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Cultura_ metodologias e investigação (e-book)

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Academic year: 2021

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Cultura:

coord, Maria Manuel Baptista

Metodologias e Investigação

Coleção Estudos Culturais

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Cultura:

Metodologias e Investigação

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Título

Cultura: Metodologias e Investigação

Coordenação

Maria Manuel Baptista

Coordenação Editorial

Rui Alexandre Grácio

Capa

Frederico da Silva

Design gráfico e paginação

Grácio Editor | Frederico da Silva

Impressão e acabamento

1ª edição Agosto de 2012 ISBN: 978-989-8377-34-0

© Grácio Editor

Avenida Emídio Navarro, 93, 2.o, Sala E 3000-151 COIMBRA

Telef.: 239 091 658

e-mail: editor@ruigracio.com sítio: www.ruigracio.com

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Índice

Estudos Culturais: um campo gravitacional, uma tessitura

intelectual| Maria Manuel Baptista ...5

1. Metodologias em Estudos Culturais ...

O quê e o como da investigação em Estudos Culturais | Maria Manuel Baptista...15

Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais | Moisés de Lemos Martins...29

Para uma etnografia dos públicos em acção | João Teixeira Lopes...43

Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise | Rosa Cabecinhas ...53

Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística | Joaquim Barbosa ...71

Research topics and methodologies in film studies | Anthony Barker ...97

História oral? Dilemas e perspectivas | Maria Manuela Cruzeiro...113

O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica | Alba Carvalho...125

2. Investigação em Estudos Culturais

Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita | Dália Dias ...149

(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo | Maria do Rosário Girardier ...177

La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios | Miquel Beltran e Joan Llinàs...203

Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas | Jean-Marie Rabot ...235

O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil: um evento comunicacional de interfaces culturais | Severino Alves Filho ...267

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Estudos Culturais:

um campo gravitacional, uma tessitura intelectual

A investigação e o ensino da Cultura tornaram-se, na última dé-cada, realidades cada vez mais presentes nos contextos universitários, o que se fica a dever, em primeiro lugar, à valorização social crescente que tem sido concedida a esta área, quer nos mais latos e clássicos domínios da formação humanística e artística, quer enquanto factor de conhecimento e compreensão das novas dinâmicas sociais e cul-turais da contemporaneidade. Acresce ainda a esta valorização aca-démica e social, a tomada de consciência generalizada do potencial económico que detém, tendo mesmo nascido recentemente uma área científica auto-designada por Economia da Cultura.

Partindo deste reconhecimento, o presente trabalho procura fazer o levantamento dos principais desafios teóricos, práticos, me-todológicos e académicos desta área do saber, assumindo como ponto de partida para a reflexão a tradição anglo-saxónica dos Estudos Cul-turais, questionando as suas limitações e dificuldades epistémicas, mas também assumindo as virtualidades que lhe são próprias e que se encontram ainda longe de estarem exauridas.

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Em primeiro lugar, gostaríamos de deixar claro ao leitor despre-venido o quanto esta área dos Estudos Culturais é menos uma disci-plina, academicamente ‘policiada’, com os seus ‘especialistas’ e paradigmas consensualmente estabelecidos (a este propósito valerá a pena reler o já clássico livro de Thomas Kuhn, A Estrutura das Re-voluções Científicas), com metodologias previamente determinadas e

configurações interdisciplinares rígidas ou sequer estabilizadas, mas, mais do que isso, trata-se de uma área ‘pós-disciplinar’, quer dizer, um lugar de encontros e partilha de saberes, métodos e experiências de investigadores de diversas áreas, que têm em comum um interesse particular pelas questões culturais.

Do nosso ponto de vista, é pelo facto de os Estudos Culturais constituírem um lugar de prática intensa de interdisciplinaridade, es-timulando a constituição de equipas muito heterogéneas que se for-mam a propósito de projectos específicos de investigação, cuja acção se encontra sobredeterminada por uma questão ou problemática científica concreta, frequentemente esgotando-se no terminus desse

processo investigativo, que, em nosso entender, esta área se apresenta fluida e instável, mas simultaneamente tão desafiante e intelectual-mente estimulante.

Mais do que uma disciplina científica clássica (modo de organi-zação científica tipicamente Moderna), os Estudos Culturais, tal como os compreendemos e são apresentados neste volume, representam-se como um centro gravitacional (constituído em primeiro lugar pelo problema sob investigação), que atrai investigadores de muitas áreas, interessados em participar na desafiante aventura de co-construção do conhecimento científico.

Procurando uma inserção na tradição nacional, mas também in-ternacional, o conjunto de estudos que aqui se apresenta teve, como núcleo original, as conferências apresentadas no Seminário Ibero-Americano em Metodologias de Investigação em Cultura, organizado pela linha de investigação ‘Cultura portuguesa: declinações

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americanas’ do Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, em Novembro de 2008.

O que é a Cultura, que temáticas analisa, quem a investiga e como é possível produzir resultados científicos, rigorosos, fiáveis e relevantes neste domínio constitui o núcleo de questões cujas respos-tas este livro se propõe, pelo menos em parte, tratar.

As principais linhas que atravessam todos os textos que integram a primeira parte deste volume, e abordam algumas das principais preocupações metodológicas dos Estudos Culturais, podem sinteti-zar-se do seguinte modo:

a) procura sistemática da inter, pluri e transdisciplinaridade; b) articulação das temáticas, teorias e metodologias das ciências

sociais com as das ciências humanas;

c) construção de metodologias abertas e críticas, em diálogo in-tenso com a própria empiria;

d) utilização reflectida de metodologias quer explicativas e com-preensivas, quer quantitativas e qualitativas, quer intensivas e extensivas;

e) valorização da vida, do quotidiano, dos públicos, do concreto e do senso comum, em articulação com a teoria e as metodo-logias de investigação.

Assim, num primeiro estudo de abertura deste volume procurá-mos apresentar o domínio de investigação dos Estudos Culturais, num texto que sintetiza e discute as características comuns da investigação nesta área: abordámos a história da transformação deste campo em do-mínio científico, reflectimos sobre o seu actual estatuto académico e disciplinar, apontando, por fim, as principais linhas de desenvolvimento e metodologias de investigação usadas internacionalmente nesta área. Num segundo texto, Moisés de Lemos Martins procura partir de um reflexão crítica sobre a imensa latitude do ofício do sociólogo, so-bretudo daqueles que se debruçam essencialmente sobre os fenóme-nos da Comunicação (como é o seu caso), para discorrer sobre a sua

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própria prática ao nível dos Estudos Culturais, trabalho que o tem aproximado do labor de hermeneuta, por força da ‘cinética do mundo’, hoje mergulhado numa ‘modernidade trágica’.

Nesta senda de reflexão sobre a Cultura, e partindo ainda do ter-reno próprio da Sociologia, o terceiro texto, da autoria de João Tei-xeira Lopes sublinha algumas das principais tensões e exigências no concreto fazer da Sociologia da Cultura, referindo a importância de nos determos e meditarmos cuidadosamente na ambiguidade dos fe-nómenos de recepção cultural, articulando a diversidade e o grau de autonomia e crítica dos públicos com as formas de legitimação e im-posição do poder (dos poderes).

Um quarto texto parte do paradigma próprio da Psicologia Social e discute o quanto o domínio das representações sociais, as suas meto-dologias e a diversidade dos seus níveis de análise nos colocam de ime-diato no centro da investigação cultural, tratando—se também aqui, como refere Rosa Cabecinhas, de compreender as práticas individuais à luz de representações que são sociais e historicamente construídas.

