória da produção da cultura. E para que isso aconteça, a lei da tribo é inscrita no próprio corpo do torturado. Na esteira de Nietzsche, Pierre Clastres diz:

“De uma tribo a outra, de uma a outra região, diferem as técnicas, os meios, os objetivos explicitamente afirmados da crueldade; mas a meta é sempre a mesma: provocar o sofrimento.” 84

“Entretanto, depois da iniciação, já esquecido todo o sofrimento, ainda subsiste algo, um saldo irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela operação executada pela faca ou a pedra, as cicatrizes das feridas recebidas [...] A marca é um obstáculo ao esquecimento, o próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lembrança – o corpo é uma memória [...] Que sabem agora o jovem caçador guayaki, o jovem guerreiro mandan? ‘És um dos nossos e não te esquecerás disso’.”85

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“[...] eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento [...] Precisamente esse animal que necessita esquecer [...] desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória [...] uma memória da vontade.”86

Ao produzir essa memória da vontade, a atividade genérica produz alguém que é capaz dedomar as suas paixões e fazer delas forças aliadas à criação: desse processo poderá surgir o indivíduo soberano, responsável por suas forças, que poderá responder por si. Produzir o gênio significa produzir aquele que irá superar um estágio da humanidade. Somente o indivíduo soberano, como produto da cultura, pode estabelecer uma nova justiça, já que a justiça que o produziu é suprimida 87. Nasce o indivíduo livre

para criar novas leis.

“Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade do costume finalmente trazem à luz aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o fruto mais maduro da sua árvore, o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral [...] o que pode fazer promessas – e nele encontramos, vibrante em cada músculo [...] uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento de realização [...] O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante.” 88

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Ao contrário do socialismo da sua época, Nietzsche via na luta por igualdade de direitos um sintoma de decadência. Ele não se preocupou em fazer meras distinções sócio-econômicas entre classes sociais; não perdeu tempo com isso. O que lhe interessava era a distinção do tipo fisiológico – aquele que tem excesso ou diminuição de forças, ou seja, quem pode dominar e quem pode ser dominado.

“Em toda sociedade sã, distinguem-se três tipos fisiológicos que entre si se condicionam, mas são de diversa gravitação, dos quais cada um tem a sua própria higiene, o seu próprio domínio de trabalho e a sua própria espécie de sentimento de perfeição e mestria [...] A casta superior – a quem chamo os poucos – como a mais perfeita, tem também os privilégios do menor número: cabe-lhe representar sobre a Terra a felicidade, a beleza e a bondade [...] Os homens mais espirituais, por serem os mais fortes, encontram a sua felicidade onde os outros deparariam com a sua ruína [...] A tarefa difícil surge-lhes como privilégio; brincar com pesos que oprimem os outros é para eles recreação... [...] Dominam, não porque queiram dominar, mas porque são [...] Os segundos: estes são as sentinelas do direito, os guardiães da ordem e da segurança, os nobres guerreiros [...] são os executivos dos espirituais [...] a desigualdade dos direitos é a primeira condição para que em geral haja direitos. Um direito é um privilégio.”90

Certamente, para o olhar domesticado do homem moderno e democrático, tais palavras são abomináveis. Por isso confundem Nietzsche como se ele fosse um terrível tirano, um sanguinário, um precursor do nazismo. Afastando essas interpretações equivocadas, podemos pensar sobre o que Nietzsche diz sobre a desigualdade dos direitos. Vejamos: ele diz que é a natureza que faz a separação. O que ele quer dizer com isso? É importante recordarmos que uma força nunca é igual a outra. A diferença entre as forças somente é constituída na relação. Essa diferença é a qualidade da força, portanto, sempre haverá uma dominante e outra dominada. Não há uma qualidade “em si” da força, que seria separada de uma relação com outra força.

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Dizer que não há igualdade na natureza é o mesmo que dizer que não há um equilíbrio das forças. O desequilíbrio é absolutamente necessário. Um suposto equilíbrio seria a conclusão do universo, o que é um absurdo. O que se coloca, então, é o problema ético da dominação: é para o poder ou para a potência? É a dominação do homem ativo ou do reativo? Conhecemos o mundo sob a dominação do niilismo, que é o domínio do ressentimento, da má consciência e do ideal ascético. O triunfo do devir reativo é o triunfo da moral judaica-cristã, do sacerdote que fez dos sentimentos de ódio da vida impotente a oportunidade para expandir o seu poder. Ele acolheu todos os excluídos do privilégio da vida nobre – os do terceiro tipo fisiológico – para adoecê-los ainda mais. A multiplicação dos rebanhos, os valores de negação da vida passaram a dominar a vida humana. Mas já vimos do que se trata esse domínio: uma simulação de comando, nada mais além disso. É o rancor presente nos discursos humanistas dos falsos ídolos da nossa época, desses homens pequenos que precisam do poder para ter alguma credibilidade. Querem tudo tirar, porque nada podem dar. O sentido da cultura se perdeu: no lugar da atividade genérica, veio a história, os Estados, as igrejas e todas as formas parasitárias inventadas pelo homem reativo para se proteger do acaso.

