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Seneca, Sobre a Discrepância Entre Ideal e Realidade

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Academic year: 2021

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SÊNECA

Sobre a discrepância entre ideal e realidade

Therese Fuhrer

Contra nenhum outro filósofo da Antigüidade foi levantada tantas vezes a acusação de não ter correspondido na sua vida ao ideal que defendia nas suas obras, como contra Lúcio Aneu Sêneca, que estava entre as personalidades mais influentes da corte de Nero e, ao mesmo tempo, em seus escritos, declarava-se adepto do ensino rígido da filosofia estóica. Já os seus contemporâneos e o censuravam de ter uma moral dupla, porque por um lado seria muito rico e poderoso e por outro recomendaria, nos seus escritos, um modo de vida ascético. Pois já naquela época ele não era somente um político, mas também um escritor filosófico de renome que, nas suas obras, desenha a imagem ideal do sábio estóico que, mesmo nas circunstâncias mais adversas e miseráveis, ainda é feliz. As fontes históricas relatam acusações desse tipo em conexão com um processo judicial no ano de 58 d.C. contra o advogado Públio Suílio, que, no seu discurso de defesa, defendeu-se da acusação de malversação de verbas públicas com uma contra-acusação ao seu adversário Sêneca: este favorecido de César e aparente filósofo teria enriquecido despudoradamente a si próprio. Suílio até foi condenado, mas com o poder desvanescente de Sêneca ouviam-se cada vez mais freqüentemente tais manifestações, e a sua reação de fato consistiu em que, no ano de 62 d.C., oferecesse a Nero não só a sua renúncia, mas também a devolução do patrimônio recebido por ele: ele só queria levar uma vida em condições modestas, como sempre havia celebrado nos seus escritos filosóficos. Nero recusou a solicitação (Tácito, Annales 14,53-56).

Mesmo que, com certeza, tenhamos de considerar criticamente as informações das fontes conservadas – especialmente as referentes à polêmica nelas relatada -, não há dúvida de que Sêneca, no mais tardar na época de suas atividades na corte imperial, era um homem rico. Ele possuía extensas áreas de terra no Egito. Na Britânia, ele teria emprestado elevadas somas de dinheiro a juros exorbitantes, mas logo cobrado a devolução das mesmas sem aviso prévio, o que levou a uma revolta no ano 61. Nos seus escritos, ele faz referência freqüente às suas possessões e, ao manifestar-se a respeito de acusações correspondentes no escrito De vita beata (Sobre a vida bem -aventurada), não refuta este dado, mas unicamente questiona a competência moral dos acusadores.

Sêneca, que provinha de uma família bem situada da ordem dos cavaleiros, foi de fato um bom homem de negócios, que administrou e multiplicou com habilidade o patrimônio que adquiriu mais tarde como ministro da corte de César. Mas ele foi também um político habilidoso, que assumiu – apesar da doença e da estadia terapêutica prolongada no Egito – diversos cargos políticos sob Tibério e mais tarde sob a regência instável de Calígula.1 É certo que ele foi acusado, no ano 41 d.C. sob Cláudio, de adultério com Júlia Livila, uma das irmãs de Calígula, e teve de passar oito anos exilado na Córsega; porém, uma outra irmã de Calígula, Agripina, trouxe-o de volta para Roma, e diretamente para a corte, onde ela havia tirado a sua rival política Messalina do lado do imperador Cláudio. Pelo visto, Sêneca havia se projetado de tal maneira sob Calígula que

1

Para exposições detalhadas a respeito da biografia de Sêneca cf. P. Grimal, Sêneca. Macht und Ohnmacht dês Geistes, Darmstadt, 1978; G. Marauch, Seneca. Leben und Werk, Darmstadt, 2. ed., 1996; M. Giebel, Seneca, Hamburg, 1997.

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a sua reconvocação assumiu a forma de um ato político significativo e ele próprio apareceu como vulto simbólico de uma nova era. No entanto, nada sabemos sobre as atividades e relações de Sêneca na corte imperial antes, durante e após seu banimento; podemos tirar conclusões, no máximo, de suas próprias observações: no escrito de consolação para sua tia Márcia (Consolatio ad Marciam), a esposa do prefeito do Egito, que era apoiado sob Tibério pelo poderoso Sejano, ele se compara com Cato, o rival de César, e se vê, de forma correspondente, como combatente da resistência contra uma tirania. Por outro lado, em um outro escrito de consolação, ele dirige-se a Políbio (Consolatio ad Polybium), o liberto mais poderoso na corte imperial, e louva a clemência de Cláudio para conseguir o seu indulto. Portanto, se ele se via na tradição de Cato como representante da oposição senatorial, essa posição poderia ser muito bem usada com proveito no jogo do poder político, e não só no próprio interesse, mas justamente também no interesse de Agripina.

Após seu retorno a Roma (49 d.C.), com o apoio da imperatriz, ele deu continuidade à sua carreira política e assumiu o cargo de pretor. Contudo, mais importante foi a sua função como educador de Nero, o filho de Agripina, a quem ele conduziu à sucessão no trono, correspondendo à política de poder de Agripina. Após a assunção de Nero ao poder, no ano 54, ele tornou-se membro do grêmio politicamente mais influente dos “amigos do príncipe”. Mesmo que nos escritos políticos de Sêneca se encontrem sinais de que ele defendia uma nova ideologia do principado,2 que ele procurou fundamentar filosoficamente com o seu espelho dos príncipes De clementia (Sobre a clemência), a sua atividade como mestre foi acompanhada de diversos assassinatos, de cujo planejamento ele deve ter estado a par em maior ou menor grau dependendo do caso e que ele também tolerou em termos da estabilização do poder imperial: no ano de 54, foi assassinado Cláudio, o padrasto e pai adotivo de Nero, pouco depois seu meio-irmão Britânico; no ano de 59, Nero cometeu o matricídio. Entretanto, Sêneca quis retirar-se da corte e do poder somente quando Nero, no ano de 62, rejeitou a sua mulher Octávia em favor da intrigante Popéia Sabina e mandou assassinar Burro, o prefeito da guarda imperial e aliado de Sêneca. O historiador Tácito faz Sêneca externar perante o seu ex-pupilo o desejo de levar uma vida em condições modestas e, por isso, poder devolver a César poder e patrimônio (Annales 14,54). Essa situação, todavia, era politicamente dedicada: a posição de Sêneca era importante demais para que Nero pudesse aceitar a renúncia de seu “ministro” e arriscar um rompimento em público com o seu mestre.3 Sêneca também se curvou a essas circunstâncias, retirando-se

discretamente de sua posição na corte. No curso das medidas punitivas contra os membros da conspiração pisônica contra Nero, no ano de 65, Sêneca foi acusado – decerto falsamente – de cumplicidade e obrigado pelos carrascos de Nero a matar-se.

