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Patricia Gipsztejn Jacobsohn

A figura do analista na clínica das anorexias e bulimias

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

São Paulo 2017

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Patricia Gipsztejn Jacobsohn

A figura do analista na clínica das anorexias e bulimias

Mestrado em Psicologia Clínica

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica, sob a orientação do Prof. Dr. Renato Mezan

São Paulo 2017

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Banca Examinadora

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por todo o amor, dedicação, carinho e pela crença inabalável na minha capacidade. E por me ensinarem de forma tão ferrenha que o conhecimento é o nosso bem mais precioso, e o amor, nossa principal arma. Sem vocês, nada seria possível. Ao meu marido, meu melhor interlocutor, pelo apoio carinhoso, pela parceria constante e por sustentar de forma tão sensível as ausências, inseguranças e dores inevitáveis na elaboração dessa dissertação. Seu amor me fez e me faz mais forte. Esta pesquisa é sua também.

Aos meus filhos, por todo aprendizado ao longo destes anos. Doação, cuidado, relação e amor ganharam novas configurações. O tempo tomou uma nova dimensão. O presente ficou mais colorido, divertido e culpado(!); o passado, mais presente, e o futuro, o lugar em que eu quero estar sempre. Tenham a certeza de que todo meu investimento e dedicação profissional me faz uma mãe mais presente e realizada. Amo vocês mais que tudo.

À minha irmã, pela parceria na vida e por compartilhar afetos tão valiosos. À minha família estendida e tão querida: cunhados, cunhadas, sobrinhos e sogro; de perto ou de longe, vocês me fazem mais completa.

À minha nona Esther (Z”L) essencial na minha trajetória subjetiva. Suas receitas divinas, seu amor à culinária, seu humor e amor certamente permeiam toda esta pesquisa.

Ao Prof. Renato Mezan, orientador tão carinhoso. Por todo o suporte, por toda ajuda e, principalmente, pela liberdade de escrita, bem como e por me fazer perceber que a psicanálise tem que ser exercida com liberdade e curiosidade.

Às minhas companheiras de orientação, Andréa Chiarella e Rinalda Oliveira. De bolsa à aflições, tudo foi compartilhado. Vocês fizeram esta trajetória ser mais leve, divertida e menos solitária.

À Ceppan, por ter me proporcionado tanto aprendizado. Por ter sido um lugar de trocas valiosas e respeito mútuo. Agradeço imensamente a todos os membros e ex-membros.

À Cybelle Weinberg, coordenadora da Ceppan e amiga tão querida. Sua força de vida, inteligência e amor ao nosso grupo me servem de modelo sempre. À Ana Paula Gonzaga, pela coordenação carinhosa e firme do nosso grupo durante tanto tempo e pela parceria frutífera e ensinamentos constantes.

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À Gabriela Malzyner, Ana Tereza Alonso e Talita Azambuja Nacif, os presentes que a psicanálise dos transtornos alimentares me deram na vida. Obrigada por tudo: pela parceria na vida e na profissão, pela troca constante e por todo amor e respeito de vocês. À Gabriela, pela ajuda tão preciosa e essencial na elaboração desta pesquisa.

À Nora Miguelez pelos ensinamentos constantes, pela delicadeza e pela leitura atenciosa de parte deste trabalho.

À Miriam Halpern Goldstajn, pela escuta carinhosa e cuidadosa e por me ensinar do que realmente se faz uma relação analítica, mesmo à distância.

Às analistas que gentilmente se dispuseram à entrevista. A colaboração de vocês foi essencial. Agradeço a confiança e disponibilidade.

Aos meus pacientes e ex-pacientes, pela confiança e por todo aprendizado. Sem vocês, nada disto seria possível.

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JACOBSOHN, Patricia Gipsztejn. A figura do analista na clínica das anorexias e bulimias. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). São Paulo: Pontifíc ia Universidade Católica de São Paulo; 2017.

RESUMO

Esta pesquisa busca investigar aspectos da prática clínica de analistas que trabalham com pacientes com anorexias e bulimias. Tem por objetivo investigar as especificidades e questões de pertinência particular no encontro do analista com seu paciente; levantar aspectos contratransferenciais surgidos no encontro desta dupla analítica; verificar se é possível correlacionar esses aspectos contratransferenciais à dificuldade no atendimento e vínculo com esses pacientes; verificar se existe uma dificuldade nesses atendimentos, o que mobiliza pessoalmente e quais as questões envolvidas na escolha profissional desses analistas em lidar com esse tipo de paciente; levantar dados pessoais desses analistas (como histórico de transtorno alimentar em suas histórias pessoais ou familiares) e correlacioná-los à escolha profissional; e, ainda, investigar se a forma com que a o analista lida com questões relativas ao seu próprio corpo e como conduz sua vida alimentar influenciam sua prática clínica. Foi feita uma pesquisa teórica, com revisões bibliográficas referente à temática proposta e aos conceitos que se articulam ao trabalho, e também foram realizadas entrevistas semi-abertas com 5 (cinco) analistas mulheres que estudam e trabalham com pacientes com anorexias e bulimias.

Palavras-chave: anorexias, bulimias, figura do analista, contratransferência, prática clínica, corpo, escolha profissional, especificidade técnica.

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JACOBSOHN, Patricia Gipsztejn. The figure of the analyst in the clinic of anorexias and bulimias. Dissertation (Masters in Clinical Psychology). São Paulo: Pontifíc ia Universidade Católica de São Paulo; 2017.

ABSTRACT

This research aims at investigating aspects of the clinical practice of analysts who work with patients with anorexias and bulimias. It also aims at investigating the specificities and issues of particular relevance in the analyst's encounter with his/her patient; countertransference issues arising in the encounter of this analytical duo; checking if it is possible to correlate these countertransference aspects with the diffic ult y in attendance and bond with these patients; if there is a difficulty in these services, which mobilizes personally and which issues involved in the professional choice of these analysts to deal with this type of patient; raising personal questions of these analysts (such as history of eating disorder in their personal or family histories) and correlate this issue with professional choice; and also investigating whether the way the analyst deals with questions about his/her own body and how he conducts his/her food life influence his clinical practice. A theoretical research was carried out, with bibliographical revisio ns referring to the proposed theme and the concepts that are articulated to the work. Semi-open interviews were also carried out with 5 (five) female analysts who study and work with patients with anorexias and bulimias.

Keywords: anorexias, bulimias, analyst figure, countertransference, clinical practice, body, professional choice, technical specificity

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...9

1. Objetivos gerais e específicos ... 13

2. Justificativa... 14

3. Metodologia ... 15

CAPÍTULO I - PSICOPATOLOGIA E CLÍNICA DAS ANOREXIAS E BULIMIAS ...18

1. Breve histórico e critérios diagnósticos ... 18

2. Anorexias ... 20

3. Bulimias ... 27

4. A clínica das anorexias e das bulimias e suas especificidades. ... 33

CAPÍTULO II – O ENCONTRO AN ALÍTICO ...42

1. Freud e a contratransferência ... 42

2. O encontro analítico ... 47

3. O corpo do analista... 50

4. Os analistas: investimento intelectual, interesse libidinal, juízo de valores e ressonâncias na prática clínica ... 55

CAPÍTULO III – AS EN TREVISTAS ...59

1. A formação das entrevistadas, vivências profissionais e o preparo para o atendimento em transtorno alimentar. ... 60

2. O exercício da clínica ... 64

2.1 Questões contratransferenciais ... 64

2.2 Questões técnicas, dificuldades e especificidades... 73

2.3 O custo do atendimento... 80

3. A escolha profissional pelos transtornos alimentares: aleatória ou contingente? ... 86

4. O corpo e as questões alimentares dos analistas: decifra-me ou te devoro! ... 93

5. Os analistas que trabalham com transtorno alimentar: há algo de comum entre eles? ... 103

CONCLUSÃO ...109

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A figura do analista na clínica das anorexias e bulimias

“Nosso corpo é nossa história, somos a história do nosso corpo e somos o corpo da

nossa história”1.