É ainda tomando como central a temática da Cultura que Joa-quim Barbosa nos introduz nos principais núcleos da investigação linguística, no âmbito dos quais destaca o conjunto de estudos e preo-cupações da sociolinguística, sublinhando não apenas a sua actual re-levância na contribuição para a resolução de problemas educacionais, mas também políticos e ideológicos do mundo contemporâneo.

São, igualmente, os elementos educacionais e de investigação que estão no centro da reflexão que Anthony Barker nos apresenta no do-mínio dos Estudos Fílmicos, no contexto de um Departamento de Estudos Literários português. Apresentando um balanço detalhado e crítico da sua riquíssima experiência neste domínio, sublinha algumas das barreiras institucionais, teóricas e técnicas em fazer avançar este género de investigação, apesar da apetência que os investigadores ju-niores revelam por este domínio dos Estudos Culturais.

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De dilemas e perspectivas nos fala também Maria Manuela Cru-zeiro numa reflexão sobre a sua já extensa prática de investigação no contexto da História Oral, centrando-se muito particularmente na discussão epistemológica e metodológica deste modo de construção, análise, explicação e compreensão cultural, concluindo mesmo pela necessidade de articular os modos de produção da ciência e da arte. Em jeito de balanço e reflexão mais global acerca das principais ca-racterísticas metodológicas que perpassam as diversas investigações da ‘galáxia’ ou ‘centro gravitacional’ que temos estado a designar por Estu-dos Culturais, Alba Carvalho encerra a primeira parte deste livro com uma profunda e instigante reflexão sobre o exercício do ofício da pes-quisa e o desafio da construção metodológica, sublinhando a articulação dos diversos modos de construção do conhecimento com a tradição do fazer científico e técnico, defendendo uma rigorosa ‘ecologia dos saberes’, numa espécie de ‘tear reflexivo’ ou ‘tessitura intelectual’.

Sem pretender de modo nenhum encerrar as questões aqui le-vantadas (pelo contrário, pretendemos abrir o debate sobre esta área, em Portugal), julgamos que, no seu conjunto, o livro que agora se apresenta inaugura uma discussão que se quer clara e assumidamente comprometida com a realidade cultural envolvente, tanto na Acade-mia como na Polis. Partindo da Cultura (qualquer que seja o nível de

análise ou o grau de implicação vivencial que com ela tenhamos) e procurando a ela voltar no final das nossas investigações, quisemos neste livro dinamizar uma área de discussão epistemológica em torno dos Estudos Culturais, abandonando o pressuposto (culturalmente) muito disseminado de que se trata de um domínio sobre o qual tudo se pode dizer ou fazer, e o seu contrário também.

E foi por sabermos o quanto os terrenos do ensino e da investiga-ção em Cultura têm de potencialmente equívoco e pantanoso, que pro-curámos recolher múltiplos olhares e reflexões, buscando activamente uma diversidade considerável de pontos de focagem académica e dis-ciplinar. No ponto de cruzamento e intersecção destes múltiplos olhares

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quisemos situar a discussão em torno das metodologias que cada área utiliza para abordar as questões culturais, mas também apresentar exemplos muito concretos de abordagem multi e transdisciplinar na investigação de um conjunto de questões muito diferentes, mas que podem inspirar outros investigadores que desejem praticar o desafiante ‘politeísmo metodológico’ (como lhe chama Moisés Martins) para que os Estudos Culturais, pela sua própria natureza, nos convocam.

Assim, se na primeira parte deste volume (que intitulámos Meto-dologias em Estudos Culturais) apresentamos as diversas perspectivas

epistemológicas e metodológicas de investigadores que, embora oriun-dos de áreas científicas diversas (Filosofia, Sociologia, Psicologia Social, Linguística, Estudos Fílmicos, Literatura e História Oral), praticam de há longo tempo a investigação no domínio cultural, na segunda parte (que apresentamos sob o título Investigação em Estudos Culturais)

podem ser encontrados um conjunto de estudos que ilustram, no con-creto, a prática científica geneticamente interdisciplinar desta área.

O primeiro, intitulado «Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita» procura colocar em diálogo os Estudos Literários e os Estudos Artísticos (especificamente a Música e a Pintura), enquanto o se-gundo, «(Inter)-Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo», estabelece inusitadas pontes de diálogo entre os pen-samentos de Boaventura Sousa Santos e Eduardo Lourenço por um lado, e Eça de Queirós por outro, nas questões respeitantes ao colo-nialismo português, usando como conceito-chave uma das questões centrais dos Estudos Culturais: a Identidade; por seu turno, o terceiro texto apresenta-nos um estudo que mostra até à saciedade o modo como Literatura (e a Poesia em particular) e Filosofia concorrem para o estudo de um dos mais prevalecentes e importantes problemas éti-cos, morais e religiosos da humanidade: a questão do livre-arbítrio; já o quarto texto cruza a análise sociológica com a filosofia da história e a fenomenologia da vida, procurando o significado colectivo (his-tórico, em primeiro lugar) das práticas individuais, recorrendo

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bém à Literatura no intuito de aprofundar criticamente os sentidos menos evidentes dos comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas; finalmente, o quinto e último estudo articula paradigmas teóricos e instrumentos metodológicos oriundos quer da investigação em Cultura Popular, quer da Linguística e ainda do Marketing, de modo a compreender o campo hoje delimitado por um neologismo que sinaliza o nascimento de uma nova área no âmbito dos Estudos Culturais: o folkmarketing.

Por fim, refira-se o prazer que constituiu poder editar um livro com uma tal riqueza reflexiva e capacidade prospectiva, que recolhe contribuições nacionais e internacionais de grande relevo, acolhendo no seu seio um diálogo que em Portugal só agora verdadeiramente começa. Se outras virtualidades não tiver, que este livro pelo menos sirva para deixar claro o quanto a área dos Estudos Culturais revela uma importante fecundidade teórico-prática e uma evidente vitali-dade académica, plena de potencialivitali-dades de trabalho em redes inter e transdisciplinares, quer no contexto nacional, quer internacional.

Aveiro, 8 de Julho de 2009 Maria Manuel Baptista

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O quê e o como da investigação

em Estudos Culturais

Maria Manuel Baptista1

A área de Estudos Culturais é intrinsecamente paradoxal, objecto de discussão e incerteza. Caracterizando-se por uma forte presença académica nos discursos intelectuais, revela discórdias internas pro-fundas em relação a praticamente tudo: para que serve, a quem ser-vem os seus resultados, que teorias produz e utiliza, que métodos e objectos de estudo lhe são adequados, quais os seus limites, etc.

Na verdade, se algum ‘método’ há nos Estudos Culturais ele con-siste na contestação dos limites socialmente construídos (por exem-plo, de classe, género, raça, etc.) nas mais diversas realidades humanas. A ‘naturalização’ dessas categorias tem sido precisamente objecto de grande contestação a partir dos Estudos Culturais. Não admira, por isso, e desde logo pela marca da contestação e crítica constantes com que nasceu e da qual se alimenta, que este domínio científico tenha tantas dificuldades em auto-limitar-se.

