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A LEI FEDERAL Nº /97 E SEUS INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO DA ÁGUA: A OUTORGA DE DIREITO DE USO DE RECURSOS HÍDRICOS

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A LEI FEDERAL Nº. 9.433/97 E SEUS INSTRUMENTOS

DE PROTEÇÃO DA ÁGUA: A OUTORGA DE DIREITO

DE USO DE RECURSOS HÍDRICOS

Ana Paula Marcante Soares

1.1 A PROTEÇÃO JURÍDICA DA ÁGUA NO BRASIL E A ESCASSEZ DO RECURSO NO PANORAMA INTERNACIONAL

Tendo em vista a fundamentalidade da água e a conseqüente necessidade de planejar o seu uso, fazia-se necessário estabelecer um gerenciamento sistemático para os recursos hídricos, esta era a tendência que se firmava, acentuada após o advento da Constituição Federal de 1988.

A implementação de uma política nacional de recursos hídricos foi fruto de anos de discussão acerca do tema. A problemática da água fazia parte de discussões nacionais e internacionais há anos. Em meio a tais discussões, definiam-se e recepcionavam-se conceitos, consagrados internacionalmente, acerca da temática da água. Estes conceitos serviriam como fundamentos à implementação da política de recursos hídricos no país, que mais tarde viria a ser normatizada.

Em esfera nacional, no decorrer da década de oitenta, antes mesmo do advento da Constituição, foram realizadas várias discussões acerca do tema, visando à formulação de uma política nacional de recursos hídricos e de um modelo mais adequado de gestão da água. Na evolução das ações que culminaram com a edição das políticas em relação à matéria, anterior a Carta de 1988, destaca Granziera1, o Seminário Internacional de Gestão de Recursos Hídricos (realizado na Capital Federal, em 1983), do qual participaram especialistas de vários países, e foram abordados temas como, por exemplo, o sistema de informações, a gestão integrada de bacias hidrográficas, o princípio do poluidor-pagador e a cobrança pelo uso da água, entre outros, desencadeando o debate sobre o gerenciamento de recursos hídricos em âmbito nacional2.

Além disso, vale referir também que no início da década de noventa se intensificou o debate internacional acerca da água. Primeiramente, como o evento preparatório à Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), houve a Conferência de Dublin, em 1991. Nesta, refere Barth, que se aprovou a Declaração de Dublin sobre Recursos Hídricos e Desenvolvimento Sustentável, destacando que:

1 GRANZIERA, op. cit., p. 121.

2 Destaca-se, ainda, como contribuição à formulação de uma política nacional de recursos hídricos, os encontros nacionais realizados pela Associação Brasileira de Recursos Hídricos-ABRH (em 1987, 1989 e 1991). HENKES, Silviana Lúcia. Histórico legal e institucional dos recursos hídricos no Brasil. p. 15. Disponível em:<http// www1.jus.com.Br/doutrina/texto.asp?id=4146> Acesso em: 27 maio 2003.

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A escassez e o desperdício da água doce representam séria e crescente ameaça ao desenvolvimento sustentável e à proteção do meio ambiente. A saúde e bem –estar do homem, a garantia de alimentos, o desenvolvimento industrial e o equilíbrio dos ecossistemas estarão sob risco se a gestão da água e do solo não se tornar realidade, na presente década, de forma bem mais efetiva do que tem sido no passado3.

Na seqüência, portanto, deste evento, o Brasil torna-se sede, pela primeira vez, de um importante evento internacional na área ambiental, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 1992. O Brasil, como parte dos países participantes deste evento promovido pela ONU, por sua vez, adotou a Agenda 21, que destinou um capítulo especial aos recursos hídricos, o Capítulo 18, no qual defende a criação de programas nacionais e internacionais para conservação e gestão das águas doces.

Assim, em âmbito internacional, destaca Petrella4 que desde a Conferência das Nações Unidas de Mar del Plata (em 1977), a primeira específica sobre recursos hídricos, os líderes mundiais estavam cientes da problemática da água. As duas décadas que se sucederam foram acompanhadas por uma intensificação de reuniões, conferências e fóruns internacionais acerca do tema. Segundo ressalta este autor, a Conferência da Rio-92 “realmente ajudou a reafirmar, na estrutura da Agenda 21, a necessidade urgente para uma política mundial da água”.

Em plano nacional, ainda que a discussão acerca da temática da tutela da água já estivesse avançado, principalmente após o advento da Constituição de 1988, tais eventos internacionais acarretaram recomendações em escala mundial e reforçaram ainda mais a necessidade de implementação de um sistema de gestão de recursos hídricos no país.

O período que se sucedeu foi de maturação destas idéias, especialmente, após a promulgação da Constituição de 1988 e o processo de redemocratização do país, que impulsionou a realização de medidas que concretizassem a instituição de políticas públicas em relação a gestão das águas, até então discutidas, nacional e internacionalmente. Entretanto, salienta Granziera5 que:

[...] embora já existisse a tendência de se estabelecer um gerenciamento sistemático para os recursos hídricos, não havia um sistema normativo que pudesse dar base legal a tais iniciativas. A gestão de recursos hídricos, nessa nova óptica, não estava contida no ordenamento jurídico brasileiro6.

Neste contexto, em que se fazia necessário a implementação de um sistema de gestão das águas no Brasil, adveio a Lei Federal nº. 9.433 de 1997, regulamentando o art. 21, inc. XIX da Constituição Federal, o qual prevê que compete exclusivamente à União “instituir o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direito de uso”.

3 BARTH, op. cit., p. 568-569.

4 PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água – Argumentos para um contrato mundial. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

5 GRANZIERA, op. cit., p. 121. 6 Idem, ibidem, p. 121.

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A regulamentação deste dispositivo constitucional, através da edição da Lei Federal nº. 9.433/97, conhecida como “Lei das Águas”, assim como as normas estaduais, editadas anteriormente a esta, incorporaram à ordem jurídica novos e importantes conceitos. A Lei estabelece a tutela jurídica da água sob uma nova ótica, representando uma reorientação da política do Estado brasileiro em relação à matéria, considerando ser consenso internacional as providências urgentes a serem tomadas em relação à proteção deste recurso. Em relação ao texto da Lei, afirma Rebouças7 que “proclama, com clareza, os princípios básicos praticados, hoje, em quase todos os países que avançaram na gestão integrada dos seus recursos hídricos”. No que tange a edição desta Lei, acrescenta Granziera que:

A legislação sobre águas, no plano federal, até a edição da Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, não fornecia os instrumentos necessários à administração dos recursos hídricos, no que se refere à proteção e a melhoria dos aspectos de qualidade e quantidade. Após anos de descaso, as medidas cabíveis para fazer frente à situação em que se encontravam as águas não mais se limitavam à aplicação dos preceitos do Código, cabendo a introdução de outras estruturas jurídicas e institucionais, por meio das quais se luta, hoje, visando proteger esse vital elemento da natureza. Era necessária uma nova ordem jurídica para a água8.

