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A família de ontem e de hoje: desagregação ou transformação? / The family of yesterday and today: breakdown or transformation?

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761

A família de ontem e de hoje: desagregação ou transformação?

The family of yesterday and today: breakdown or transformation?

Recebimento dos originais: 09/03/2019 Aceitação para publicação: 08/04/2019

Ulisses Heckmaier de Paula Cataldo

Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Instituição: Faculdade Sul-fluminense (FaSF)

Endereço: Rua Alberto Rodrigues, 39; Jardim Amália. Volta Redonda - RJ E-mail: ulissescataldo@gmail.com

RESUMO

O presente trabalho tem a intenção de percorrer uma revisão do pensamento de Durkheim e de um dos seus principais herdeiros, o sociólogo francês François de Singly, a fim de responder a algumas inquietações e controvérsias a respeito das transformações que a família nos nossos dias atravessa. Como desdobramento sustentamos o argumento, em referência ao pensamento dos autores citados, que a família contemporânea guarda, nas suas transformações, não uma ruptura, mas sim uma intensificação de alguns dos principais valoresda família moderna, a saber, o individualismo e a lógica do amor.

Palavras chave: Família contemporânea; Individualismo, Durkheim. ABSTRACT

The present work intends to follow a review of the thinking of Durkheim and one of his main heirs, the French sociologist François de Singly, in order to answer some concerns and controversies about the transformations that the family in our day goes through. As a result, we argue that the contemporary family in its transformations is not a rupture but rather an intensification of some of the main values of the modern family, namely, individualism and the logic of love.

Keywords: Contemporary family; Individualism, Durkheim. 1 INTRODUÇÃO

Quando o assunto é a Família, seja em relação a sua dinâmica, forma, função social ou transformação ao longo do tempo, o que encontramos é uma grande pluralidade de ciências que divergem em heterogeneidade. Antropologia, Demografia, Etnografia, História, Sociologia, Psicanálise e Psicologia são exemplos de distintas disciplinas que se voltam para a família, recortando-a, a propósito de suas intenções, em temas específicos, como consanguinidade, coabitação, parentesco, gênero, a dinâmica das relações intrafamiliares. Em relação às divergências e convergências do vasto campo dos estudos da Família, Danda

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761 Prado (1985) e Elisabeth Bilac (1995) são duas das mais importantes autorasque se voltam para essas questões.

Segundo Prado (1985), a Famíliaé tema que nos percorre, desde senso comum até nos estudos acadêmicos, de forma natural, habitual; naturalizada e sacralizada no seu formato ou sentido hegemônico: “pessoas aparentadas que vivem em geral na mesma casa, particularmente pai, mãe e filhos. Ou ainda pessoas do mesmo sangue, ascendência, linhagem, estirpe ou admitidos por adoção” (pág. 7). Não obstante, a autora complementa:“embora todos nós saibamos o que é uma família, estamos familiarizados com ela ou somos integrantes de uma família desde que nascemos, é muito difícil definir esta palavra e mais exatamente o conceito que a engloba, que vai além de definições livrescas” (pág. 8); exigindo um árduo trabalho da ciência em descobrir e explicar seus desígnios.

A grosso modo, Prado (1985) e Bilac (1995), deixam claro que, de um modo geral,embora as teorias sobre a família a reconheçam como uma instituição social com a função de realizar a mediação entre o indivíduo e a sociedade em razão de ser a sede da educação das crianças e núcleo básico da convivência, no campo dos estudos da família algumas divergências são gritantes, principalmente em torno da origem e das transformações da família em relação a sua composição (forma), dinâmica (relação entre os membros e obrigações de cada um em relação aos outros) e função social ao longo do tempo.

Ao abordar essas polêmicas, Prado (1985) explica que, em relação à origem da família, podemos encontrar tanto aqueles que, por um lado, confundem a origem da família com a própria origem do homem, quanto os que preferem pensar a origem da família, por outro lado, através do regimento da descontinuidade.