A história dos Estudos Culturais, enquanto disciplina académica está efectivamente marcada pela contestação, já que, aquando da sua emergência nos anos 70 ela formula e procura corresponder a uma ‘viragem cultural’ das ciências sociais e humanas. Num mesmo mo-vimento contribuiu, igualmente, para destabilizar as fronteiras de

dis-1 Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro – Portugal. Comunicação apresentada ao Seminário Ibero-Americano em Metodologias de Investigação em Estudos Culturais, Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 6 de Novembro de 2008.

Toda a correspondência relativa a esta comunicação deve ser enviada para Maria Manuel Baptista, Departamento de Línguas e Culturas – Universidade de Aveiro, 3810 Aveiro – Portugal ou via e-mail: mbaptista@.ua.pt

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ciplinas já com longa tradição académica, como a História, a Socio-logia, a Literatura, entre outras.

Com efeito, os Estudos Culturais têm funcionado como agente e sintoma na reconfiguração da estrutura disciplinar quer das Huma-nidades quer das Ciências Sociais, num processo que ainda hoje está em curso e se encontra longe de estar terminado.

1. Características comuns da investigação em Estudos Culturais

Na prática, os Estudos Culturais abrigam um conjunto múltiplo de investigadores e investigações de formação muito diversa (nem sempre compatível) e de origens académicas e geográficas muito di-ferentes. Muitos investigadores chegam a esta área por razões inte-lectuais e até políticas muito diferentes.

De qualquer modo, há traços distintivos na forma como é prati-cada a análise cultural e é sobre esses elementos, por vezes contradi-tórios, equívocos e polémicos, que procuraremos desenvolver a presente reflexão.

A primeira característica que gostaríamos de destacar é a ideia de complexidade (Morin, s/d) a qual se revela primariamente como um profundo compromisso com a ideia de complexidade do fenó-meno cultural. Para além disso, os investigadores desta área colocam um particular ênfase na produção contextual, multidimensional e contingente do conhecimento cultural, procurando reflectir nos re-sultados da sua investigação a complexidade e o carácter dinâmico e até, frequentemente, paradoxal do objecto cultural que abordam.

Uma outra característica muito frequente na análise praticada pelos Estudos Culturais consiste no compromisso cívico e político (no sentido grego e mais radical de intervenção e envolvimento nos assuntos da polis) de estudar o mundo, de modo a poder intervir nele

com mais rigor e eficácia, construindo um conhecimento com

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vância social (Pina, 2003). Este compromisso político (no sentido mais lato e profundo do termo) filia-se num contexto mais generica-mente definido a partir dos princípios da democracia cultural.

Ou como afirma Barker, «(…) os estudos culturais constituem um corpo de teoria construída por investigadores que olham a pro-dução de conhecimento teórico como uma prática política. Aqui, o conhecimento não é nunca neutral ou um mero fenómeno objectivo, mas é questão de posicionamento, quer dizer, do lugar a partir do qual cada um fala, para quem fala e com que objectivos fala»(Barker,2008). Em suma, os Estudos Culturais (e já desde a sua génese com Stuart Hall nos anos 60, no contexto britânico (Hall,1972)) estão ge-neticamente ligados a um modo de produção de análise cultural que faz convergir princípios e preocupações académicas com uma exi-gência de intervenção cívica, ou seja, articula inquietações simulta-neamente teóricas e preocupações concretas com a polis.

Na prática tudo isto apresenta um grande grau de variabilidade nas investigações conduzidas no âmbito dos Estudos Culturais, pois esta dupla atenção à teoria e à prática tem resoluções contextuais muito diversas, apresenta implicações práticas e cívicas com focus

muito diferentes e revela estilos de actuação muito específicos. Assim, enquanto para alguns, praticar a investigação em Estudos Culturais é uma forma de política cultural que deve sempre resistir a disciplinarizar-se no âmbito de uma instituição académica, para outros, os Estudos Culturais devem legitimar-se precisamente no contexto aca-démico, o que constitui por si só um objectivo político (Bennett,1998). Mas até o aspecto mais estritamente cívico proclamado por muitos investigadores na área dos Estudos Culturais pode surgir na academia de diferentes formas: o elemento ‘político’ pode estar apenas implícito, por exemplo, numa investigação que critíca os discursos dominantes, usando toda a metodologia e modelos das ciências sociais mais objec-tivistas ou, num outro extremo, apresentar-se como pura desconstrução crítica, mesmo que seja através de um acto performativo.

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2. História breve da origem e constituição dos Estudos Culturais Vulgarmente a origem desta área de investigação é situada nos finais da década de 50 do século XX, em Inglaterra, tendo-se poste-riormente espalhado um pouco por todo o mundo este modo de aná-lise cultural. A sua institucionalização pode situar-se a partir da criação, em 1964, na Universidade de Birmingham do Center of Con-temporary Cultural Studies (CCCS). Criado por um professor de Li-teratura Moderna (de língua inglesa), Richard Hoggart, o CCCS vem a registar uma influência máxima quer em termos geográficos, quer em impacto nos meios académicos e extra-académicos com Stuart Hall, já nas décadas de 70 e 80 do século XX.

Do ponto de vista teórico, a inspiração destes estudos pode tam-bém situar-se nas obras de Roland Barthes (Barthes,1967, 1972, 1977) e Henri Lefebvre (Lefebvre,1966,1970, 1975) (França), Fiedler (Fie-dler,1955, 1996) (EUA) e Fanon (Fanon,1967) (Martinique/ França e Norte de África), entre outros.

Para além disso, e embora sem que, numa primeira fase se tenha usado a expressão ‘Estudos Culturais’, apareceu também na América Latina sob designações mais genéricas como ‘Comunicação’, ‘História Intelectual’, ‘Análise do Discurso’ e ‘Estudos Inter-Disciplinares’.

O impulso e a inspiração próprias da investigação em Estudos Cul-turais espalharam-se por todo o mundo, tornando-se uma área de estu-dos transnacional, da Suécia e Alemanha até à Austrália e ao Quénia. Em consequência deste rápido e prodigioso desenvolvimento, os Estudos Culturais passaram a apresentar-se como uma prática intelectual dis-persa, cujo único centro talvez tenha passado a ser o de procurar articular e fazer dialogar três nós problemáticos essenciais: cultura, teoria e acção cívica. Não obstante esta dimensão de fragmentação e pulverização, foi-se assistindo, paralelamente, ao nascimento dos Estudos Culturais como uma área mais circunscrita e institucionalizada e gozando de reconheci-mento académico num número limitado, mas crescente, de países.

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Recuando ainda um pouco às suas origens, cabe sublinhar que, inicialmente, a actividade do CCCS consistia em promover a coopera-ção entre as diversas áreas do conhecimento, procurando estimular a investigação em interdisciplinaridade, ao mesmo tempo que enfatizava a necessidade e importância de uma ligação prioritária a temas da ac-tualidade. Para além disso, procurava, em primeiro lugar, dirigir a sua atenção para o estudo das classes trabalhadoras, das culturas de juven-tude, das mulheres, da feminilidade, da raça e etnicidade, das políticas culturais da língua e dos media, entre muitos outros. O que poderemos

sublinhar de interesse comum em todos estes objectos de investigação é o facto de todos os estudos procurarem revelar os discursos margi-nais, não-oficiais, ou daqueles que propriamente não têm voz.

Em síntese, trata-se de estudar aspectos culturais da sociedade, isto é, de tomar a cultura como prática central da sociedade e não como elemento exógeno ou separado, nem mesmo como uma dimen-são mais importante do que outras sob investigação, mas como algo que está presente em todas as práticas sociais e é ela própria o resul-tado daquelas interacções.