Desta feita, foi regulamentado o art. 21, inc. XIX da Constituição Federal, instituindo a Política Nacional de Recursos Hídricos e criando o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos no país. Haja vista a importância dos institutos compreendidos pela Lei nº 9.433/97, ressalta-se, aqui, que não será objeto de estudo deste trabalho todos os dispositivos previstos nesta norma, ou seja, todos aqueles referentes a Política Nacional de Recursos Hídricos, bem como o Sistema Nacional de Recursos Hídricos, mas será focado o regime de outorga de direito de uso da água.

Entretanto, deve-se ressaltar também que a Política Nacional de Recursos Hídricos, ou melhor, que a estrutura dos institutos que a compreendem estão inter-relacionados, agem, portanto, interligados em ações dependentes entre si. Assim, para adentrar-se na análise dos dispositivos previstos na Lei acerca do regime de outorga de direito de uso das águas, é necessário que se considere seus princípios básicos. Nessa ordem, sem o objetivo de aprofundar os comentários sobre tais princípios, seguem seus aspectos mais relevantes, concentrando-se naqueles que se relacionam de forma mais efetiva com o regime de outorga. 1.2 A POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS – ALGUNS ASPECTOS

A Política Nacional de Recursos Hídricos, instituída pela Lei 9.433/97, constituí-se de fundamentos, objetivos, diretrizes de ação e instrumentos. Assim, em relação à Política de Recursos Hídricos, pode-se dizer que os fundamentos são os alicerces sobre os quais ela está

7 REBOUÇAS, Aldo da Cunha. Proteção dos Recursos Hídricos. In: BENJAMIN, Antonio Herman. (Org.) Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. p. 265.

8 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. O Princípio “usuário-pagador” e os Recursos Hídricos. In: BENJAMIN, Antonio Herman. (Org.) Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. p. 675.

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estruturada. As diretrizes de ação e os instrumentos constituem os meios para, com base nos fundamentos, e a partir deles, atingirem-se os objetivos fixados9.

Os fundamentos encontram-se estabelecidos no art. 1º da Lei10. O inc. I deste dispositivo define a água, expressamente, como bem de domínio público, havendo, portanto, a recepção dos preceitos instituídos na Constituição Federal de 1988, os quais já previam a dominialidade pública da água. Portanto, a Lei 9.433/97 não só ratificou o dispositivo constitucional, como estabeleceu a publicização das águas como um de seus fundamentos, cabendo ao Poder Público a função de gestor deste bem11. Além disso, em seu inc. II, este artigo define a água como um recurso natural limitado, dotado de valor econômico, consagrando, portanto, o entendimento de esgotabilidade deste bem. Sabe-se que a água, embora seja um recurso natural renovável, é um recurso finito e devido a escassez, teve sua valoração econômica consagrada como um entendimento aceito universalmente.

No inc. III, o art. 1º, define que o uso prioritário dos recursos hídricos será o consumo humano (satisfação das primeiras necessidades da vida, como água para beber, preparo de alimentos e higiene) e a dessedentação de animais. O inc. IV, por sua vez, traz que a gestão de recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas. Considerando que a água possui diversas formas de utilização (como principais, cita-se: consumo humano, abastecimento público, agricultura, indústria, navegação, geração de energia elétrica), um dos fundamentos da Lei é a viabilização destes usos, tendo em vista a complexa cadeia que envolve os usuários e suas distintas e conflitantes necessidades. Em relação aos usos múltiplos e a priorização de usos, previstos na Lei, pode-se afirmar que “os dois fundamentos estão intimamente ligados e dizem respeito, basicamente, à tendência moderna de legislações nacionais e tratados internacionais de buscar um equilíbrio entre diversos tipos de usos da água, estabelecendo-se as prioridades a partir das necessidades sociais vigentes”12.

Desta feita, se diz que o princípio geral é proporcionar o uso múltiplo das águas, mas em situações de escassez haverá usos prioritários. Assim, a água para consumo humano constitui uso prioritário, e nem poderia ser diferente, pois o direito à água, enquanto bem essencial à vida, é direito fundamental. Portanto, a água, enquanto direito fundamental, deve

9 KETTELHUT, Júlio Thadeu Silva et al. Cobrança e outorga pelo uso da água. O Estado das Águas no Brasil-1999: perspectivas de gestão e informação de recursos hídricos. Agência Nacional de Energia Elétrica-ANEEL. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 1999. p. 22.

10 Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos: I - a água é um bem de domínio público; II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; III - em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais; IV - a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas; V - a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; VI - a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.

11 No que tange à propriedade privada da água, sabe-se que esta foi extinta com o advento da Constituição Federal de 1988, entretanto esta questão ainda gerava discussões. Em relação a isso, afirma GRANZIERA,

op. cit., p. 91, que: “Após a edição da Lei n°. 9.433/97, caíram por terra quaisquer dúvidas que pudessem

restar acerca da publicização dos recursos hídricos no Brasil. O art. 1º, inc. I, da Lei das Águas, tornou definitiva a condição pública das águas no Brasil, fixando que a água é bem de domínio público”.

12 SANTILLI, Juliana. A Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97) e sua implantação no Distrito Federal. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 6, n. 24, out/dez 2001, p. 149.

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ter seu acesso garantido, e a Lei assim o fez, garantindo, em situações de escassez, a satisfação das necessidades mínimas do homem.

Por fim, o inc. VI do art. 1º da Lei, estabeleceu como fundamento a descentralização da gestão dos recursos hídricos. A descentralização será realizada por bacia hidrográfica, proporcionando e incentivando a participação da sociedade. Desta forma, a Política Nacional de Recursos Hídricos, seguindo a tendência mundial, e o princípio já consagrado nas leis estaduais, adotou a bacia hidrográfica13 como unidade territorial para implementação da mesma, conforme se detém do inc. V do art. 1º da Lei. Segundo Rebouças14, a adoção da bacia hidrográfica como unidade de planejamento dos usos da água corresponde ao argumento de que “se tendo os limites da bacia como o que define o perímetro da área planejada, fica mais fácil fazer-se o confronto entre as disponibilidades e as demandas, essencial para o estabelecimento do balanço hídrico”.

Sobre o entendimento da descentralização estatuído como fundamento da Política de Recursos Hídricos, segundo Granziera, vislumbra-se sob dois aspectos:

[...] Primeiro, sob o prisma da participação da sociedade, como uma das características da Administração Pública contemporânea, na tomada de decisões. (...) A descentralização seria, nessa ordem de idéias, a democratização das decisões administrativas. A democracia administrativa constitui a base conceitual e legal da participação dos usuários nas decisões acerca da bacia hidrográfica. (...) A segunda forma de descentralização ocorre no gerenciamento em que se toma por base a bacia hidrográfica15 (Grifo nosso).