Introdução

Tenho, desde o início da minha prática clínica, atendido pacientes com queixas relativas à problemática alimentar. E a psicanálise foi desde sempre o instrume nta l utilizado para esses atendimentos, fornecendo subsídios teóricos e técnicos para a compreensão de tais casos.

Em 2004, fiz a Formação em Psicanálise no Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Anteriormente, havia feito uma Especialização em Psicoterapia Psicodinâmica da Pré-adolescência e Adolescência no mesmo Instituto. E, vindo a somar, há 11 anos faço parte da CEPPAN (Clínica de Estudos, Pesquisa e Atendimento em Psicanálise da anorexia e bulimia). Este trajeto permitiu- me um aprimoramento e uma instrumentalização para o exercício da minha prática clínica, tanto para o atendimento de pacientes com queixas alimentares como de pacientes em geral.

A CEPPAN teve seu início no Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae no final da década de 1990. Em 2000 tornou-se independente, constituindo-se como um projeto de pesquisa e, desde então, vem realiza ndo atendimentos em psicanálise, oferecendo supervisões e divulgando os conhecime ntos adquiridos por meio de palestras, publicações, apresentações em congressos, teses e dissertações2.

1 MIRANDA, M.R. A representação simbólica nas perturbações alimentares à luz da relação mãe -filha. In

GONZAGA, A.P; WEINBERG, C. (orgs.). Psicanálise de transtornos alimentares. São Paulo: Primavera , 2010. p. 200.

2 O banco de dados da Ceppan possibilitou a elaboração de duas dissertações de mestrado e uma tese de

doutorado pela PUC-SP. As dissertações de mestrado de Kelly Cristina Arragait o Gonçalves e Gabrie la Malzyner tiveram orientação do Prof. Renato Mezan, e a tese de doutorado de Cybelle Weinberg teve orientação do Prof. Manoel Tosta Berlinck.

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Os pacientes chegam à CEPPAN encaminhados por instituições hospitalares de referência, como Hospital das Clínicas (PROTAD, AMBULIM e PRADA), Hospital Universitário e Servidor Público Estadual, além dos encaminhamentos por profissio na is como médicos, nutricionistas, psicólogos ou psiquiatras, e também via consultas ao site www.redeceppan.com.br.

O contato inicial é feito por telefone ou e-mail, e uma entrevista de triagem é agendada. Essa entrevista, realizada por dois triadores (um membro mais antigo da CEPPAN e outro membro em treinamento), visa primeiramente a definir se o paciente triado possui os critérios de atendimento da CEPPAN, como também a obter dados do paciente como sexo, idade, nível socioeconômico, histórico da doença: seu início, gravidade, ocorrência de internações. Essa entrevista segue um protocolo de triagem. O paciente, antes da entrevista, lê e assina o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, como forma de autorização na pesquisa proposta, ficando ciente, também, do cuidado ético, como a manutenção do sigilo.

Essa triagem é discutida pelo grupo de analistas e, então, um analista é disponibilizado para o atendimento. O analista, a cada seis meses, deve preencher um relatório de pesquisa.

Cybele Weinberg3, coordenadora da Ceppan, afirma em sua tese de doutorado:

O estudo dos relatórios mostra que, em decorrência do número significativo de casos acompanhados - ainda que atendidos por diferentes analistas -, esses pacientes têm um modo específico de se relacionar e que, ainda que se leve em conta a singularidade de cada caso, essa clínica apresenta certas características próprias que permitem, por exemplo, um estudo sobre a “clínica da anorexia.

GONÇALVES, K.C.A. Do virtual ao real – Um estudo psicanalítico sobre anorexia, bulimia e as relações

familiares. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

2009.

MALZYNER. G. Contribuições psicanalíticas ao atendimento de pacientes com transtornos alimentares

– Revisitando a técnica. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo, 2015.

WEINBERG, C. Sob o olhar da Santa Madre: articulações entre a vida de Santa Veronica Giuliani e a

clínica da anorexia. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, 2015.

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Esse “modo específico de se relacionar” faz da clínica das anorexias, como prefiro chamá-la, para que não se confunda sintoma com entidade clínica, uma clínica árida, de uma primitividade singular, que exige do analista extrema disponibilidade interna. A contribuição de Ogden4, neste ponto, é preciosa. Diz ele que o analista deve possuir a

capacidade de devaneio, isto é, a capacidade de sustentar por longos períodos de tempo um estado psíquico de receptividade aos sonhos não sonhados e interrompidos do paciente, à medida em que eles são vivenciados na transferência e na contratransferênc ia.

A primeira pergunta que se coloca ante esta dificuldade é a de como tratar alguém que nega seu adoecimento. Como me disse uma paciente: “Não tenho doença nenhuma, anorexia nenhuma, não estou magra demais. Está vendo isso aqui? (apontando para a esquálida barriga, num corpo de pouco menos de 35 quilos) é gordura! G-O-R-D-U-R-A! E não tenho feito nada além do que a sociedade tem pedido. Quem pode não ser linda, leve, magra, loira e lisa hoje? E me pedem para comer? Como assim? Liga a televisão, folheia uma revista, dá uma olhadinha na sua timeline do Facebook. Se tem gordos, eles são losers5. Isso eu te garanto”. O que parece ser, à primeira vista, uma recusa da realidade

exterior, é, como explica Fernandes6, uma recusa da realidade do próprio corpo: seu

tamanho, sua forma, sua espessura, sua imagem, bem como suas necessidades e seus desejos. É importante mencionar que, ainda que a paciente negue o adoecimento do corpo, há demanda psíquica, indicada pelo medo de fracassar.

O aspecto transferencial é um ponto importante que gostaria de retratar aqui. O contato com essas moças é bastante difícil. Muitas vezes, presas a uma mãe invasiva, repetem na relação conosco o protótipo dessas relações. Há uma impossibilidade de receber o que lhes é ofertado, ou uma total rejeição frente o que lhes é oferecido, parecendo transitar entre uma boca que não come ou que vomita o alimento. Fernandes7

afirma:

O difícil na condução do processo analítico dessas jovens é encontrar a justa medida, é conseguir dosar proximidade e distância, silêncio e palavra. Elas não podem ficar sem o alimento psíquico da proximidade

4 OGDEN, T.H. Esta arte da Psicanálise. Sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos . Porto

Alegre: Artmed, 2010. p. 22.

5 Fracassados, na tradução do inglês.

6 FERNANDES, M.H. Transtornos alimentares. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. p. 192. 7 Idem, p. 256.

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do analista, nem toleram ficar expostas à excitação excessiva de sua presença, se ela se fizer próxima demais.

Como já afirmamos em trabalho anterior8:

O processo analítico com estas pacientes é desafiador. O analista é colocado numa posição delicada, ora amado, ora odiado. Por vezes necessário, por vezes descartável. Num jogo transferencial permeado por senhas truncadas, de difícil solução e que requer do analista grande disponibilidade interna e muita tolerância. Por vezes requer uma plasticidade técnica. Muitas sessões ou muitas interpretações tendem a ser rejeitadas ou expelidas.

Frente a estas e outras particularidades desses atendimentos, o que mais me chama a atenção, e que pretendo pesquisar aqui, é a circunstância da escolha profissional dos analistas para cuidar desse tipo de paciente. É importante explicar que me refiro aqui a analistas que se debruçaram no estudo sistemático dos transtornos alimentares e que atendem, principalmente, pacientes com estas problemáticas. Diferentemente, portanto, de analistas que, dentre os vários tipos de pacientes atendidos, recebem também (mas não primordialmente) pessoas com transtornos alimentares. Que moções psíquicas, conscientes e inconscientes estariam aí em jogo? O que, na história pessoal desses analistas, embrenha-se nesta escolha? E, principalmente, como estas questões de ordem pessoal influenciam a prática clínica de cada analista?

