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Revisitando o conceito de cognição e os processos de aprender e ensinar no cotidiano da escola: a aprendizagem como (re)invenção de si e do mundo

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Academic year: 2019

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Edital FAPERJ N.º 14/2009

PROGRAMA “APOIO À MELHORIA DO ENSINO EM ESCOLAS PÚBLICAS

SEDIADAS NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO –2009”

PROJETO DE PESQUISA

REVISITANDO O CONCEITO DE COGNIÇÃO E OS

PROCESSOS DE APRENDER E ENSINAR NO

COTIDIANO DA ESCOLA: A APRENDIZAGEM COMO

(RE)INVENÇÃO DE SI E DO MUNDO.

DRª CARMEN LÚCIA VIDAL PÉREZ

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I. IDENTIFICAÇÃO

Título do Projeto: Revisitando o conceito de cognição e os processos de aprender e ensinar no cotidiano da escola: a aprendizagem como (re)invenção de si e do mundo

Nome: Drª Carmen Lúcia Vidal Pérez (coordenadora)

Instituição proponente: Universidade Federal Fluminense – Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado e Doutorado

Endereço Completo: Campus do Gragoatá –Bloco “D” – sala 515 - R. Visconde do Rio Branco, 882- São Domingos – Niterói – RJ – Cep: 24210-350

Telefone e fax: (21) – 26292642 – FAX: (21) 26292691 Celular: (21) 81533467

E-mail: vidalperez2@yahoo.com.br

› Dados da Instituição onde se desenvolverá a Pesquisa

Instituição: SME/Duque de Caxias, Escola Municipal Ana Nery

Endereço: PortoSeguro s/n- Dr Laureano-CEP 25051080 – Duque de Caxias - RJ

Telefone e fax: 26527952/ 37746391 Celular: 81358096

E-mail:escolaanarey@bol.com.br

II . APRESENTAÇÃO DA PESQUISA

O presente projeto é um desdobramento de nossa experiência de pesquisa com as crianças do 3º ano do Ciclo de Alfabetização da Escola Municipal Ana Nery, situada no bairro de Dr. Laureano na cidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Ao nos dobrarmos sobre os resultados obtidos em um ano de investigação (2008)1, percebemos como eles podem se desdobrar em outras possibilidades para aprendizagemensino. Para tanto, estamos propondo o projeto “Revisitando o conceito de cognição e os processos de aprender e ensinar no cotidiano da escola: a aprendizagem como (re)invenção de si

e do mundo”, que na perspectiva de ampliação da pesquisa realizada visa acompanhar o mesmo grupo de crianças agora no 5º ano de escolaridade. AAs relações cotidianas das crianças das classes populares com seus diferentes espaços sociais e ambientes culturais

1 -Referimo-nos ao projeto Injustiças Cognitivas: ressignificando os conceitos de cognição,

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e as diferentes lógicas que circulam no cotidiano da sala de aula, bem como a diversidade de estilos cognitivos, constituem o foco da presente pesquisa.

Buscamos investigar as lógicas operatórias das crianças das classes populares presentes em suas relações cotidianas, tomando como pressuposto o postulado de Boaventura de Sousa Santos (2004) de que a injustiça social está diretamente relacionada às injustiças cognitivas. Buscamos subverter razão dominante e a lógica

operante fundada nas “dificuldades de aprendizagem” das crianças das classes

populares, a partir de uma inversão discursiva que reconhece a existência e possibilita a circulação/socialização de outras racionalidades e de outras operações lógicas que fundadas numa epistemologia existencial, revele-se capaz de produzir um conhecimento prudente para uma vida decente2.

A pesquisa busca identificar as configurações das injustiças cognitivas na escola. Ao investigar com o cotidiano procuramos formulações discursivas e práticas de enfrentamento da subalternidade das hipóteses de vida. Além de (com)provar que uma escola pública de qualidade é possível de ser (re)inventada3, a partir do questionamento da política cognitiva hegemônica, a presente pesquisa pretende desdobrar a concepção de aprendizagem disseminada para deslocar seu significado da solução de problemas ou apresentação de respostas, para um aprender como produção de singularidades. Tal postura demanda a desconstrução da subalternidade, uma vez que não corresponde a um universo de questões já formuladas a modelar os sujeitos e caminha a favor da

2 - SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento Prudente para uma Vida Decente. Um discurso sobre

as Ciências revisitado. São Paulo:Cortez,2004.

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emancipação através da via da pergunta. A problematização do meio fratura a linearidade do tempo da preparação, porque conhecer = fazer = ser, Varela (2003).

A busca de produção de um conhecimento prudente para uma vida decente confere a nossa investigação um tom interessado. Fazemos questão de ressaltar que a pesquisa

Revisitando o conceito de cognição e os processos de aprender e ensinar no cotidiano da escola: a aprendizagem como (re)invenção de si e do mundo”, se pauta na tomada de partido pelo direito das crianças das classes populares de terem seus processos aprender respeitados, o que implica uma ordem escolar emancipatória contra a própria condição da infância ou o infante como o ser sem voz ou que não sabe o que diz. Por defender como Freire (1996), que nenhum estudo ou postura são neutras, sentimos a necessidade de afirmar nosso ponto de vista, mesmo compreendendo a impossibilidade de falar em nome do outro.

A pesquisa “Revisitando o conceito de cognição e os processos de aprender e ensinar no cotidiano da escola: a aprendizagem como (re)invenção de si e do mundo”

se configura a partir de uma agenda políticaepistemológica4 que sintetiza nossos debates, reflexões e compreensões sobre o papel da escola na contemporaneidade, em especial a escola das classes populares. Elaboramos tal agenda para orientar nossas ações investigativas, pois acreditamos/defendemos que a escola precisa ser (re)inventada em sua base epistemológica e em sua função política, o que exige a formulação de uma política cognitiva comprometida com a produção de um conhecimento prudente para uma vida decente, como postula Boaventura Santos (2004). Nesse sentido pautamos nossas ações de pesquisa em alguns princípios epistemológicos que nos ajudam a (re)pensar e (re)criar uma política cognitiva articulada à reinvenção da escola das classes populares. Tais princípios são:

(i) a diferença – entendida não somente como celebração da diversidade, mas visceralmente ligada à desigualdade social;

(ii) a descolonização das mentes - através da reivindicação por uma Pedagogia da Pergunta como forma de auto- organizar as práticas, currículos, usos de linguagens e demais ações e rituais escolares/pedagógicos;

4 - O leitor encontrará ao longo do texto do projeto, palavras distintas grafadas como um só termo.

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(iii) a endogenese - processo de defesa da natureza sistêmica e de invenção segundo hipóteses de vida, epistemologias marginais e a superação da ignorância de nossa própria condição;

(iv) a necessidade de estudar outras formas de conceituar a cognição, superando a dicotomia ente/existente, mente/mundo, desdobrando as explicações construtivistas baseadas na assimilação e acomodação entre o sujeito e o objeto ou nas relações de conhecimento baseadas na representação, referências insuficientes à produção de um conhecimento a serviço da emancipação;

(v) a mudança paradigmática, em que experiência e cognição se reencontram na articulação prática-teoria-prática - pelo reconhecimento de processos como auto-organização, emergência, enação e até mesmo a noção de ZPDs [admitindo uma leitura a partir das virtualidades em Deleuze (2003)];

(vi) a prática da professora como um trabalho de co-implicação - aprender e ensinar na lógica da invenção.

Como uma bússola a agenda tem nos guiado no percurso da pesquisa [ no período de 01 (um)ano de seu desenvolvimento], embora paradoxalmente, ela se constitua, ao mesmo tempo, no meio e no fim de nossa ação investigativa.