No que tange ao caráter participativo da gestão das águas previsto na Lei, esta estabeleceu que a gestão dos recursos hídricos não se realiza somente pelo Poder Público, devendo contar com a participação de usuários e organizações civis na gestão destes recursos. Assim, a participação “constitui o processo mediante o qual os usuários da água e os representantes de segmentos da sociedade civil participam do processo de tomada de decisão sobre investimentos, programas e campanhas que devem ser realizadas no espaço da bacia hidrográfica”16.

Ao disciplinar este dispositivo que trata do envolvimento participativo da sociedade civil e dos usuários no processo de gestão das águas, a Lei criou novas entidades, sem precedentes no ordenamento jurídico do país17. Entre estas entidades criadas pela Lei está o Comitê de Bacia Hidrográfica. Os Comitês de Bacia, conforme Graf18, são colegiados democráticos constituídos por representantes dos governos e da sociedade civil (compreendendo segmentos dos usuários e entidades não governamentais). Estes, por sua vez, possuem atribuições específicas na gestão da água, previstas na Lei 9.433/97, a qual prevê

13 Nos termos da Instrução Normativa nº. 4/2000/MMA, art. 2°, inc. IV bacia hidrográfica “é a área de drenagem de um curso d’água ou lago”.

14 REBOUÇAS, op. cit., p. 268-269. 15 GRANZIERA, op. cit., p. 155-156.

16 GARRIDO, Raymundo José Santos. Água, uma preocupação mundial. R. CEJ, Brasília , n. 12, p. 11.

17 CALASANS, Jorge Thierry et al. A Política Nacional de Recursos Hídricos: uma avaliação crítica. In: BENJAMIN, Antonio Herman. (Org.) Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. p. 585. 18 GRAF, op. cit., p. 67.

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também a área de atuação e composição deste órgão integrante do Sistema. Contudo, o que vale referir no contexto deste trabalho, é que no espaço de atuação dos Comitês, discutindo e decidindo os usos prioritários para cada bacia, é que se efetiva a participação da sociedade, e, portanto, a gestão participativa da água, fundamento da Lei. Assim, a participação da coletividade na tutela da água, é efetivamente oportunizada, na medida em que a Lei estabeleceu dentre seus preceitos, a gestão participativa, e mais do que isso, reservou dentro do sistema espaço para tal.

1.3 CONTROLE ADMINISTRATIVO DOS USOS DE RECURSOS HÍDRICOS Do exposto, depreende-se sobre quais fundamentos está alicerçada a Política Nacional de Recursos Hídricos. A partir disso, necessário se faz que se visualize quais são os objetivos desta política, passando pelas diretrizes da mesma, para que, finalmente, se chegue nos instrumentos necessários à concretização dos objetivos fixados pela política de recursos hídricos.

Dentre os objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos19 destacam-se aqueles previstos nos incs. I e II, do art. 2º da Lei, os quais prevêem “assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos” e “a utilização racional e integrada dos recursos hídricos (...)”. Combina-se à análise destes dispositivos, aquele previsto no inc. I do art. 3º da Lei, dentre as diretrizes de ação para implementação da Política de Recursos Hídricos20, o qual dispõe que “a gestão sistemática dos recursos hídricos, sem dissociação dos aspectos de quantidade e qualidade”.

Assim, percebe-se que o intuito da Lei 9.433/97, seja pelos seus objetivos, seja pelas diretrizes fixadas (sempre com base nos seus fundamentos), coaduna-se com a necessidade atual de assegurar a sustentabilidade dos recursos hídricos, estabelecendo limitações e restrições ao seu uso. Nesse sentido, se diz que:

19 “Art. 2º São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos: I - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos; II - a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável; III - a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais”.

20 “Art. 3º Constituem diretrizes gerais de ação para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos: I - a gestão sistemática dos recursos hídricos, sem dissociação dos aspectos de quantidade e qualidade; II - a adequação da gestão de recursos hídricos às diversidades físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do País; III - a integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental; IV - a articulação do planejamento de recursos hídricos com o dos setores usuários e com os planejamentos regional, estadual e nacional; V - a articulação da gestão de recursos hídricos com a do uso do solo; VI - a integração da gestão das bacias hidrográficas com a dos sistemas estuarinos e zonas costeiras”.

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[...] as diretrizes estão intimamente relacionadas com os fundamentos e objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos, orientada basicamente para a necessidade de assegurar às futuras gerações a disponibilidade dos recursos hídricos pela sua utilização atual de forma racional. A premissa básica é de que a água é necessária em todos os aspectos da vida, e que a escassez generalizada, a destruição gradual e o agravamento da poluição dos recursos hídricos exigem o planejamento e a gestão integrada desses recursos [...]21.

A Política Nacional de Recursos Hídricos orienta-se, portanto, essencialmente, no sentido de assegurar o acesso à água em quantidade e qualidade suficiente para as presentes e futuras gerações. Entretanto, a efetividade deste direito se viabiliza através de um mecanismo de controle, por parte do Poder Público, sobre os usos da água. O uso indiscriminado e sem controle dos recursos hídricos, e a conseqüente degradação deste recurso, causa prejuízos a todos, uma vez que todos necessitam deste bem escasso.

O atendimento da demanda de água deve considerar a disponibilidade restrita deste bem. Em função deste desequilíbrio, qual seja, o interesse (conflitante) de muitos em torno de um recurso escasso, se faz necessário o planejamento do uso da água. Na medida em que se planeja estes usos, se faz necessário também o controle dos mesmos, tendo em vista que a utilização inadequada da água pode comprometer os aspectos de qualidade e quantidade deste bem, e, conseqüentemente, o seu uso atual e futuro.

No que tange ao exercício deste controle, no âmbito da Política de Recursos Hídricos, pode-se dizer que:

[...] formulam-se políticas de recursos hídricos, em que o planejamento tem por objeto básico ordenar a utilização da água, evitando ou minimizando os conflitos de interesse. O outro sustentáculo da política- controle administrativo da utilização das águas- refere-se ao exercício de atividades administrativas, com vista em controlar o uso, e assim, evitar danos pela má utilização da água, que possam comprometê-la, para as atuais e futuras gerações22.

Desta feita, o controle do uso dos recursos hídricos está intrinsecamente relacionado com a escassez deste bem. A política de recursos hídricos, conforme se destacou anteriormente, estabelece dentre seus objetivos, assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em quantidade e qualidade suficientes. Portanto, a estrutura desta política está voltada, essencialmente, para o cumprimento deste objetivo, que, por sua vez, depende do controle dos usos deste recurso natural limitado. A garantia da disponibilidade de água em quantidade e qualidade é condição indispensável à efetividade do direito à vida.