Nos anos 70 do século passado, o CCCS integrava criticamente contribuições teóricas diversas que iam desde o pós-estruturalismo francês (a linguística estrutural de Saussure (Saussure,1960) e a se-miótica social de Roland Barthes (Barthes,1972), bem como a psica-nálise de Lacan (Lacan,1977) e o marxismo estrutural de Althusser (Althusser,1969, 1971) e até Gramsci (Gramsci,1968, 1971), sinteti-zando o paradigma estruturalista e o culturalista.

O elemento central desta integração teórica e destes múltiplos aportes metodológicos passou a ser a prática duma actividade crítica, que se tornava apelativa porque abordava questões da experiência quotidiana, esta que se constituía de modos cada vez mais complexos, contraditórios e fraccionados. Por outro lado, recuperavam-se ques-tões sobre a contemporaneidade que as academias haviam conside-rado triviais ou difíceis de estudar.

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Metodologicamente, em vez de se compartimentarem os proble-mas, passou-se então a integrar diversos métodos capazes de darem conta, através do uso de diferentes perspectivas, da complexidade multifacetada de um problema em particular, abandonando qualquer pretensão de encontrar explicações causais e definitivas para as rea-lidades em estudo. Assim, mais do que interdisciplinaridade tratava-se estratava-sencialmente de reconhecer a complexidade e as limitações de objectividade no contexto dos Estudos Culturais.

Será já nos anos 80 e 90 que se assiste à institucionalização dos Estudos Culturais em diversas partes do mundo, estabelecendo-se programas académicos e departamentos, centros de investigação, re-vistas, organizações profissionais, etc. Em 2002 o CCCS (que foi, en-tretanto, transformado em Department of Cultural Studies and Sociology) encerra as as suas actividades, apesar do crescente inte-resse pelos Estudos Culturais em todo o mundo.

3. O estatuto disciplinar e académico dos Estudos Culturais

Os Estudos Culturais apresentam-se, desde a sua génese, menos como uma disciplina e mais como um ‘campo gravitacional’ para in-telectuais de diferentes origens (Bennett,1992). Entre as diversas for-mações dos investigadores que trabalham nesta área, destacam-se aqueles que são oriundos dos Estudos Literários, Linguística, Socio-logia, História, AntropoSocio-logia, Comunicação, Geografia, Estudos Fíl-micos, Psicologia, Educação e Filosofia; menos presentes, mas por vezes participantes empenhados no desenvolvimento de projectos de investigação em Estudos Culturais encontram-se economistas, juris-tas e peritos em relações internacionais.

Apesar desta diversidade, o que não podemos deixar de sublinhar é que daqui resulta um cruzamento disciplinar que não é só mistura caótica mas, frequentemente, verdadeira interdisciplinaridade que

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procura resolver um conjunto de problemas culturais através do uso de paradigmas teóricos, metodológicos e estilísticos de origem diversa. Como se pode facilmente deduzir do que ficou dito, também a educação e a formação nesta área apresenta conflitos teóricos e prá-ticos, os quais têm conduzido a disputas, mas também a consensos diversos (como é o caso, entre outros, de algumas discussões entre as áreas dos Estudos Literários e dos Estudos Culturais (Silvestre,1999)). Porém, a maior clivagem nesta área diz respeito às diferenças entre a aproximação mais ‘textual’ (tipicamente das ‘humanidades’) e a mais ‘sociológica’ (tipicamente ligada às ‘ciências sociais’), onde o diálogo interdisciplinar, quer ao nível metodológico quer teórico, é mais difícil. No entanto, e de um modo um tanto paradoxal, é no ponto de convergência entre estas duas tendências que os Estudos Culturais são mais inovadores e podem trazer as mais importantes contribuições para o progresso e desenvolvimento científicos.

4. Linhas de desenvolvimento da investigação em Estudos Culturais

A propósito das linhas de desenvolvimento da investigação em Es-tudos Culturais, refira-se, em primeiro lugar, todo um conjunto de tra-balhos que se têm centrado no estudo dos fenómenos de mercantilização generalizada, induzidos pela cultura contemporânea (sublinhe-se aqui a importância de uma postura crítica trazida pela Escola de Frankfurt, mas também a relevância da reflexão sobre a agenciosidade, preconizada por Marx). Esta linha de investigação tem frequentemente conduzido os in-vestigadores a desenvolverem os seus projectos centrando-se nas relações entre o poder e os mercados, articulando-os com a cultura popular, ou desenvolvendo as relações entre textos e audiências, na linha dos estudos de Pierre Bourdieu (Bourdieu,1984) e Certeau (Certeau,1984).

Uma outra vertente importante no âmbito dos Estudos Culturais tem aprofundado fenómenos ligados à noção de Estado nas sociedades

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capitalistas contemporâneas. Estes projectos têm ido desde os ‘apare-lhos ideológicos do Estado’ de Althusser (Althusser,1980) até aos tra-balhos sobre o poder e o micro-poder de Foucault (Foucault,2008).

Um terceiro domínio de interesse no âmbito dos Estudos Cultu-rais tem-se desenvolvido em torno do estudo sobre a luta pela hege-monia e contra-hegehege-monia (Gramsci,1978) com consequências na produção do sentido e nas diversas representações (do Estado, mas também dos movimentos cívicos e sociais), bem como sobre a con-dição pós-moderna de abandono e descrédito das meta-narrativas (Lyotard,1987).

Já o estudo relativo aos modos de construção política e social das ‘identidades’, abordando as questões da nação, raça, etnicidade, diás-pora, colonialismo e pós-colonialismo, sexo e género, etc. têm sido das temáticas mais investigadas nos últimos anos, dando origem a uma importante massa de resultados de grande qualidade e impor-tância fora e dentro das academias.

Por fim, e mais recentemente, os investigadores destas áreas têm-se centrado no estudo dos fenómenos relacionados com a Globaliza-ção, articulando-a com questões de desterritorialização da cultura, movimentos transnacionais de pessoas, bens e imagens. Neste domí-nio tem sido ainda objecto de pesquisa a nova sociedade em rede, fe-nómenos de terrorismo, choques civilizacionais, a crise ambiental global, entre outras temáticas.

5. Principais metodologias usadas nos Estudos Culturais

Sublinhe-se que, no âmbito dos Estudos Culturais, tem havido muita produção sobre metodologia (Alasuutari,1995, Gray,2003, Mcguigan,1995) e pouca sobre métodos. De qualquer modo, de uma forma geral, os estudos nesta área são predominantemente qualitati-vos e a verdade é entendida como relevando essencialmente do

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campo da interpretação e do ensaio crítico. Em todos os casos, a vi-gilância auto-crítica e a reflexividade sobre os métodos a usar tem sido vista nesta área como o elemento crucial a garantir o rigor e a qualidade dos resultados.

De acordo com Barker (Barker,2008), de entre as metodologias mais frequentemente usadas nos Estudos Culturais destacam-se as seguintes: a) Metodologia etnográfica, que enfatiza o elemento viven-cial da experiência

b) Abordagem textual c) Estudos de recepção

Quanto à metodologia etnográfica (Rorty,1989, 1991)ela de-signa essencialmente procedimentos de observação participante, en-trevistas em profundidade e grupos focais. Tem como elemento fundamental a concentração no detalhe do quotidiano enquadrando-o nenquadrando-o tenquadrando-odenquadrando-o da vida senquadrando-ocial. Para issenquadrando-o, prenquadrando-ocura articular de fenquadrando-orma prenquadrando-o- pro-funda e pro-fundamentada a abordagem empírica e teórica.