Tácito, que no todo desenha uma imagem diferenciada, mas positiva na sua tendência básica da atuação de Sêneca no entorno de Nero, faz com que ele morra a morte do filósofo na tradição de Sócrates (Annales 15,60-64). Além disso, ele o coloca no mesmo nível de representantes famosos da oposição senatorial de tendência estóica, que nas buscas após a descoberta da conspiração igualmente foram forçados ao suicídio. De modo geral, resulta assim uma imagem em que Nero, como tirano cruel e desenfreado, afasta os seus sensatos admoestadores – os filósofos – e, por fim, tira-os do caminho. Contudo, deve estar claro que alguns retoques dessa imagem devem ser desfeitos: por

2

Esta tese é defendida por Grimal, sendo que ele se apóia nas afirmações de Sêneca na sátira

Divi Claudii Apocolocyntosis.

3

Sêneca pode ter tido ligação com os círculos de “filósofos” estóicos que atuavam eficazmente no senado como oposição contra o poder absolutista na corte. Sobre isto V. Rudich, Dissidence and Literature under Nero, London/New York, 1997, p.44.

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um lado, como exacerbação em termos da tendência de Tácito contra o poder absolutista do principado e, por outro, como estilização com base nas manifestações do próprio Sêneca. Pois ainda que Sêneca de fato tenha tentado fazer de Nero um rei filósofo, ainda que ele tenha concordado com os assassinatos no seio da família imperial como forma de evitar uma luta franca entre os pretendentes ao trono e uma guerra civil, e mesmo que ele, por fim, quando viu fracassar o seu “experimento teórico-estatal”4, quisesse concretizar o ideal do asceta que pregava nos seus escritos filosóficos, o fato é que ele viveu, até a idade de mais de sessenta anos, no seu todo uma vida determinada por riqueza, carreira e política de poder.

Como já foi mencionado, a acusação da ganância por dinheiro e poder foi, então, também levantada contra ele já em seu tempo de vida e transmitida adiante na seqüência.5 Com a crescente demonização do tirano Nero também o papel do seu educador e conselheiro obrigatoriamente foi cada vez mais questionado. Assim, Petrarca, numa carta fictícia, faz a Sêneca a pergunta por que ele, que deve ter reconhecido a constituição ruim do seu aluno, não saiu do seu lado até quase o último momento (Epist. 24,5). A pergunta, o que se deve pensar de um filósofo cujo ensino destoa em tantos pontos de sua própria maneira de conduzir a vida, gera também hoje geralmente perplexidade. Designa-se Sêneca, por exemplo, como “moraliste de cabinet [moralista de gabinete]”, que nenhuma maneira inclui a sua própria pessoa e sua própria vida em seus escritos, pois ele não escreve para si mesmo, mas para os seres humanos de modo bem geral, 6 ele seria “na teoria uma rocha e na prática um colaborador”,7 um “immoral moralist [moralista imoral]”8. Porém, geralmente ele é tratado com um pouco mais de respeito, ao dizer-se, por exemplo, que, como ministro da corte de Nero, Sêneca naturalmente nem sempre podia satisfazer as elevadas exigências da ética estóica e não via a si mesmo como perfeito, mas como alguém que avançava no caminho para a sabedoria.9 Ademais, a descrição impressionante que Tácito faz da morte de Sêneca, que o coloca na tradição de Sócrates, também tem o efeito de transfigurar retroativamente toda a sua biografia, de modo que as mais recentes monografias importantes sobre Sêneca mostram, ao menos, uma tendência apologética, se não positiva. Fato é que, de um lado, uma série de testemunhos descreve Sêneca como um membro da corte obcecado pelo poder e pelo dinheiro; do outro lado, ele mesmo recomenda, em seus escritos filosóficos, como caminho para a realização do ideal estóico da “perfeição moral” (da virtus), o exercício da abstinência, da distância em relação à vida pública e o menosprezo da honra e da posse.

Essa discrepância entre a vida documentada nas fontes e o ensino apresentado nos escritos, todavia, não é decisiva para a compreensão da obra de Sêneca. É certo que ele próprio constantemente cita exemplos de seu próprio mundo, para ilustrar as suas proposições; contudo, para a compreensão destas o conhecimento dos dados biográficos

4 Assim, por seu turno, a tese de Grimal (supra, nota 1), citação à p. 171. 5

Uma coleção de testemunhos críticos a Sêneca encontra-se no historiador Dio Cássio, no livro 61.

6

H. E. Wedeck, The Question of Seneca’s Wealth, in: Latomus 14 (1955), p. 540-544, esp. 544, “Seneca has preached one principle and followed another [Sêneca pregou um princípio e seguiu outro]”.

7 Assim L. Marcuse, Philosophie dês Glücks. Von Hiob bis Freud, Zürich, 1972, p. 102. 8

Assim Rudich (supra, nota 3), p. 17-106. 9

Cf., por exemplo, M. T. Griffin, Sêneca. A Philosopher in Politics, Oxford, 1976, p. 286-314; M. Pohlenz, Philosophie und Erlebnis in Senecas Dialogen, in: Nachrichten von der Gesellschaft der Wissenschaften zu Göttingen 6 (1941), p. 55-81 = Id., Kleine Schriften, ed. Por H. Dörrie,

Hildesheim, 1965, p. 384-410, esp. 408: “Mas não se trata de ser literal e realmente não significa ‘empregar o critério de uma moral pequeno-burguesa trivial’, quando se constata que a vida deste rico homem do mundo e cortesão polivalente estava em contradição com o espírito do estoicismo”.