No primeiro grupo podemos localizar os herdeiros da antropologia de Levi Strauss, que dizem do registro simbólico do parentesco como algo universal e também os herdeiros do marxismo de Engels, que fazem da família uma mediadora estratégica da história do modo de produção capitalista. No segundo grupo, que não admite origens na história, mas prefere falar em começos, em processos de descontinuidade, em referência a autora citada acima, é possível citar os trabalhos dos herdeiros da escola dos analles, na figura de Phillippe Aríes, Jacquez Donzelot; para este segundo grupo a família é “fenômeno recente”.

Adiante, recorrendo a Bilac (1995), em relação às transformações da família ao longo do tempo, duas propostas metodológicas de abordagem à família são presentes quando o tema é sua estrutura ou relação com a sociedade: as internalistas, voltada para as relações entre os membros em termos de divisão de papeis, dinâmica das relações, e as externalistas,

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761 que preferem pensar as relações estabelecidas com outras dimensões da vida social, como a ideologia, o trabalho, os sistemas econômicos, etc.

Quanto aos entrecruzamentos entre as mudanças sociais e as transformações nas relações familiares, diversos são os autores que voltam seus esforços para esse tema (Engels, 1884/2012; Durkheim, 1888/2007; Ariés, 1960; Foucault, 1979/2012; Samara 1981; Costa 1983; Prado, 1985; Donzelot, 1986; Vaitsman 1994; Duarte, 1995, Fonseca 1995; Bilac 1995; Velho, 1997; Roudinesco, 2003; Singly 2000, 2010; Sinay, 2012), contudo, a revelia das divergências teóricas e metodológicas,Bilac (1995)sugere que existe uma concordância do campo de estudos da família quanto à existência de ao menos três momentos de grande transformação da família ao longo do tempo. Em primeiro lugar teríamos a família tradicional ou extensa, sinônimo de produção econômica conjunta, autoridade paterna, casamento com ênfase em seus aspectos funcionais na transmissão da herança e conexões com a comunidade e com (muitos) parentes.

Em seguida a família moderna ou conjugal, altamente influenciada pelo crescente espírito individualista, caracterizando-se pela sua mobilidade, por ser mais nuclear, não tão permanente, menos ligada à comunidade, mais igualitária, centrada nos sentimentos, no amor romântico, no aconchego da unidade doméstica, na tríade edipiana do Pai, Mãe e filhos, da importância central do cuidado para com os filhos e da figura da mãe, a principal socializadoras destes.

Finalmente, no final do século XX, estaríamos presenciando o nascimento de uma nova ‘espécie’ de família, a família contemporânea (ou “nova família”), que teria como principal característica a proliferação de uma pluralidade de arranjos e formatos e por uma contestação dos principais valores da família moderna, uma família marcada pela sua diversidade e perenidade.

Todavia, mesmo diante da convergência do campo sobre as etapas da família na história do ocidente, Prado (1985) e Bilac (1995) explicam que não existem consensos sobre as forças que causaram essas transformações, nem as características específicas da família em cada um desses três momentos. Sobre essas discussões, tema muito debatido são as controvérsias a respeito das modificações da família na atualidade.

Diversas são as controvérsias que sugerem que a família hoje passa por mudanças, como, por exemplo, a precariedade dos casamentos, a fragilidade dos laços de sangue frente aos laços afetivos, as mudanças na divisão de tarefas no seio doméstico, com o fortalecimento da figura da mulher para além da função materna, as mudanças no exercício

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761 da parentalidade, o aparecimento dos supostos novos arranjos familiares etc. Todos esses fenômenos trazem novas perguntas que evidenciam que o formato moderno de família não mais corresponde às exigências da realidade social presente: qual seria a responsabilidade moral do padrasto para com o enteado? E quanto aos novos “avós”, pais do padrasto ou da madrasta? O filho mais velho do primeiro casamento é o que do filho da segunda união? Que nome tem o namorado da mãe?

Diante desses impasses, comum são os diagnósticos de “crise” (Duarte 1995), “dissolução” (Sinay, 2012), “fragmentação” ou “desordem” (Roudiniesco 2002) da família. Conduto, nem todos os autores compreendem as modificações que a família enfrenta na contemporaneidade como seu declínio ou desaparecimento, o que nos leva a questionar: a família hoje passa por uma dissolução ou transformação? Desta feita, como tema do presente trabalho, pretendemos abordar essa questão através de uma revisão bibliográfica nos estudos da sociologia da família, buscando referência no pensamento de Durkheim, para, com a leitura de François de Singly, um dos principais herdeiros do pensamento de Durkheim no nosso tempo, investigarmos a qualidade das mudanças nas relações familiares e se a família de hoje guarda, ou não, a ruína da família de ontem.