Sublinhe-se o quanto, nesta perspectiva, a investigação em Estu-dos Culturais trabalha essencialmente com problemas de ‘tradução’ e justificação, não procurando propriamente a ‘verdade objectiva’, mas a compreensão do significado mais profundo dos discursos e das re-presentações sociais e culturais.

Compreende-se assim que esta metodologia se encontre parti-cularmente apta para abordar questões de cultura, estilos de vida e identidades.

Por seu turno, a abordagem textual apresenta resultados diversos de acordo com os diferentes modos de tratar o texto: numa perspectiva semiótica o texto é visto como signo, procurando encontrar-se aí ideo-logias e mitos; numa perspectiva essencialmente ligada à teoria

nar-rativa os textos são vistos e compreendidos como histórias que procuram explicar o mundo e fazem-no de forma sistemática, com uma estrutura frequentemente repetitiva (Neale,1980, Todorov,1977); por fim, a abordagem desconstrucionista, na linha de Derrida,

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cura, quer nos campos da literatura quer no âmbito da teoria pós-co-lonial, surpreender os pares hierárquicos clássicos da cultura ocidental (homem/mulher, preto/branco, realidade/aparência, etc.), distin-guindo o que um texto diz daquilo que ele significa.

Finalmente, e no que se refere aos estudos de recepção, a investi-gação parte da consideração de que o sentido do texto é activado pelo leitor, audiência ou consumidor. O modo como um tal processo se de-senvolve em cada contexto histórico e social é o objecto destes estudos. No âmbito dos estudos de recepção, têm-se desenvolvido duas linhas fundamentais:

a) o modelo ‘codificação/descodificação’ (Hall,1981), que subli-nha o facto de a codificação ser polissémica, pelo que a des-codificação da mensagem pode não coincidir com o sentido original, sobretudo se uns e outros não partilharem o mesmo meio cultural, social, económico, etc.

b) o modelo clássico da tradição hermenêutica e literária (Gada-mer,1976, Iser,1978), que defende a perspectiva de que a com-preensão depende sempre do ponto de vista daquele que compreende. Assim, o leitor também produz sentido não tanto a partir do sentido inicial, mas das oscilações entre o texto e a sua própria imaginação.

6. Conclusões

A teoria ocupa um lugar central e determinante nos Estudos Cul-turais, pois proporciona os instrumentos lógicos para pensar o mundo de um modo mais profundo, crítico e rigoroso. Na verdade, os Estudos Culturais rejeitam a ideia empiricista de que o conheci-mento é simplesmente uma questão de coligir factos, a partir dos quais as teorias seriam deduzidas para, em seguida, serem elas pró-prias testadas e validadas pelos factos.

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Pelo contrário, nos Estudos Culturais a teoria está sempre impli-cada no trabalho empírico através de um conjunto de decisões me-todológicas e posicionamentos epistemológicos presentes sobretudo nas fases de escolha do tópico a investigar, na focalização da investi-gação, bem como pelo uso de paradigmas, teses e conceitos através dos quais a empiria é interpretada e discutida.

Deste modo, é objectivo primeiro dos Estudos Culturais cons-truir um discurso crítico e auto-reflexivo que procure constantemente redefinir e criticar o trabalho já feito, repensar mecanismos de des-crição, de definição, de predição e controlo das conclusões a que se chega, bem como ter um papel desmistificante em face de textos cul-turalmente construídos e dos mitos e ideologias que lhes subjazem.

Sublinhe-se que nenhuma das linhas de investigação propostas no âmbito do Estudos Culturais se exclui mutuamente, antes sugerem múltiplas possibilidades de cruzamentos, até porque os métodos uti-lizados apesar de serem diversos, podendo complementar-se. É pre-cisamente este apelo à interdisciplinaridade que se constitui, no âmbito dos Estudos Culturais, como um desafio à construção de uma cultura de diálogo entre as diferentes disciplinas.

Em síntese, as questões próprias da investigação em Estudos Cul-turais multiplicam-se e constituem focos problemáticos de luta inte-lectual contínua, que têm apenas como ponto unificador o conceito, equívoco e problemático, de Cultura. Apesar disto, os investigadores têm revelado ao longo dos anos a invariável e persistente vontade em se comprometerem com a complexidade do fenómeno cultural, co-laborando na construção do que pode-ríamos designar pela (inter)disciplina ou pós-disciplina que é hoje o domínio de investi-gação dos Estudos Culturais.

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Para um ‘politeísmo metodológico’ nos

Estudos Culturais

Moisés de Lemos Martins1

1. Ofício de sociólogo

Sendo eu um sociólogo, não são todavia as ferramentas-fetiche

entre os cientistas sociais aquelas que por norma utilizo. Os historia-dores utilizam fundamentalmente os arquivos. Os antropólogos fazem da observação participante a sua ferramenta principal. Os psi-cólogos sociais recorrem por regra a metodologias experimentais e empíricas, às escalas de atitudes, aos estudos focais e às entrevistas, e utilizam com a mesma mestria e eficácia os inquéritos. Sabemos como os geógrafos e os demógrafos se tornaram especialistas na uti-lização dos inquéritos. E também os cientistas políticos. Mas foram os sociólogos quem mais fez pela popularidade dos inquéritos e das entrevistas. Generalizando, talvez não seja excessivo dizer que não existem cientistas sociais para quem o inquérito e o seu tratamento estatístico não sejam uma importante ferramenta de investigação.

Sendo sociólogo, não têm sido estes, todavia, os meus caminhos. Tenho passado quase toda a minha vida académica a ler e a interpretar textos. E textos de variado tipo: textos de carácter político, mas tam-bém textos de natureza religiosa, e ainda textos pedagógicos e filosó-ficos, e mesmo textos literários. Ora, quem lê textos e se entrega à tarefa de os interpretar é um hermeneuta. E é assim que me vejo, como um hermeneuta. Interpreto textos, não apenas com preocupações aca-démicas, mas igualmente com preocupações cívicas. E comparo-os.

1Centro de Estudos em Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho. moisesm@ics.uminho.pt

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Se não falasse do interior do campo das Ciências Sociais, ninguém veria nada de especial nesta minha estratégia de investigação. Quem se ocupa de literatura, por norma não faz coisa diferente: lê e compara textos. Mas que um sociólogo faça isso e que, com o decorrer do tempo, faça apenas isso, instala uma dúvida teórico-metodológica, dado o facto de o trabalho do sociólogo, deste modo perspectivado, o aproximar do trabalho do filósofo e do crítico literário.

Hoje ensino e investigo Sociologia da Comunicação. E também Teoria da Cultura. Apenas de há meia dúzia de anos para cá, me ocupo mais de imagens do que de discursos. E sobretudo tenho-me interessado pela importância crescente das imagens tecnológicas na cultura2, sendo esta uma cultura de «comunicação generalizada», no dizer de Gianni Vattimo (1991: 12), ou uma cultura da «rede», nas palavras de Manuel Castells (2002), depois de Olivier Donnat (1994: 284) lhe ter chamado «cultura do ecrã» e Lash e Urry (1994: 16) a terem caracterizado pelo «paradigma do vídeo». Mas durante uma dúzia de anos ensinei Semiótica e Teoria do Discurso. E apenas em meados dos anos oitenta, mesmo no princípio da minha carreira aca-démica, é que trabalhei com o inquérito e a entrevista, que são, pois, para mim, uma espécie de arqueologia do meu modo de trabalhar.