O foco principal desta pesquisa, então, centra-se na figura do analista, na medida em que penso ser esta co-determinante no trabalho analítico. Para tanto, foram feitas entrevistas com cinco analistas. Sabemos que a vida mental do analista tem participação ativa no encontro analítico, podendo ser geradora de transformações e ampliações psíquicas, como também pode ser um entrave. As resistências ocorrem na dupla analít ica, não partindo apenas dos analisandos. Além do psiquismo, o corpo do analista é tomado de empréstimo, servindo como modelo identificatório para esses pacientes, que, com psiquismo e corpo em frangalhos, possam falar dos seus.

8 JACOBSOHN, P.G.; MALZYNER, G. “Travessuras de uma menina má: o corpo como palco

identificatório”. Trabalho apresentado no V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental. Fort aleza, 2012.

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Pretende-se, ainda, que os analistas entrevistados possam falar de suas experiências clínicas, de aspectos contratransferenciais em jogo nestes atendimentos, de questões técnicas e dificuldades encontradas no manejo clínico.

Ocorre, portanto, que estamos tratando de assuntos delicados, quase tabus, que envolvem afetos sutis, por vezes turbulentos. Põem-se o dedo na intimidade da experiência analítica dos analistas. Delicadeza maior será a de compreender e expor cognitivamente algo emocionalmente experenciado, que jogará para longe qualquer julgamento moral ou maniqueísta, ou ainda qualquer análise da vida ou exercício profissional dessas analistas, preservando o sigilo e o extremo respeito e consideração a colegas tão caras.

1. Obje tivos ge rais e e s pe cíficos

Esta pesquisa tem como objetivo geral investigar aspectos da prática clínica de analistas que trabalham com pacientes com anorexias e bulimias. Seus objetivos específicos são:

a) investigar as especificidades e questões de pertinência particular no encontro do analista com seu paciente com anorexias e bulimias;

b) levantar aspectos contratransferências surgidos no encontro da dupla analít ica ; c) verificar se é possível correlacionar estes aspectos contratransferenciais à

dificuldade no atendimento e vínculo com estes pacientes;

d) investigar, já que existe uma dificuldade nesses atendimentos, o que mobiliza pessoalmente e quais as questões envolvida s na escolha profissional dos analistas em lidar com este tipo de paciente;

e) levantar questões pessoais desses analistas (como o histórico de transtorno alimentar em suas histórias pessoais ou familiares) e averiguar se existe correlação entre isso e a escolha profissional;

f) investigar se a forma com que a o analista lida com questões relativas ao seu próprio corpo, e como conduz sua vida alimentar, influenciam sua prática clínica.

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Penso que a análise destas questões poderá facilitar o vínculo terapêutico com esses pacientes, melhorando a qualidade da dupla analítica, e, em sentido mais amplo, analista/paciente/família e/ou instituição (se for o caso). Poderá também auxiliar na manutenção do vínculo paciente-analista, podendo promover maior adesão ao tratamento, já tão complicada por características inerentes às patologias em si (como negação da doença e onipotência). Além da possibilidade de se conhecerem mais profundame nte sentimentos, vivências, ideias e comportamentos dos profissionais envolvidos, possibilitando, assim compreender as questões contratransferenciais em jogo.

2. Jus tificativa

A ocorrência de casos de transtornos alimentares tem crescido vertiginosame nte e, como consequência, os analistas têm recebido cada vez mais pacientes para tratamento em seus consultórios ou em instituições públicas e particulares que atendam esta demanda.

Ao mesmo tempo, muito se tem escrito sobre a clínica psicanalítica dos transtornos alimentares. São numerosos os artigos e livros relativos ao tema9: uma

bibliografia rica e importante para o estudo e investigação de tais fenômenos. Este cenário atual é bastante diferente daquele de quinze anos atrás, quando a compreensão e atendimento clínico a esses pacientes ficavam restritos à abordagem cognitiva e comportamental. Entretanto, tive grande dificuldade na pesquisa bibliográfica relativa aos analistas envolvidos nesses atendimentos. Encontrei, é verdade, trabalhos relativos a profissionais que trabalham com transtornos alimentares em outras áreas do conhecimento, como nutrição ou enfermagem10. Ou então, encontrei, ainda que de forma

escassa, alguma bibliografia sobre terapeutas que tiveram transtorno alimentar e

9 Entre outros: GONZAGA, A.P; WEINBERG, C. (orgs.). Psicanálise de transtornos alimentares. São

Paulo: Primavera Editorial, 2010; WEINBERG, C. (org.). Psicanálise de transtornos alimentares. Volume

II. São Paulo: Primavera Editorial, 2016; BRUNO, C.A.N.B.(org.). Distúrbios alimentares. Uma contribuição da Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2011; RAMOS, M.; FUKS, M.P. (orgs). Atendimento psicanalítico da anorexia e bulimia. São Paulo: Zagodoni, 2015.

10 ALVARENGA, M.S et al. Orthorexia nervosa behavior in a sample of brazilian dietitians assessed by

ORTO15. In: Eating Weight Disorders Journal. v. 17: n.1, 2012; GRANDO, L.C.; ROLIM, M.A. Os transtornos da alimentação sob a ótica dos profissionais de enfermagem. In: Revista Acta Paul Enfermagem, v. 19, n. 3, 2006.

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trabalham com pacientes com transtornos alimentares11. Porém, o referencial teórico

desses trabalhos não é a psicanálise.

Portanto, a produção cientifica deste tema mostra-se extremamente relevante, pois penso que ela será útil para o exercício da clínica dos transtornos alimentares, auxilia ndo na técnica analítica e, principalmente, na postura clínica dos analistas.

3. M e todologia

O referencial teórico utilizado foi a psicanálise, que, por si só, já se configura como um método de investigação científica, além de tarefa terapêutica (Mezan; Figueiredo e Minerbo; Naffah Neto).12

Foi feita uma pesquisa teórica, com revisões bibliográficas referentes à temática proposta e aos conceitos que se articulam ao trabalho e também foram realizadas entrevistas semiabertas com 5 (cinco) analistas mulheres que trabalham com pacientes com anorexias e bulimias.

Estas entrevistas foram gravadas nos consultórios das analistas. Posteriormente, organizei-as em eixos-temáticos e utilizei fragmentos de relatos das analistas no capítulo III. As entrevistas não foram analisadas em suas particularidades, mas utilizadas como ilustrações dos temas propostos, no sentido de ampliaçãoes do pensar, a partir das vivências e experiências clínicas das analistas. É importante mencionar que optei por não anexar na íntegra essas entrevistas, para preservar o sigilo das minhas colaboradoras. Mesmo na exposição dos fragmentos, alguns dados (que não alteram a compreensão)

11 VOS, J.A; NETTEN, C; NOORDENBOS, G. Recovered eating disorder therapists using their

experiential knowledge in therapy: A qualitative examination of therapists and patients view. In: Eating

Disorder. The journal of treatment & prevention, 2015. Disponível em: http://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/ 10640266.2015.1090869. Acesso out 2015.

12 MEZAN, R. Pesquisa em psicanálise: algumas reflexões. In: MEZAN, R. O tronco e os ramos. São

Paulo: Companhia das letras, 2014.

FIGUEIREDO, L.C.; MINERBO, M. Pesquisa em psicanálise: algumas ideias e um exemplo. Jornal de

psicanálise, São Paulo, v. 39, n. 70, p. 257-278, 2006. Disponível em

<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352006000100017&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em set. 2016.

NAFFAH NETO, A. A pesquisa psicanalítica. Jornal de psicanálise, São Paulo, v. 39, n. 70, p.279-288, 2006. Disponível em

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foram suprimidos ou alterados. Ainda como forma de preservar as identidades das analistas, optei por não nomeá-las, e a organização do material foi feita a partir dos eixos temáticos, e não por sequência das entrevistas.