2 DURKHEIM E A SOCIOLOGIA

Apesar de Saint-Simon e Comte terem estabelecido as bases científicas de uma ciência da vida social, conforme nos explicam Álvaro e Garrido (2006), é a Émile Durkheim (1858-1917) que podemos dar os créditos de fundador da sociologia. Inspirando-se no pensador britânico Herbert Spencer, Durkheim concebeu a sociologia o papel de apreender o estudo sistemático das realidades sociais dos indivíduos. Para tal,Durkheim estendeu ao domínio do social o mesmo procedimento utilizado nas ciências positivas, a observação empírica e o método científico.

Durkheim acreditava que a principal função da sociologia era estudar os fatos sociais, um objeto empírico para um método definitivamente preciso. Tal empreitada, se abster de estudar as individualidades dos sujeitos e se debruçar sobre os estudos generalistas acerca dos fatos sociais, levou Durkheim a definir o social de forma totalmente inovadora.

Para definir sociedade de forma objetivaDurkheim foi postular a existência de um tipo específico de fenômeno, o “social” ou a “ordem social”. Uma vez definido este domínio, ele forneceria uma explicação para tudo que escapasse a outros domínios, como o

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761 fisiológico e o psicológico, através do apelo a “fatores sociais”, que elucidariam “aspectos sociais” de fenômenos não sociais.

Para Durkheim (1888/2007), o fato sociológico constitui uma região independente e singular, não se reduzindo ao fato psicológico nem a nenhum outro. Para o referido autor, os fatos sociais “não apenas são exteriores ao indivíduo, como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõe a ele, quer ele queira, quer não” (pág.20). Ainda nas palavras do referido autor:

[os fatos sociais são] uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar, de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõe a ele. Por conseguinte, eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, já que consistem e representações e ações; nem como os fenômenos os psíquicos, os quais tem existência na consciência individual e através dela. Esses fatos constituem, portanto, uma nova espécie, e é a eles que deve ser reservada a qualificação de sociais. (Durkheim, 1888/2007, pág. 21-22. Grifo nosso).

Irredutível a fisiologia e a psicologia, o fato social, dessa forma, é superior ao nível individual, existindo para além das consciências individuais; é externo, público, e, em segundo lugar, exerce um poder coercitivo nos sujeitos. Não se tratando de uma instância moral que habitaria as consciências individuais, o fato social, externo, são tendências e práticas do grupo tomado coletivamente. Uma instância coletiva, uma realidade sui generis que constrange o individuo até mesmo que este não se dê conta. O hábito coletivo; desta feita,

não existe apenas em estado de imanência nos atos que ele determina, mas se exprime de uma vez por todas, por um privilégio cujo exemplo não encontramos no reino biológico, mas numa formula que se repete de boca em boca, que se transmite pela educação, que se fixa através da escrita. Tais são a origem e a natureza das formas jurídicas, morais, dos aforismos e dos ditos populares, dos artigos de fé em que as seitas religiosas ou politicas condensam suas crenças, dos códigos de gosto que as escoas literárias estabelecem etc. (Durkheim, 1988/2007, pág. 25).

Como fenômeno que é coletivo por ser geral, um estado geral do grupo dado que aos indivíduos se impõe, para Durkheim, os fatos socais devem ser entendidos enquanto coisa, com existência própria independente das consciências individuais. Dessa forma, para estudá-los em seu estado de pureza e objetividade, com o rigor que o método científico exige, é necessário isolá-los das suas confusas manifestações nas consciências individuais.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761 Sendo assim, como método, um pesquisador neutro deve recorrer aos dados que forneçam a materialidade do fato social, como a estatística, os registros do direto e da moral. Dados estes que se estendem a todos os casos particulares em generalidade, que falam de uma coletividade que não é determinada pelos indivíduos, mas que está além destes.

