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A agenda da ONU para as crianças-soldado

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A agenda da ONU para as crianças-soldado

Maria Eduarda Guerra Giovanna Salles Pius Laura Silva Prado

Isabella Miwa Mizushima Vinicius Lemos S. Pires

1

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quesãOcrianças

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De acordo com os Princípios e Guias para Crianças associadas a Forças Armadas ou Grupos Armados (Princípios de Paris), de fevereiro de 2007, a expressão “criança associada a força armada ou grupo armado”, comumente referida como

“criança-soldado”, refere-se a “qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade que seja ou tenha sido recrutada ou usada por uma força armada ou grupo armado com qualquer capacidade, incluindo, entre outros, crianças, meninos e meninas, usados como combatentes, cozinheiros, carregadores, mensageiros, espiões ou para fins sexuais.” 2

As funções das crianças-soldado dentro dos grupos são das mais variadas, podendo atuar no combate direto nas linhas de frente; em operações de inteligência, como espiões, batedores ou no reconhecimento de área (já que, por serem crianças, raramente são tidas como suspeitas); como mensageiros entre as unidades; em missões de vanguarda ou suicidas; no recrutamento de outras crianças; ou como escravas sexuais.3 Em 2008, existiam mais de 300 mil crianças-soldado no mundo4, apesar de este fenômeno não ser recente. Na Idade Média, os escudeiros – ou cavaleiros em treinamento – começavam seu serviço na juventude5. Depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o recrutamento de crianças se tornou comum.6 Todavia, nestas épocas, esta prática tinha uma

conotação positiva. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os milhares de soldados britânicos menores de dezoito anos mortos em combate são considerados até hoje como “jovens corajosos” que “responderam ao seu chamado histórico”. Nas décadas de 1970 e 1980, as crianças e os jovens ativistas militantes contra o regime do Apartheid na África do Sul foram reconhecidos como “heróis”, tendo sido “indubitavelmente importantes para a luta mais ampla pela libertação, democracia e transformação.” 7

Os soldados infantis são mais frequen- temente mortos ou feridos na linha de frente do que os adultos, além de recebe-

rem menos recursos dos grupos.8 Nesta categoria, existe também uma questão de gênero, com meninos e meninas servin- do igualmente nos papeis já apresentados anteriormente. Contudo, no caso das me- ninas, elas também servem como impor- tantes ativos estratégicos para soldados adultos, pelo fato de sua presença me- lhorar o moral das tropas masculinas, por ajudarem a aumentar o número de tro- pas, devido à gravidez, e porque o estigma popular que cerca a maternidade fora do casamento as desmotiva a escapar.9 Mas, apesar desse admirável crescimento da conscientização e da pressão por padrões internacionais legais e não- legais, eles produziram pouco ou nenhum impacto no terreno em locais de conflitos e na vida das crianças que tendem a fazer parte dele.10

POrquecriançasviramsOldadOs? A participação militar de crianças não é um fenômeno historicamente novo, mas, na última década, o tema ganhou grande atenção e prioridade política no campo humanitário. Contudo, quando se compara a construção histórica com o discurso global é possível notar as lacunas existentes entre o discurso e as realidades locais enfrentadas por essas crianças.

Nas últimas décadas do século XX, mui- tos adultos em países tomados pelo co- lapso social e pela guerra civil decidiram empregar taticamente crianças em suas

Desenho A primeira vítima de uma criança soldado – a infância

Autor: Rafaela Tasca e Carlos Latuff Fonte: < https://commons.wikimedia.org/wiki/

File:Children_soldier.jpg>

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batalhas.11 Existem razões sociais e his- tóricas – como pobreza e instabilidade – e razões práticas e táticas – como o au- mento no número de crianças nos países em desenvolvimento, sua maleabilidade intrínseca, e a acessibilidade à armas pe- quenas e leves, fáceis de serem usadas.