Uma curiosidade compartilhada move a escritura desse estudo, o desejo político de compreender a própria história, de intercambiar nossas experiências e conceituá-las de modo desviante ao que a narrativa geral do poder dissemina. Curiosidade fertilizada pelos encontros, com as crianças na escola e nos grupos de estudo, que promovem experiências extra-ordinárias, diferentes ou potencialmente diferentes do que nos é reservado na luta contra o imobilismo. A proposta da pesquisa é documentar e investigar as possibilidades cotidianas de trabalhar com a curiosidade epistemológica5, para tecer, com muitos fios, as narrações de experiências que (re)inventam a escola e a sala de aula.

5 - Para Freire o bom clima pedagógico-democrático é aquele em que o próprio educando aprende que sua

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III. MOVIMENTOS DA PESQUISA

› DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA

A proposta de investigação temcomo foco a dinâmica entre cognição, memória e invenção. Entendemos que os sentidos disseminados produzem formas de conceber/perceber resultantes da injustiça e da desigualdade e sua superação depende das ações ou práticas de enfrentamento que desfazem o equívoco de julgar o ser pelo fazer. A produção da pesquisa é alimentada pela esperança gerada pelas iniciativas ou ações cotidianas de enfrentamento do movimento das formações coletivas: crianças-crianças, crianças-famílias, professoras-professoras, professoras-universidade. Iniciativas aqui entendidas, não só como a criação de alternativas, mas movimento de questionamento e problematização do que é posto como realidade.

Interrogar o conceito de cognição leva a reflexão sobre o vazio epistemológico da escola, movimento que é imprescindível à formulação de políticas cognitivas mais justas. O questionamento sobre o desgaste da escola se torna tangível partindo dos conceitos da não-existência produzida pela racionalidade moderna (Boaventura de Souza Santos - 2004) e a liquidez de nossos tempos6 (Bauman,2007).

A injustiça cognitiva é traduzida como residualização humana, ou seja, os saberes, as práticas, os sonhos, os corpos e a vida dos sujeitos considerados fracassados compõem uma humanidade obsoleta e inadequada, cuja única opção é o descarte.

O que chamamos de vazio epistemológico da escola corresponde ao desgaste de seu quadro conceitual fundado na razão indolente que desperdiça as experiências sociais (saberes e práticas) que não fazem parte do modelo socialmente valorizado. O vazio da escola se dá através do perverso processo da produção da não-existência - o que não pode ser formulado segundo seus esquemas conceituais hegemônicos é negado ou desacreditado. Isso se explica porque o modelo cognitivo ocidental se reivindica como única forma de racionalidade e, produz a não-existência ao perceber o outro como ignorante, atrasado e redundantes.

possibilitar a transformação da curiosidade espontânea em curiosidade epistemológica. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo,. Paz e Terra, 1996:28.

6-Tempos característicos da fase líquida da Modernidade. Tempos em que se derretem os sólidos elos

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A pesquisa ganha sentido ao defender que as injustiças históricas e sociais configuram-se na escola como injustiças cognitivas que disseminam a resignação e se baseiam no apagamento dos percursos e processos de conhecer que diferem da racionalidade cognitivo-instrumental da ciência moderna. Propomos tecer no movimento práticateoriaprática, outros discursos e práticas que subvertam a lógica da dificuldade de aprendizagem, substituindo-a pela lógica do conceito de injustiça cognitiva.

Buscamos a partir do processo de pesquisa dar conseqüência práticoteórica a proposição de Boaventura Santos que ao defender o conhecimento emancipação7, afirma a necessidade de se produzir um conhecimento prudente para uma vida decente. Tal postulado se ancora numa mudança paradigmática, que fratura argumentos, desconstrói lugares estabelecidos e destrói o regime de verdade8 que se difundiu no cotidiano escolar

sobre as “dificuldades de aprendizagem”, ampliando as discussões entre percepção,

memória, cognição e invenção de si e do mundo.

Posicionamo-nos contra os discursos e as produções sobre as tais dificuldades de aprendizagem, questionamos suas reais possibilidades de existência e interrogamos os efeitos perversos de sua aplicação nas escolas - que justifica os lugares do fracasso que um número significativo as crianças ocupa.

Acreditamos ousadamente que nossa pesquisainteressada busca traçar caminhos que procuramregistrar e investigar os momentos extra-ordinários que emergem do desgaste e do vazio que a escola enfrenta, num momento histórico caracterizado pela impossibilidade de cumprir à promessa de um futuro seguro até mesmo para quem obteve sucesso nos bancos escolares.

Apesar de nossas boas intenções e de nosso compromisso político, o desafio está dado e exige a formulação de dispositivos práticosteóricospráticos de enfrentamento de uma situação que consideramos insustentável – entendemos estar diante da urgência da reinvenção da escola, pois as forças do modelo hegemônico, fundado na racionalidade

7 - Segundo Boaventura Santos o paradigma da modernidade comporta duas formas principais de

conhecimento: o conhecimento-emancipação e o conhecimento-regulação. O conhecimento-emancipação se traduz numa trajetória entre um estado de ignorância (colonialismo) e um estado de saber (solidariedade). A esse respeito ver SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica da Razão Indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo. Cortez, 2000, p. 74

8 - Foucault caracteriza como REGIME DE VERDADE os diferentes tipos de discurso que a sociedade

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moderna, que sustentam seus instrumentos e dinâmicas de funcionamento, não dão conta das demandas do nosso tempo.

Em nossas formulações teóricas e em nossas investigações, vimos afirmando o cotidiano da sala de aula como o espaçotempo da possibilidade de reaçãoinvenção, em oposição à concepção dominante na vida escolar que entende o cotidiano como um espaço de rotinização e um tempo de repetição [do mesmo].

As práticas pedagógicas disseminadas no cotidiano escolar, de um modo geral respondem/correspondem a um modelo ou concepção de cognição que expulsa dos bancos escolares a imaginação, o rememorar, a herança cultural e os modos de fazer de todos aqueles que não se limitam a quantificar, analisar, buscar a verdade ou pensar de forma a classificar, segregar, separar e ordenar o conhecimento.

A ruptura com a lógica da não-existência obriga à assunção do caráter histórico, cultural, geográfico e subjetivo do ato de conhecer, o que nos coloca diante da seguinte questão: as crianças [e suas infâncias] estão ou não, existencialmente presentes, nos conhecimentos e discursos proferidos [na e para a escola] sobre seus processos de aprendizagem e desenvolvimento?

Quando as questões cognitivas se tornam questões políticas, se evidencia que, a negação da relação existencial das pessoas com o conhecimento e a desqualificação de suas formas de significar o mudo constituem a produção de uma forma de injustiça [legitimar a história corpórea e social dos sujeitos da escola é abrir o fazer pedagógico para o processo de produção de subjetividade que dialoga com as estruturas pelas quais

as pessoas existem no sentido “ter um mundo”, ou seja, nas suas hipóteses de vida], desse totalitarismo, resulta tanto a exclusão de crianças e jovens do processo de

escolarização, quanto à redução do papel da escola na produção de “um conhecimento prudente para uma vida decente”, como postula Boaventura Santos.

› JUSTIFICATIVA

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também injustiças cognitivas. Segundo Visvanathan9, o regime cognitivo vigente suplanta as alternativas, as memórias, as hipóteses, os tempos em nome de seu progresso e de seu desenvolvimento o único aceitável. O uso deste conceito nos levou a pensar nas configurações da escola: até que ponto o conceito de cognição com que a escola trabalha está impregnado da dinâmica instrumental de cognição limitando o campo de ação das praticas pedagógicas, pois desconsidera as possibilidades de invenção e de problematização como coloca Freire ao propor uma Pedagogia da Pergunta? Como romper com o discurso das dificuldades de aprendizagem de modo que essas possam ser “lidas” como injustiças cognitivas?