Isto posto, para Durkheim (1888/2007), pois, o social é uma região macro, independente dos indivíduos. Uma estrutura natural dotada de força própria, que determina as ações individuais; o que retira dos atores o protagonismo das suas ações, os tornando meros intermediários de forças que apenas o cientista – neutro - pode conhecer.

Com efeito, a título da continuidade da análise do tema discutido, para Durkheim, conforme nos explicam Álvaro e Garrido (2006), a evolução social que originou a modernidade se deu na passagem de uma sociedade mecânica para uma sociedade orgânica. A sociedade moderna, orgânica, industrial, em decorrências da crescente divisão de tarefas e funções especializadas, desenvolve um tipo de solidariedade diferente da dos períodos pré-industriais. Nas sociedades modernas predomina a consciência individual diante da coletiva, e as sanções pela violação das normas são mais de caráter restituidor, do que de caráter penal.

Entendido este ponto, argumentamos que a compreensão da dinâmica da sociedade moderna é fundamental para o estudo das características sociológicas da família. Sendo assim, reservamos para a próxima sessão as principais características da família moderna, segundo a interpretação de Durkheim, nos seus entrecruzamentos com a própria dinâmica social da modernidade.

3 DURKHEIM E A FAMÍLIA MODERNA

Quanto à família moderna, para não perder o tema de vista, Maior (2005) explica que Durkheim debruçou-se especificamente sobre o assunto em dois textos emblemáticos, “Introdução a sociologia da família” e “A família conjugal”. Nestes textos, derivados de aulas e palestras na década de 1890, Durkheim esboçou, além de algumas diretrizes para sociologia da família, como o método e a especificidade deste objeto, algumas das principais características da família moderna em relação aos seus entrecruzamentos com a dinâmica da própria sociedade orgânica e industrial.

Para Durkheim (1921/1978), a família consiste num fato social, uma realidade natural de caráter supra-psicológico, um entidade reificada e localizada na materialidade de dados objetivos que dizem de uma generalidade; uma instância macro que existe

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761 independentemente das ações diretas das pessoas, e que tem o poder de constranger, determinar e explicar suas ações; uma organização com forma e regas definidas que representa o social como um todo, a forma universal e totalizante de como todas as pessoas se organizam, ou deveriam se organizar.

No texto “A família conjugal” (1921/1978), mais voltado especificamente para o estudo da dinâmica e características da família, Durkheim compreende a família na modernidade como um tipo de qualidade singular, a família conjugal1. Segundo o autor, este tipo de família seria resultado da contração da família patriarcal extensa do antigo regime, que consistiria na coabitação do Pai, da Mãe, seus filhos e todos os descendentes destes. A família conjugal, por seu turno, “incluí apenas o marido, a esposa, e as crianças de pouca idade ainda não casadas” (1921/1978, pág. 229).

Com efeito, para Durkheim(1921/1978) não é apenas à contração que a família conjugal deve sua especificidade, mas sim a qualidade das relações. Analisando o conjunto de relações que constituí a vida familiar, na análise dos fatos nos registros de herança, da moral e do direito, práticas regulares e constantes, o referido autor, localiza a família como uma célula que tem relações ‘externas’ com a ‘grande família’ e com o ‘estado’.

A família conjugal, dessa forma, para o referido autor, teria como marca diferencial um maior peso a afetividade das relações, ao amor, e ao individualismo. Nesta família, o Pai é requerido a prover a educação e o sustento das crianças e da esposa, sendo as últimas, por sua vez, como retorno, submissas ao poder do Pai. Este pai, no seu turno, teria obrigações civis para com sua família até que seus filhos se emancipem através do casamento, constituindo sua personalidade e responsabilidade sobre si próprio. Nas palavras do referido autor:

Como os seus únicos membros permanentes são o Marido e a Esposa, já que todos os filhos cedo ou tarde deixam a casa [paternal] eu proponho chamá-la de família conjugal (Durkheim, 1921/1878, pág. 230. Grifos e Tradução nossa).