Assim, o planejamento e o controle das águas, são componentes da política de recursos hídricos que se completam. Uma vez que a política de recursos hídricos se estrutura visando a sustentabilidade hídrica, os institutos que a constitui restariam inócuos se não

21 SANTILLI, op. cit., p. 153-154. 22 GRANZIERA, op. cit., p. 169.

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houvesse um mecanismo de controle, por parte do Poder Público, do quanto e como este bem está sendo utilizado. Nesse sentido pode-se dizer que:

Enquanto as águas não ensejavam a existência de um conflito de interesse entre os diversos tipos de uso, não havia por que estabelecer qualquer espécie de política. Da mesma forma, enquanto não havia ameaça de poluição, escassez e comprometimento da utilização, não havia razão para efetuar o controle. Somente no momento em que se vislumbrou esse risco, em decorrência de um uso excessivo e sem planejamento, é que veio a lume a necessidade de estabelecer regras para planejamento e controle do uso da água 23.

Neste contexto, à medida que os recursos hídricos passam a ser considerados bem escasso e passível de valoração econômica, o instrumento da Política de Recursos Hídricos, pelo qual se realiza o controle dos usos da água, se reveste de grande importância para tutela deste bem.

1.4 A OUTORGA COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE DOS USOS DOS RECURSOS HÍDRICOS:

A outorga dos direitos de uso de recursos hídricos é o meio de controle dos usos da água. Este instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos está previsto no inc. III do art. 5º da Lei24. A outorga visa garantir a efetividade do direito de aceso à água, conforme se depreende do art. 11 da Lei, quando diz que: “o regime de outorga de direitos de uso de recursos hídricos tem como objetivo assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água”.

Em que pese ser o acesso à água direito de todos, constitucionalmente previsto, e o regime de outorga objetivar o efetivo exercício deste direito, é importante que se aborde as características especiais inerentes ao ato da outorga de direitos de uso de recursos hídricos e o papel do Poder Público na efetivação deste ato.

O conceito de outorga de direito de uso da água, de acordo com Granziera, pode ser definido como “o instrumento pelo qual o poder público atribui ao interessado, público ou privado, o direito de utilizar privativamente o recurso hídrico”25. Já Bessa Antunes, a definiu como “instrumento jurídico administrativo que foi instituído pelo legislador ordinário para definir as condições pelas quais o usuário dos recursos hídricos poderá captá-lo ou nele lançar efluentes, dentro dos critérios técnicos que assegurem a sustentabilidade do recurso”26.

23 Idem, ibidem, p. 173.

24 “Art. 5º São instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos: I - os Planos de Recursos Hídricos; II - o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes da água; III - a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos; IV - a cobrança pelo uso de recursos hídricos; V - a compensação a municípios; VI - o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos (Grifo nosso)”.

25 GRANZIERA, op. cit., p. 180. 26 ANTUNES, op. cit., p. 446.

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Primeiramente, da análise deste instrumento, vale referir que o Código de Águas já havia regulamentado o instituto da outorga27, entretanto com o advento da Lei 9.433/97, “foi revisto o instituto, assumindo este uma nova roupagem, e deixando de ser apenas ato ou contrato administrativo, mas também e principalmente um importante instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos, voltado à proteção desse recurso”28.

Neste contexto, vale lembrar que, a água como bem ambiental, constitucionalmente previsto, é bem de uso comum e essencial à sadia qualidade de vida, derivando desta condição o fato de que todos têm direito de usar (dentro dos limites constitucionais) este bem. Haja vista o interesse coletivo inerente ao bem de uso comum e fundado na sustentabilidade deste recurso, a utilização da água está condicionada a limites a serem observados pela coletividade e Poder Público.

Desta forma, na medida em que todos têm direito de uso da água, o uso privativo deste bem, conduz à necessidade de outorga deste direito, pois o Poder Público, na qualidade de poder concedente do ato de outorga (em vista do regime de dominialidade e, conseqüente, poder-dever de gestão da água), o fará segundo o interesse coletivo, respeitando, assim, a natureza de bem de uso comum inerente à água.

Nessa ordem de idéias, pode-se dizer que a indústria que utiliza o recurso hídrico para diluição de efluentes, ou o cidadão que utiliza a água tratada que recebe em sua casa (abastecimento público), por exemplo, ambos estão fazendo uso privativo da água. E, na medida em que é bem de uso comum, estão, em decorrência, exercendo seu direito de uso deste bem. Entretanto, exatamente por tratar-se de bem de uso comum, que caberá ao Poder Público, na qualidade de gestor deste bem, controlar o uso privativo, impondo limites e condições, através do instrumento da outorga, a fim de que todos possam exercer o seu direito. Convém salientar que o uso privativo a que os recursos hídricos são passíveis, não significa que aquele que o faz, detém a propriedade privada deste bem, extinta desde o advento da Constituição de 1988, conforme já referido. Nesse sentido:

A água é passível de uso privado, seja como insumo para produção, seja para uso doméstico (...). Mas o recurso hídrico não é passível de apropriação privada. O uso da água é realizado com base em uma outorga, isto é uma concessão de uso, de um bem que permanece público29.

Assim, na medida em que a água é considerada insumo para produção, isto é o processo produtivo necessita dos recursos hídricos como matéria-prima básica, a outorga tem

27 O instituto da outorga estava regulamentado no Código de Águas, em seus arts. 43 e seguintes. No entanto, de acordo com GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Outorga de Direitos de uso da água: Aspectos Legais. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 7, n. 26, abr/jun 2002, “além da questão do controle do balanço hídrico e dos potenciais hidráulicos, não havia no Código de Águas, uma preocupação sistemática com o controle do uso em razão da qualidade da água. O Código não inclui, no capítulo da outorga a relação quantidade-qualidade que, hoje, entendida como indissociável, integra a Lei da Águas”. 28 Idem, ibidem, p.154.

29 GOLDENSTEIN, Stela. A cobrança como um instrumento de gestão ambiental. THAME, Antonio Carlos de Mendes (Org.) A cobrança pelo uso da água. São Paulo: IQUAL, Instituto de Qualificação e Editoração Ltda, 2000. p. 169.

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valor econômico para quem a recebe, considerando que oferece garantia ao bem escasso30. Segundo aponta Kelman:

A outorga garante ao usuário o direito de uso da água. Cabe ao poder outorgante (Governo Federal, Estados ou Distrito Federal) examinar cada pedido de outorga e verificar se existe água suficiente, considerando-se os aspectos quantitativos e qualitativos, para que o pedido possa ser atendido. Uma vez concedida, a outorga de direito de uso da água, protege o usuário contra o uso predador de outros usuários que não possuam a outorga. Em situações de escassez, seja para captação, seja para diluição de efluentes, os não -outorgados deverão ser reprimidos para garantir a utilização da água e, conseqüentemente os investimentos daqueles que seguiram o procedimento legal31.

Desta forma, a concessão da outorga pelo Poder Público, necessita que este avalie o pedido considerando a quantidade e a qualidade do recurso, na medida em que “são características indissociáveis da água e vão condicionar sua utilização”. Vale acrescentar ainda, no que tange ao condicionamento da utilização da água que “os diferentes usos da água requerem diferentes níveis de qualidade, sendo a água potável para consumo humano a que exige maior qualidade. Assim, em função da qualidade, a água poderá ou não ser utilizada para dado uso”32.