Assumir a produção de um conhecimento prudente para uma vida decente como tarefa políticoepistemológica da educação em geral e da investigação científica em particular, implica, do ponto de vista da presente pesquisa, explicitar as bases de sustentação do conhecimento veiculado e transmitido na e pela escola.

Boaventura Santos (2000-2006) ao propor uma crítica radical ao modelo de conhecimento e ciência imposto pela modernidade assinala que o potencial de renovação epistemológica da ciência, não se realizará enquanto predominar a perspectiva hegemônica enraizada nos modos dominantes de interpretar e transformar o mundo. Propõe o autor, que tal crítica deva buscar a raiz que sustenta as formulações tanto das ciências sociais quanto das ciências naturais: a razão indolente10 - uma racionalidade fundada na indolência que traduz a ocultação, a marginalização e o desperdício de outras experiências e formas de criatividade.

Na escola o conhecimento é transmitido, difundido e socializado a partir de uma ordenação lógica que tem como fundamento uma concepção de totalidade em que o todo tem primazia sobre cada uma das partes, que só existem em função do todo e, de uma temporalidade abstrata que sustenta a ordenação e a progressão do conhecimento

9 - VISVANATHAN, Shiv.Convite para uma Guerra da Ciência. IN: SANTOS,

Boaventura.Conhecimento Prudente para uma Vida Decente. Um discurso sobre as Ciências revisitado. São Paulo:Cortez,2004.

10 - Boaventura Santos afirma que a razão indolente está subjacente ao [e se desenvolveu no] contexto

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[curricular] estruturado numa seqüência gradual do simples ao complexo, criando

pré-requisitos para o ensino e para “aprendizagem”.

A razão indolente fundamenta tanto a organização curricular do conhecimento, quanto os procedimentos didáticos e metodológicos subjacentes às práticas escolares. Os dispositivos pedagógicos engendrados na e pela razão indolente cumprem a função de marginalizar e ocultar a diversidade de saberes [que se organizam e se estruturam a partir de outras lógicas de pensamento e ação] que caracterizam outros modelos de racionalidade e divergem da lógica operante da escola e, por conseguinte, outros modos de aprender e produzir conhecimentos, que circulam [e são invisibilizados] no cotidiano da sala de aula.

Além de promover o desperdício de experiências singulares de crianças, pais e professores e de grupos sociais diferenciados presentes no cotidiano da escola, a razão indolente difunde [pela imposição] uma forma monolítica de cultura que nos acostumamos a chamar de cultura escolar11.

O senso comum científico, característica do conhecimento escolar, não possibilita que

professoras e crianças pratiquem a “pedagogia da pergunta” e desenvolvam/exercitem

uma atitude científica. A ênfase no conhecimento como um processo de assimilação de informações, impede que se instale o processo de investigação da realidade e, portanto, a iniciativa à pesquisa.

A razão indolente que legitima do modelo cognitivo escolar fabrica fracassos e se articula a uma temporalidade que contrai o presente e expande o futuro: a organização curricular, as provas e a cultura escolar pautada no que podemos chamar da lógica da preparação. Propor outra política cognitiva implica no mapear dos dispositivos que traduzem a injustiça social em injustiça cognitiva, através de mecanismos de veiculação de visão de mundo hierarquizadores de saberes, que subalternizam hipóteses de vida e disseminam a obsolência.

A obsolência está relacionada à lógica do progresso e a temporalidade linear. Esta produção se dá através da criação de demandas e necessidades sem condições justas de acesso para todos: as pessoas refugadas que não acompanham o ritmo das mudanças, não são inteligentes ou aplicadas o suficiente e permanecem desatualizadas, são condenadas a viver como [e das] sobras do progresso. A produção de analfabetos

11 - Chamamos de CULTURA ESCOLAR [sentido hegemônico do termo], o conjunto de práticas

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escolarizados dá materialidade a esse processo.

› OBJETIVOS

Poderíamos afirmar que a presente pesquisa tem como objetivo geral investigar a formulação de novas possibilidades para a ação educativa da escola a partir da revisão-ampliação do conceito de cognição, articulando-o a uma perspectiva político-epistemológica fundada na concepção de injustiças cognitivas.

O que pode emergir quando investimos na procura do que as crianças das classes populares sabem e nas suas formas de conhecer, nas narrações de suas histórias pessoais e coletivas? Que problematizações são possíveis quando se defende que o coletivo aprende ou que as aprendizagens podem ser coletivas e que conhecer envolve inventar a si e o mundo? Quais as implicações de pensar a escola partindo de um conceito amplo de cognição que inclua a memória, a imaginação e que defenda a abordagem conceitual

do conhecimento e não as fragmentações ou “didatizações” com que a escola trabalha? Tais questões nos conduzem aos objetivos específicos da pesquisa, a saber: (i) investigar o processo de produção de alternativas capazes de responder aos desafios que a educação na contemporaneidade nos coloca; (ii) investigar as diferentes racionalidades que sustentam a diversidade de processos e estilos cognitivos que circulam no cotidiano da sala de aula, favorecendo a produção de uma concepção ampliada de cognição; (iii) ressignificar, do ponto de vista da prática pedagógica a relação memória-percepção-representação-imaginação a partir do conceito de injustiças cognitivas; (iv) investigar as lógicas operatórias das crianças das classes populares presentes em suas decifrações cotidianas; (v) subverter a lógica que sustenta o fracasso escolar das crianças das classes

populares substituindo o “conceito” de dificuldades de aprendizagem pelo conceito de injustiças cognitivas.

› METAS

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crianças do caderno de conceitos - resultado de suas pesquisas e investigações; (iv) publicação do livro Injustiças cognitivas e Cotidiano Escolar [título provisório] apresentando os resultados parciais [relativos à primeira fase - março de 2008 a março de 2009] da investigação; (v) apresentação dos resultados da Pesquisa em Congressos nacionais e internacionais e eventos científicos; (vi) publicação de artigos com resultados da pesquisa em periódicos nacionais e estrangeiros.

› BENEFÍCIOS ESPERADOS

Podemos afirmar que nossa expectativa com esta pesquisa é contribuir para a ampliação da compreensão das diferentes lógicas que fundamentam os processos de produção de novos conhecimentos e de aprendizagem das crianças das classes populares e para a construção de outra cultura escolar - que ao valorizar e incorporar as diferentes racionalidades que circulam no cotidiano da sala de aula possa traduzir práticas potencializadoras de outros processos de aprendizagem.

Esperamos ainda, contribuir para o sucesso dos alunos e alunas do 5º ano de escolaridade da Escola Municipal Ana Nery, da Rede Municipal de Educação de Duque de Caxias, a partir da produção de práticas centradas na ampliação cultural, no fortalecimento de saberes já consolidados e na produção de novos conhecimentos por parte de professoras e crianças.

E por último, embora não menos importante temos a expectativa de contribuir para a formação da professora pesquisadora12 entrelaçando os fios da pesquisa e da formação, a partir de um processo de investigação fundado no movimento práticateoriaprática.