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não é relevante. Nosso conhecimento sobre as experiências pessoais do autor com doença, exílio, riqueza, poder, assassinato, paixão pode até tornar-se frutífero no sentido de que as descrições concretas de ocorrências e situações exemplares podem ser consideradas realistas. Entretanto, se Sêneca realizou negócios com usura na Britânia e foi co-responsável pelo matricídio de Nero ou não, não desempenha, em última análise, qualquer papel na sua exposição do ensino estóico.

As suas exposições podem ser caracterizadas, em seus traços básicos, como ortodoxas nos termos do antigo estoicismo e mostram, em toda a sua obra, uma coerência e unicidade quase permanente.10 E justamente essa coerência rígida é que invalida tanto a acusação da discrepância entre vida e ensino, como também as tentativas de encontrar explicações que façam desaparecer essa discrepância: primeiro, a clara diferenciação entre a vida moralmente perfeita do sábio (do sapiens ) e o empenho do não-sábio (do insipiens ou do stultus) pelo progresso moral é característica da filosofia estóica. Segundo, no ensino estóico sobre os bens, é atribuído aos “bens exteriores” poder e riqueza um valor apenas relativo, pelo que eles não são considerados nem como bons nem como ruins e sua posse de modo algum toca o bem supremo, a perfeição moral. Portanto, quando Sêneca distingue, na Consolatio ad Polybium, a Cláudio e, em De clementia, a Nero com o mais sublime louvor ao regente, ele não descreve a realidade, mas coloca diante dos olhos dos regentes e também de seus leitores a concepção do regente ideal, concebido pela filosofia, e que ambos devem procurar realizar. E quando Sêneca, numa de suas Cartas a Lucílio (Epistulae Morale ad Lucilium), recomenda uma vida simples numa cama dura, com roupa de pêlo e à base de mingau de cevada e água, para assim antecipar a título de exercício a perda do atual bem-estar (Epist. 18,5-12), ele, de forma alguma, declara essa ascese como alvo, mas indica um caminho pelo qual se pode atingir esse ideal. Tampouco as recomendações dadas ao destinatário do escrito De brevitate vitae (Sobre a brevidade da vida), de retirar-se do seu cargo de chefe de mantimentos de Roma, para dedicar-se totalmente à filosofia, devem ser entendidas no sentido de que Sêneca colocava, de modo geral, o estudo da filosofia acima do exercício de um cargo político e da vida pública. Essas manifestações devem ser entendidas simplesmente como conselhos a respeito de como alguém, numa determinada situação, poderia aproximar-se mais da perfeição moral que, independentemente do caminho escolhido, permanece inalterada.

Assim, cada um dos eventos na biografia de Sêneca, como transmitidos a nós pelas fontes antigas, pode ser avaliado, no máximo, quanto à questão de se a respectiva situação poderia ter sido antes favorável ou antes desfavorável à consecução do objetivo que Sêneca fixa em seus escritos; pois, à parte da constatação de que os fatos isolados não são relevantes para a validade de seu ensino, eles tampouco permitem alguma conclusão sobre se o próprio Sêneca conseguiu preservar, em cada situação de sua vida, a serenidade interior ou não.

Portanto, ainda que, na apreciação biográfica dos escritos de Sêneca, seja apropriado usar de extrema cautela, estes, não obstante, propiciam um arsenal de exemplos da vida cotidiana ou também não cotidiana de seu tempo, com os quais pretende ilustrar as questões em discussão, e essa plasticidade pode ser designada como a principal característica da obra filosófica de Sêneca. Contudo, ele é sempre meio para o fim: na base está o ensino estóico, que Sêneca conhece com exatidão e também pode contrapor a outras tendências filosóficas, 11 e essa doutrina deve ser comunicada ao leitor

10

Isto é acentuado contra outros, sobretudo por Grimal (supra, nota 1) e I.Hadot, Sêneca und die griechisch-römische Tradition der Seelenteitung, Berlin, 1969.

11

Sobre os conhecimentos que Sêneca tinha de outros ensinos filosóficos cf. B. Inwood, Sêneca in his Philosophical Milieu, in: Harvard Studies in Classical Philology 97 (1995), p. 63-76.

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– todavia, não em primeira linha mediante a exposição sistemática e teses teóricas, mas na forma de exemplos e recomendações. Também neste sentido, Sêneca está na tradição do estoicismo e, em última análise, uma tradição da filosofia popular mais antiga, na qual são distinguidas uma parte dogmática e uma parte parenética da filosofia, as quais transmitem, ao lado das teses filosóficas (dógmata ou decreta ou placita), regras de comportamento (praecepta) e conselhos para a vida (consilia) (Epist. 94 e 95).12 Ao tentar ligar essas duas partes, Sêneca vai além do que Cícero havia empreendido um século antes, a saber, acercar a filosofia grega de seu público romano em língua latina e numa forma literariamente exigente: ao passo que Cícero, em seus diálogos, teve de traduzir para a língua latina, juntamente com os fundamentos teóricos das escolas filosóficas helenistas, também a terminologia correspondente, Sêneca já pôde construir sobre essa dupla realização. Ele pode, portanto, pressupor como conhecidos os dogmas e conceitos estóicos e coloca-los na base de suas exposições parenéticas sem ter de explicitá-los primeiro. Parênese filosófico-popular e tratado teórico com elevada exigência intelectual são, assim, vinculados de uma forma ideal: na forma de tratados, cartas e escritos de consolação, Sêneca dirige-se a determinados destinatários e concomitantemente a um público leitor mais amplo (culto!) e trata, a cada vez, um ou mais temas da ética estóica – o domínio sobre a ira (em De ira), a clemência (em De clementia), a beneficência (em De beneficiis), a constância do sábio (em De constantia sapientis), a brevidade da vida (em De brevitate vitae), a vida bem -aventurada (em De vita beata), a tranqüilidade da alma (em De tranquilitate animi), o ócio (em De otio), a providência (em De providentia)13 – e nas Questões naturais (Naturales quaestiones ) também da física.14 Esses temas são, por um lado, iluminados a partir de diversos lados com o auxílio de exemplos concretos e, por outro, constantemente situados dentro do sistema estóico com teses formuladas de modo marcante. A lógica é utilizada apenas de forma marginal e geralmente comentada criticamente.