Para simplificar, direi que o meu território é o dos Estudos Cul-turais, nos exactos termos em que Armand Mattelart e Érik Neveu (2003) os concebem. Instabilizando fronteiras entre disciplinas aca-démicas, o que sempre enformou o meu modo de trabalhar foi a pro-dução de um olhar que questionasse as implicações políticas do cultural. Nos Estudos Culturais este propósito estende-se da interro-gação sobre o modo como o meio social, a idade, o género e a iden-tidade ‘étnica’ afectam as relações que estabelecemos com a cultura,

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Moisés de Lemos Martins

2O meu mais recente estudo: Martins, M. (2009), «Ce que peuvent les images. Trajet de l´un au multiple», Les Cahiers Internationaux de l´Imaginaire, 1: CNRS, pp.

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à indagação sobre o modo de compreender a recepção dos conteúdos dos média (programas televisivos, matérias da imprensa, filmes, pu-blicidade) pelos diversos públicos, passando pela larga indagação sobre os estilos de vida, próprios da sociedade de consumo, uma so-ciedade globalizada e marcada pela experiência electrónica.

Vou inspirar-me no texto de Roland Barthes (1987) «Ao Semi-nário / no SemiSemi-nário» para dar o tom à proposta que entendo fazer-vos. Vou, pois, falar do meu ofício e do modo como o exerço. Estive, há tempos, na Fundação Calouste Gulbenkian, numa Conferência sobre «A Regulação dos Média», organizada pela Entidade Regula-dora para Comunicação Social (ERC). Apresentei e comentei um es-tudo feito por sociólogos, intitulado Estudo de Recepção dos Meios de Comunicação Social (2008). Foram seus autores principais os

Profes-sores José Rebelo, Cristina Ponte e Isabel Ferin.

O estudo deu conta de uma sondagem nacional feita sobre a re-cepção dos média. Aplicou inquéritos a alunos de escolas da grande Lisboa. Está, portanto, polvilhado de mapas e gráficos. E tem muitas observações de cariz etnográfico, autorizadas pela utilização da me-todologia dos grupos de foco, que é feita a imigrantes e a idosos. Os investigadores são sociólogos experimentadíssimos na sua arte, sabem do seu ofício e têm um grande traquejo em estudos desta natureza.

Este estudo sobre a recepção dos média pelos portugueses em geral, e também por segmentos específicos da população, desi-gna-damente crianças e jovens, idosos e imigrantes, colocou-me a mim, pessoalmente, perante um aliciante desafio, sendo eu um investigador da comunicação, como aliás os autores do estudo que eu analisei.

Pus-me a pensar em algumas das conclusões a que tenho che-gado em vinte anos de investigação sobre os média e confrontei-me com as conclusões do estudo. Uma das questões que me tenho colo-cado tem sido a de interrogar a relação que os actores sociais têm com os média, seja os média clássicos (imprensa, rádio e televisão), seja os novos média digitais (Internet, ciberjornalismo, blogues, etc). E

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era essa, também, exactamente, uma das questões que me colocava o estudo: que relação têm os distintos públicos com os distintos média? Que usos lhes dão? O que é que pensam deles? O que esperam deles? Como é que se sentem afectados por eles? Sentem-se muito ou pouco satisfeitos com eles?

Tanto eu como os investigadores deste estudo interrogamos práticas sociais. Mas não o fazemos da mesma maneira. Quando falamos de prá-ticas sociais, somos por regra confrontados com dois modelos de acção social, que constituem outros tantos modos de inscrever as práticas no tempo da comunidade. Por essa razão, nem sempre são de bom conví-vio, embora pudessem e devessem saber coabitar pacificamente.

2. A cinética do mundo e a construção do olhar

Um dos modelos de acção social insiste na ideia de que o indiví-duo é autónomo, livre e racional. E é este, sem dúvida, o modelo adoptado pelos investigadores que referi. Mesmo «públicos sensíveis», como as crianças e os jovens, os idosos e os imigrantes, que tantas vezes têm visto ser coarctada, ou então ignorada, em todo o caso di-minuída, a sua capacidade de acção autónoma, livre e racional, são neste estudo perspectivados em termos activos, com ideias próprias sobre a realidade social e como participantes e contribuintes na es-truturação dessa mesma realidade.

Mas existe um outro modelo de acção social. Esse modelo arti-cula as nossas acções com um quadro de constrangimentos histórico-sociais que nos são impostos. E tem sido esse o meu caminho. Inscrevo-me na grande tradição historiográfica de Fernand Braudel (1985) e sociológica de Georges Gurvitch (1955), que pensam as prá-ticas humanas por relação à temporalidade, que é na verdade o seu grande escultor, como diria Marguerite Yourcenar. As práticas huma-nas têm um tempo local, que é o tempo da experiência. Podemos

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dizê-lo com as palavras de Nietzsche, o tempo da «intempestividade», o tempo que está em acto, o «inactual» (1988), e também o tempo das micro-narrativas (Lyotard, 1979), ou então, com as palavras de Foucault (apud Eribon, 1991: 45), o tempo biográfico: o tempo do

nosso embate com as coisas, com os outros e com nós mesmos. As práticas humanas têm também um tempo contextual, o tempo de um dado campo social, com relações de força que correspondem a posi-ções sociais assimétricas dos actores sociais, a posiposi-ções de mais ou menos poder num dado campo social. Entre o tempo da experiência e o tempo contextual anda o tempo da prática, ou seja, os constran-gimentos da prática, a que se referem, entre outros autores, Wittgens-tein (1995: I 202), que lhe chamou regras da prática: «“seguir uma regra” é uma praxis». Também Jacques Bouveresse (2003: 140- -141)

lhe é sensível ao assinalar a «prisão invisível» a que a prática está su-jeita. E no mesmo sentido abonam André Joly (1982: 117) ao consi-derar uma «consciência pragmática», Anthony Giddens (1990: 278, 280) ao referir uma «consciência prática» e Pierre Bourdieu (1972) ao insistir num «sentido prático».

Tenho seguido a hipótese de que as práticas são determinadas por um «campo de forças sociais» (Bourdieu), e também por «estados de poder» (Foucault), que são forças sociais reificadas, forças sociais feitas instituição. Ou seja, as práticas sociais ocorrem no interior de uma estrutura com uma lógica social específica, onde se jogam, como já referi, relações sociais assimétricas, de mais ou menos poder, ocu-pando os indivíduos determinadas posições de força. No entanto, é o conhecimento da natureza e do modo de funcionamento das insti-tuições, assim como o conhecimento dos mecanismos que governam os fenómenos culturais, que dão aos actores sociais uma possibilidade real para modificarem as suas ideias, atitudes e práticas.

Ou seja, pensando agora no caso dos usos que fazemos dos média, dos modos como os imaginamos e das expectativas que temos relativamente a eles, o meu questionamento difere do dos autores do

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estudo, uma vez que parte de uma interrogação sobre o quadro actual de constrangimentos que nos são impostos, ou seja, parte das regras da prática.