Durkheim, no decorrer do mesmo texto, de forma mais específica, esboça as características sociológicas que definem o novo tipo de família na modernidade, a família conjugal. Em primeiro lugar a família moderna é relacional. O autor mencionado explica quea notóriae progressiva distinção entre espaço público e o espaço privadoacompanha o peso da afetividade na regulação das relações familiares. É justamente no espaço privado que

1 Por‘família conjugal’ Durkheim (1921/1978) refere-se às famílias pertencentes a ‘Europa

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761 os membros da família conjugal, agora reduzida, valorizam o fato de estarem juntos e partilharem uma intimidade.

Em segundo lugar, a família moderna é individualista. Uma vez reduzida e confinada ao lar, a unidade doméstica que, por sua vez, é separada do espaço público, além da família passar a concentrar todos seus esforços no cuidado para com as crianças, as relações passam a ser personalizadas. Em família passamos, na modernidade, a responder e incentivar a autonomia de cada membro na sua identidade, na sua personalidade.

Em terceiro lugar, por fim, a família moderna é privada/pública. Para o autor, a contração da família com fortalecimento do casamento e da intimidade das relações, em consequência da industrialização da sociedade moderna, representa um movimento de ‘privatização’. Porém, em contrapartida, num movimento de ‘socialização’, a família se vê sujeita a uma maior intervenção e regulação da parte do Estado. Ou seja, ao mesmo tempo em que a família se transforma num núcleo independente, autônomo, de zelo e produção da personalidade individual, também se presta a ser um ‘órgão secundário do estado’, que através de normas controla e regula as relações dos membros da família.

Sobre este ponto, o“paradoxo da família conjugal”, Singly (2010) acrescenta que a medida que a família conjugal se contrai, fica explícito na sua relação com o estado a constante vigilância. Este controle do privado pelo estado se faz através de ordenamentos jurídico, sanitário e educacionalque fiscalizam atentamente a ação dos pais junto às crianças. “A partir da primeira modernidade, a noção de interesse da criança serve de justificação à intervenção do Estado na família” (SINGLY, 2010, pág. 16). Dessa forma, com a legitimidade do direito do estado de vigiar a conduta dos pais, a privatização da família moderna se dá em permanente tensão, uma vez que ela só pode se dar sob a tutela do Estado. Singly (2010), ao comentar outro texto2 de Durkheim, acrescenta que outras características da família moderna ainda podem ser citadas, como o aparecimento da lógica do amor romântico, que vai ditar como a família deve ser formada, o lugar do casamento como marco institucional da família e o aparecimento do mérito pessoal, que faz do individuo autônomo e responsável pelo seu próprio fim, não servindo mais, os filhos, apenas para a transmissão da herança e do brasão familiar.

Todas as características citadas acima deixam evidente que a Família Moderna, diferentemente da Família Extensa, guarda, em função das transformações que originaram a sociedade capitalista, como o individualismo, a industrialização, a privatização do espaço

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761 etc., características tão peculiares, em sua forma, funções e dinâmica, que a tornam um tipo diferente, marcando uma descontinuidade. Sendo assim, quando nos deparamos com as relações familiares nos dias atuais uma pergunta é inevitável: estaria a família atravessando outro período de transição?

Como referido anteriormente, diversas são as controvérsias que sugerem que o que entendemos por família parece não dar conta da família que encontramos na sociedade no nosso dia a dia. A revelia dos diagnósticos de crise, dissolução, fragmentação etc., François de Singly (2000, 2010), herdeiro do pensamento de Durkheim, propõe outra interpretação. Para o referido autor, desde a década de 1960 a família moderna - hegemônica em outros tempos - passaria por uma série de transformações resultantes do aprofundamento dos princípios de individuação e da intensificação dos laços, e não pode uma mudança radical. Transformações essas que tem por consequência duas mudanças essenciais no plano das relações: a intensificação do individualismo e da lógica do amor. Esses dois pontos de intensificação, com efeito, fazem com que os membros da família contemporânea, chamada, preferencialmente pelo autor de “família moderna tipo 2”, coloquem sua satisfação pessoal como preponderante à sobrevivência do coletivo familiar. Sobre a família de hoje, a família contemporânea ou moderna tipo 2, reservamos o próximo tópico.

4 SINGLY E A FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA

Apoiado nos mesmos fundamentos ecom método muito similar ao mestre fundador da sociologia, François de Singly traça na Sociologia da Família Contemporânea(2010), texto que tornou-se uma das grandes referências da área, as diretrizes sociológicas da configuração social da família nos nossos dias, a família moderna tipo 2.