IV. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A presente pesquisa se estrutura a partir da lógica da implicação A pesquisa com as crianças é um processo de implicar-se e indica a possibilidade ex-plicar os mistérios

12- Entendemos que professoras comprometidas com o sucesso de todos os seus alunos e alunas, refletem

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do mundo - não na perspectiva da razão indolente, mas na perspectiva deleuziana de dobra: ex-plicar é abrir a dobra, revelar a interioridade, o que está encoberto e/ou invisibilizado. Relegada a zona de sombra a implicação é negligenciada - a quem cabe produzir questionamentos? O ato de perguntar reúne os sujeitos e possibilita dobras e redobras de ações. Implicar e estar junto é seguir pela aventura de conhecer permitindo-se aprender com o outro, legitimando a outreidade como modo de convivência. Passar do mesmo para o outro nas relações pessoais e espaciais implica a (re)invenção da escola - uma escola que funciona como um espaço comunal de conhecimentos, uma escola que possibilite às crianças uma percepção potencial e positiva de sua herança biológica, política e cultural.

A possibilidade de constituir um coletivo de intercâmbio de experiência modifica nossas formas de conceber as relações com a escola e com as crianças e engendra práticas que reconhecem que cabe à infância rememorar o novo, como capacidade de inventar, criar novas imagens e sentidos para a humanidade, como assinala Benjamim (1994). Portanto, é necessário que aprendamos a pensar a ambivalência, que sejamos capazes de captar o que foi expulso do recorte da escola - a presença onipoética das crianças. Aí reside a possibilidade que Benjamin assinala quando aponta que são as crianças que vão rememorar o novo - que já se encontra carregado de sentido para pode ser recriado por elas - pois possuem uma lógica outra e uma percepção potencialmente revolucionária.

A cartografia do movimento de implicação exige o percorrer dos fios de um conjunto multilinear da tapeçaria cotidiana de quem luta pela superação da miséria do ponto de vista da modernidade. O exercício da imaginação cartográfica, tão caro a cognição inventiva, desdobra-se em planos de criação: são as crianças que narram suas vidas, fazendo surgir interrogações de suas experiências dentro/fora da escola. A composição da aula acontece segundo as problematizações emergentes e promovem a investigação no sentido da transversalidade e do elaborar uma inteligibilidade mútua entre saberes e práticas das crianças de Jardim Gramacho e o conhecimento científico.

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que cada propriedade exige suas fronteiras, processos nem sempre cordatos, os demarcadores encontram litígios - deles nasce o próximo relato de invenção.

Tal perspectiva nos obriga a pensar no sentido da escola, na busca por apropriação/produção de outras leituras (políticas) dos contextos sociais e da palavra escrita. A organização inventada exige que a escola funcione como espaço da pergunta, da curiosidade, da investigação. Assim, podemos afirmar que a pesquisa acontece seguindo na proposição de uma arte cartográfica, que possibilita ao coletivo implicado reinvenções cotidianas que ressignificam o espaçotempo da escola.

Para melhor compreendermos os processos de demarcação discursiva que circulam no cotidiano da escola e da sala nos dobramos sobre a relação memória-percepção, que do nosso ponto de vista, se desdobra, no presente estudo, nos conceitos de reconhecimento atento e reconhecimento automático de Henri Bérgson (1990).

A partir da diferenciação entre reconhecimento atento e reconhecimento automático, Bérgson delimita a relação memória-percepção. Segundo o autor o reconhecimento automático tem como base a ação. No reconhecimento automático os movimentos prolongam a percepção e ao mesmo tempo nos afastam da própria percepção do objeto, percebemos sem perceber que percebemos, é como caminhar por um percurso já trilhado, um caminho já conhecido, paisagem naturalizada na qual nos deslocamos sem nos atentaremos ao trajeto percorrido.

No que se refere ao reconhecimento atento, Bérgson aponta que

...todos os elementos, inclusive o próprio objeto percebido, mantêm-se em estado de tensão mútua como num circuito elétrico, de sorte que nenhum estímulo partido do objeto é capaz de deter sua marcha nas profundezas do espírito: deve sempre retornar ao próprio objeto. (1990:83).

O reconhecimento atento reconduz a atenção do sujeito para as singularidades do objeto. A percepção volta-se para imagens do passado conservadas na memória, ao contrário do que ocorre no reconhecimento automático, onde ela é lançada para a ação futura.

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ponto de interseção entre a percepção e a memória, uma espécie de circuito em que memória e percepção trabalham em conjunto. Segundo Bérgson a memória não conserva a percepção, mas a duplica.

Quando do reconhecimento atento, a memória dirige à percepção imagens que se assemelham a ela. Se estas não a recobrem totalmente, novo apelo é lançado a regiões mais afastadas da memória e a operação pode prosseguir indefinidamente. O reconhecimento atento (Bérgson, 1897/1990a) se articula em torno do objeto percebido e sua imagem-lembrança, virtual e correspondente. A partir desses dois pontos são desenhados circuitos sucessivos, cada vez mais amplos, forjando uma idéia de irradiação progressiva da atenção (KASTRUP,2007:9).

A duplicação altera a percepção e engendra uma razão ampliada13 capaz de captar o universo simbólico e a aura de cada momento. Na presente pesquisa é a curiosidade que move a busca, dando energia para permanecer a procura, mas há uma diferença ou uma exigência: quem busca não se apodera da curiosidade entrega-se a ela. Assim, trabalhar com as crianças é buscar o retorno da magia através do reencantamento do cotidiano quando nos dedicamos a descobrir, a perguntar, a inventar, um conhecimento tecido em rede que supera o roteiro de conhecer desenhado pela modernidade: separar, medir e classificar, rompendo a visão do cotidiano como mesmice ou rotina - que oblitera nossa percepção da diferença e nos distancia da aura da inventividade, como indica Benjamin ao comparar o rastro e a aura:

O rastro é a aparição de uma proximidade, por mais longínquo esteja aquilo que o deixou. A aura é a aparição de algo longínquo, por mais próximo esteja aquilo que a evoca. No rastro, apoderamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera de nós (1994:40).

A passagem de Benjamin nos obriga a questionar as relações de perspectiva: o próximo e o distante, o possível e o impossível. Pesquisar o cotidiano como

13 Walter Benjamim define razão ampliada como a razão situada entre a experiência empírico-dedutiva

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acontecimento obriga a fazer o movimento de ruptura com a racionalidade dominante, resgatando a possibilidade como categoria modal da existência.

A rede de encontros promove uma substância da memória que produz possibilidades discursivas de enfrentamento a atribuição de culpa ou as injustiças cognitivas que impedem que as crianças das classes populares tenham garantido o seu direito à escolarização, lembrando o que Freire (1996) adverte: as crianças não desistem, mas são paulatinamente expulsas quando não passam pelo espaço escolar, distanciadas de um processo efetivo de aprendizagem, são habitantes do resido, são as causas perdidas que ninguém se dispõe a investigar o que sabem ou não sabem, são os que circulam pelos corredores, os que mesmo na escola ciclada, são postos para fora.

A razão ampliada coloca a imaginação, as práticas de rememoração, a criação e a invenção no centro do processo de aprender e exige o exercício de uma nova forma de viver a docência: uma “torção” sobre algo pontiagudo que cria um novo estilo de ser

professora, uma marca dolorosa porque parte do entendimento de uma impossibilidade de intervenção direta e atual sobre as condições de opressão.

A substância social da memória funciona como acervo das pessoas comuns, abrindo possibilidades para descobrir o extra-ordinário na banalidade da rotina. A investigação narrativa nos permite chegar às formas singulares de como as pessoas contam a si, através da circulação das vozes do outro.