Este quadro de constrangimentos, por sua vez, não é dissociável daquilo a que chamo «tempo global», que é o tempo da «sociedade em rede», o tempo da «economia-mundo» (Wallerstein), o tempo da globalização. Uma pergunta, todavia: que quadro de constrangimen-tos globais são esses que enquadram a prática? Que regras são essas? Assinalo, por um lado, a importância crescente daquilo a que Mário Perniola chama «ordem sensológica»; assinalo também a implantação de uma sociedade de «meios sem fins» (Agamben); e assinalo ainda a actual cinética do mundo, um movimento de «mobilização infinita» para ao mercado global, como se lhe refere Peter Sloterdijk.

Passo a explicitar.

2.1.Considero que a nossa prática social não é dissociável daquilo a que Mário Perniola chama a “ordem sensológica” (1993), que se impõe à antiga «ordem ideológica», com a sensibilidade e as emo-ções a levarem a melhor sobre as ideias e com a bios a

misturar-se com a techné, podendo falar-se hoje, por exemplo, no sex-appeal do inorgânico (Perniola, 2004)), num processo

acele-rado de estetização geral da existência humana, com toda a expe-riência a constituir-se em «expeexpe-riência sensível». A nossa atmosfera é cada vez mais sensitiva e libidinal, com a emoção, o desejo, a sedução e a pele a constituírem-se como valores preva-lecentes na nossa cultura. Derrick de Kherckhove (1997) fala mesmo, neste contexto, de uma pele tecnológica.

2.2. Somos hoje também uma sociedade de «meios sem fins», como diz Giorgio Agamben (1995), depois do afundamento das verdades tradicionais, da quebra da confiança histórica e da des-locação civilizacional da palavra para a imagem, ou para o ecrã.

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«Meios sem fins», «história sem Génese nem Apocalipse», uma história presenteísta, ou seja, uma história sem teleologia, que já não caminha para um fim, e também uma história sem escato-logia, sem redenção.

Duas ilustrações sobre este constrangimento da prática, em que a sociedade é de «meios sem fins».

A primeira ilustração tomo-a do poeta austríaco Paul Celan (1996). Em o Meridiano, Celan assinala que nós somos seres do

tempo e que ao tempo três acentos lhe convêm: o agudo da ac-tualidade (o tempo do nosso confronto como outro e com as coi-sas); o grave da historicidade (o tempo da nossa responsabilidade pela permanência do sentido de comunidade); e o circunflexo -que é um sinal de expansão tempo - da eternidade (o tempo da promessa, que nos arranca à imanência). Simplesmente, o pro-blema está em que nos encontramos hoje com todos os acentos em falta. A cota da cidadania baixou consideravelmente; o sen-tido de comunidade diluiu-se e perdeu para o tribalismo; e os ci-dadãos surgem esgazeados pelo vórtice da velocidade e a funcionam cada vez mais como consumidores.

A segunda ilustração de que o nosso tempo deixou de ser o lugar da realização de um propósito narrativo, de um propósito de emancipação histórica, de redenção, está bem explícito em O Homem sem Qualidades, a monumental obra de Robert Musil

(2008), que acaba de ser reeditada, em português, pela Dom Qui-xote (com prefácio, comentário e notas de João Barrento). A principal personagem da obra, Ulrich, tem consciência de que em nenhuma época como na nossa foi acumulado tanto conhe-cimento. Mas igualmente em nenhuma época como na nossa os homens se sentem tão incapazes de intervir no curso da história. E Ulrich somos nós.

A nossa época vê alterada, deste modo, a sua natureza, de uma estrutura dramática (de contradições com uma síntese

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tora) para uma estrutura trágica (de contradições sem happy end). É esse o sentido do «regresso do trágico», de que fala

Mi-chel Maffesoli (2000), numa das suas obras recentes, L’Instant éternnel. Le retour du tragique dans les sociétés post-modernes.

2.3.Existe ainda uma outra regra que se impõe à prática e que eu gostaria de convocar aqui. Refiro-me ao facto de o humano estar a ser investido, acelerado e mobilizado, pela tecnologia, para um mercado global. Já nos anos trinta do século passado, Ernest Yünger assinalara que a época estava a ser mobilizada pela tec-nologia. Usava então uma metáfora bélica. Entretanto, Peter Slo-terdijk (2000) fala hoje de uma «mobilização infinita». Esta mobilização infinita para o mercado global, através da tecnolo-gia, vai colocar o humano numa crise permanente.

A conjugação destas regras da prática, ou por outra, destes cons-trangimentos (relembro-os, ordem sensológica, sociedade de meios sem fins, mobilização infinita do humano para o mercado) produz nos actores sociais o cérebro de indivíduos empregáveis, competitivos e performantes.

E eu diria que é essa hoje a nossa condição. O «rei clandestino» da nossa época (Simmel), ou seja, as grandes regras da prática são, em síntese, o mercado global e o pensamento da técnica. E como con-sequência do entendimento que faço deste quadro de constrangimen-tos, em que as tecnologias da informação suportam o mercado global e as biotecnologias fantasiam melhorar a vida humana, concluo pela «crise permanente do humano», que o mesmo é dizer, crise perma-nente da cultura, com a crise da razão histórica, ou seja, a crise das grandes narrativas (Lyotard: 1979), e também a crise do narrador (Benjamin: 1992), e as consequentes crise da verdade e o “empobre-cimento da experiência”.

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3. A modernidade trágica

Como já assinalei, o estudo que analisei centra a atenção na ca-pacidade de acção autónoma, livre e racional do actor social. Sem dú-vida uma capacidade com gradações diversas, que se distinguem por faixas de idade específicas, por diferentes localidades, graus de esco-laridade e diferenças de género, e mesmo por nacionalidade. No es-tudo que eu analisei, essa capacidade tem ainda outros cambiantes gradativos, assim nós estejamos a falar de jovens dos 14 aos 18 anos, de idosos de mais de sessenta e quatro anos, ou de imigrantes. Penso que a referência a «contextos sociais», que existe neste estudo, não faz dos «contextos sociais» o equivalente daquilo que eu considero como «regras da prática», como constrangimentos estruturais da acção hu-mana. E está aí, a meu ver, uma distinção de monta na perspectivação da realidade social.

Dado então o exemplo que eu tomo aqui, que é o de a pesquisa dos média adoptar distintos modelos de acção social, vou levar um bocadinho mais longe as minhas considerações, antes de concluir esta comunicação. Eu entendo, sem dúvida, que as práticas dos indivíduos ocorrem e variam com específicas condições de tempo, lugar e inter-locução (idade, género, escolaridade, nacionalidade…). É essa, como aliás assinalei, a linha condutora dos autores do estudo, em quase qua-trocentas páginas, através de sondagens, inquéritos, entrevistas e gru-pos de foco. Mas as minhas escolhas metodológicas, que são diferentes, conduzem- -me a uma conclusão que também me parece importante, tanto na análise do usos que fazemos dos médias, como na análise das ideias que temos sobre eles, e ainda, na análise das ex-pectativas que temos relativamente a eles. Refiro-me à consideração do ‘tempo global’, a que Fernand Braudel e Georges Gurvitch chama-ram “tempo longo”, uma temporalidade que caracteriza as estruturas económicas, simbólicas e culturais duráveis da sociedade e que afecta as regras da prática.