Mas existem também razões absoluta- mente sinistras, como os “sucessos” nos campos de batalha, a impunidade legal e a total desconsideração pelas crianças12, são fáceis e vulneráveis para captura pelos grupos, especialmente em lugares onde suas famílias estão sendo destruídas pela fome, por epidemias como a AIDS, e por facções em guerra. Como, para os comba- tentes adultos, elas não possuem rostos e são consideradas dispensáveis, as crianças se tornam uma “plataforma” para os as- sassinatos. No caso das meninas, elas são tidas como um “bem maior”, pois além de poderem desempenhar as mesmas funções que os meninos, elas montam bivaques, preparam a comida, controlam as crianças mais novas, e são usadas como escravas sexuais e esposas.13

Muitas vezes, as crianças, independen- temente de gênero, são recrutadas por serem mais baratas de sustentar, por não possuírem um senso real de medo e por serem ilimitadas nas direções perversas em que podem ser manipuladas, uma vez que ainda não desenvolveram um conceito de justiça, por terem sido roubadas de suas famílias para defender na “nova família” das forças armadas.14 Além de se entender o que motiva crian ças e adolescentes a participarem de grupos armados também é necessário entender as razões pelas quais tornam-se o foco do recru tamento para grupos armados a partir do final do século XX. Algumas delas são: mudança demográfica nos países subdesenvolvidos, ocasionando uma grande população de crianças e adolescentes propícia para preencher a função de soldados; resistência, destemor e vontade de lutar apresentada pelas mesmas; o custo de recrutamento muito mais baixo; por serem mais fáceis de manter; e por serem mais maleáveis e questionarem menos as lideranças.15 Dentre os fatores que levam crianças e adolescentes a ingressarem em grupos armados, é recorrente a motivação pela vingança contra quem feriu seus familiares. Em outros casos a família é ameaçada de morte caso a criança não se torne um soldado. No caso das crianças

soldados dos Tigres da Libertação do Tamil Eelam (LTTE) no nordeste do Sri Lanka, os principais motivos foram a morte dos pais ou parentes, separação familiar, destruição de moradia, fome, pobreza, falta de acesso à educação, assédio de soldados do governo, opressão social, sequestros e detenções.16

O recrutamento pode acontecer de forma voluntária ou forçada, que se dá pelo sequestro e por ameaças de força ou coerção. Porém, mesmo que seja considerada voluntária, quando analisada sob as óticas da psicologia, da economia e da política, a escolha nunca é puramente voluntária.17

Infelizmente, existem crianças em todo o mundo que não apenas precisam testemunhar a guerra, mas também participam dela. Algumas são realmente vítimas de escravidão, sequestradas e forçadas a cometer crimes terríveis, tudo em benefício de seus captores.18

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uantificaçãOdecrianças

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sOldadOemcOnflitOs

Estima-se que há cerca de 300 mil crianças soldados no mundo, espalhadas pelos países envolvidos em algum tipo de conflito.19 Destas, aproximadamente 40% estão no continente africano20 e a maioria são meninos.21

Uma possível explicação para esses números serem tão altos na África é que, neste continente, a população adulta sofre com guerras e doenças, o que causa sua redução significante. A consequência então, é uma proporção maior de crianças com menos de 18 anos entre seus habitantes.22 Em zonas de conflito e pós conflito africanas, mais de 50%

da população é composta por menores de idade.23 Isso, muitas vezes, é a causa de grupos militantes buscarem essas crianças para fazerem parte deles.

No Sudão do Sul, que sofre com uma guerra civil desde 2013, calcula-se que existam mais de 19 mil crianças soldado.24 Quase 60% das crianças que habitam a cidade de Yambio já participaram da luta armada.25 No nordeste da Nigéria mais de 3,5 mil crianças foram usadas por grupos armados não-estatais em conflito armado, entre 2013 e 2017.26

Chama a atenção o caso da República Centro-Africana, onde 14 mil crianças

foram recrutadas desde o início da guerra civil, até 2018, e para a República Democrática do Congo, que só em 2017, teve mais de 3 mil casos de participação de crianças em milícias.27 O UNICEF aponta que só na região de Cassai, no Congo, entre 5 mil a 10 mil menores de idade estão envolvidos com esses tipos de organizações.28