No centro da obra de Sêneca, situa-se, portanto, a ética estóica e sua definição do alvo supremo: a perfeição moral, que é alternadamente identificada com a sabedoria, a vida bem-aventurada ou o bem supremo. No escrito De vita beata, Sêneca formula toda uma série de variantes da definição do alvo supremo: “bem-aventurada é, portanto, aquela vida que está em consonância com a sua natureza” (3,3: beata est ergo vita conveniens naturaesuae); “o bem supremo é um estado de ânimo que menospreza tudo o que é casual e se alegra unicamente com a virtude” (4,2: summum bonum est animus fortuita despiciens, virtute laetus); “pois o que nos impede de dizer que uma vida bem-aventurada baseia-se num estado de ânimo franco, íntegro, destemido e constante” (4,3: quid enim prohibet nos beatam vitam dicere liberum animum et erectum et interritum ac stabilem); “bem-aventurado pode ser chamado quem, em virtude da sua razão, não sente nem cobiça nem medo” (5,1: potest beatus dici qui nec cupit nec timet beneficio rationis); “bem-aventurado é, portanto, quem dispõe de um juízo saudável; bem aventurado é quem está contente com a sua condição, qualquer que seja ela, e aceita as suas circunstâncias; bem-aventurado é aquele que se deixa guiar em todos os âmbitos de sua vida pela razão” (6,2: beatus ergo est iudicii rectus; beatus est praesentibus qualiacumque sunt contentus amicusque rebus suis; beatus est is cui omnem habitum rerum suarum ratio commendat).

12

Sobre a tradição dessa divisão na filosofia mais antiga cf. Hadot (supra, nota 10), p. 8s e 21. 13

A cronologia desses escritos é controvertida; cf. sobre isto Griffin (supra, nota 9), p. 395ss; K. Abel, Sêneca. Leben und Leistung, in: H. Temporini, W. Haase, Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, II 32, 2 (1985), p. 653-775, esp. 711ss. Somam-se ainda fragmentos e títulos de escritos De superstitione, De Matrimonio, De Amicitia, De Officiis e os Moralis Philosophiae Libri. 14

Sobre isto N. Gross, Senecas Naturales Quaestiones . Komposition, Naturphilosophische Aussagen und ihre Quellen, Atuttgart, 1989.

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Portanto, quem atingiu esse alvo, quem é sábio e bem-aventurado, mantém os seus impulsos e suas emoções sob controle e obtém a total tranqüilidade da alma (a securitas ou a tranquillitas animi), é independente das vicissitudes do destino, mantém a sua autonomia, mesmo que perca posse e bem, seu prestígio e sua posição na sociedade, sua pátria, sua imunidade corporal, seus parentes e amigos, isto é, ele julga essas coisas, de acordo com o ensino estóico sobre os bens, como neutras (“indiferentes”), já que a perda de sua posse não pode causar dano à sua razão perfeita nem à sua perfeição moral; ele não só aceita todas as condições de vida, mas ele as torna objeto de seu querer15: “Não permito que me obriguem a nada, não suporto nada contra a minha vontade, não sirvo a Deus, mas lhe dou a minha anuência” (Provid. 5,6: nihil cogor, nihil patior invitus nec sérvio deo sed assentior). Assim ele concretiza a concepção da autonomia completa: “O sábio, porém, nada p9ode perder; tudo ele tem guardado dentro de si, nada ele confia ao destino, seus bens estão em segurança, satisfeito com a perfeição moral, que não depende do favor do acaso e, por isso, não pode ser intensificada nem diminuída” (Const. Sap. 5,4: sapiens autem nihil perdere potest; omnia in se reposuit, nihil fortunae credit, bona sua in sólido habet contentus virtutes, quae fortuitis non indiget ideoque nec augeri nec minui potest). Ele tem êxito nisto porque ele leva uma vida em total consonância com a ordem racional perfeita dada com o mundo (a natureza divina universal), e que também está implantada na sua própria natureza: “Dessa forma, força e capacidade são constituídas numa unidade que está em consonância consigo mesma, e surgirá aquela noção confiável que não oincorre em divisão e não é indecisa quanto às suas opiniões e percepções ou convicções; quando ela tiver produzido uma ordem interna e estiver em concordância e, por assim dizer, em harmonia com suas partes, terá alcançado o bem supremo. [...] Por isso, pode-se proclamar ousadamente que o bem supremo é a harmonia da alma” (Vit. Beat. 8,5s: hoc modo uma efficietur vis ac potestas concors sibi et ratio illa certa nascetur, non dissidens nec haesitans in opinionibus conprensionibusque nec in persuasione, quae cum se disposuit et partibus suis consensit et, ut ita dicam, concinuit, summum bonum tetigit [...] quare audaciter lecetprofitearis summum bonum esse animi concordiam ).

As definições do alvo supremo perpassam os escritos de Sêneca como um fio vermelho: reiteradamente é enfatizado que nada está acima e nada está ao lado da perfeição moral; ela é único critério válido (a regula), pelo qual se orienta a sua conduta: “Escolhe para ti, de uma vez por todas, uma única diretriz conforme a qual viverás, e dali por diante orienta toda a tua vida de acordo com ela” (Epist. 20,3: unam semel ad quam vivas regulam prende et ad hanc omnem vitam tuam exaequa).16 Unicamente por ela deve ser medido qualquer valor moral e qualquer agir moral, e apenas quando uma pessoa, não só avalia e age de acordo com essa diretriz, mas faz isto também com plena ciência e com todo seu empenho e toda sua vontade, ela alcançou a postura intelectual / espiritual correta (o habitus animi correto) e assim também o ideal da sabedoria.

15

A vontade é central tanto para a concepção da perfeição moral (Espit. 20,5: quid est sapientia?

semper idem velle atque idem nolle) como também para o caminho até lá (ibid. 73,36: sed magna pars est profectus velle proficere), sendo que a vontade, todavia, não pode ser aprendida (ibid.

81,13: velle non discitur ). Sobre a formulação própria de Sêneca do sentido da vontade cf. C. Kahn, Discovering the Will. From Aristotle to Augustine, in: J. M. Dillon, A. A. Long (Ed.), The Question of “Eclecticism”. Studies in Later Greek Philosophy, Berkeley, 1988, p. 234-259. 16

M. Forschner, Über das Handeln im Einklang mit der Natur. Grundlagen ethischer Verständigung, Darmstadt, 1998, p. 9 e 32, aponta para o fato de que, no ensino estóico, “os critérios e pontos de orientação da moralidade e da vida exitosa {...} ainda não divergiram”, ao passo que, na filosofia moderna, parte-se “de que princípios e normas da moral racional e princípios e regras da busca pessoal por felicidade são coisas heterogêneas e de modo algum coincidentes na concretização da aplicação correta”.