Segundo a categorização proposta por Mezan13, seguindo o eixo principal possível

de cada investigação em teses e dissertações, a saber: 1) teses predominanteme nte teóricas; 2) teses sobre questões de psicopatologia; 3) teses sobre fatores operantes no processo psicanalítico; e 4) teses sobre a atividade terapêutica em âmbito institucional. A presente pesquisa enquadra-se nas categorias 2 e 3, já que abordará questões relativas a uma psicopatologia específica (anorexias e bulimias), bem como, em aspectos que incidem no processo psicanalítico, como certas especificidades da relação analista/paciente, principalmente com relação à contratransferência.

Para concluir esta Introdução, apresento a estrutura que me pareceu adequada para construir o texto dessa dissertação. O capítulo I (Psicopatologia e Clínica das Anorexias e Bulimias) traz um breve histórico sobre as patologias, apresentando também, os critérios diagnósticos e as diferenciações nosográficas entre a psicanálise e a psiquiatria. Logo após, expõem-se as particularidades da clínica das anorexias e bulimias, importante para que se conheça o cotidiano desta clínica. No Capítulo II (O Encontro Analítico), aborda-se, inicialmente, a visão freudiana sobre a contratransferência e seus derivados, já que Freud pouco se referiu ao tema. Logo após, expõe-se sobre o encontro analítico e como alguns autores, como Ogden, Bion e Rosenfeld entendem a situação analítica e o conceito de identificação projetiva. Aborda-se, então, como o corpo do analista faz parte do setting, tanto em suas vivências somáticas, quanto a respeito da posição do analista sobre o comer. Termina-se este capítulo com um paralelo, emprestado de Joyce Mc Dougall. A autora escreve sobre o investimento intelectual, interesse libidinal e a prática clínica com pacientes perversos sexuais a que fez-se um paralelo com a clínica das anorexias e bulimias. No Capítulo III (As Entrevistas), discute-se e amplia-se importantes conceitos e temas trazidos à tona nestas entrevistas, como formação dos analistas, questões contratransferênciais, a técnica analítica e suas especificidades nesta clínica, a escolha profissional pelos transtornos alimentares, o corpo e as questões alimentares dos analistas e sua influência na prática clínica e, por fim, o que há de comum entre os analistas que

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trabalham com anorexias e bulimias. Conclui-se então o trabalho a partir das referências bibliográficas utilizadas e das entrevistas realizadas com as analistas.

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Capítulo I - Psicopatologia e Clínica das Anorexias e Bulimias

1. Bre ve his tórico e Crité rios Diagnós ticos

Anorexias e bulimias são as psicopatologias que delimitam este trabalho. É importante, então, que as definamos e apresentemos as diferentes nosografia s : psiquiátricas e psicanalíticas. Cabe ressaltar que os distúrbios do comportamento alimentar são bastante variados. Escolhi a delimitação das anorexias e da bulimias como filtro de pesquisa. Porém, quadros psicopatológicos importantes ficaram de fora desta pesquisa, a começar pelos transtornos da alimentação, frequentemente iniciados na infância como o “comer seletivo”, “comer restritivo” e “recusa alimentar”, nas definições de Bryan & Lask14.

O DSM IV propunha a classificação de Transtornos da alimentação da primeira infância, que se caracterizava por uma perturbação na alimentação, manifestada pelo fracasso persistente em comer adequadamente e em ganhar peso ou em perda significa t iva de peso ao longo de pelo menos um mês, iniciando-se antes dos 6 anos.15 A nova edição,

do DSM V, retira este critério diagnóstico. Em substituição, aparece o Transtorno Alimentar Restritivo/Evitativo (TARE), caracterizado como:

A - Uma perturbação alimentar (p. ex. falta aparente de interesse na alimentação ou em alimentos; esquiva baseada nas características sensoriais dos alimentos; preocupação acerca de consequências aversivas alimentar) manifestada por fracasso persistente em satisfazer as necessidades nutricionais e/ou energéticas apropriadas associada a um (ou mais) dos seguintes aspectos:

1. perda de peso significativa (ou insucesso em obter o ganho de peso esperado ou atraso de crescimento em crianças);

2. deficiência nutricional significativa;

3. dependência de alimentação enteral ou suplementos nutricionais orais;

4. interferência marcante no funcionamento psicossocial.

14 LASK, B.; BRYANT-WAUGH, R. Overview of the eating disorders. In Anorexia nervosa and related

eating disorders in childhood and adolescence. Hove: Psychology Press, 2000. p. 27-39.

15 DSM IV - Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos mentais: DSM – 4. American Psychiatric

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B - A perturbação não é mais bem explicada por indisponibilidade de alimento ou por uma prática culturalmente aceita.

C - A perturbação alimentar não ocorre exclusivamente durante o curso de anorexia nervosa ou bulimia nervosa, e não há evidencia na perturbação na maneira como o peso ou a forma corporal é vivenciada. D - A perturbação alimentar não é atribuível a uma condição médica concomitante ou mais bem explicada por outro transtorno mental. Quando a perturbação alimentar ocorre no contexto de uma outra condição ou transtorno, sua gravidade excede a habitualmente associada à condição ou ao transtorno e justifica atenção clínica adicional”.

Percebe-se, então, que um dos critérios diagnósticos é a perda de peso ou atraso de desenvolvimento e deficiência nutricional. Porém, a pratica clínica tem me demostrado que a maioria das crianças que chegam ao consultório têm peso e altura normais. Algumas vezes, são consideradas crianças pequenas, de percentil mais baixo, mas ainda assim com curva de crescimento normal. É importante mencionar que tenho notado um aumento crescente deste tipo de demanda. Seja em função de uma mãe ou de um pai que já teve um transtorno alimentar ou uma obesidade, ou pais patologicamente preocupados com a alimentação de seus filhos, ou, ainda, pais perdidos em meio à diversidade de orientações nutricionais e daquilo que é considerado “saudável”.

Também fica fora do escopo desta pesquisa o “comer transtornado”, tão frequente no consultório. Chamo de comer transtornado uma perturbação do ato alimentar, seja em função de uma preocupação constante com a alimentação e suas funções, de forma a prejudicar a vida social, familiar e o trabalho, seja pelo uso de métodos purgativos como vômitos ou exercício físicos sem a presença das compulsões (o que caracterizaria uma bulimia) ou perda de peso acentuada. Pelo DSM V, alguns destes casos entrariam na classificação de “Outro Transtorno Alimentar Especificado ” ou “Transtorno Alime ntar Não Especificado.”

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2. Anore xias

Anorexia e bulimia são condições psicopatológicas que foram amplamente estudadas e têm, provavelmente, os primeiros relatos de quadro desde a Idade Média. Cybelle Weinberg (2003, 2004, 2006)16 relata os casos de anorexia santa. No século XIII,

Clara de Assis recorria ao jejum para purificar-se e aproximar-se de Deus. Santa Catarina de Siena, como forma de fugir ao casamento arranjado por seus pais, vai para o convento e pratica jejuns e autoflagelação até sua morte, aos 32 anos. Santa Wilgefortis (também conhecida por Santa Liberata), também fugindo de um casamento proposto por seu pai, jejuou até perder todos os contornos femininos e crescer uma penugem sobre seu corpo (possivelmente o lanugo, comum em meninas com anorexia).

Também o judaísmo traz algumas passagens relativas aos jejuns. Segundo o Rabino Shneor Zalman de Liadi, no livro Tanya 17 (publicado pela primeira vez em 1796),

no tratado de Igueret Ha Theshuva (Carta de Arrependimento)18, na época do Templo de

Jerusalém, para receber o perdão divino para certos tipos de pecados, além do arrependimento era necessário dar um animal como oferenda para sacrifício no altar do templo. Esse animal era abatido, e sua gordura e seu sangue eram consumidos pelo fogo. Dada a impossibilidade de se oferecerem estes sacrifícios após a destruição do Templo de Jerusalém, o jejum passou a ser considerado uma oferenda por "consumir" gordura e sangue do penitente.