A Lei nº 9.433/97 definiu os usos que se sujeitam à outorga pelo Poder Público em seu art. 12, bem como as hipóteses de dispensa da mesma33. Em particular, no que tange a análise deste dispositivo, vale referir que as hipóteses referidas neste não devem ser consideradas taxativas, ou seja, não se esgotam naquelas possibilidades apontadas naquele dispositivo legal. Nesse sentido, entende Paciornik34 quando diz que o próprio inc. V do art. 12 prescreve literalmente a necessidade de outorga para “outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente em um corpo de água”, visando, assim, à garantia da sustentabilidade do recurso. Desta forma, outros usos de recursos hídricos, mesmo que não

30 KELMAN, Jerson. Outorga e cobrança de recursos hídricos. THAME, Antonio Carlos de Mendes (Org.) A cobrança pelo uso da água. São Paulo: IQUAL, Instituto de Qualificação e Editoração Ltda, 2000. p 96. 31 Idem, ibidem, p. 95.

32 CONEJO, João Gilberto Lotufo. A outorga de usos da água como instrumento de gerenciamento dos Recursos Hídricos. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. 1993, v. 27, n. 2, p. 30, abr/jun 1993.

33 “Art. 12. Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público os direitos dos seguintes usos de recursos hídricos: I - derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de água para consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo produtivo; II - extração de água de aqüífero subterrâneo para consumo final ou insumo de processo produtivo; III - lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final; IV - aproveitamento dos potenciais hidrelétricos; V - outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente em um corpo de água. § 1º Independem de outorga pelo Poder Público, conforme definido em regulamento: I - o uso de recursos hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais, distribuídos no meio rural; II - as derivações, captações e lançamentos considerados insignificantes; III - as acumulações de volumes de água consideradas insignificantes. § 2º A outorga e a utilização de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica estará subordinada ao Plano Nacional de Recursos Hídricos, aprovado na forma do disposto no inc. VIII do art. 35 desta Lei, obedecida a disciplina da legislação setorial específica.”

34 PACIORNIK, Joel Ilan. Tutela Administrativa das águas. In: FREITAS, Vladimir Passos de. (Coord.) Águas Aspectos Jurídicos e Ambientais. Curitiba: Juruá, 2000. p. 120.

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previstos no art. 12, comprometendo os aspectos de qualidade e quantidade da água, estão também sujeitos à outorga.

Assim, considerando os usos dos recursos hídricos a que se sujeitam à outorga, e sendo a efetivação desta remetida ao Poder Público, é importante que se refira a natureza jurídica deste instrumento. Primeiramente, em vista do regime de dominialidade pública da água, e o conseqüente poder-dever de gerir este bem, a efetivação dos atos de outorga é remetida ao Poder Público. A Lei, em seu art. 14, refere que a outorga se efetivará por ato da autoridade competente, entretanto não especificou que tipo de ato a ser emitido. Todavia, norma posterior de regulamentação o fez, a Lei nº. 9.984/2000, em seu art. 4º, inc. IV35, fixa a autorização para designar o instrumento jurídico da outorga.

Em relação à outorga de direito de uso de recursos hídricos, convém salientar que a designação de autorização para determinar o instrumento jurídico, pelo qual esta se efetiva, não deve ser compreendida no mesmo sentido do aplicado ao Direito Administrativo. Isso por que, o ato pelo qual a outorga se efetiva, previsto na Lei, é instrumento que não deve ser entendido no mesmo sentido de autorização como espécie de ato administrativo36. A discricionariedade37 a que esta espécie de ato administrativo está submetida não condiz com aquela relativa ao ato de outorga de direito de uso de recursos hídricos.

Segundo entendimento de Granziera, “o ato a que se refere o art. 14 da Lei nº. 9.433/97 é formalidade por meio do qual o detentor do domínio da água manifesta-se favoravelmente sobre certo uso, impondo-se os respectivos limites e condições (...)”38. Entende a autora, que a denominação de autorização para o ato da outorga de usos de recursos hídricos não é adequada, afirmando:

Trata-se de uma figura sui generis do direito administrativo, pelas suas especialidades e diversidade de natureza, em função da finalidade de usos. Mais útil e claro seria denominar o instituto simplesmentecomo ‘outorga de direito de uso de

35 “Art. 4º. A atuação da ANA obedecerá aos fundamentos, objetivos, diretrizes e instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos e será desenvolvida em articulação com órgãos e entidades públicas e privadas integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, cabendo-lhe: IV – outorgar, por intermédio de autorização, o direito de uso de recursos hídricos em corpos de água de domínio da União, observado o disposto nos arts. 5o, 6o, 7o e 8o (Grifo nosso).”

36 GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 79. O conceito do ato administrativo de autorização, de acordo com a doutrina clássica do Direito Administrativo, pode assim ser definido: “é ato administrativo discricionário mediante o qual a Administração Pública outorga a alguém, que para isso interesse, o direito de realizar certa atividade material que sem ela lhe seria vedada”.

37 Idem, ibidem, p. 89. De acordo com o autor: “Discricionários são os atos administrativos praticados pela Administração Pública conforme um dos comportamentos que a lei prescreve. Assim, cabe à Administração Pública escolher dito comportamento. Essa escolha se faz pelo critério de conveniência e oportunidade, ou seja, de mérito. (...). O ato administrativo discricionário, portanto, além de conveniente, deve ser oportuno. A oportunidade diz respeito com o momento da prática do ato. A conveniência refere-se à utilidade do ato. A oportunidade e a conveniência do ato administrativo compõe o binômio chamado pela doutrina de mérito. Mérito é a indagação da oportunidade e conveniência do ato; é a zona franca em que a vontade do agente decide sobre as soluções mais adequadas ao interesse público; é a sede do poder discricionário do administrador, que se orienta por critérios de utilidade (...).”

38 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito de Águas: disciplina jurídica das águas doces. São Paulo: Atlas, 2001. p. 194.

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recursos hídricos’, sem a preocupação de enquadrá-la em institutos outros que, de resto, já ensejam uma conceituação tormentosa [...]39.

Assim, conforme entendimento da autora, se diz que a outorga de direito de uso de recursos hídricos se trata de figura sui generis do Direito Administrativo, na medida em que da análise deste instrumento, independentemente do nome fixado ao ato pelo qual este é efetivado, o que de mais importante há em relação a este são os seus efeitos. Retome-se, mais uma vez, qual o intuito do instrumento da outorga de direito de uso de recursos hídricos, qual a finalidade de sua aplicação, ou seja o controle dos usos destes recursos, visando a garantia do direito de acesso à água. O interesse público fundamenta o ato administrativo, seja qual for a espécie, e a discricionariedade de determinados atos vincula-se sempre a satisfação deste interesse.

Entretanto, em função da sua finalidade, a definição do interesse público na efetivação do ato de outorga de uso de recursos hídricos, se dá de forma diversa, uma vez que está pautada na gestão participativa destes recursos, conforme se depreenderá. Desta feita, o fato do ato de outorga se efetivar por meio de autorização não deixa ao poder outorgante uma margem absoluta de discricionariedade40. A discricionariedade da outorga é reduzida, uma vez que está vinculada àqueles preceitos instituídos pela política de recursos hídricos, entre os quais prevê a gestão participativa e descentralizada destes.