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Com o conceito da sabedoria é descrito no estoicismo um estado ideal, que repetidamente é caracterizado pelos críticos dessa escola como supra-humano e assim de antemão inalcançável.17 Os estóicos, todavia, fazem valer que, mesmo raramente, mas em média a cada quinhentos anos, ele é alcançado por determinadas pessoas, como por Sócrates ou – no âmbito romano – por Cato Júnior. Também Sêneca recorre freqüentemente a esses exemplos, para ilustrar certas manifestações da perfeição moral com ocorrências históricas;18 todavia, ele considera o status do sábio, em última análise, como inalcançável para o ser humano, pois “aquele que está em busca da perfeição moral, necessita – também quando já progrediu bastante -, em certa medida, da indulgência do destino, porque ainda terá de lutar contra a ‘condition humaine’ até que tenha desfeito este nó e todas as amarras da mortalidade. [...] Aquele que chegou a um estágio mais elevado e se elevou ainda mais, ainda carrega uma corrente solta consigo: ele ainda não está livre, mas quase como se já estivesse” (Vit. Beat. 16,3: sed ei qui ad virtutem tendit, etiam si multum processit, opus est aliqua fortunae indulgentia adhuc inter humana luctanti, dum nodum illum exsolvit et omne vinculum mortale. [...] hic qui ad superiora progressus est et se altius extulit laxam catenam trahit, nondum líber, iam tamen pro libero). O “sábio”, que na tradição romana também é designado de “homem bom” (vir bônus), está assim em contraste com o ser humano ordinário, que Sêneca pinta com cores fortes nas mais diversas variantes com todas as suas falhas, um constructo teórico que, contudo, em toda sua abstração, possui contornos claramente delineados e assim se presta perfeitamente como norma. Por suas explanações, são medidas todas as ocorrências e ações usadas como exemplos e personalidades; com base nesse ideal são formuladas todas as prescrições e recomendações. Assim, em última análise, não importa se esse ideal jamais pôde ou alguma vez poderá ser concretizado; ele mantém a função de uma diretriz, pela qual deve orientar-se quem quer alcançar a vida bem-aventurada.

As formulações sempre recorrentes do alvo supremo estão, por isto, distribuídas quase com regularidade nas exposições do estado imperfeito em que os seres humanos habitualmente se encontram, e do qual ao menos aqueles a quem Sêneca se dirige querem distanciar-se. Sêneca distingue diversos estágios no caminho para o alvo supremo, os quais se diferenciam pela extensão da libertação que propiciam das emoções (Epist. 71,34 e 75,8-15). Na base está a concepção do progresso ético, que já existe no antigo estoicismo, de certa forma, como complemento à concepção normativa da sabedoria:19 contudo, importante para Sêneca não é tanto o constructo teórico quanto as conseqüências práticas ou as medidas e exigências concretas de conduta aos que estão progredindo. Neste ponto, Sêneca desenvolve as suas capacidades mais famosas: aquelas de um “guia das almas”.20

É no corpus das Cartas a Lucílio que essa intenção fica mais clara. O destinatário, a quem se dirige a palavra representativa por uma certa camada de leitores, é caracterizado como homem jovem, que tem êxito na vida pública e visa a uma carreira política, que é interessado por cultura e filosofia e que tende especialmente para o ensino epicureu. Com isto, ele já preenche um dos mais importantes pressupostos imprescindíveis para o progredir: ele está interessado na filosofia e também desejoso de aplicar os praecepta filosóficos. Também a sua posição social e sua atividade exigente fazem dele o receptor ideal das explanações de Sêneca. Pois ainda que o ensino estóico

17

Por exemplo, Cícero, Laelius 18. Cf. sobre isto Grimal (supra, nota 1), p. 286: “[O sábio] é uma construção ideal, uma extrapolação da humanidade real”.

18

Grimal (supra, nota 1), p. 286. Por exemplo, Epist. 95-9-69ss; De Constantia Sapientis passim. 19

A respeito da concepção do progresso ético continua fundamental o artigo de O. Luschnat, Das Problem dês ethischen Fortshritts in der alten Stoa, in: Philologus 102, 1958, p. 178-214.

20

Central a este respeito é o estudo de Ilsetraut Hadot (supra, nota 10). Df. Agora também E. Hachmann, Die Führung dês Lesers in Senecas “Epistulae Morales”, Münster, 1995.

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naturalmente se destine a todas as pessoas e declare todas as pessoas, apesar de sua constituição individual, como capazes de buscar o ideal da sabedoria e, em princípio, também realiza-lo (cf. Epist. 94,29 e 108,8), a socialização diferenciada é importante ao menos para a formulação da parênese, já que esta se orienta por situações concretas. Como político, o Lucílio de Sêneca está exposto a todas as possíveis dificuldades, tentações e especialmente ao favor do destino, frente aos quais ele tem de comprovar-se como filósofo, mas que também fazem com que se torne clara para ele a necessidade de progredir no caminho para o alvo da autonomia interior. Assim, Sêneca o aconselha, no papel do “guia de almas” e amigo, a auto-observar-se e examinar diariamente a consciência,21 dá-lhe orientações concretas em relação ao que deve evitar e o que deve buscar, como ele pode preparar-se para as diferentes situações difíceis sem perder a tranqüilidade interior, como ele pode exercitar a conduta livre de emoções e o agir moral prescritos pelas regula da perfeição moral: Lucílio deve pres tar contas a si mesmo diariamente sobre suas atividades, suas reações e seus progressos, ele deve preparar-se mediante a “premeditação” (praemeditatio) para todos os possíveis golpes do destino, deve antecipar em pensamento todos os possíveis males, expor-se espontaneamente por um certo tempo à pobreza, retirar-se para a solidão, preparar-se para a morte, etc.