A narrativa no espaço escolar abre a possibilidade de valorizar a trajetória histórica e cultural dos grupos que habitam seus espaços, de constituir-se em um espaço para aprender a própria história, o que já representa uma forma de resistir, de mostrar para si e para as crianças que produzimos cultura. Isto nos leva a buscar o lugar da memória nos processos de aprendizagem que, apesar de ser uma das funções psicológicas superiores, como apontado por Vygotsky (2001), vem sendo negligenciada pela escola em seu potencial de criação e desdobramento narrativo.

Para além da memorização e da comemoração, a rememoração leva o espírito humano à descoberta, ao desdobramento, a um trabalho de memória que envolve não só uma elaboração do que se passou como também o trabalho da imaginação e da singularidade nas narrativas do sujeito. O trabalho de rememoração contra a compulsão de repetição pode ser uma alternativa para o trabalho com as crianças das classes populares.

Investigar as conexões das memórias pessoais e coletivas como via para

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as formas de conceituar a memória. Que sentidos estão presentes quando a memória é uma questão para a investigação? O trabalho com a memória nos conduz a compreensão da complexa relação lembrança-esquecimento, em que o passado se coloca como negociação entre o que esquecer e lembrar, processos que se passam no plano individual e coletivo, ou melhor, nos passam e nos marcam.

O desdobrar das narrativas mostra as mentalidades não só em sua dimensão fechada, mas em seu movimento de invenção de si e do mundo, então por que desconsiderar a dinâmica da memória como mediadora da percepção?

As experiências oriundas das diferentes redes que se inserem no universo social, cultural e simbólico [das crianças e de suas famílias], suas explicações e suas significações, abrem a possibilidade para a recriação de vínculos com o passado e com

as pessoas “portadoras” desse passado.

Desenrolar a trama da memória é um investimento subjetivo que amplia o campo das virtualidades - nossos horizontes de ação e de aprendizagem fundados na circulação de possibilidades de torna real o que ainda é potencial/virtual, seja no âmbito individual, seja no âmbito social.

Na moderna sociedade contemporânea a escola cumpre a função de formar peritos. Fundada numa perspectiva político-epistemológica que reduz a teoria do conhecimento a uma teoria do conhecido, a prática educativa escolar se estrutura a partir de uma ordenação lógica em que o conhecimento é tratado como representação do conhecido. Tal lógica sustenta as discussões sobre o currículo, a aprovação/reprovação e o destino acadêmico/profissional dos estudantes.

O modelo escolar de conhecimento engendra [e é engendrado por] um processo cognitivo em que a atenção focal, a percepção [auditiva] e a memorização constituem a

base da “aprendizagem”. Para aprender na escola a criança deve ser capaz de ouvir

[atentamente uma explanação sobre determinado assunto], ler [reconhecer novos conhecimentos sobre o assunto no livro didático disponível] e escrever [reproduzir de

modo preciso] o “aprendido”.

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Mais do que um modelo de conhecimento, a racionalidade indolente produz [e reproduz] um sistema de signos e valores que, fundados na lógica da reduplicação do

mesmo, difunde “verdades” que se configuram como saberes universais14. A prática pedagógica escolar é fruto de uma tradição. Uma tradição, que nos ensinou a pensar e a agir a partir de um universo discursivo considerado único e verdadeiro. A epistemologia escolar ao eleger e legitimar o discurso científico como verdadeiro, desconsidera outras racionalidades e lógicas que sustentam diferentes organizações cognitivas e outras configurações semânticas.

Quebrar o espelho em que se reflete a racionalidade indolente da escola é uma ousadia. O que os estilhaços desse espelho quebrado nos revelam? Revelam como faz diferença afirmar para a criança porque não, ou ajudá-la a se perguntar por que não? A interrogação desestabiliza a certeza do já dado que deve ser assimilado por um processo de recognição15 e favorece a emergência de experiências que rompem com a banalidade cotidiana, fraturam os blocos recognitivos e produzem novas subjetividades. O exercício da pergunta (por que não?) nos coloca outras possibilidades e experiências que nos fazem pensar, força a invenção e rompe com a naturalização do não saber ou da ignorância. Praticar a Pedagogia da Pergunta (Freire, 2008), é investir na produção da aula como acontecimento16 - a produção de conhecimento se opera a partir das ações e invenções cotidianas, não sendo intermediada pela representação. A criança produz conhecimento pela ação inventiva [conhecer é criar], não representativa.

Pensar a produção de conhecimento na escola na perspectiva da justiça cognitiva é problematizar o modelo cognitivo operante fundado na representação [que confunde a

14 - A ciência moderna promulga como saberes universais aqueles que sustentam as leis gerais, que

regulam o mundo e seus habitantes. A Ciência como projeto da modernidade, confere um caráter universal a representações “verdadeiras”, daquilo que recorta como objeto de investigação, operando com demarcações que consistem em delimitar o que há de universal sob as particularidades e/ou contingências. Os saberes universais emergem de um projeto de totalização (e totalitário) que exclui outras formas de racionalidade, lógica e relações cognitivas que não se adaptam ao modelo de hegemônico de representação de mundo. A esse respeito ver LATOUR, 1994.

15 - RECOGNIÇÃO efeito de estabilização com grande vantagem do ponto de vista da adaptação. A

recognição como uso exclusivo da inteligência no tratamento da temática cognitiva, que acabou por fazer da cognição uma grande inteligência a serviço da solução de problemas. A cognição na escola é vista como processo de solução de problemas – estabilidade da cognição – recognição. A invenção cede lugar a aprendizagem de regras e a construção de esquemas conceituais que se desenvolve a partir das categorias forma e estrutura que tem o papel de assegurar a unidade da cognição, garantindo a recognição. (Kastrup, 2007, p. 63).

16 - A AULA COMO ACONTECIMENTO expressão tomada de empréstimo a João Wanderley Geraldi

retirada do título da conferência: “Ensinar e aprender: a linguagem e construção do sujeito”, sobre

conceitos bakhtinianos sobre a aula como acontecimento e as possibilidades que o ensinar e o aprender oferecem, proferida no XVI Seminário Estadual de Língua Portuguesa e Literatura

Rio-Grandense e o XII Fórum de Educação de Rio Pardo. Disponível em

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matéria com a forma dos objetos], substituindo-o por relações cognitivas abertas ao novo, imprevisíveis, que produzam tanto a inquietação, quanto a instabilização da própria cognição.

Os cacos do espelho quebrado também revelam que é possível romper com o signo da convergência do mesmo e do fechamento do sistema cognitivo17, pela afirmação do diálogo entre diferentes formas de ser, pensar e produzir conhecimentos.

Pensar a escola e a prática educativa sob o signo da justiça cognitiva implica romper com os limites da cognição [condições demarcadas e previamente definidas, invariantes e inultrapassáveis], substituindo-os pela produção de outras práticas cognitivas [resíduos - tudo o que escapa aos limites e aponta para outros modos de funcionamento cognitivo], que afirmem outras formas de conhecer.

Propor uma discussão política dos estudos cognitivos só se torna viável através dos conceitos e proposições de Maturana e Varela (1987) sobre o conhecer em suas bases biológicas e afetivas. Principalmente a concepção de uma mente corpórea que não tem diante de si um mundo a representar, mas sim uma trajetória a partir de experiências constitutivas para criar/viver. E o enlace dessa temática com a proposição de aprendizagem inventiva desenvolvida por Kastrup(2007), nos incita a pensar o cotidiano da escola como locus privilegiado para pensarpraticar uma política cognitiva comprometida com a emancipação.