1.5 A OUTORGA DE DIREITOS DE USO DE RECURSOS HÍDRICOS FUNDAMENTADA NA GESTÃO PARTICIPATIVA

Nesse contexto, adentra-se na questão de maior importância no que se refere às decisões sobre a outorga de direitos de usos de recursos hídricos, qual seja, aquela referente à definição das prioridades para outorga. As definições de prioridades para outorga, por sua vez, estão previstas nos Planos de Recursos Hídricos. Assim, a efetivação do ato de outorga pelo Poder Público, atendendo ao princípio da gestão participativa e descentralizada das águas, fundamento da política de recursos hídricos, está condicionada às prioridades de uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos, conforme prevê o art. 13 da Lei.41 Estes Planos estão previstos dentre os instrumentos da política, e em relação a este instrumento, Rebouças42 afirma que:

O primeiro instrumento da lei federal nº 9.433/97 são os Planos de Recursos

Hídricos –Federal e para cada uma das unidades federadas –que são o documento

programático para o setor, considerando o espaço da bacia hidrográfica considerada unidade básica de gerenciamento de recursos hídricos. Trata-se não só de uma atualização das informações disponíveis que influenciam a tomada de decisões na bacia hidrográfica como unidade básica de planejamento, mas também procura

39 Idem, ibidem, p. 201-202.

40 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Recursos Hídricos Direito Brasileiro e Internacional. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p. 67

41 “Art. 13. Toda outorga estará condicionada às prioridades de uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos e deverá respeitar a classe em que o corpo de água estiver enquadrado e a manutenção de condições adequadas ao transporte aquaviário, quando for o caso. Parágrafo único. A outorga de uso dos recursos hídricos deverá preservar o uso múltiplo destes.”

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definir a repartição da gota d’água disponível entre diferentes usuários, considerando-se sempre um uso cada vez mais eficiente.

Sob esta perspectiva, os Planos de Recursos Hídricos deverão incluir no seu conteúdo, dentre outros elementos, as prioridades para outorga de direitos de uso de recursos hídricos, conforme prevê o inc. VIII, art. 7º da Lei43. Conforme se referiu anteriormente, é na instância da bacia hidrográfica, tomada como unidade básica de planejamento, que os instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos são aplicados, efetivando, assim, a gestão integrada dos recursos hídricos.

Desta feita, os Planos de Recursos Hídricos são elaborados por bacia hidrográfica, e a concessão da outorga se efetiva com base nestes Planos44. O Plano de Recursos Hídricos deve conter o enquadramento dos corpos de água em classes e as prioridades para outorga de direito de uso, sendo a outorga concedida com base nos estudos realizados sobre disponibilidade hídrica da bacia face às metas estabelecidas pelo enquadramento45.

Tendo em vista a análise da outorga, o que de mais relevante deve ser referido em relação aos Planos de Bacia Hidrográfica, é que a aprovação destes, incluindo as prioridades para outorga, cabe ao Comitê de Bacia Hidrográfica. Na medida que o Comitê é formado por representantes do governo, dos usuários da água e da sociedade civil organizada, e posto que é fórum de decisão no âmbito de cada bacia hidrográfica, deve haver uma negociação entre os membros do Comitê de Bacia Hidrográfica na definição das prioridades para outorga.

A definição das prioridades, por sua vez, há de verificar e definir o interesse público em tela, considerando que fundamentará as decisões administrativas sobre a outorga. Entretanto, como já referido no decorrer deste trabalho, sabe-se que, em matéria de água, a definição de interesse nos usos deste bem, não é tão simples. Nesse sentido, seguindo a argumentação de Conejo, pode-se dizer que:

A água, indispensável à vida, é também utilizada para múltiplas finalidades decorrentes de atividades humanas. Esses múltiplos usos são, muitas vezes, concorrentes ou conflitantes entre si, em face da escassez do recurso hídrico ou da inadequabilidade de sua qualidade. Nesse caso, é requerido que se estabeleça uma hierarquização de prioridades dos vários usos, permitindo assim a solução de conflitos entre usos e usuários 46 .

43 Art. 7º Os Planos de Recursos Hídricos são planos de longo prazo, com horizonte de planejamento compatível com o período de implantação de seus programas e projetos e terão o seguinte conteúdo mínimo: VIII - prioridades para outorga de direitos de uso de recursos hídricos;

44 BARTH, op. cit., p. 576. A elaboração dos Planos de Recursos Hídricos compete às Agências de Água, órgão integrante do Sistema que exerce a função de secretaria executiva do respectivo Comitê de Bacia Hidrográfica. O art. 44, inc. X do da Lei nº. 9.433/97, assim prevê: Compete às Agências de Água, no âmbito de sua área de atuação: X - elaborar o Plano de Recursos Hídricos para apreciação do respectivo Comitê de Bacia Hidrográfica;

45 CALASANS, op. cit., p. 589.

46 CONEJO, op. cit., p. 30. A outorga de usos da água como instrumento de gerenciamento dos Recursos Hídricos.

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Estas observações acima citadas pontuam que a hierarquização de prioridades dos usos dos recursos hídricos, a partir das negociações entre os membros de um Comitê de Bacia Hidrográfica, em vista dos benefícios sociais gerados, deve ser definida de forma que melhor atenda o interesse coletivo, e para isso, os interesses envolvidos devem ser relativizados. Sob este ponto Granziera cita o seguinte exemplo:

[...] em certos casos, o uso outorgado é facultado a uma determinada pessoa, como, por exemplo, uma companhia concessionária de serviços de energia elétrica, ou de abastecimento. Se se tratar de empresa privada, essa atividade, que é de interesse público, tem por objetivo final a obtenção do lucro. Por outro lado, a produção de energia elétrica e a distribuição de água potável constituem serviços essenciais a toda comunidade, que de tais serviços depende para desenvolver suas diversas atividades. [...] O interesse imediato, nesse caso, pode ser particular, mas a finalidade da utilização é pública. Isso corresponderá a um peso maior na decisão sobre as prioridades da outorga, no Plano de Bacia Hidrográfica, quando da sua aprovação pelo respectivo Comitê e também da decisão administrativa sobre a matéria47.

Logo, quando da aprovação dos Planos de Recursos Hídricos, caberá aos membros do Comitê a negociação, a fim de minimizar os conflitos existentes e definir aqueles interesses que entendam prioritários, em proveito da maioria.