O princípio que está na base dessa parênese é, de acordo com o ensino estóico, a discrepância própria do ser humano como ser racional entre o saber sobre o alvo supremo e as exigências que devem ser cumpridas para uma vida feliz e o agir que freqüentemente não está em consonância com esse saber.22 As causas desse comportamento paradoxal são as influências sofridas do entorno, às quais o ser humano está exposto desde o nascimento e que fazem com que ele obedeça a falsos impulsos, em vez de viver de acordo com a natureza racional. As prescrições e recomendações têm a função de desacostumar-se passo a passo desses erros e agir em conformidade com o saber transmitido pela filosofia. O alvo foi alcançado quando o saber determina completamente a postura interior e o querer, quando o próprio saber tornou-se um habitus , de forma que o agir necessariamente está de acordo com esse saber. Exatamente aí foi alcançada a harmonia (a concórdia, congruentia, convenientia) entre a razão divina universal e a natureza humana individual, e a conduta do indivíduo corresponde irrestritamente às determinações da diretriz da perfeição moral.

Esse saber, cuja aplicação no agir deve ser buscada, não é algo como um saber enciclopédico, mas o saber filosófico, particularmente da física e da ética:23

Na física, têm validade as questões teológicas e cosmológicas como saber supremo: “Recolhe-te para aquilo que é mais tranqüilo, mais seguro e mais significativo [...] para as coisas sagradas e sublimes [...] e saberás de que matéria é Deus, que vontade ele tem, que constituição, que forma; que destino espera a tua alma; que lugar a natureza nos indicará, quando tivermos deixado o corpo; o que retém justamente os

21

Esta técnica do examen conscientiae não é especificamente estóica, mas encontra-se nos epicureus na forma da “prática da confissão”; sua origem possivelmente é mais antiga

(pitagórica?). Sobre isto Hadot (supra, nota 10), p. 66-71. Sobre o papel da amizade na condução da alma cf. ibid., p. 164-176.

22

Hadot (supra, nota 10), p. 107, aponta para a diferença fundamental entre a concepção socrática, na qual “a existência do saber [...] automaticamente traz consigo as ações

correspondentes”, e o ensino estóico, em que “saber e ações podem perfeitamente contradizer-se (sem prejuízo do fato de que um saber correto representa a pressuposição imprescindível de um agir moral)”.

23

Sêneca tem uma postura crítica em relação às ciências enciclopédicas, às tradicionais artes

liberales, e as caracteriza como artes pueriles, deixando, porém, que vigorem como preparação

para a filosofia, as artes liberae (Epist. 88, 20-23). Sobre isto I. Hadot, Arts libéraux et philosophie dans la pensée antique, Paris, 1984, p. 272s.

(9)

componentes mais pesados do mundo em seu centro, ergue o mais leve para as alturas, leva o fogo até o lugar mais alto, tange os astros para as suas posições alternantes; e, por fim, saberás também todas as demais coisas que ocultam em si milagres tremendos” (Brev. Vit. 19,1: recipe te ad haec tranquilliora tutiora maiora [...] ad haec sacra et sublimia [...] sciturus quae matéria sit dei, quae voluntas, quae condicio, quae forma; quis animum tuum casus expectet; ubi nos a corporibus dimissos natura componat; quid sit quod huius mundi gravíssima quaeque in médio sustineat, supra levia suspendat, in summum ignem ferat, sidera vicibus suis excitet, cetera deinceps ingentibus plena miraculis ). Igualmente a explicação dos fenômenos da natureza, que estão no centro das Naturales quaestiones, é importante, pois esse saber transmite a noção da ordem cósmica divina: “até mesmo aquilo que parece transcorrer sem ordem e sem regra segura, a saber, precipitações de chuva, nuvens, o ímpeto dos raios lançados, as massas de fogo que fluem dos cumes arrebentados dos montes, o tremor do solo abalado e outras coisas que fazem parte do lado inquieto da natureza, que, em toda parte, traz tumulto à terra – até mesmo isto, e ainda que ocorra repentinamente, não se consuma sem regularidade, mas também tem as suas razões” (Provid. 1,3: ne illa quidem, quae videntur confusa et incerta, pluvias dico nubesque et elisorum fulminum iactus et incendia ruptis montium verticibus effusa, tremores labantis soli aliaque quae tumultuosa pars rerum circa terras movet, sine ratione, quamvis súbita sint, accidunt, sed suas et illa causas habent).

A ética abrange as áreas do saber sobre o ensino acerca dos bens, das emoções e dos deveres, que são afinados de tal maneira uns com os outros que apenas o saber em todos os âmbitos em seu todo leva ao juízo correto e à conduta eticamente perfeita: “Pois primeiro deves formar um juízo sobre o valor de cada coisa; em segundo, deves desenvolver um anseio ordenado e moderado em relação a ela; em terceiro, deves afinar um com o outro o teu anseio e o teu agir, para que, em todas essas coisas, estejas em concordância contigo mesmo” (Epist. 89,14: primum enim est ut quanti quidque sit iudices, secundum ut impetum ad illa capias ordinatum temperatumque, tertium ut inter impetum tuum actionemque conveniat, ut in omnibus istis tibi ipse consentias). Quem sabe sobre a indiferença dos bens corporais e exteriores e aplica esse saber na ação pode viver sem eles livre de emoções ou também lidar com eles. Ele faz uso deles, mas não anseia por eles;24 ele preserva sua autonomia frente a eles: “Crês que ele se encontra acossado por males? Ele faz uso deles. Assim, o sábio desenvolverá a perfeição moral, se for permitido, na riqueza, se não, na pobreza; se ele puder, na pátria, se não, no exílio; se ele puder, como general, se não, como soldado; se ele puder, saudável, se não, debilitado” (Epist. 85,39s: tu illum premi putas malis? utitur [...] sic sapiens virtutem, si licebit, in divitiis explicabit, si minus, in pauperatate; si poterit, in pátria, si minus, in exílio; si poterit, imperator, si minus, miles; si poterit, integer, si minus, debilis ).