O Relatório Global sobre Crianças Sol- dado, publicado pela Child Soldiers In- ternational, em 2008, apontou que o Exército de Resistência do Senhor, um grupo armado do norte da Uganda, desde os anos 1980, sequestrou cerca de 25 mil crianças que foram obrigadas a participar de combates e até matar outras crianças e pessoas.29 Cita também, o caso da Serra Leoa, onde a Frente Revolucionária Uni- da, as Forças de Defesa Civil, o Conse- lho Revolucionário das Forças Armadas e o próprio exército nacional, recrutaram crianças para suas forças. O Relatório constata que em 1998, quase 25% das forças combatentes do país tinham me- nores de 18 anos entre seus integrantes.30 Na Somália o problema vem principalmente pela ação do grupo terrorista Al-Shabaab, que recruta e treina crianças para serem soldados, e também as tornam escravas sexuais. De acordo com o The Borgen Project cerca de 50% do grupo é formado por menores de idade.31Em 2018, 1609 crianças foram sequestradas, sendo 97% pelo Al- Shabaab. Ainda no mesmo ano, 2228

Criança em um campo rebelde no nordeste da República Centro-Africana.

Autor: Pierre Holtz/UNICEF CAR Fonte: <https://commons.wikimedia.org/wiki/

File:Demobilize_child_soldiers_in_the_Central_

African_Republic.jpg>

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meninos e 72 meninas foram usados em conflitos, não só pelos terroristas.32 Assim como a África, a Ásia também sofre com o problema de crianças sendo usadas como soldados. A parte Oriental do continente apresenta um quarto do total mundial de menores envolvidos em conflitos. Na região nordeste da Índia, pelo menos 500 crianças estão nessas condições, aponta o Asian Centre for Human Rights.33 Na Síria, 806 foram recrutadas e usadas como soldados, em 2018. 34

Na América Latina, o país com maior número de crianças usadas em conflito é a Colômbia. Segundo a Anistia Interna- cional, mais de 8 mil menores de 18 anos estavam nessa situação, recrutadas pelo paramilitares e pelas guerrilhas.35 Dentre eles, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), eram o grupo que mais usava crianças no conflito. No Peru, o Sendero Luminoso recrutou 150 crian- ças entre 1990 e 1992. Em 2009, foi con- firmado que 102 menores haviam sido usados pelo exército peruano.36

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sPrOblemasdecOrrentesda atuaçãOdecrianças

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Os principais problemas decorrentes da atuação das crianças-soldado em

guerras são, por exemplo: o estresse pós- traumático que pode ser manifestado em formas de pesadelos, medo e ansiedade para sair de casa; e o medo da morte ou de captura que permanece mesmo após serem retirados desses locais, pois a tensão e o estresse vividos não são esquecidos pelo corpo e pela mente.37 O estresse pós traumático ocorre pelas crianças vivenciarem tiroteios, ameaças, sentirem um medo extremo e até serem obrigadas a matar alguém.38 Esse tipo de experiência pode levar os ex soldados a utilizarem drogas, terem depressão, pensamentos suicidas, etc.39

A falta de controle de impulsos violentos também é comum entre as ex-crianças soldados já que foram obrigadas a lutar, ou seja, atirar e matar quando necessário.

Desse modo, quando estão frente à situa- ções estressantes ou frustrantes é comum usarem a violência. Um ex-soldado entre- vistado afirmou que atirou em sua irmã pois ela estava discutindo com seu pai.

Em outro momento, pegou um ladrão roubando e cortou seus dedos pois ele

“havia usado-os para roubar”.40

O abuso sexual é uma realidade que muitas dessas crianças passam em locais de guerras. Diversas meninas acabam virando esposas de seus comandantes ou de outros soldados, pois seriam as reprodutoras do exército ou do grupo

militante, gerando mais soldados no futuro. Outros meninos acabam na mesma situação por serem os menores do grupo e serem submissos aos seus superiores.41 Isso é considerado crime de estupro e de escravidão sexual pelo Artigo 8 do Estatuo do Tribunal Penal Internacional.42

Outro problema recorrente é a inserção de ex-crianças soldados na sociedade.43 Por terem perdido sua infância e adolescência como soldados, uma grande porcentagem deles quer voltar a estudar e ter um emprego que não é relacionado com a guerra, conflitos ou violência. Contudo essa reintegração na sociedade não fácil. Diversas pessoas têm preconceito contra crianças que foram soldados, de modo que aconselham seus filhos a não conviver com elas.