O debruçar sobre as injustiças cognitivas exige o deslocar da atenção para o campo das aprendizagens singulares, para pensar a cognição como ação corporificada o que promove a ruptura com percepções dicotômicas sobre o conhecer relativas ao dualismo: ente-existente/ si e mundo/ sujeito e objeto. Uma posição divergente demanda a incorporação da experiência humana no processo de conhecer, pois como nos lembra Varela(2003), “a ação pode ser perceptualmente guiada num mundo dependente do sujeito perceptor (2003:131). A percepção do co-engendramento sujeitoconhecimento [entre o si e o mundo] nos possibilita ultrapassar uma concepção de cognição fundada em esquemas de assimilação [apreensão do real] e adaptação [do sujeito ao meio]. Tal percepção promove a ruptura com um determinado tipo de condição cognitiva, ou seja, com a lógica da apropriação do real mediante a construção de objetos (Zemelman,2005:463).

17 - Segundo Kastrup, no quadro dos grandes sistemas , a cognição é entendida como idêntica a si mesma,

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A política cognitiva de recusa às teorias dualistas [mente e corpo; sujeito e objeto; sujeitos e cultura] e associativas [que concebem o desenvolvimento e a evolução do espírito humano a partir de um estado inicial] incorpora em seu referencial os conceitos de enação18, ecologia cognitiva, emergência19 que possibilitam o legitimar de outras lógicas operantes, principalmente as hipóteses de vida criadas a partir de experiências marginais ou subalternizadas.

Reconhecer o engendramento da aprendizagem partindo da experiência é um marco

diferenciador das “tradicionais” concepções de conhecimento que sustentam o ideário educacional e as práticas escolares. O engendramento aprendizagemexperiência fratura uma das mais fortes certezas pedagógicas - eu ensino o outro aprende. A relação pedagógica ressignificada opera na lógica de engendramentos coletivos, possibilitados pelo agir numa ecologia cognitiva que instaura uma inteligibilidade mútua no entrelaçar dos fios da vida prática e do conhecimento científico.

A pesquisa se trama a partir da problematização da cognição, o que nos move a investigar/compreender os processos cognitivos/inventivos, as operações mentais e as experiências das crianças como cogitodiano– o pensar, o sentir e o existir, que se dão na leitura e na invenção dos signos do mundo que constituem experiências de singularização partindo das emergências e das perguntas problematizadoras da vida, o que permite compreender a cognição como ação voltada para o presente imediato potencializando e fazendo surgir novas hipóteses de vida.

A casualidade linear que alimenta nossos planejamentos, parâmetros ou objetivos, perde o sentido ao se reconhecer a experiência como processo de conhecimento, uma vez que a natureza da experiência não se presta a transmissão, explicação ou aplicação. Não se provoca ou se modula a experiência no outro - a aprendizagemexperiência é um processo de co-implicação, momento de intercambiar o vivido, num movimento de dupla abertura e invenção.

18- A enação pode ser compreendida em dois pontos congruentes e complementares: (i) a ação guiada pela

percepção, ou seja, a compreensão da percepção é a compreensão da forma pela qual o sujeito percebedor consegue guiar suas ações na situação local; (ii) a cognição, em suas estruturas, emerge dos esquemas sensório-motores vivenciados que permitem à ação ser construida e guiada pela percepção. É a estrutura vivencial sensório-motora contextualizada. (Varela,2003:235).

19- A teoria da complexidade traz para o centro do debate o conceito de EMERGÊNCIA, principalmente

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A constatação de que os sistemas produzem a si [como modo de funcionamento] e que nossa relação com o meio, não é a de representação do mundo, mas uma co-produção de autopoieses20, nos permite pensar a aprendizagem como invenção processo de (auto)criação - inventar problemas, produzir soluções, sem abandonar a experimentação21. Tal formulação inspira nossa ação: a sala de aula como uma comunidade narrativa. Viver a experiência da comunidade narrativa é tomar o cotidiano como objeto de reflexão e estranhá-lo, tendo como desafio permanente compreender o compreender do outro22.

Aprender e inventar-se ao mesmo tempo é possível, porque a formulação dos conceitos se dá através de processos emergentes que correspondem a nossas capacidades de auto-organização. Varela (2003) nos chama atenção de que a perspectiva conexista [a invenção o de si e do mundo] ressalta a importância das capacidades emergentes que equivalem às formações interligadas e dinâmicas do cérebro que se configuram em função da experiência.

Segundo Varela (2003) as perspectivas conexistas evidenciam as ligações dinâmicas entre componentes que formulam nossas compreensões e capacidades sem a idéia de um processador central para guiar a totalidade da operação. As propriedades emergentes e auto-organizadoras sintetizam formas diferentes de configuração(eu)/ figuração(mundo) segundo as experiências singulares que compõem um conceito de cognição corporalizada que dependem da nossa história biológica e cultural.

A formulação dos conceitos (atos cognitivos) e nossas capacidades de entendimento estão enraizadas nas estruturas de nossas corporalidade biológica porém, são realizadas nas linguagens que apresentam seus domínios de ações consensuais pertencentes as experiências interpessoais.

20-AUTOPOIESE OU AUTOPOIESIS é um termo cunhado para designar a capacidade dos seres vivos de

produzirem a si próprios. Todo ser vivo é um sistema autopoiético, caracterizado como uma rede fechada de produções moleculares (processos), em que as moléculas produzidas geram com suas interações a mesma rede de moléculas que as produziu. A aplicação da teoria da autopoiesis aos sistemas sociais representou uma mutação no foco epistemológico: anteriormente, o processo de observação científica de um objeto pressupunha a análise estrutural de todos os seus elementos constitutivos isoladamente. Conhecer algo significava distinguir as partes que determinam o todo do objeto. A teoria da autopoiesis, diferentemente da postura analítica, parte da observação das relações entre os elementos e as funções exercidas no todo comunicativo dos sistemas. A esse respeito ver: MATURANA R., Humberto; VARELA Francisco; ACUÑA LLORENS, Juan. De maquinas e seres vivos: autopoiese: aorganização do vivo. 3.ed. Porto Alegre: Artes Medicas: 1997, p 138 .

21 - A esse respeito ver Kastrup, op cit, 2007a p. 238 22- A esse respeito ver MATURANA, Humberto.

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A linguagem escrita vinculada a enação tem a seu favor as formulações conceituais presentes nas hipóteses de vida pertencentes ao cotidiano das crianças e legitimando-os no espaço escolar, além de propor um diálogo com os conceitos científicos. Os usos da linguagem tomam um lugar central nesta discussão, no lugar dos imperativos (responda, efetue, encontre a opção correta) temos provocações, questionamentos e espaços narrativos. A formulação e o intercâmbio de conceitos geram consensualidades que transforma o grupo em coletivo de investigação dentro e fora da aula.

A luta por tornar visível ou dizível o processo doloroso das injustiças cognitivas exige o exame dos processos que distribui lugares e poderes: quem pode ou não saber o que pode ou não ser legitimado como conhecimento? Quais são os critérios de aceitabilidade? O que sabe uma população de catadores de lixo? Que formulações

podemos provocar junto às crianças que lavam pet “pescadas” por redes nos canais de

esgoto? O que se pode aprender com a economia existencial dos trecheiros23 que têm diante de si o imperativo: - Amanheceu o dia, dinheiro! Dispor-se a compreender os cálculos dos que ao amanhecer produzem o ganho do dia, acompanhar as formulações técnicas de quem transforma o teto de Kombi em pequena embarcação para recolher lixo e transformá-lo em renda para a sua família é dar conseqüência à afirmação de Boaventura: a epistemologia de um povo é tão central quanto a sua participação em qualquer discurso sobre a democracia (2004).

Propor uma via dialógica de trocas simbólicas entre a escola e os diferentes fios de saberes e fazeres que circulam em seu espaço exige não só disponibilidade, mas o compromisso investigativo de viabilizar políticas cognitivas divergentes.