Naturalmente é descrito nesta passagem uma vez mais o estado ideal, que dificilmente alguma vez é concretizado. Pois é claro que dificilmente alguém conseguiria, por exemplo, no trato com a riqueza, estar o tempo todo consciente da neutralidade de valor desse bem exterior, não se deixar arrastar pela ânsia do lucro ou – no caso de um prejuízo financeiro – para a irritação ou a raiva. Porém, se alguém rico e com grande prestígio no nível público estiver exposto a tais exigências, isto não significa necessariamente que deve desfazer-se da posse e retirar-se da vida pública,25 mas esta situação pode perfeitamente tam bém ser entendida como um stimulus para a confirmação

24

Isto corresponde à concepção estóica antiga da “chrésis”, do “uso” correto dos bens indiferentes; sobre isto M. Forschner, Die stoische Ethik. Über den Zusammenhang von Natur-, Sprach- und Moralphilosophie im alstoischen System, Darmstadt, 2. ed., p. 117 e 170.

25

Diferentemente do mandamento cristão de entregar as posses e seguir Cristo (segundo Mc 10,17-31).

(10)

da virtude (Provid. 4,6). As exigências ao que está progredindo são tanto maiores quanto mais ele estiver rodeado de bens exteriores: por um lado, quando está de posse deles, tem de aprender a encará-los como indiferentes e a “despreza-los”, e, por outro lado, ele tem de ser capaz de suportar a perda desses bens com serenidade: “Ninguém é digno de Deus, a não ser aquele que despreza a riqueza; não quero vedar-te a sua posse, mas quero provocar que a possuas sem medo, e alcanças isto de uma só maneira: se tiveres chegado à convicção de que viverás feliz também sem ela, e se sempre a encarares como algo que também poderás perder” (Epist. 18,13: nemo alius est deo dignus quam qui opes contempsit; quarum poss essionem tibi non interdico, sed efficere volo ut illas intrepide possideas; quod uno consequeris modo, si te etiam sine illis beate victurum persuaseris tibi, si illas tamquam exituras semper aspexeris). A reiqueza é “material de aplicação” para a virtude (virtuti matéria) também no sentido de que oferece a oportunidade de ser caridoso: “O sábio não ama a riqueza, mas ele a prefere (a uma outra condição de posse); ele não a acolhe na sua alma, e sim na sua casa e não recusa a sua posse, mas ele a guarda e quer, com ela, colocar mais recursos à disposição de sua virtude” (Vit. Beat. 21,4: sapiens [...] non amat divitias sed mavult; non in animum illas sed in domum recipit, nec respuit possessas sed continet, et maiorem virtuti suae materiam subministrari vult); “como se pode duvidar de que a riqueza oferece ao sábio mais oportunidades para desenvolver de muitas maneiras o seu espírito do que a pobreza? Pois na pobreza o exercício da virtude consiste unicamente em não se deixar curvar e oprimir; na riqueza, em contrapartida, existe um amplo espaço de manobra para comprovar a moderação, a liberalidade, a solicitude, a distribuição justa e a demonstração da generosidade” (Vit. Beat. 22,1: quid autem diibii est quin haec maior matéria sapienti viro sit animum explicandi suum in divitiis quam in paupertate, cum in hac unum genus virtlitis sit non inclinari nec deprimi, in divitiis et temperantia et liberalitas et diligentia et dispositio et magnificentia campum habeat patentem?).26 A riqueza apresenta, portanto, exigências maiores do que a pobreza para o que está progredindo. Todavia, como ela, na seqüência, freqüentemente o leva também ao fracasso, Sêneca recomenda reiteradamente um estilo de vida simples, comida frugal e instalações modestas: “Exercitemo-nos na estaca, [...] a pobreza deve tornar-se familiar a nós; seremos ricos com menos preocupação quando soubermos que não é penoso ser pobre” (Epist. 18,8: exerceamur ad palum [...] fiat nobis paupertas familiaris; securius divites erinitis si scierimus quam non sit grave pauperes esse). Todavia, a pobreza, quando louvada como um ideal – como o fazem os cínicos -, pode tornar-se um alvo errado de busca exatamente como a riqueza (Vit. Beat. 18,3).27

Dessa forma, chegamos novamente à acusação da moral dupla, que Sêneca em De vita beata coloca na boca de um adversário fictício contra si mesmo: “Tu falas diferente do que vives” (18,1: aliter [...] loqueris, aliter vivis); “Por que consideras dinheiro indispensável? [...] Por que tens móveis tão suntuosos? [...] Por que se toma na tua casa vinho mais velho do que tu mesmo? [...] Por que a tua mulher porta ornamentos nas orelhas que valem tanto como uma casa inteira?”, etc. (ibid. 17,1-3). Se, na seqüência, ele designa a riqueza, de acordo com a doutrina estóica, como bem indiferente e por isso não condena a sua posse, mas a caracteriza como matéria virtuti, surge realmente a impressão de que, nas Cartas a Lucílio, Sêneca prega pobreza; Em De vita beata,

26

Também Antipáter designa as coisas indiferentes como “material” para a aprovação da virtude (Stoicorum Veterum Fragmenta 3, 195;491: hýle tês aretês; cf. Cícero, De Finibus 3, 61: matéria

sapientiae).

27

Sobre isto T. Fuhrer, The Philosopher as Multi-Millionaire: Sêneca on Doublé Standards, in: K. Pollmann, B. Dunsch, Double Standards in the Ancient and Mediaeval World, Göttingen, 2000 (no prelo).

(11)

contudo, legitima para si mesmo a posse da riqueza. Fato é que o escrito De vita beata, com grande probabilidade, deve ser situado numa fase anterior à das Cartas a Lucílio, que Sêneca redigiu após retirar-se da corte de Nero, quando ele também já estava vivendo a vida ascética, de modo que se pode presumir um desenvolvimento na reflexão de Sêneca e assim também na sua interpretação do ensino estóico ou uma aproximação temporária das formas mais amenizadas do médio-estoicismo.28 Contudo, ao menos em um ponto, Sêneca permanece consistente: ele sempre ressalta que unicamente a virtus pode valer como critério; portanto, não são válidos dois critérios, mas semre apenas este único critério.29 No máximo, pode-se onerar Sêneca pelo fato de este ver-se, em De vita beata, na condição do mais adiantado que está em condições de dar conta das exigências mais elevadas a que está exposto como membro rico da corte, ao passo que não julga outros capazes de uma “postura estóica” em meio ao luxo e às intrigas do poder e, por isto, recomenda a moderação no recolhimento. Ele, contudo, não deixa de acentuar que, como não-sábio, ele não preenche o ideal estóico, mas está em busca dele: “Não sou um sábio e – para dar um estímulo à tua intenção maldosa -, tampouco o serei. {...} Para mim é suficiente se diariamente consigo afastar uma parte das minhas fraquezas e manter as minhas falhas sob controle” (Vit. Beat. 17,3: non sum sapiens et, ut malivolentiam tuam pasçam, nec erro. [...] hoc mihi satis est, cotidie aliquid ex vitiis méis demere et errores meos obiurgare). Dessa forma, ele também consegue justificar porque ele fala diferente do que vive. “Falo da perfeição moral e não de mim mesmo, e quando censuro fraquezas morais, tenho em mente sobretudo as minhas próprias” (Vit. Beat. 18,1: de virtute, non de me loquor, et cum vitiis convicium facio, in primis méis facio).