O livro Tanya menciona um trecho do Guemará, no tratado de Berachot (Bênçãos)19, que diz "Quando o Rabino Shesheth jejuava, ao concluir sua oração, ele

adicionava o seguinte: Soberano do Universo, Tu bem sabes que, no tempo em que o

16 BUCARETCHI, H.A.; WEINBERG, C. Um breve Histórico sobre transtornos alimentares. In:

BUCARETCHI, H.A. (org.) Anorexia e Bulimia Nervosa. Uma visão multidisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

WEINBERG, C. Avaliação crítica da evolução histórica do conceito de anorexia nervosa . Dissertação de Mestrado (em Ciências). São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, 2004.

CORDÁS, T.A.; WEINBERG, C. Do altar às passarelas. Da anorexia santa à anorexia nervosa. São Paulo: Anablume, 2006.

17 LIADI, Shneor Zalman. Lik udei Amarim Tanya. Vol. 5. Editora Beith Lubavitch, 2011. 18 Capítulo 2 e 3.

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Templo estava em pé, se um homem tivesse pecado, ele deveria trazer um sacrifício e, embora tudo o que era oferecido fosse gordura e sangue, a expiação era aceita. Agora eu mantive um jejum, e minha gordura e sangue diminuíram. Que seja Tua vontade aceitar minha gordura e sangue que foram diminuídos, como se eu tivesse oferecido um sacrifíc io no altar" (tradução livre).

Entretanto o livro Tanya20 explica que há afirmações que hoje em dia fazer jejuns

excessivos causa doença e dor e por isso, os jejuns voluntários de penitência devem ser substituídos por atos de caridade, sendo esta uma forma mais refinada. Devo mencionar aqui a extrema importância e relevância do alimento no judaísmo. Diz-se que todo o alimento carrega em si uma centelha divina.

As descrições clínicas da anorexia começam a aparecer com Richard Morton em 169121. Narra o caso de uma moça de 18 anos com uma estranha doença caracterizada

por um emagrecimento autoinduzido, um “estado mórbido de espírito” e com três principais sintomas: perda de apetite, amenorreia e emagrecimento excessivo. A este quadro chamou de consunção ou atrofia nervosa. Em 1789, Naudaud, na França, descreveu um outro caso clínico com características semelhantes: uma doença nervosa acompanhada de uma repulsa extraordinária por alimentos. Em 1859, Louis Victor Marcé, um supervisionando de Charcot, descreveu dois casos clínicos de pacientes que apresentavam recusa alimentar, denominada por ele de delírio hipocondríaco.22

Segundo Bucaretchi e Weinberg, a anorexia ganha status de entidade clínica no fim do século XIX, com William Gull na Inglaterra (1868) e Charles Lasègue na França (1873). Gull descreveu o quadro clínico de três moças entre 14 e 18 anos num encontro do British Medical Association. Primeiramente, havia denominado o quadro de Apepsia Histérica, sendo que, em 1874, passa a denominá- lo anorexia nervosa.

20 Idem, p. 1245.

21 Apud WEINBERG, C. Avaliação crítica da evolução histórica do conceito de anorexia nervosa.

Dissertação de Mestrado (em Ciências). Faculdade de Medicina da USP, 2004.

22 Apud BUCARETCHI, H.A.; WEINBERG, C. Um breve histórico sobre transtornos alimentares. In:

BUCARETCHI, H.A. (org.) Anorexia e bulimia nervosa. Uma visão multidisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. p. 20.

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Em 1873, Lasègue23 descreve, com riqueza de detalhes e uma atualidade

surpreendente, o caso de uma moça entre 15 e 20 anos que, com um mal-estar subsequente à alimentação, decide ir diminuindo essa alimentação, até a abstenção completa, num curso tão comum ás anoréxicas atuais, que iniciam a doença gradativamente, excluindo certos grupos alimentares:

A repugnância em se alimentar segue devagar seu curso progressivo. As refeições são cada vez mais reduzidas e uma delas apenas, almoço ou jantar, pode ser considerada como alimentícia. Quase sempre a paciente suprime sucessivamente um dos tipos de comida, o pão, a carne, certos legumes. Às vezes ela consente em substituir um alimento por outro ao qual se apega com uma predileção exclusiva por várias semanas, o pão, por exemplo, por torradas ou bolachas, para em seguida renunciar e substituir ou não os alimentos provisoriamente adotados.

Descreve ainda, outro fenômeno tão comum na nossa clínica atual - ao invés dessas pacientes apresentarem fraqueza muscular - a escassez alimentar aumenta a aptidão ao movimento, o que faz as pacientes se sentirem ativas, mais leves. E com relação ao esforço de médicos e família ao introduzir a alimentação, diz24:

Quando, após vários meses, a família, o médico, os amigos percebem a inutilidade persistente de todos seus esforços, a inquietação vai se impondo e, com ela, o tratamento moral. É nesse momento que vai se desenhar a perversão mental que, por si, é quase característica e justifica o nome que propus, por falta de opção melhor, de anorexia histérica.

Segue descrevendo que a família multiplica as iguarias à mesa, na proporção em que decresce o apetite da moça. E sabiamente alerta que o “excesso de insistência evoca um excesso de resistência”. E conta como, aos poucos, a anorexia torna-se o único objetivo das preocupações e das conversas, formando uma atmosfera em torno dessas pacientes, que as envolve e da qual não se escapa. E segue contando como as histéricas escapam e desculpam-se diante da insistência familiar em fazê-las se alimentar:

O que domina no estado mental da histérica é, antes de mais nada, uma quietude, diria quase um contentamento verdadeiramente patológico. Não apenas ela não lamenta a falta de cura, mas se compraz em sua

23 LASÈGUE, C. Da anorexia histérica, 1873. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental.

Vol. 1, n.3, São Paulo, 1998, p. 162. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rlpf/v1n3/1415-4714-rlp f- 1-3-0158.pdf. Acesso em dezembro de 2015.

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condição, apesar de tantas contrariedades que essa lhe suscita. Ao comparar essa segurança satisfeita com a obstinação do alienado, não acredito estar exagerando. Se colocássemos todas as anorexias em perspectiva, veríamos o quanto diferem entre si. Mesmo no ponto máximo de suas repugnâncias, o canceroso espera e solicita um alimento que desperte seu apetite. Ele está disposto a todas as tentativas embora não consiga vencer sua aversão. O dispéptico sem lesão orgânica esforça-se por variar seu regime, por ajudar a si mesmo de qualquer forma e se queixa com o azedume habitual de quem sofre do estômago. Nada disso no caso que evocamos, pelo contrário: um otimismo inexpugnável que todas as suplicações e ameaças não conseguem abalar. Não sofro, portanto estou bem de saúde, essa é a fórmula monótona que substituiu a antiga: não posso comer porque sofro. Já ouvi tantas pacientes repeti-la, que, para mim, ela já representa um sintoma, quase um sinal.

Quanto a este estado de quietude e contentamento patológico, percebo-o atualmente como um triunfo em controlar o corpo e suas sensações corporais. E, posso acrescentar que, numa versão mais moderna, a negação da doença das meninas atualmente embrenha-se na defesa de um “estilo de vida”, ou, ainda, costumam dizer que seguem fazendo o que a sociedade tanto lhes impõe: um corpo magro.

A única diferença entre a descrição de Lasègue e as nossas pacientes com anorexia aparece ao fim de seu texto, quando afirma que nunca observou um caso de morte por anorexia. Infelizmente hoje, 133 anos depois, sabe-se que a anorexia é uma das afecções psiquiátricas mais letais.