Como já se referiu anteriormente, a Lei nº. 9.433/97, criou mecanismos institucionais de participação da coletividade, desta feita, aqueles que participam do Comitê, discutem e aprovam os usos prioritários para cada bacia. Assim, não só Poder Público, mas a sociedade, se manifesta ao aprovar o plano de bacia hidrográfica, e a concessão da outorga, por sua vez, deve estar de acordo com as diretrizes previstas nesta fase. Uma vez que a definição das prioridades para outorga advém de um processo de negociação, pautado na gestão participativa dos recursos hídricos, e a efetivação desta estar adstrita a estas prioridades definidas, conforme prevê o art. 13 da Lei, pode-se dizer que a discricionariedade do Poder Público na concessão da outorga fica reduzida em função disso. Daí decorre a afirmativa anterior de ser a definição das prioridades para outorga a questão de maior relevância em relação às decisões administrativas sobre este instrumento, uma vez que estão pautadas nos interesses que a própria coletividade definiu como prioritários.

Em especial, no que tange a definição de prioridades para outorga, em consonância com o poder discricionário da Administração para concedê-la, em cada caso concreto, afirma Granziera que “ficou reduzida a discricionariedade da Administração para conceder a outorga, pois deve o administrador ater-se às prioridades estabelecidas no plano. Uma vez observadas essas prioridades, mantida está a discricionariedade relativa a cada caso”48. Considerando-se, assim, a discricionariedade restante, é necessário ressaltar que a decisão deve pautar-se na conveniência e oportunidade, visando sempre à satisfação do interesse público, conforme conotação do poder discricionário, já referido anteriormente.

47 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Outorga de direitos de uso da água: Aspectos Legais. Revista de Direito Ambiental, v. 7, n. 26, p. 155-156, abr/jun 2002.

48 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito de Águas: disciplina jurídica das águas doces. São Paulo: Atlas, 2001. p. 204.

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Entretanto, em relação às águas, não há como definir o interesse público de forma única, face aos diversos interesses envolvidos nos usos dos recursos hídricos. Nesse sentido, pode-se dizer que:

[...] não há um único interesse público em vigor. A questão é muito mais complexa, à medida que há vários interesses originados dos diferentes segmentos da sociedade, como os diversos tipos de usuários, cada qual com suas necessidades específicas sobre a água e também da população em geral, no sentido de interesse difuso. Nesse cenário, muitos interesses são conflitantes entre si e ensejam uma negociação, a ser conduzida no âmbito dos Sistemas de Gerenciamento de Recursos Hídricos e dos quais devem vir a lume as decisões refletindo o desejo da maioria49.

Assim, à medida que a Lei estabelece mecanismos institucionais que proporcionam a participação desses interessados, e a negociação entre eles permite que suas decisões reflitam o interesse da maioria, o interesse público em tela se torna mais definido no momento da concessão ou não da outorga, no caso concreto. Afinal, as decisões advindas dos Comitês é que fundamentam os atos administrativos sob competência do Poder Público.

Ainda acerca da discricionariedade, vale referir que, em momento anterior a instituição da política e do sistema de gerenciamento de recursos hídricos, segundo Granziera:

Cabia à autoridade administrativa a decisão, mas não havia parâmetros advindos de um processo de negociação estruturado que a pautassem, seja para articular-se politicamente, seja para estabelecer o espaço considerado na decisão final, mas apenas princípios genéricos que poderiam ser interpretados de várias formas50.

Desta feita, no momento em que a Lei estabeleceu estes parâmetros, como o da decisão administrativa estar pautada em um processo de negociação e delimitada no espaço da bacia hidrográfica, a definição do interesse coletivo em tela se dá de forma mais objetiva.

O princípio norteador do regime de outorga é assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos e o efetivo exercício dos diretos de acesso à água, conforme prevê o art. 11 da Lei nº. 9.433/97, referido anteriormente. Nesta ordem, portanto, a decisão in casu pelo poder concedente deve estar vinculada, essencialmente, a este objetivo. Assim, pode-se dizer que “esta norma vincula a ação do governo, que se vê impedido de autorizar os usos que agridam a qualidade e a quantidade das águas e impossibilitando de agir sem eqüidade ao possibilitar acesso ao recurso”51.

49 Idem, ibidem, p. 117.

50 Idem, ibidem, p. 189.

51 ALMEIDA, Caroline Corrêa de. Outorga dos direitos de uso dos recursos hídricos. p. 3. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3680>. Acesso em: 29 maio 2003.

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1.6 LIMITES JURÍDICOS DA OUTORGA DE DIREITO DE USO DE RECURSOS HÍDRICOS

Da análise do instrumento da outorga, outro aspecto relevante a ser referido adstrito a este ato, é a questão relativa a demanda frente à disponibilidade dos recursos hídricos. A água é um recurso cuja disponibilidade é a aleatória, não sendo possível se precisar o quantum disponível em certo período e local52. Nesse sentido, afirma Kelman53 que “um grande complicador no processo de emissão de outorgas tem origem no fato de que o conceito de ‘volume outorgável’ admite diferentes formulações por que a vazão fluvial é uma variável aleatória, e não uma constante”.

Diante da inconstância da disponibilidade hídrica, se diz que os outorgados não têm direito adquirido a que o Poder Público lhes forneça, ao conceder a outorga, o quantum de água indicado. E, além disso, pode o poder outorgante, desde de que motivadamente, modificar a outorga, de acordo com o interesse público54.

Assim, pode-se dizer que o direito de uso de recursos hídricos, efetivado pela outorga, não consagra o direito imutável a uma determinada quantidade de água pelo outorgado. E nem poderia ser diferente, pois na ocorrência de qualquer fator externo a outorga, que afete a sustentabilidade hídrica, se necessário o for, o Poder Público deve alterar a autorização anteriormente deferida, visando o interesse coletivo. Além disso, assim como a outorga não consagra o direito imutável ao quantum outorgado, também não consagra que aquele, uma vez autorizado ao uso do recurso hídrico, durante um período determinado, o faça durante todo esse período. O art. 16 da Lei55 prevê o prazo não excedente a trinta e cinco anos para outorga, entretanto não significa que a sua vigência seja definitiva durante todo o prazo estabelecido na autorização.

Desta feita, o art. 15 da Lei56, por sua vez, prevê as hipóteses em que a outorga pode ser suspensa, total ou parcialmente, em definitivo ou por prazo determinado. Assim, a Lei estabeleceu quais as hipóteses em que a vigência da outorga de direito de uso de recursos hídricos deve ser suspensa. Na medida em que este instrumento visa assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água, na ocorrência de qualquer circunstância

52 Idem, ibidem, p. 4.

53 KELMAN, op. cit., p. 96. 54 MACHADO, op. cit., p. 60.

55 “Art. 16 Toda outorga de direitos de uso de recursos hídricos far-se-á por prazo não excedente a trinta e cinco anos, renovável.”

56 “Art. 15. A outorga de direito de uso de recursos hídricos poderá ser suspensa parcial ou totalmente, em definitivo ou por prazo determinado, nas seguintes circunstâncias: I - não cumprimento pelo outorgado dos termos da outorga; II - ausência de uso por três anos consecutivos; III - necessidade premente de água para atender a situações de calamidade, inclusive as decorrentes de condições climáticas adversas; IV - necessidade de se prevenir ou reverter grave degradação ambiental; V - necessidade de se atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não se disponha de fontes alternativas; VI - necessidade de serem mantidas as características de navegabilidade do corpo de água.”