Resgatar no cotidiano da escola o compartilhar de experiências, memórias e narrativas criando espaços para que as crianças possam, através deste compartilhar, refletir sobre seus modos e hipóteses de vida é, investir na produção de outra cultura escolar. A sala de aula como comunidade narrativa liberta a aprendizagem das amarras ou da domesticação que tradicionalmente informam o modus operante do conhecimento na escola: taxinomias, etapas, fases, pré-requisitos, etc.; formas de canalizar, dominar e controlar a inventividade.

A aprendizagemexperiência e a sala de aula como comunidade narrativa se ancoram num paradigma de compreensão do sujeito que [não reduz as crianças a um único aspecto a ser observado, que singulariza as relações individual-coletivo e não

23- Trecheiros catadores de papel, pet, papelão ou sucata que trabalham em determinadas áreas, trechos

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toma os processos e as dinâmicas das funções psicológicas apenas como internalização] incorpora a complexidade do processo de transformação qualitativa da aprendizagem. O que ressignifica a questão da diferença e da repetição [as crianças não apenas repetem, se reformulam e se diferenciam no que aprendem] como uma relação de co-implicação: não há uma aquisição de conhecimentos, as crianças se diferenciam ao aprender [inventar] e diferenciam o que aprendem [inventam].

Nesse sentido a relação todo/parte supera a gradação dos conhecimentos: a simples soma das capacidades não traduz o processo cognitivo. A multiplicidade é incorporada como diferentes capacidades de pensar em diferentes campos do conhecimento - não há uma natureza específica da aprendizagem, mas formas diferenciadas de aprender, que se configuram na própria relação com o conhecimento: aprendemos de modos diferentes coisas diferentes, pois“...os sistemas vivos não admitem interações instrutivas, tudo o que acontece neles, acontece como mudança estrutural (...) pelas circunstâncias de suas interações” (Maturana e Varela,1987:127).

A injustiça cognitiva se configura no cotidiano da escola quando se admite somente uma forma de aprender, quando os trajetos estão fortemente demarcados e tudo o que foge a essa delimitação é tomado como atraso e dificuldade. Assim, nos manuais escolares não há espaço para a criação ou para diálogo com os “fracassados”.

Questionar o que é cognição é questionar o próprio fracasso para propor ações e percepções cotidianas comprometidas com a vida. Daí a importância de estudar o cotidiano da sala de aula articulando-o a produção de instrumentos que potencializem a escola das crianças das classes populares.

V. METODOLOGIA

Na pesquisa “Revisitando o conceito de cognição e os processos de aprender e ensinar

no cotidiano da escola: a aprendizagem como (re)invenção de si e do mundo”

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Concordando com Demartini et al (2002), que vê a criança como produtora de cultura e portadora de história e compartilhamos de suas preocupações, no que se refere aos procedimentos metodológicos de investigação com crianças e buscamos através dos relatos e registros das crianças, pensar uma metodologia de investigação, que para além das formulações descritivas, se constitua de fato numa investigação com as crianças.

Assim a investigação transforma-se no (pre)texto para conhecer as diferentes lógicas operatórias e os diferentes estilos cognitivos das crianças, procurando compreender o seu compreender a partir de si mesmas.

Buscamos colocar no centro da investigação [e do debate acadêmico-pedagógico], a lógica, como instrumento fundamental à leitura do mundo. A escola ensina a criança a pensar o mundo na perspectiva da lógica formal; o que do ponto de vista do processo de aprendizagem, tem resultado num conhecimento do mundo, ineficaz, impedindo a aquisição de novas posturas e a construção de respostas necessárias ao enfrentamento dos desafios que o cotidiano nos coloca.

Trazer a lógica para o centro do debate é evidenciar a necessidade de superar [principalmente na educação] uma racionalidade operante, substituindo-a por um novo aprendizado: um aprendizado capaz de promover uma leitura do mundo [e da palavra] fundamentada numa relação dialética-dialógica capaz de resgatar as "contra-racionalidades, ou melhor, "racionalidades paralelas (e não irracionalidades) que foram jogadas embaixo do tapete da história e recusadas nos estudos de nossas

faculdades" (Santos,1998).

A perspectiva das racionalidades paralelas aproxima a lógica infantil e a lógica da vida cotidiana, e revela o abismo existente entre estas duas lógicas singulares e a homeogeneidade da lógica [formal]24 escolar. Pais (2003) aponta que o cotidiano não obedece a uma lógica de demonstração, mas a uma lógica da descoberta, na qual a realidade social se insinua através de uma percepção descontínua e de um olhar que apreende e incorpora o movimento de novos saberes e sensibilidades.

A lógica da descoberta, que estrutura tanto o pensamento infantil, quanto às ações cotidianas e exige [de professoras e pesquisadoras] o exercício de uma razão

24- A escola opera com a lógica formal, que consiste em investigar as categorias e princípios através dos

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ampliada que possibilite resgatar aqueles saberes não-oficiais, não institucionalizados, [que (in)formam as lógicas operatórias presentes na vida cotidiana e (de)formam a lógica formal da escola], saberes que emergem das experiências existenciais das crianças.

No cotidiano agir, dizer, fazer e criar constituem práticas de conhecimento singulares _ que expressam diferentes modos de uso que os praticantes produzem - desprezadas pelo modelo herdado da modernidade. Os estudos do cotidiano se traduzem numa teoria das práticas, que nos possibilita explicitar a teoria em movimento que informa as práticas cotidianas. Assim sendo, entendemos as práticas sociais das crianças como maneiras de operar com e no mundo [incluído-se aí o mundo da escola], a partir de significações singulares que traduzem diferentes leituras de mundo.

A conjugação de linguagens desenho, escrita e oralidade, permite ampliar nossa compreensão sobre os processos cognitivos das crianças. A informação veiculada pelo desenho é complementada pela escrita e ampliada pelo relato oral. Michel de Certeau

(1998) nos lembra que todo relato é uma prática e são as narrativas que vão “ ...precisar as formas elementares das práticas organizadoras das focalizações enunciativas”

(1998:201). A pesquisa com as crianças tem confirmado as formulações de Michel de Certeau, ao apontar que as lógicas operatórias são plurais, por que são plurais as experiências dos praticantes.

No que se refere às lógicas operatórias das crianças, a conjugação de linguagens (gráfica, oral e escrita), tem se revelado um procedimento bastante eficaz, pois tem nos

permitido “...conhecer as realidades sociais [das crianças] a partir de seus próprios olhares, na tentativa de ampliarmos nossos conhecimentos sobre as crianças a partir de

si mesmas” (Pinto e Sarmento,1997:10). Portanto, do ponto de vista metodológico, a presente pesquisa pode ser caracterizada como uma análise descritiva das práticas e das lógicas operatórias das crianças das classes populares em suas decifrações cotidianas.

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possibilidades inventivas e a capacidade criadora para (re)inventar o cotidiano da sala de aula e da escola.

Para isso, defendemos outra abordagem conceitual organizadora da prática educativa escolar - que rechaça a concepção de que o trabalho com as crianças se reduz

a produção de meios “facilitadores da aprendizagem” ou a processos de “infantilização do saber” - que promove a inversão da lógica hegemonia, substituindo a lógica da explicação pela lógica da descoberta, potencializando a capacidade criadora das crianças, sua imaginação, suas diferentes percepções de mundo e a diversidade de significação presentes em seu universo simbólico e material.