Janet25, em seu livro rico em descrições psicopatológicas comuns ao estudo da

histeria, já que a descrição se dava por grupos de sintomas e padrões, aponta em dois momentos para o que chamou de anorexia histérica. Quando relata o caso de Té..., jovem de 18 anos com fobia alimentar, emagrecida e pálida, distingue-o de um caso da anorexia histérica, já que a jovem não apresentava “nenhum estigma histérico” - sua recusa alimentar não vem acompanhada dos problemas da sensibilidade, que caracteriza a anorexia histérica: não se verifica o desaparecimento do cansaço, a sensação de euforia, a necessidade de movimento.

25 JANET, P. Les obsessions et la psychasthénie II. Paris, 1908 p.159. Disponível em:

https://ia902306.us.archive.org/18/items/lesobsessionsetl02jane/lesobsessionsetl02jane.pdf. Acesso em setembro de 2016.

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Como bem comenta Fernandes26, ao descrever e comentar o caso de Nádia, outra

paciente, Janet evidencia o medo de engordar e designa a anorexia como “doença da vontade”. Com vergonha do corpo, a paciente vestia-se como menino, o que para Janet não significava uma inversão sexual, e sim “o desejo de erradicar o sexo, de não ter corpo algum”.

Numa abordagem mais recente, Hilde Bruch27 traz importantes contribuições à

compreensão da anorexia. Diz que essas contribuições são resultados de dez anos de atendimento a doze pacientes com anorexia nervosa, nove mulheres e três homens. Fala de uma progressiva perda de peso nesses pacientes, que não apresentavam nenhuma outra condição anormal de saúde e, assim como descreve Lasègue, diz que esses pacientes continuavam ativos apesar da perda de peso. As consultas psiquiátricas ocorreram num segundo momento, já que causas orgânicas que justificasse m a perda de peso não haviam sido encontradas. A ocorrência da doença se deu entre os 11 e 20 anos, e somente um dos pacientes estava no seu primeiro ano da doença, enquanto os outros se mantinham doentes de três a seis anos e meio. Seis desses pacientes eram de seu consultório particular e os outros seis, incluindo os três homens, eram pacientes do New York State Psychiatric

Institute. As mulheres estavam amenorreicas, apesar de terem tido ao menos um episódio

menstrual espontâneo. Os três moços eram pré-púberes e apresentavam retardo de peso e maturação física, medidos por raio X para determinação de idade óssea. Relata quetrês pacientes interromperam o tratamento prematuramente, tendo atendido os outros nove casos em psicoterapia individual intensiva de dois a quatro anos. Este contato estendia- se também a membros da família, com finalidade terapêutica e investigativa.

O DSM V28 propõe como critério diagnóstico para a anorexia nervosa:

A. restrição da ingesta calórica em relação às necessidades, levando a um peso corporal significativamente baixo no contexto de idade, gênero, trajetória do desenvolvimento e saúde física. Peso significativamente baixo é definido

26 FERNANDES, M.H. Transtornos alimentares. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. p. 60.

27 BRUCH, H. Perceptual and conceptual disturbances in anorexia nervosa. Psychosomatic Medicine.

Vol. XXRV, n.2, 1962. Disponível em:

http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.320.7064&rep=rep 1&type=pdf. Acesso em setembro de 2016.

28 AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos

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como um peso inferir ao peso mínimo normal ou, no caso de crianças e adolescentes, menor do que o mínimo esperado.

B. medo intenso de ganhar peso ou engordar, ou comportamento persistente que interfere no ganho de peso, mesmo estando com peso significativame nt e baixo;

C. perturbação no modo como o próprio peso ou a forma corporal são vivenciados, influência indevida do peso ou da forma corporal na autoavaliação ou ausência persistente de reconhecimento da gravidade do baixo peso corporal atual.

A anorexia nervosa é dividida em 2 subtipos:

1. tipo restritivo: Durante os últimos 3 meses, o indivíduo não se envolveu em episódios recorrentes de compulsão alimentar ou comportamento purgativo (i.e; vômitos autoinduzidos, ou uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas). Esse subtipo descreve apresentações nas quais a perda de peso seja conseguida essencialmente por meio de dieta, jejum e/ou exercício em excessivo;

2. tipo compulsão alimentar purgativa: Nos últimos três meses, o indivíduo se envolveu em episódios recorrentes de compulsão alimentar purgativa (i.e. vômitos autoinduzidos ou uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas). O Manual inda especifica a gravidade atual da doença:

- Leve: IMC ≥ 17 kg/m2

- Moderada: IMC 16-16,99 kg/m2

- Grave: IMC 15 – 15,99 kg/m2

- Extrema: IMC < 15kg/m2

Com relação à compreensão psicanalítica29, Fernandes aponta que alguns autores

concordam com uma especificidade psíquica da anorexia. E apesar da coerência clínica

29 Para a compreensão da metapsicologia da anorexia e da bulimia, bem como ao percurso de Freud por

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na descrição dos casos, a compreensão teórica e o tratamento permanecem um desafio. Por isso, a necessidade do investimento de profissionais nas abordagens múltip las, “capazes de recobrir as diversas perspectivas em jogo na heterogeneidade dos modos de funcionamento psíquico apresentado pelas jovens anoréxicas”.

A autora afirma30, ainda, que a anorexia tem ligações de proximidade com a

histeria, a fobia, a neurose obsessiva, a hipocondria e certos estados pré-psicóticos. Além disso, diz que o sintoma anoréxico pode estar presente numa grande diversidade de quadros psicopatológicos31. Assinala a possibilidade do poder transformador do

tratamento psicanalítico de longo prazo para essas pacientes.

Nora Miguelez32 traz à tona a discussão sobre a inclusão da anorexia e bulimia,

dentre outras patologias, no rol das chamadas “novas patologias”, efeito das mudanças fundamentais em nossa cultura contemporânea, afastando-se dos modos de subjetivação estudados até agora pela psicanálise. Após o breve histórico relatado acima, fica fácil concluir que não se trata de novas patologias. Percebemos a ocorrência da sintomatolo gia anoréxica ou bulímica em histerias de conversão, melancolias ou psicoses, tão bem descritas pela psicanálise. Diz Miguelez: “ Talvez seja prudente considerar que um “diagnóstico” na psicanálise, somente decanta no après coup da transferência”.

Ocorre que, nas anorexias e bulimias, desenham-se algumas particularidades, como se verá a seguir. Entretanto, utilizamos o mesmo método psicanalítico, com arsenais teóricos clássicos, que possam levar em conta a especificidade dos sintomas. Às vezes, porém, faz-se necessária uma plasticidade da técnica, como se verá em seguida.

psicanálise in: Transtornos Alimentares. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006; bem como, A anorexia e a bulimia em Freud. In: Psicanálise de transtornos alimentares. São Paulo: Primavera, 2016.

30 FERNANDES. M.H. Transtornos alimentares, São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. p. 67. 31 Por isso, prefiro me referir aos sintomas de forma plural: anorexias e bulimias.

32 MIGUELEZ, N. Otavio e as “novas patologias” no divã. Revista Trivium, Ed.1. Universidade Veiga de

Almeida, Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.uva.br/trivium/edicao1/artigos tematicos/5otavio -as-novas-patologias-no-diva.pdf. Acesso em fevereiro de 2017.

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3. Bulimias

O termo bulimia deriva do vocábulo grego boulimia que significa fome de boi (bous - boi e limos - fome). Segundo Bucaretchi e Weinberg33, são encontrados relatos

sobre comportamentos semelhantes aos da bulimia na Roma antiga, com descrições de condutas alimentares exageradas, seguidas de vômitos autoinduzidos. Existia um local específico nos palácios romanos para tais atos, o vomitorium, utilizado depois das orgias alimentares. As autoras atentam para o fato de que não se pode caracterizar essas descrições como configuração de bulimia nervosa, já que faltam referências a questões centrais nesses casos, como controle de peso e preocupação com a forma corporal.