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superveniente que ensejar dificuldades ao Poder Público à garantia desta sustentabilidade, cabível será a suspensão. Em relação a suspensão da outorga pelo poder concedente, acrescenta Granziera que:

[...] uma vez prevista legalmente as hipóteses de inconveniência e inoportunidade para que se dê continuidade à outorga, conclui-se que a discrionariedade do administrador cinge-se ao teor da suspensão. E, com base no princípio da motivação, deverá estabelecer a relação de causa-efeito entre ocorrência e suspensão da outorga57.

Assim, o Poder Público, com base nas hipóteses previstas na Lei deve suspender a vigência da outorga, devendo motivar o ato de suspensão. O art. 15, refere, primeiramente, aquelas hipóteses de suspensão pelo não cumprimento dos termos da outorga por quem a recebe. Pode-se referir como condição de vigência da outorga, por exemplo, segundo Leme Machado58, a transmissão regular de informações por parte dos outorgados sobre a quantidade e a qualidade das águas captadas, derivadas ou aproveitadas e os lançamentos efetuados. Assim, aquele que autorizado a utilizar o recurso hídrico, não o fizer nos termos da outorga, ensejará a suspensão da mesma. Os casos de não cumprimento de termos da outorga por aquele que a recebe, e a conseqüente suspensão desta, decorre da necessidade do controle dos usos dos recursos hídricos, na medida em que a mesma autoridade que concedeu a outorga tem o poder-dever de fiscalizar a efetiva utilização do recurso hídrico.59 Na medida em que a finalidade do controle é assegurar a sustentabilidade hídrica, e em decorrência disso, são estabelecidas condições para o uso dos recursos hídricos, o descumprimento destas condições pode comprometer seus aspectos de qualidade e quantidade, devendo assim ser suspenso.

O art. 15 refere ainda, circunstâncias supervenientes, não presentes no momento da emissão da outorga, que não são de responsabilidade do outorgado ou do Poder Público. Contudo, em razão do interesse coletivo, se faz necessária a suspensão. Conforme referido, o mecanismo de controle de uso dos recursos hídricos, efetivado pelo instrumento da outorga, visa assegurar a sustentabilidade hídrica. Portanto, se aquele uso anteriormente autorizado, por ventura, afete os aspectos de quantidade e qualidade dos recursos hídricos, ensejando dificuldades ao Poder Público à garantia desta sustentabilidade, cabível será a suspensão. A vigência da outorga está, portanto, limitada ao interesse coletivo, e, assim, segundo Leme Machado60, a sua suspensão não tem como conseqüência direito à indenização por parte do outorgado. A vigência da outorga não está condicionada tão somente ao atendimento dos aspectos legais, o que a condiciona é a disponibilidade do recurso, considerando a sua variabilidade natural. Assim, a medida que o instrumento efetiva o exercício do direito de uso dos recursos hídricos, este direito deve ser exercido no limite de sustentabiliade do recurso natural.

Vale referir, também, que uma das hipóteses de suspensão se diz com a necessidade de atender a usos prioritários. Nesta questão, retoma-se um dos fundamentos da política de

57 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito de Águas: disciplina jurídica das águas doces. São Paulo: Atlas, 2001. p. 202.

58 MACHADO, op. cit., p. 71. 59 GRANZIERA, op. cit., p. 203. 60 MACHADO, op. cit., p. 72.

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recursos hídricos, anteriormente referido, o qual dispõe que em situações de escassez o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e dessedentação de animais (art.1º, inc. III). Em situações de escassez, portanto, serão priorizados tais usos, ensejando na suspensão da outorga de direito de uso do recurso. Esta suspensão, pautada no uso prioritário da água para consumo humano, fundamento da Lei, em última análise pauta-se na garantia do direito à água, enquanto bem indispensável à vida.

E, ainda, da análise dos dispositivos da Lei acerca do instrumento da outorga, é importante salientar o que dispôs a mesma acerca da inalienabilidade61 da água. O Poder Público, ao conceder a outorga de direito de uso dos recursos hídricos, o faz não acarretando na alienação daquele volume outorgado, conforme prevê o art. 18, quando diz que “a outorga não implica a alienação parcial das águas que são inalienáveis, mas o simples direito de uso.” Assim, o dispositivo da Lei, coaduna-se com o entendimento básico de que a água, como bem ambiental, prevista constitucionalmente, é bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, não sendo passível de alienação. Sob esta ótica, Fiorillo afirma que:

O bem ambiental, conforme explica o art. 225 da Constituição Federal, “é de uso comum”, ou seja, ninguém pode estabelecer relação jurídica com bem ambiental que venha a implicar a possibilidade do exercício de prerrogativas individuais ou mesmo coletivas (...), além do direito de usar o bem ambiental.62

Assim, aquele que exerce o direito de uso de recursos hídricos, através do instrumento da outorga, está exercendo o direito de uso da água. O uso privativo deste bem é tão somente uso, pois a água não é passível de apropriação.

Desta feita, pode-se dizer que o controle dos usos da água, efetivado pela outorga de direito de uso de recursos hídricos, visa, precisamente, assegurar os usos adequados deste recurso como bem comum. O Poder Público, na qualidade de gestor deste bem, ao efetivar o instrumento da outorga, deve o fazer em conformidade com a Carta de 1988, a qual define a água como bem de uso comum e essencial à sadia qualidade de vida.

Por fim, destaca-se que, no espaço aqui proposto, a análise sobre o instrumento da outorga se deu a respeito do conteúdo da Lei, ou seja, com base nos dispositivos que regulam a outorga de direito de uso de recursos hídricos, demonstrando o intuito deste instrumento. Contudo, a sua aplicabilidade está inserida numa adequação da estrutura administrativa pública às inovações da Lei, determinando a efetividade (ou não) dos dispositivos que regulam este instrumento.

Nesse sentido, a aplicação do instrumento da outorga insere-se na implementação de uma política pública descentralizada de gestão das águas, que por sua vez acarreta em uma adequação da estrutura administrativa do Estado. Trata-se aqui de uma inovação introduzida na tradição administrativa brasileira, uma vez que cria novos tipos de organização para a gestão compartilhada do uso da água, adequando a Administração Pública no sentido de capacitá-la à efetivar este modelo de gestão das águas. Trata-se, sobretudo, de uma adequação

61 MEDAUAR, op. cit., p. 288. De acordo com a autora, “inalienável é bem de que seu titular não pode dispor. Inalienabilidade significa, então, a qualidade do bem que não pode ser vendido, doado, transferido, etc.” 62 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco.Águas no Código Civil (Lei 10.406/02). In: BENJAMIN, Antonio

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no intuito de propiciar a efetividade daqueles princípios previstos na norma, dentre os quais estabelece a gestão descentralizada e participativa das águas.

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Referências

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