O estereótipo leva a sociedade a não ser receptiva com eles, mesmo que a reintegração seja um dos pontos chaves para a paz no país em longo prazo.44 Desse modo, ex-crianças soldado precisam de um acompanhamento psicólogo de inserção na sociedade após desmobilizados.45

a

agenda da

Onu

Para as

crianças

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Existem vários documentos já desenvol- vidos, e outros que estão em desenvol- vimento, para tratar da violência contra crianças em conflitos, impedir seu uso e facilitar sua reabilitação à sociedade.46 Até 2000, agentes humanitários, ONGs e governos fizeram progressos na iden- tificação do alcance da crise enfrentada pelas crianças e na inserção da questão das crianças-soldado na agenda mundial.

A ONU lançou a Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989, e, desde então, o trabalho mais significativo foi realizado por Graça Marchel, ex-pri- meira dama de Moçambique, nomeada para liderar um estudo focado nos peri- gos para as crianças em meio a guerras, seja como vítimas, ou como agressoras.

Seu relatório, denominado “O impacto do conflito armado nas crianças”, apre- sentado à Assembleia Geral das Nações Unidas em 1996, instou a comunidade internacional a não só observar, mas também a responder a essas duras reali- dades. Foi nomeado um Representante Especial da ONU para Crianças e Con-

Criança soldado da Revolução Mexicana Antonio Gomes Delgado El Negro.

Fonte: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Ni%C3%B1o_Soldado.jpg>

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flitos Armados, e adotado um Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direi- tos da Criança, pelo qual seus signatá- rios aceitaram limitar o uso militar de crianças.47

Em 2001, o Conselho de Segurança da ONU informou que o recrutamento e uso de crianças soldado não seria mais tolerado. A Resolução 1379 solicitou que o Secretário Geral (SGNU) anexasse a seu relatório sobre crianças e conflitos armados um lista de partes em conflito que recrutam e usam crianças.48 Desde então, todos os anos o SGNU emite um relatório listando esses grupos armados - estatais e não estatais.49 Em 2017, 66 grupos armados ou forças armadas, em 14 países, foram listados por uma ou mais violações. É importante notar que o relatório da ONU se destina a “nomear e envergonhar”, e com isso, muitos países não desejam aparecer na lista por medo de sanções internacionais.50

As partes em conflito listadas pelo Secretário Geral são solicitadas pelo Conselho de Segurança a desenvolver planos de ação para enfrentar as violações graves cometidas contra crianças. O plano de ação é um compromisso escrito e assinado para lidar com a situação específica e descrever etapas concretas, com prazo determinado que levam ao cumprimento do Direito Internacional e à retirada do grupo da lista.51

O Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança entrou em vigor em 2002 e já foi ratificado pela maior parte dos países do mundo. Por ele, os integrantes se comprometem a:

não recrutar crianças menores de 18 anos nem as mandarem para o campo de batalha; tomar todas as medidas possíveis para prevenir tal recrutamento - incluindo legislação que proíba e criminalize o recrutamento de menores e seu envolvimento em hostilidades;

desmobilizar qualquer menor de 18 anos recrutado e usado em hostilidades;

e prover serviços de recuperação física e psicológica e os auxiliarem em sua reintegração social.52

Adotada em 2005, a Resolução 1612 do Conselho de Segurança da ONU estabeleceu o Mecanismo de Monitoramento e Relatório (MRM), o qual solicitou que todos os setores de segurança e atores civis se atentem às seis violações graves aos direitos da criança:

mutilação e assassinato; recrutamento

por grupos armados; ataques a escolas e hospitais infantis; estupro e violência sexual; sequestro; e negação de acesso humanitário. A Resolução 1882 do Conselho de Segurança determinou que o relatório anual sobre crianças em conflitos armados deve listar as partes que seriamente participaram de assassinatos, mutilação, estupro ou abuso sexual de crianças. Essas resoluções podem ser consideradas como as mais importantes ferramentas, uma vez que permitem denúncias para responsabilizar os infratores por seus crimes.53

O Protocolo Facultativo exigiu que os Estados membros aumentassem a idade para o recrutamento voluntário

para além dos quinze anos, até então permitidos, além de garantir que o recrutamento seja, de fato, voluntário.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância e a Juventude (UNICEF) também defendeu a proibição de todo tipo de recrutamento, e de participação de crianças menores de dezoito anos nas hostilidades. A Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil, de 1999, declarou que o recrutamento de crianças é uma forma intolerável de trabalho infantil, e pediu o fim do uso de menores de dezoito anos – a qual, de acordo com o documento, é a idade limite – em conflitos armados.