Assim como diversos outros autores (Alexander-Mott & Lumsden; Blinder & Cadenhead; Kaplan & Garfinkel)34, as autoras trazem ainda uma referência ao Talmud,

onde o termo boolmut era utilizado para descrever uma síndrome em que uma pessoa se encontra tão fortemente tomada pela fome que o seu juízo em relação à alimentação, bem como o nível de consciência sobre os acontecimentos externos, são menosprezados. Essa síndrome era descrita como um perigo mortal.

Pude levantar que o termo citado se refere a palavra bulmos, que aparece na Mishnah (uma das coletâneas do Talmud). Encontra-se no tratado Yomá, capítulo 835,

que trata sobre o jejum de Yom Kipur e as exceções a ele, quando se permite a comida, por exemplo, a pessoas doentes, mulheres grávidas, crianças ou pessoas com bulmos, fome extrema ou fome voraz. Neste caso, pode-se, inclusive, ingerir alimentos “impuros ”

33 BUCARETCHI, H.A.; WEINBERG, C. Um breve Histórico sobre transtornos alimentares. In:

BUCARETCHI, H.A (org.) Anorexia e Bulimia Nervosa. Uma visão multidisciplinar. São Paulo: Casa do psicólogo, 2003. p. 22.

34 ALEXANDER-MOTT, L.E; LUMSDEN, D.B. Understanding eating desorders: anorexia nervosa,

bulimia nervosa and obesity. Washington: Taylor and Francis, 1994.

BLINDER, B.J; CADENHEAD, K. Bulimia: a historical overview. In: Adolescent Psychiatric. vol. 13: p. 231-40, 1986.

KAPLAN, A.S; GARFINKEL, P.E. Bulimia in the Talmud. In: American Journal of Psychiatry. vol. 14, n. 5, p. 721, 1984.

35 MISHNAH. Disponível online em: www.emishnah.com/moed2/yoma/8.pdf. Acesso em outubro de

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(não kasher), até que a pessoa aparente estar melhor. Alguns comentaristas da Mishnah dizem que a pessoa pode comer até que se possa pressupor que o perigo de vida passou.

Várias são as referências à bulimia no começo do século XVIII36. Blankaart, em

1708 no Physical Dictionary e Quincy em 1726 no Dicionário Médico, a definem como um apetite extraordinário, relacionado a um transtorno gástrico. Em 1743, R. James faz uma descrição minuciosa, associando-a a uma disfunção digestiva, devida a um “humor ácido grave”. Associa a bulimia aos vômitos e a uma preocupação excessiva com a alimentação. Aconselha uma dieta especial, bem como o uso de opiáceos para acalmar a fome. Em 1785, G. Motherby classifica três formas de bulimia: as puras, as que termina m em vômitos e as que são acompanhadas de sensações de desmaio e perda de consciênc ia.

Nos séculos XVIII e XIX, as referências a bulimia foram muito ricas e detalhadas, mais do que as referências à anorexia. A partir da segunda metade do século XIX, não se deu muita atenção à bulimia, até ao final do século XX, quando se recupera o interesse37.

Nestes primeiros escritos científicos sobre a bulimia, os relatos confundia m- se com a anorexia. Descreviam-se pacientes anoréxicas com práticas purgativas e sensaçã o de fome persistente, ou associados a transtornos gastrointestinais.

Janet 38, por exemplo, ao falar nas doenças dos tiques, no que chama de tique de

vomitar, relata o caso de As..., homem de 26 anos. Conta de sua magreza extrema e das quatro refeições que ingere por dia. “Se nos dissessem que sua magreza tem relação com uma neurose, pensaríamos imediatamente numa anorexia histérica. Não se trata disso. Trata-se de uma outra doença mental”. O paciente conta que come com apetite uma

36 Apud BUCARETCHI, H.A.; WEINBERG, C. Um breve Histórico sobre transtornos alimentares. In:

BUCARETCHI, H.A. (org.) Anorexia e bulimia nervosa. Uma visão multidisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003 e FERNANDES, M.H. Ou tudo ou nada: a anorexia e a bulimia. In: FERNANDES, M.H

Transtornos alimentares. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.

37 Susie Orbach fala do aumento de casos de bulimia nos Estados Unidos e Inglaterra, especialmente nos

campus universitários nos anos 80. Traz a bulimia como uma “atividade social” onde as estudantes se reúnem, se empanturram e purgam” (p. XIII). Por isso faz um paralelo entre o consumo de maconha e as “social bulimics” – bulímicas sociais. Diz que a bulimia não é um sintoma mais leve no caminho da anorexia, assim como a maconha não é uma droga mais leve no caminho para a heroína. Para algumas mulheres, a bulimia é um prelúdio para a anorexia, para outras mulheres é um sério problema em si mesmo , como o uso contínuo da maconha. ORBACH, S. Hunger Strik e. London: Penguin Books, 1993.

38 JANET, P. Les obsessions et la psychasthénie II. Paris, 1908, p. 247. Disponível em:

https://ia902306.us.archive.org/18/items/lesobsessionsetl02jane/lesobsessionsetl02jane.pdf. Acesso em setembro de 2016.

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quantidade bastante suficiente de alimento. Mas que aprendeu o hábito de vomitar. Depois de comer, provoca vômitos até que se certifique de que todo o alimento tenha saído. “E vai trabalhar sentindo-se leve, com o espírito livre. Como tem fome, espera ansiosamente até a próxima refeição e recomeça tudo de novo”. Conta que a doença já dura de cinco a seis anos e mostra fotos da magreza extrema do rapaz. Em meio a tantos outros “tiques”, todos relacionados ao corpo (com um colorido bastante psicótico) começa a acreditar que come em demasia. Janet diferencia esses vômitos de vômitos histéricos, já que diz que os segundos são atos automáticos, espasmos do estômago, do diafragma e do peito que se faz involuntária e inconscientemente.

Em 1925, Abraham escreve sobre a “bulimia patológica” e a “tendência a

perversões orais diversas”, como um impulso que escapava à socialização39. Otto

Fenichel, no capítulo sobre perversões e neuroses impulsivas de seu livro Teoria

psicanalítica das neuroses, fala das “adição sem drogas”. Traz os adictos da comida,

dizendo que neles adictos não ocorreu deslocamento algum que haja transformado o objeto original (comida) dos desejos de gratificação simultânea da sexualidade e da auto-estima. E afirma ainda:

Mas estádios posteriores do desenvolvimento acresceram outros significados inconscientes à comida desejada com anseio patológico; ela representará fezes, criança (embrião), pênis. Há casos severos em que o comer constitui a única esfera de interesse que prende à pessoa a realidade.40

Como se percebe, Fenichel entende a comida como um equacionamento simbólico tais quais os mencionados por Freud nas soluções encontradas para as meninas na saída para a castração. Porém, Fenichel não fala de purgações, o que parece não configurar uma bulimia, mas sim, um comer compulsivo.