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Na perspectiva adoptada pelo estudo dos meus colegas sociólo-gos, o ponto de partida é a razão soberana de indivíduos autónomos e livres, num tempo contextual, seja de adultos, ou então de crianças, jovens, idosos e imigrantes. Nos termos da orientação que tem sido a minha, o ponto de partida é o ‘tempo global’, um tempo sensológico, de simulacros, de meios sem fins, de mobilização infinita, um tempo trágico. Utilizo estas metáforas com carácter heurístico, ou para falar como Max Weber, com o carácter de tipos ideais.

Penso que é, de facto, pela consideração de um conjunto de cons-trangimentos globais que se aplicam às regras da prática, que existe em Walter Benjamin (1982: 173) essa ideia de que os média esgotam a actualidade em novidade, em simulacro do novo, com o quotidiano transformado na presa fácil de uma transcrição ruidosa e incessante que o nega enquanto quotidiano em que arriscamos a pele.

E é pela mesma razão, que vemos Guy Debord insistir no cres-cente processo de anestesiamento da vida, um processo de congelação dissimulada do mundo (Debord, 1991: 16), esgotando-se este em es-pectáculo e euforia, meros simulacros, que não passam de “guardiões do sono” da razão, para falar ainda como Guy Debord (1991: 16)3.

Também Norbert Elias viu na excitação uma característica da so-ciedade actual, depois de Nietzsche já haver assinalado, há mais de um século, o sobreaquecimento do mundo pelo eco de um jornal, pensamento que é, aliás, retomado por McLuhan, quando se refere ao aquecimento e ao arrefecimento dos média, e ainda por Maffesoli,

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Moisés de Lemos Martins

3A ideia de “crise da experiência” começa por ser referida em Benjamin no seu texto sobre “O narrador” e parece hoje em fase imparável pela aceleração tecnológica do nosso tempo. Agamben fala da impossibilidade em que nos encontramos, hoje, de nos apropriarmos da nossa condição propriamente histórica, o que torna “insupor-tável o nosso quotidiano” (Agamben, 2000: 20). Perniola, por sua vez, ao caracteri-zar a experiência contemporânea, introduz o conceito de “já sentido” e interroga-se sobre o sex appeal do inorgânico, que tem tanto de fascinante como de inquietante

(Perniola, 1993, 2004). Quanto a Baudrillard, conhecemos o seu conceito de reali-zação do real como simulacro (Baudrillard, 1981).

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ao assinalar a efervescência social, a euforia, processo esse em que participam os média.

Eu próprio, ao valorizar as regras da prática, formulei em tempos a ideia de que os média são «o pensamento da nossa modernidade trágica», que recita sempre o mesmo melancólico conto da perma-nente hemorragia do humano (Martins, 2002 a).

Para não concluir

Foi para mim, como assinalei, um aliciante desafio poder apre-sentar aqui, ainda que de forma sucinta, o meu ponto de vista sobre metodologias de investigação da cultura. É verdade que o meu en-tendimento é feito de convicções fortes. Mas não fecha os olhos nem ignora outras ferramentas, mais explicativas do que compreensivas, é certo, mais viradas para a estática social do que para a dinâmica, para utilizar as clássicas categorias de Comte e Gurvitch, mais in-teressadas por aquilo que no social é coisa e estado de coisa, ou seja instituição, e não tanto processo, relação, movimento, ou seja, corpo. Mas todo o verdadeiro processo hermenêutico, sabemo-lo desde Dilthey e Schleiermacher, vive da tenção que explicar e compreender estabelecem entre si. Por opção metodológica, podemos acentuar mais o processo explicativo, do que o compreensivo. Ou então o in-verso, acentuar mais a compreensão do que a explicação. O que não podemos nunca é dispensar um pólo do movimento hermenêutico em favor do outro4.

Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais

4 Em 2002, desenvolvi este ponto de vista em A linguagem, a verdade e o poder, espe-cificamente nas pp. 145-163.

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Para uma etnografia dos públicos em acção

João Teixeira Lopes1

No momento actual de desenvolvimento da Sociologia da Cul-tura exige-se o exercitar da imaginação metodológica no estudo dos públicos. Antes de mais, porque os instrumentos estritamente quan-titativos, apesar da grande vantagem de fazerem sobressair determi-nações, regularidades e comparações, negligenciam, por generalismo, as trajectórias individuais e dos micro-grupos.

Importa, por conseguinte, na conciliação entre quantitativo e qualitativo, exigência, aliás, do próprio cariz relacional do objecto de estudo em causa, construir observatórios de públicos in situ, capazes,

numa primeira fase, de construir tipos-ideais e perfis (como de resto já acontece entre nós, particularmente nos estudos do Observatório das Actividades Culturais), para, numa segunda fase, proceder à ca-racterização etnográfica dos modos antropológicos de recepção dos públicos em formação, para além do necessário mas insuficiente co-nhecimento sociográfico, seguindo o princípio defendido por Madu-reira Pinto: “procurar conciliar, na organização global da pesquisa, isto é, em todo o ciclo que vai da problematização teórica até à fase da observação, extensividade e intensividade, por esta ordem (e su-blinho: “por esta ordem”) (...) acredito que a análise conduzida à escala

macro e meso segundo procedimentos de natureza mais extensiva, convencionalmente associados à sociologia, tem precedência lógica e teórica sobre os procedimentos observacionais ditos «etnográficos» (Pinto, 2004: 26).

Dito isto, a etnografia dos públicos em acção permitirá, assim o creio,

restituir à sociologia dos modos profanos de recepção, particularmente

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no que respeita às dimensões corporais, emocionais e afectivas, tantas vezes mitigadas ou mesmo silenciadas.

Ao falarmos de apropriações e de modos de relação com a cultura

entramos, já, na rejeição do modelo behaviourista do estímulo/re-flexo, pressupondo-se a existência de um agente social implicado na (re)produção das estruturas e não um reactor sonâmbulo, um alegre robot ou uma marioneta. O receptor cultural, neste sentido, é mais um praticante cultural do que um consumidor.

Será importante, a este respeito, relembrar aos alunos a teoria da estruturação de Anthony Giddens e o próprio conceito de agência. Aliás, que fique bem claro: o receptor potencialmente apto a reinter-pretar mensagens e seleccionar sentidos não é o «novo herói da cul-tura» de que nos fala Mike Featherstone. Pelo contrário, pretendo referir-me a uma das características ideais-típicas do sujeito social contemporâneo.

Por outro lado, é fundamental partirmos do conceito de art world

para compreendermos a cadeia de implicados na produção da obra cultural, esticando tal pressuposto até ao receptor. Assim, defendo o cariz incompleto, indeterminado e aberto das obras culturais, na es-teira de Umberto Eco (Eco, 1989). Mais ainda: o facto de as obras cul-turais serem virtualmente ambíguas e plurívocas (tanto na forma como no conteúdo - ou não fossem as grandes revoluções formais verdadeiras revoluções totais, em que a forma é conteúdo...) é uma das condições do próprio agir comunicacional, possibilitando um en-riquecimento do jogo de expectativas e dos próprios mapas culturais e simbólicos dos sujeitos.

Andrea Press relaciona as mudanças na estrutura social com a diversificação dos públicos e, consequentemente, dos modos e perfis de recepção. A multiplicação de exemplos que esta autora fornece será de enorme utilidade para a dinâmica pedagógica (Press, 1994). Situemo-nos no já célebre estudo de Radway, Reading the Romance

(Radway, 1991). Verdadeiro marco dos Cultural Studies, permitiu um

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