A entrada em vigor do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, em julho de 2002, foi um marco histórico, por definir o recrutamento, alistamento ou uso de crianças com menos de quinze anos de idade como crime de guerra.54

Apesar desses documentos, muitos Estados têm dificuldade em implementar tais proteções, o que perpetua o problema da escravidão infantil.

Outra questão é que, para as crianças envolvidas, seus problemas não terminam simultaneamente ao término do conflito, devido ao doloroso processo de reabilitação e reintegração à sociedade.55 Em 2014 foi lançada a campanha

“Crianças, Não Soldados”, iniciativa do Escritório do Representante Especial do Secretário Geral para Crianças e Conflitos Armados em conjunto com o UNICEF. A campanha foi projetada para gerar impulso, vontade política e apoio internacional para dar fim ao recrutamento de crianças pelas forças de segurança nacionais em situações de conflito. No momento em que a campanha foi lançada os países de maior preocupação eram o Afeganistão, Chade, República Democrática do Congo, Mianmar, Somália, Sudão do Sul, Sudão e Iêmen. Representantes de cada um desses países participaram do evento de lançamento e expressaram seu total apoio para alcançar os objetivos da campanha.

Milhares de crianças soldados foram liberadas e reintegradas com a assistência do UNICEF, missões políticas e de manutenção da paz da ONU, parceiros da Organização e ONGs.

Dentro do sistema da ONU, o UNICEF é responsável pela reintegração de ex- crianças soldado, sendo sua primeira prioridade prepará-los para retornar à vida civil. Suporte psicossocial, educação e/ou treinamento são aspectos importantes dos programas de reintegração. Tentar reunir as crianças com suas famílias e comunidades também é essencial, contudo os esforços de sensibilização e reconciliação são às vezes necessários antes que uma criança seja devolvida ao seu lar.56

Independentemente de as crianças quererem ou não participar do conflito, as leis que as protegem têm sido em parte bem-sucedidas. No entanto, ressalta-se:

a linguagem ambígua na Convenção sobre os Direitos das Crianças, e a dificuldade para implementar as ideias ocidentais sobre infância em Estados não-ocidentais. Segundo a Convenção,

“as partes tomarão todas as medidas possíveis para garantir que as pessoas que não atingiram a idade de quinze anos não participem diretamente das hostilidades”,

Criança soldado na Costa do Marfim, África.

Desenho de Gilbert G. Groud.

Fonte: <https://commons.wikimedia.org/wiki/

File:Child-soldier-afrika.jpg>

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e que o recrutamento de crianças entre quinze e dezoito anos comece pelos mais velhos. Desta forma, o uso de crianças- soldado não é inteiramente proibido, e os grupos acabam saindo impunes neste quesito.57Além disso, enquanto o uso de crianças-soldados é regulamentado pelo Direito Humanitário Internacional e pelo Direito Penal Internacional, o uso de meninas-soldado para fins sexuais não é explicitamente abordado nestes documentos.58

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OnclusãO

O recrutamento de crianças soldado é muito mais complexo do que parece, devido ao fato de cada criança ter uma história de vida e níveis de escolaridade diferentes, assim como motivos pessoais para se integrar a forças armadas e grupos armados, bem como deles se afastar. É preciso ir além dos estereótipos convencionais e concluir que as crianças, em sua grande maioria, não são recrutadas voluntariamente, mas sim pela necessidade de sobrevivência, considerando as condições sociais, políticas e econômicas.

Em outras palavras, a condenação universal do recrutamento de crianças precisa considerar todas as alternativas disponíveis.59

Os Princípios de Paris de 2007 argu- mentam que o impacto a longo prazo nas crianças-soldados é tão horrível que a comunidade internacional precisa as- sumir a responsabilidade de impor seus próprios direitos e leis. Contudo, a res- posta foi lenta – chegando a ser imper- ceptível - desigual e muitas vezes ofus- cada por preocupações com cessar-fogo, trégua, acordos de paz e liberdade per- manente para as pessoas afetadas pelos conflitos.60

Segundo Wylan (2011), é preciso haver uma condenação clara aos países que violam o direito internacional a respeito de crianças em conflitos, o que pode ser feito através da interrupção da ajuda militar e econômica até que o uso de crianças soldados seja interrompido.