“Permitir” que as crianças explorem com suas singularidades o mundo do

conhecimento considerando suas produções de sentidos relaciona-se com o que vimos chamando de memória de aprendizagens - produções que circulam no cotidiano da sala de aula, embora nossos esquemas conceituais nos impeçam de considerar sua relevância. Esta procura exige práticas próprias para mover a escrituras dos textos, para alimentar as discussões com as crianças, pois escrever não é preencher lacunas ou responder às perguntas formuladas pelas crianças. Escrever é gerir um espaço em branco, é transformar a página em branco num espaço de produção, como indica Certeau: um espaço para executar um querer próprio. Escrever, nessa concepção é utilizar os instrumentos, os símbolos, as ferramentas para produzir uma apropriação do espaço exterior.

A busca por práticas educativas mais justas dá visibilidade ao que Boaventura Santos (2004) chama de Injustiça Cognitiva Global que se configura no cotidiano da escola quando se admite somente uma forma de aprender, quando os trajetos estão fortemente demarcados e tudo o que foge a essa delimitação é marcado como atraso e dificuldade. Assim, nos manuais escolares não há espaço para a criação ou para diálogo

com os “fracassados”. Questionar o que é cognição é questionar o próprio fracasso para

propor ações e percepções cotidianas comprometidas com a vida. Daí a importância de estudar o cotidiano da sala de aula articulando-o a produção de instrumentos que potencialize a escola das crianças das classes populares.

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Defendemos que há uma conexão política entre a desvalorização das culturas populares e a (in)capacidade das crianças das classes populares de aprenderem a ler e a escrever.

A escola, ao focar-se nas dificuldades de aprendizagem, desperdiça as possibilidades investigativas de procurar nos conteúdos existenciais da vida cotidiana das crianças; de buscar conhecer suas experiências, suas formas de pensar o mundo, suas emoções, sentimentos e afetos, etc. A pesquisa busca investigar tais possibilidades cognitivas potencializadoras de aprendizagens, desfazendo a trama lógico-discursiva que nomeia as crianças das classes populares como incapazes, insubordinadas, indisciplinadas.

O pensar ou inventar formas de organização para nosso cotidiano exige um diálogo permanente entre os sujeitos, sem desprezar nenhuma prática. Cada dúvida, cada pergunta, cada invenção nos leva por caminhos únicos, nos enriquece, daí a importância do coletivo, de aprender sem apagar a singularidade, mergulhando no que cada momento pode oferecer para fertilizar o próximo, num movimento que ressignificar o que passou, sem desperdícios, pois das sobras, das partes, dos fragmentos, pode-se fazer o novo e cada um oferece o entendimento das estruturas maiores.

A pesquisa se desenvolve na Escola Municipal Ana Nery, situada no bairro Dr. Laureano na cidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense - RJ. Participam da pesquisa a professora regente da turma do (futuro) 5º ano de escolaridade25 do Ensino Fundamental. A turma é composta por 26 (vinte e seis), crianças, cujas famílias [e em alguns casos elas próprias] trabalham no Lixão ou nos centros informais de reciclagem, sujeitas a duras jornadas, com ganhos entre R$ 1,00 [um] ou R$ 2,00 [dois] reais por turno trabalhado, além da exposição de sua saúde a toda sorte de dejetos.

O trabalho com o lixo é, atualmente, a única alternativa para as pessoas que não se encaixam nos padrões de formação exigidos para empregabilidade - capacidade de

25 À professora Luciana Pires Alves, assumiu em 2008 a turma do 3º ano de escolarização do Ciclo de

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manter-se apto para o mercado de trabalho, segundo “competências” sustentadas por

uma política cognitiva ancorada em princípios universais e invariantes, que recusa o caráter inventivo, limitada a um conjunto de desempenhos possíveis e previsíveis que engendra tanto a formação de peritos como a residualização de boa parte da população brasileira: um em cada mil brasileiros vive do lixo, ou seja, 170.0000 brasileiros são catadores.

A injustiça cognitiva é traduzida pela semântica da empregabilidade como residualização humana, ou seja, os saberes, as práticas, os sonhos, os corpos e a vida dos sujeitos das classes populares são consideradas restos de uma humanidade obsoleta

e inadequada, cuja única opção é o descarte. O destino do “exército de reserva de mão de obra” se configura, nos tempos líquidos, como refugo. Na lógica do excesso o desuso encobre as relações de desigualdade, uma inversão da concepção aristotélica26 de igualdade - que corresponde à distribuição equitativa da quantidade de recursos, assim a desigualdade seria o resultado da injusta distribuição de recursos e oportunidades entre dois termos que compõem o mesmo contexto. Porém, na moderna sociedade líquida a produção do refugo opera na lógica do excesso, que descarta tudo aquilo que sobra, que é desnecessário, ineficaz e até mesmo perigoso para a manutenção das forças sociais hegemônicas.

A noção de descarte se coloca quando não são mais possíveis ou necessárias as trocas mesmo que desiguais.A miséria do mundo se materializa no contingente dos que ficaram para trás, os lerdos – incapazes de acompanhar a aceleração dos ritmos e a supressão do tempo na vida cotidiana: o atraso não é tolerado, não acompanhar as mudanças é ocupar o lugar do refugo que se avoluma e nos afoga.

A razão indolente engendra, no cotidiano da escola, dispositivos de fabricação do fracasso que cumprem a função de resignar as crianças e as famílias através da experiência da pequena miséria, sentida e proliferada, principalmente, no campo percepto-cognitivo:“você não tem do que se queixar”; “há coisa muito pior”; não olhe pra cima, olhe pra baixo”, “ Esse menino tem cabeça dura mesmo...”. O “consolo”

[que hostiliza] e a resignação [que não acolhe] encobrem e naturalizam o fracasso – face escolar das injustiças cognitivas: aprender na escola passa de direito a privilégio, somente as crianças que se aproximam dos padrões cognitivos legitimados pela

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racionalidade operante obtêm sucesso, enquanto tantas outras, são marcadas pelo discurso, que escreve [e inscreve] em seus corpos o estigma do fracasso.

Metodologicamente entendemos a pesquisa como um acontecimento resultante do compartilhar e do movimento coletivo de crianças-professora- pesquisadora, que fazem do cotidiano da sala de aula uma possibilidade de aventuras. Teórica e metodologicamente investimos na configuração de metodologia(s) de investigação com as crianças. Ao assinalarmos o caráter plural da pesquisa com as crianças, buscamos enfatizar a singularidade dos movimentos investigativos, que ao buscar acompanhar um processo, diferencia-se de uma investigação clássica que busca fundamentalmente representar, ou produzir representação, sobre um objeto.

Pesquisar com as crianças é investigar um processo de produção, pois a infância, como nos lembra Larrosa (1998), não se deixa capturar: a infância é um outro que para

além de qualquer tentativa de captura “inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento”(p.230).

Inspiradas pela cartografia como método de investigação27, como nos propõe Deleuze (2006) entendemos que na pesquisa com as crianças não existe coleta de dados, mas, uma produção dos dados que “visa ressaltar que há uma real produção, mas que, em alguma medida, já estava lá de modo virtual” (Kastrup,2007:13).

O conceito de reconhecimento atento de Henri Bérgson (1990), nos ajuda a pensar tanto a pesquisa com as crianças, quanto à postura do investigador da infância. A curiosidade epistemológica das crianças inventa um modo singular de conhecimento, a criança, assim como o cartógrafo [no sentido deleuziano do termo], apreende o mundo a partir da produção de territórios de observação, ou seja, percorre múltiplos circuitos em sucessivos relances incompletos, produzindo conhecimento-reconhecimento sem um modelo previamente formulado.

27 - O método cartográfico proposto por Deleuze (2006), toma o conhecimento como um trabalho de

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