Com o seu ceterum censeo, com o qual ele reiteradamente chama à memória de seus leitores a perfeição moral como única diretriz válida e assim literalmente lhes incute esse ideal, Sêneca segue com exatidão o rígido ensino do antigo estoicismo, criticando também qualquer desvio, como, por exemplo, a doutrina peripatética dos bens: unicamente a virtus é um bem no sentido estrito; ao lado deste, não devem mais subsistir outros bens, nem saúde nem conforto, e, somente quando a virtus é perfeita, pode-se falar de uma vita beata. Sêneca volta-se particularmente contra a definição peripatética da felicidade em etapas, que só seria perfeita quando inclui os bens corporais e os exteriores (Epist. 85,19s). Ele polemiza igualmente contra o ensino da metriopatia, que chama de condição ideal uma mera moderação das emoções (Epist. 85,5s). Ainda que Sêneca se permita, em alguns detalhes, divergências da ortodoxia estóica, estas de forma alguma tocam o dogma da autarquia da virtus.

Sêneca é, portanto, um dogmático, mas com certeza não um sistemático. Por essa razão, muitas vezes se quis negar-lhe o status de “filósofo”30. Contudo, se quisermos entender o conceito “filosofia” – como faz o próprio Sêneca – no sentido de Platão e Karl Jaspers como “amor à sabedoria e busca ansiosa por ela” (amor sapientiae et adfectatio) e como “empenho pela perfeição moral” (studium virtutis; Epist. 89,4-8), então os seus escritos filosóficos são, em todas as suas partes, um documentário dessa postura.

Em todo caso, Sêneca é um grande literato, sobretudo por ter-se destacado também como autor de tragédias. Sua preferência por sentenças e antíteses breves e marcantes, com as quais ele formula os seus praecepta de forma a causar impressão,

28 Especialmente Maurach (supra, nota 1) parte disto, contra Hadot (supra, nota 10) e Rudich (supra, nota 3) entre outros. A favor da orientação no médio-estoicismo em De Vita Beata, pronuncia-se E. Asmis, Seneca’s On the Happy Life and Stoic Individualism, in: Apeiron 23, 1990, p. 219-255.

29

A favor de uma interpretação de De Vita Beata de Sêneca como pleito contra a moral dupla cf. Fuhrer (supra, nota 27).

30

Sobre isto P. Grimal, Sénèque est-il um philosophe?, in: Uinformation littéraire 5, Paris, 1953, p. 60-64.

(12)

sua maneira dialógica de argumentar, orientada no interlocutor, também designada de estilo da diatribe e muito semelhante ao estilo da pregação, sua abundância de metáforas e exempla contribuíram para que ele, no decorrer dos séculos, permanecesse sendo um dos filósofos mais lidos: já na Antigüidade tardia, ele foi designado pelos cristãos como “quase um dos nossos” (saepe noster), e uma troca de correspondência fictícia, mas até Erasmo considerada autêntica, com o apóstolo Paulo legitimou para os cristãos a leitura de seus escritos durante toda a Idade Média. No humanismo da Renascença, ele tornou-se o ídolo dos repretornou-sentantes do neo-estoicismo, reunidos em torno de Justo Lípsio, cujo amigo Peter Paul Rubens manifestou a sua veneração pelo filósofo Sêneca em dois quadros. Os Essais de Michel de Montaigne seguem, quanto à forma e ao conteúdo, o espírito das Cartas a Lucílio. Ainda que nos séculos XVIII e XIX Sêneca tenha sido acusado de falta de originalidade intelectual, ele continuou sendo muito lido e tornou-se até mesmo o autor preferido de Arthur Schopenhauer.31 Uma certa popularidade resta-lhe

também ainda no final do século XX, pelo fato de proposições isoladas serem impressas como sabedoria de vida em antologias (Sêneca para empresários),32 calendários e

embalagens de açúcar.

Bibliografia

L. Annaei Senecae De Beneficiis, ed. e trad. por E. Prechac, Paris, 1926 (com diversas reimpressões). L. Annaei Senecae De Clementia, ed. e trad. por E. Prechac, Paris, 1925 (com diversas reimpressões). L. Annaei Senecae Dialogorum Libri Duodecim, ed. por L. D. Reynolds, Oxford 1977 (com diversas reimpressões), contendo:

- De Brevitate Vitae (Sobre a brevidade da vida) [Brev. Vit]

- De Constantia Sapientis (Sobre a constância do sábio) [Const. Sap.] - De vita beata (Sobre a vida bem -aventurada) [Vit. Beat.]

- De Providentia (Sobre a providência) [Provid.]

L. Annaei Senecae ad Lucilium Epistulae Morales, 2 vol., ed. por L. D. Reynolds, Oxford, 1965 (com diversas reimpressões). [Epist.]

L. Annaei Senecae Naturalium Quaestionum Libri VIII, ed. por ª Gercke, nova edição providenciada por W. Schaub, Stuttgart, 1986.

31

Uma coletânea de artigos sobre “A pós-vida de Sêneca” encontra-se em r. Chevallier, R. Pignault, Présence de Sénèque. Paris, 1991. Uma apresentação sintética é oferecida por Giebel (supra, nota 1), p. 127-132. Sobre a troca de cartas com Paulo cf. por último ª Fürst,

Pseudepigraphie und Apostolizität im apokryphen Briefwechsel zwischen Sêneca und Paulus, in: Jahrbücher für Antike und Christentum 41, 1998, p. 77-117.

32

Sêneca für Manager. Sentenzen, ausgewählt und übersetzt von G. Schoeck, Zürich / München, 2. ed., 1989.

Referências

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