Para o autor em questão a família hoje atravessa um período de transformação na sua forma e dinâmica, e não sua dissolução ou ruina. Como referido anteriormente, dois fatores primordiais impulsionam essas mudanças: a intensificação do individualismo e da lógica do amor.

Singly (2010) explica que, contrariamente a aparência de desordem, o funcionamento da família contemporânea (ou moderna tipo 2)abre espaço para uma ainda maior expressão pessoal e para a autonomia de cada um dos membros. O acirramento do individualismo seria visível na atual tensão entre amor e casamento, onde essas duas instituições não mais se reforçam mutuamente, mas as maiores exigências de afeto reformularam a família por dentro: “o elemento central não é mais o grupo reunido, são os membros que o compõem. A

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761 família se transforma num espaço privado a serviço dos indivíduos” (Singly, 2000, pág. 15).

Nas palavras do referido autor,

o que muda [...] é o fato de as relações serem menos valorizadas por si próprias do que pela satisfação que trazem ou que deveriam trazer a cada um dos membros da família. Hoje, a ‘família feliz’ deixou de ser o objetivo principal; o que importa é que o indivíduo seja feliz na sua vida privada. (Singly, 2010, pág. 23).

Isso é, na atualidade o casal permanece junto apenas enquanto ambos estão satisfeitos, não sendo mais a manutenção da família um objetivo do casamento; o que explicaria as famílias recompostas, onde os ex-cônjuges, uma vez divorciados, procuram encontrar, num “novo amor”, uma nova promessa de felicidade, o que traz, a reboque, o aparecimento da pluriparentalidade.

Adiante, o autor comenta que atrelado nos novos arranjos familiares, a identificação dos membros se faz difusa e fluida, apresentando uma pluralidade de formas de organização que podem variar em combinações de diversas naturezas, seja na sua composição, ou também nas relações estabelecidas. As composições podem variar em uniões consensuais de parceiros separados ou divorciados com filhos de outros casamentos, a chamada família recomposta; uniões de pessoas do mesmo sexo, as famílias homoafetivas; as mães e pais sozinhos com seus filhos, as famílias monoparentais; as famílias unitárias, compostas por apenas uma pessoa, e uma infinidade de arranjos ainda a serem especificados colocando-nos diante de uma nova família sem forma definida.

Com isso, as relações de parentesco, que marcam os limites da família, daqueles que pertencem, ou não ao grupo familiar, também se mostram imprecisas na atualidade. Se no passando era simples identificar quem era, ou não, membro da família, nos tempos atuais nem a consanguinidade, tão pouco a afinidade, esgotam a diversidade de composições que habitam esse campo.

Sob essas condições, o autor em questão chama a atenção para que hoje não temos parâmetros que marquem a institucionalização de uma família; seria um casamento? Um filho? Um apartamento? Uma maquina de lavar? Dessa forma, “a fluidez institucional dar lugar a incerteza, abrindo assim um espaço que, em determinadas condições, permite ao indivíduo inventar sua própria família” (Singly,2010, pág. 78).

Outros dados, ou “tensões”, como prefere o autor, referentes às modificações na família contemporânea ainda são importantes, como o novo lugar da mulher na família e os novos desafios da parentalidade. Sobre as mulheres, Singly (2010) explica que desde a

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761 década de 60, particularmente pelo movimento do feminismo, que o autor compreende como um grande movimento social individualista, as mulheres rompem com os grilhões que a designavam como esposas e mães. Fonte de grande tensão na atualidade é a circunstância que mesmo depois do casamento as mulheres conservam um grau de independência e autonomia, o que leva ao desaparecimento o poder paternal em benefício da autoridade parental, e a reestruturação das tarefas domésticas.

Singly (2010) ainda acrescenta que na família moderna tipo 2, em oposição a família moderna tipo 1 (a conjugal), as funções não são mais definidas de acordo com a natureza do gênero. As tarefas que antes eram destinadas e delimitadas a homens e mulheres no interior da família, quando não são partilhadas, perdem sua legitimidade. Na esteira da partilha de tarefas, o autor chama a atenção para os novos desafios da parentalidade. Para ele, podemos observar na atualidade um deslocamento do ideal de funcionamento da família de modelos mais hierárquicos, para modelos mais democráticos.