Acima de tudo, a mensagem de que esta atitude é inaceitável deve ser clara, e países com grande influência na comunidade internacional, como os Estados Unidos, possuem a responsabilidade de lutar pelo fim desta prática, escolhendo não apoiar governos cujos países possuam lutas internas envolvendo crianças. A

análise do contexto que cria o ambiente e as condições para as crianças soldados também é muito importante, assim como a prevenção do uso destas em conflitos, incluindo a condenação dos violadores do Direito Internacional e o impedimento da entrada dos países em desenvolvimento em conflitos que produzem crianças soldados, e, por parte dos governos, estabilidade política, econômica, e transparência.61 O entendimento do processo de recrutamento de crianças soldados também ajuda a aprimorar o desenho dos programas de reintegração pós-conflito, já que o recrutamento futuro pode ser evitado se as agências internacionais conhecerem suas causas subjacentes.62 Acima de tudo, a reintegração de crianças ex-soldados deve ter como objetivo impedir novos recrutamentos.

Não faz sentido deixar que isso aconteça para depois fornecer ajuda.63

As crianças-soldados continuam sendo usadas em conflitos ao redor do mundo porque existem líderes – políticos, militares, bandidos – que tiveram sucesso em usá-las e que são cruéis e amorais o suficiente para continuar recrutando, empregando, abusando e destruindo crianças. Tratam-se de criminosos que devem ser responsabilizados por violar

o Direito Internacional. A impunidade deve ser apagada, e as consequências legais devem ser tão severamente impostas de modo que o mero pensamento de recrutar crianças para lutar será uma não-opção.64

As crianças-solados não são guerreiros que dedicaram sua vida, consciente e voluntariamente, para o uso da força contra outros, e que se dispõe a pagar um preço. Também não são combatentes em países que limitam o uso da força exclusivamente para fins de proteção e interesse próprio, sob regras e códigos estritos. Pelo contrário, estas crianças lutam e morrem em lugares onde a única regra é a autopreservação, e, consequentemente, a sobrevivência.65 A violência contra crianças é inaceitável, e sua solução requer o trabalho de governos, agências das Nações Unidas, organizações não-governamentais, do setor privado, e de homens e mulheres individuais, assim como requer que se escute as vozes das crianças soldados para entender sua situação.66 Para Dallaire (2010), não podemos desfazer o que ocorreu com estas crianças, mas podemos nos comprometer a alcançar um futuro no qual crianças nunca serão empregadas como soldados em guerras.67

Manifestantes em julho de 2008.

Autor: Joshua Sherurcij

Fonte: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Child_Soldier__Omar_Khadr.png?uselang=pt-br>

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1 Discentes do curso de Relações Internacionais, pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP – Campus Marília), e membros do Observatório de Conflitos Internacionais (OCI).

2 UNICEF. Principles and Guidelines on Children Associated with Armed Forces or Armed Groups. February 2007. Disponível em: https://

www.unicef.org/mali/media/1561/file/ParisPrinciples.pdf. Acesso em: 08 dez. 19

3 WHITMAN, Dr. Shelly; ZAYED, Tanya; CONRADI, Carl; BREAU, Julie. Child Soldiers: A Handbook for Security Sector Actors. The Roméo Dallaire Child Soldiers Initiative. Centre for Foreign Policy Studies, Dalhousie University (Halifax, Canada). Disponível em: https://reliefweb.

int/sites/reliefweb.int/files/resources/Child%20Soldiers%20A%20 Handbook%20for%20Security%20Sector%20Actors.pdf. Acesso em: 08 dez. 2019.

4 PLANTE, Jennifer. The Children of War. Human Rights & Human Welfare. University of Denver. Disponível em: https://www.du.edu/korbel/

hrhw/researchdigest/slavery/children.pdf. Acesso em: 08 dez. 2019.