Numa comunidade sã, não há espaço para o déspota. O poder é constantemente esconjurado 92. Os homens saudáveis são desejados, e não amaldiçoados. Por isso

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“Quais são os que se demonstrarão os mais fortes? Os mais comedidos. Aqueles que não necessitam de artigos de fé extremados. Aqueles que não somente admitem mas amam uma boa parte de acaso, de insensatez, aqueles que podem pensar no homem com um significativo comedimento de seu valor, sem com isso tornarem-se pequenos e fracos: os mais ricos de saúde, os que estão à altura do maior dos malheurs e por isso não têm medo dos malheurs – seres humanos que estão seguros de sua potência e que representam, com consciente orgulho, a força alcançada do homem.

Como um tal homem pensaria no eterno retorno?” 93

Niilismo e Eterno Retorno

A vontade de nada possui vários disfarces, ela é traiçoeira. Sabemos que o niilismo constitui-se com o triunfo da vontade de negação e das forças reativas. Também sabemos que a abertura da vida – o seu ineditismo – pode fazer do homem um ousado artesão, mas também pode torná-lo um fugitivo da vida; e, antes que esse fugitivo se afogue no imenso mar do nada, numa existência sem sentido algum, o ideal ascético serve como o invólucro desse mesmo nada – um invólucro atrativo para a vontade de nada, sem dúvida, mesmo que seja um grande dragão com escamas de ouro.

“Não se diz ‘nada’: menciona-se em seu lugar ‘o além’, ou ‘Deus’, ou ‘a verdadeira vida’; ou ainda Nirvana, redenção, beatitude... Esta inocente retórica, proveniente do domínio da idiossincrasia religiosa e moral, revela-se logo muito menos inocente quando se elucida qual a tendência que ali se abriga, sob o manto de sublimes palavras: a tendência hostil à vida.” 94

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“Mas apesar de tudo – o homem estava salvo, ele possuía um sentido, a partir de então não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele podia querer algo – não importando no momento para que direção, com que fim, com que meio ele queria: a vontade mesma estava salva [...] tudo isso significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade!...”95

Para Nietzsche, há três estados psicológicos do niilismo 96. Com relação ao

primeiro estado psicológico, ele diz:

“O niilismo como estado psicológico terá de ocorrer, primeiramente, quando tivermos procurado em todo acontecer por um ‘sentido’ que não está nele [...] Aquele sentido poderia ter sido: o ‘cumprimento’ de um cânone ético supremo em todo acontecer, a ordenação ética do mundo [...] ou a aproximação de um estado de felicidade universal. O que há de comum em todos esses modos de representação é que algo deve, através do processo, mesmo, ser alcançado.”97

Importante constatação de Nietzsche: qualquer sentido que é atribuído ao acontecimento que não esteja no próprio acontecimento, é a causa do niilismo. A vontade de nada quer expulsar do acontecimento toda a sua inocência. É possível entendermos porque o homem reativo é niilista: ele recusa o devir porque crê que a imanência é a maior prova de que este mundo é caótico, já que, afinal de contas, tudo muda, tudo nasce e morre, o devir é implacável... Qual é a saída que ele encontra? Explicar o acontecimento pela imaginação: os signos, encadeados, ajudam-no a encontrar um sentido exterior ao acontecimento. Ao julgar a vida, o ideal ascético lhe serve para “ordenar” o caos... Definitivamente, não há pressuposto mais covarde: a vida, a priori, é objeto de acusação por não haver “ordem” neste mundo; daí a tarefa de impor à vida uma “ordem divina”. O delírio do homem reativo parece não conhecer limites. Tudo o que acontece neste mundo é explicado através da vontade de um Deus que existe fora deste mundo! Uma explicação plausível e durável... Mas quem é que aplaude? Quem é que precisa acreditar nessa ficção? Já sabemos: os moribundos...

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de um Deus todo poderoso, onisciente, eterno, lá no alto, diminuiu a vida humana, dando-lhe um aspecto de mera aparência.

Podemos dizer que isso é loucura: os fracos e oprimidos iniciam a sua jornada rumo ao absurdo, partindo da realidade das sensações corpóreas que experimentam a todo instante – julgando-as como apenas “efeitos de um mundo falso” –, para afirmar a existência de um mundo “verdadeiro”, porém, não experimentado...

“Os motivos que fizeram com que se designasse ‘este’ mundo como aparente fundamentam muito mais sua realidade. – Um outro tipo de realidade é absolutamente indemonstrável.”98

Nesse primeiro estado psicológico do niilismo, a servidão humana torna-se a norma. Quem possui a suprema vontade é Deus, originando o universo, a Terra, os animais e, finalmente, os humanos. Somente Deus tem o poder de dar a vida, e também de tirá-la. Os indivíduos também têm vontade, mas nada comparada à vontade infinita de Deus. Deus tem livre-arbítrio, cria as coisas quando e como quer, de acordo com o seu estado de humor. Enfim, tudo que acontece na vida humana é justificada por uma sucessão de estórias pitorescas. Não é necessário aqui recorrermos aos tantos absurdos que a vida impotente criou, basta entendermos a importância que esse encadeamento de signos possui para a formação de um rebanho qualquer.

Já no segundo estado psicológico do niilismo, há uma reação aos valores divinos:

“O niilismo como estado psicológico ocorre, em segundo lugar, quando se tiver colocado uma totalidade, uma sistematização, ou mesmo uma organização, em todo acontecer e debaixo de todo acontecer.”99

Imagem

Foto da capa: “Friedrich Nietzsche”, 1906, pintura a óleo de Edvard Munch.

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