Fenichel cita o psicanalista russo Moshe Wulff, que aproxima a bulimia da histeria, ciclotimia e adição. Fala da bulimia como um combate à sexualidade pré-genita l:

... a neurose se caracteriza pela luta da pessoa contra a sua sexualidade, esta tendo-se tornado, por uma repressão anterior, particularmente ávida e insaciável; é sexualidade pré genitalmente orientada, a

39 Apud BUCARETCHI & WEINBERG, 2003. op. cit.

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satisfação sexual percebendo-se como ‘refeição suja’. Períodos de depressão, nos quais as pacientes se empanturram (ou bebem), se sentem gordas, inchadas, sujas, desmazeladas, grávidas e deixam o ambiente também desarrumado, alternam com períodos ‘bons’, em que se mostram ascéticas, se sentem esbeltas e se comportam normalmente, se não com certa vivacidade. O sentimento corporal nos períodos ‘gordos’, verifica-se que constitui repetição do modo por que a menina pré-púbere se sentia antes da primeira menstruarão; as crises coincidem, de fato, muito comumente, com o período pré-menstrual. 41

Fernandes42 menciona as recentes descobertas de que nos transtornos alimentares

ocorre a produção intracerebral de substancias opióides de efeito morfínico ameno, ainda que esta forma de expressão deva ser relativizada, enfatiza a dimensão aditiva da bulimia. Diferencia da toxicomania, onde se administra uma droga externa. Mesmo se entendermos a comida como objeto externo, ainda assim, não é o alimento que caracteriza o elemento aditivo da bulimia, mas, necessariamente, a forma com que ele é ingerido; em grandes quantidades, de forma voraz e as escondidas. “Portanto, o que caracteriza a dimensão aditiva da bulimia é muito mais o comportamento alimentar que o alime nto propriamente dito”.41

A primeira descrição da bulimia como entidade nosográfica e que se aproxima da caracterização dela proposta pelo DSM V, foi realizada por Russel em 1979. Entram em cena nesta descrição os episódios bulímicos, o medo de engordar e a manutenção do peso devido aos métodos compensatórios.

O DSM V entende como critérios diagnósticos para bulimia nervosa:

A. Episódios recorrentes de compulsão alimentar. Um episódio de compulsão alimentar é caracterizado pelos seguintes aspectos:

1. ingestão, em um período de tempo determinado (p.ex. dentro de cada período de duas horas), de uma quantidade de alimento definitivame nte maior do que a maioria dos indivíduos consumiria no mesmo período sob circunstancias semelhantes;

41 Apud FENICHEL. op. cit.

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2. sensação de falta de controle sobre a ingestão durante o episódio (p.ex.; sentimento de não conseguir parar de comer ou controlar o que e o quanto se está ingerindo.

B. Comportamentos compensatórios inapropriados recorrentes, a fim de impedir o ganho de peso, como vômitos autoinduzidos; uso indevido de laxantes, diuréticos ou outros medicamentos; jejum; ou exercícios em excesso.

C. A compulsão alimentar e os comportamentos compensatórios inapropriado s ocorrem, em média, no mínimo uma vez por semana durantes três meses. D. A autoavaliação é indevidamente influenciada pela forma e pelo peso

corporais.

E. A perturbação não ocorre exclusivamente durante episódios de anorexia nervosa.

Com relação à gravidade da doença, o nível baseia-se na frequência dos comportamentos compensatórios inapropriados:

Leve: Média de 1 a 3 episódios de comportamentos compensatór ios inapropriados por semana.

Moderada: Média de 4 a 7 episódios de comportamentos compensatór ios inapropriados por semana.

Grave: Média de 8 a 13 episódios de comportamentos compensatór ios inapropriados por semana.

Extrema: Média de 14 ou mais comportamentos compensatórios inapropriados por semana.

O DSM V foi recentemente lançado (2014, tendo sido traduzido para o português no final de 2015) e substituído seu antecessor, o DSM IV. Apresenta agora algumas poucas modificações.

Com relação aos critérios de anorexia nervosa, excluiu-se o critério da amenorreia, antes presente. O DSM IV propunha como eixo principal o critério de peso. A nova versão do DSM propõe como base a restrição da ingesta calórica, ficando o critério de peso apenas para definir a gravidade do transtorno, importante, penso, como conduta clínica

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na esfera da psiquiatria, na previsão de evolução e planejamento terapêutico medicamentoso, como intervenção clínica.

Com relação ao critério de bulimia nervosa, a nova versão do DSM traz mudanças no que se refere à frequência das crises bulímicas e aos comportamentos compensatórios inapropriados. O DSM IV propunha como frequência duas crises por semana durante três meses. O DSM V, como já dito, estabelece a exigência de uma vez por semana por três meses.

Penso que a classificação do DSM é importante para o exercício clínico da psicanálise, na medida em que padroniza uma linguagem e permite a interlocução com as mais diferentes áreas do conhecimento, já que é uma clínica onde uma visão multiprofissional é imperativa. Cotidianamente temos que lidar com psiquiatras, nutricionistas, endócrino-pediatras e até dentistas. Como afirma Fernandes43, estes

critérios também são importantes no âmbito da pesquisa, em que é necessária uma concordância na utilização dos termos que definem estas entidades nosográficas. Porém, a autora atenta para o perigo de uma categorização puramente descritiva e aprisiona nte, de onde, obviamente, exclui-se a singularidade das dimensões subjetivas e das particularidades das histórias de vida dos pacientes, o que leva a um empobrecimento da significação e do sentido do sintoma e seus comportamentos, essenciais na clínica psicanalítica.

Ela ainda assinala44 que, assim como a anorexia, a bulimia se vê situada no

cruzamento de diversos eixos psicopatológicos: neurótico, psicótico, perverso e psicossomático. Frequentemente associado à depressão ou a tendências depressivas, o sintoma bulímico pode também fazer parte de um quadro psicótico ou borderline. Aponta também ao fato de que os modos de funcionamentos psíquicos da bulimia, especialme nte quando não relacionada à anorexia, são de difícil esquematização. Diz ainda:

A clínica nos ensina que a lógica aditiva do comportamento bulímico leva frequentemente a um empobrecimento da vida relacional, afetiva, fantasmática e da atividade psíquica como um todo. Porém, essa espécie de captura da atividade psíquica produzida pela bulimia varia extremamente de um caso a outro. Em certos casos, uma evolução favorável, ao longo de uma psicoterapia, permite a emergência de

43 FERNANDES, M.H. Transtornos alimentares. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. p. 41. 44 Idem, ibidem, p. 76.

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conflitos intrapsíquicos que podem dar lugar a sintomas neuróticos de tipos diversos, o que já assinala um bom prognóstico45.

Tendo apresentado, ainda que de forma sumária, um histórico da anorexia e bulimia, bem como, as diferenças entre a nosografia psiquiátrica e psicanalítica, passo agora à clínica das anorexias e bulimias, onde serão abordados temas referentes ao cotidiano da clínica.

4. A clínica das anore xias e das bulimias e s uas e s pe cificidade s

A clínica dos transtornos alimentares nos impõe desafios diários. Faz-se imperativo contar com uma diversidade de profissionais que cubram a ampla gama de determinantes e consequentes dessas patologias (médico – psiquiátrico e endócrino, na maior parte dos casos, e nutricional).

Algumas questões se fazem mais presentes no cotidiano da clínica. No caso das anorexias, uma delas é a total indiferença quanto ao emagrecimento do corpo e suas consequências negativas. Atendi certa vez uma menina de 17 anos, com 32 kg, que não percebia o adoecimento de seu corpo. Sentia-se bem, com energia, mantinha boas notas e tinha amigas. “Acho um exagero dos meus pais; estão fazendo tempestade em um copo

d´água”. Nunca tinha menstruado e apresentava baixa estatura para sua idade. E apesar

de intenso sofrimento psíquico, não podia senti-lo. Eu via um corpo infantilizado e um psiquismo com funcionamento primitivo.

É extremamente delicada a posição do analista frente a estes casos que mobiliza m aspectos perturbadores em sua mente. Sentimentos viscerais entram em cena: raiva, medo, impotência, perplexidade, descrença, estafa. Da viscerabilidade ao metabolis mo psíquico, requerem muito do analista. Prossegue Miranda:

Penso que a psicanálise, no trato com transtornos alimentares, faz uso de equipamentos semelhantes metaforicamente aos da geologia, pois lida com vidas mentais ossificadas, onde as mudanças climáticas variam por vezes na mesma sessão, ou ainda, na mesma fala, passando da era glacial, com pontas de iceberg por todo o lado, até áreas áridas e

Referências

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