Com efeito, as normas que orientam os comportamentos privados se deslocaram de valores tradicionais para políticas familiares orientadas para a performance. Cabe a família não mais zelar pela educação moral de seus filhos, mas garantir seus bons rendimentos. Essas novas exigências, explica Singly (2010), colocam a família sob a égide dos saberes especialistas que, para além de deterem a verdade sobre a boa conduta parental, garantem uma formação contínua dos pais: “educar os pais a serem pais tornou-se, desde os anos 90, uma das palavras de ordem que as políticas familiares têm em comum” (2010, pág. 62).

Ainda sobre a incidência a intensificação do processo de individuação na família contemporânea, Singly (2000) chama a atenção como as exigências de independência e autonomia são cada vez mais sedutoras e reclamadas como ideal normativo para todas as pessoas, principalmente em família. A independência, principalmente no seu caráter econômico, e a autonomia, a iniciativa pessoal de criar as próprias regras de conduta, segundo o referido autor, são a base para o sentimento de liberdade tão caro a sobrevivência da família nos nossos dias.

Desta feita, reunidas todos estes fatos, Singly (2000) propõe uma nova representação sociológica para a família contemporânea:

A família ‘moderna 2’ compõe-se com a individualização. Sua permanência se dá a esse preço, sua instabilidade também. Por isso, paradoxalmente, a família pode parecer frágil e forte: frágil, pois poucos casais conhecem antecipadamente a duração de sua existência, e forte porque a vida privada com uma ou várias pessoas próximas é desejada pela grande maioria das

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pessoas (sob certas condições, ou seja, se a família não é percebida como sufocante). A família deve ser designada, para nós, pelo termo ‘relacional individualista’. E é nessa tensão entre os dois polos que se constroem e se desfazem as famílias contemporâneas (pág. 15).

Em suma, insistimos que para Singly, mesmo diante das mudanças relatadas, principalmente em relação da perenidade das relações, a família, do contrário de correr o risco de desaparecer, continua muito atrativa uma vez que tornou-se relativamente compatível com a livre expressão pessoal, visto que nas famílias modernas do tipo 2, a lógica do amor e do individualismo, segundo o autor, não entraram em crise, mas, pelo contrário, se intensificaram.

Sendo assim, para Singly “uma das especificidades das famílias contemporâneas é a fluidez desta definição” (2010, p.77), o que faz com que “a normalização esta longe de ser conseguida e o campo está livre para todas as formas de bricolagem” (2010, pág. 70).

5 CONCLUSÃO

Conforme explicitado, portanto, buscou-se, com o presente esforço, uma breve revisão acerca das transformações e tensões que perpassam a família em razão dos estudos sociológicos de Durkheim e seus herdeiros. Na intenção de somar aos esforços de especificação da dinâmica da família contemporânea, em primeiro lugar podemos concluir, em concordância com Durkheim, que um estudo sociológico da família não pode deixar de estar atento a mutua influência da dinâmica familiar com a própria estrutura do tecido social. Em segundo lugar, ainda buscando referência nos estudos de Durkheim, é nítido que a família moderna, respondendo e sustentado as transformações sociais que caracterizam a modernidade, se faz distinta em razão da sua dinâmica, das qualidades das relações que se sobrepõe aos indivíduos.

Por fim, em terceiro lugar, compreendemos que os discursos de “crise” e “dissolução” da família no nosso tempo guardam uma imprecisão de análise, visto que, com referência no distinto trabalho de Singly, a família nos dias de hoje, longe de desaparecer, aumenta sua força a partir da intensificação de certos valores individualistas. Com isso, insistimos que o referido autor é muito feliz quando se refere à família contemporânea como “moderna tipo 2”, revelando que a família hoje não guarda uma ruptura em relação a família de ontem, mas sim um aprofundamento na sua função de individualização, cuidado e promoção de liberdade/vigilância.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 6, p. 5037-5050, jun. 2019 ISSN 2525-8761 REFERÊNCIAS

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