5 MANG, LCdr N.E. Child Soldiers: Re-framing the Canadian Armed Forces Approach. Canadian Forces College. Disponível em: https://www.

cfc.forces.gc.ca/259/290/402/305/mang.pdf. Acesso em: 08 dez. 19 6 HAER, Roos; BÖHMELT, Thomas. The Impact of Child Soldiers on Rebel Groups’ Fighting Capacities. University of Konstanz. Disponível em: http://repository.essex.ac.uk/13553/1/Haer_Boehmelt.pdf. Acesso em:

08 dez. 2019.

7 LEE, Ah-Jung. Understanding and Addressing the Phenomenon of

‘Child Soldiers’: The Gap between the Global Humanitarian Discourse and the Local Understandings and Experiences of Young’s People Military Recruitment. Refugee Studies Centre, University of Oxford (UK), tradução nossa. Disponível em: https://www.rsc.ox.ac.uk/files/files-1/

wp52-understanding-addressing-child-soldiers-2009.pdf. Acesso em: 09 dez. 2019.

8 SCHAUER, Elisabeth; ELBERT, Thomas. The Psychological Impact of Child Soldiering. In MARTZ, E. (ed). Trauma Rehabilitation after War and Conflict. Disponível em: https://www.usip.org/sites/default/files/

missing-peace/The%20psychological%20impact%20of%20child %20 soldiering%20-%20Schauer.pdf. Acesso em: 11 dez. 2019.

9 Whitman et al., op. cit.

10 BEAH, Ismail. Foreword. In: DALLAIRE, Romeo. They Fight Like Soldiers, They Die Like Children. Random House, Canada, 2010.

11 DALLAIRE, Romeo. They Fight Like Soldiers, They Die Like Children. Random House, Canada, 2010.

12 Dallaire, op. cit.

13 Idem.

14 Ibid.

15 Schauer; Elbert, op.cit.

16 SOMASUNDARAM, Daya. Child soldiers: understanding the context. BMJ, v. 324, n. 7348, 2002.

17 UNICEF. East Asia and Pacific Regional Office. Adult Wars, Child Soldiers: Voices of Children involved in Armed Conflict in East Asia and Pacific Region, p. 31. Disponível em: https://www.unicef.org/sowc06/pdfs/

pub_adultwars_en.pdf. Acesso em: 09 dez. 2019.

18 Plante, op.cit., tradução nossa.

19 Idem.

20 DUDENHOEFER, Anne-Lynn. Understanding the Recruitment of Child Soldiers in Africa. Constructive Resolution of Disputes (ACCORD). Disponível em: https://css.ethz.ch/en/services/digital-library/

articles/article.html/e1cdb871-838b-4903-9545-9ce37b5f6b3d/pdf. Acesso em: 12 dez. 2019.

21 MCKAY, Susan; MAZURANA, Dyan. Where are Girls?: Girls in Fighting Forces in Northern Uganda, Sierra Leone and Mozambique: Their Lives During and After War, Montréal: International Centre for Human Rights and Democratic Development, 2004.

22 Plante, op.cit.

23 Dallaire, op. cit.

24 CARRETERO, Nacho. Eu sou uma criança soldado. El País. 12 ago. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/10/

internacional/1533901618_963321.html. Acesso em 12 dez. 2019.

25 Idem.

26 GRUPO armado liberta cerca de 900 crianças na Nigéria. ONU News. 10 mai. 2019. Disponível em: https://news.un.org/pt/

story/2019/05/1671711. Acesso em 15 dez. 2019.

27 ÁFRICA ainda tem milhares de crianças-soldado, alerta ONG. EFE. 12 fev. 2019. Disponível em: https://www.efe.com/efe/brasil/sociedade/africa- ainda-tem-milhares-de-crian-as-soldado-alerta-ong/50000246-3895517.

Acesso em 15 dez. 2019.

28 THOUSANDS of children continue to be used as child soldiers.

UNICEF. 12 fev. 2018. Disponível em: https://www.unicef.org/drcongo/

en/press-releases/thousands-children-continue-be-used-child-soldiers.

Acesso em 15 dez. 2019.

29 Dudenhoefer, op. cit.

30 Idem.

31 ADAME, Diane. 10 important facts about child soldiers in Somalia.

The Borgen Project. 17 jun. 2018. Disponível em: https://borgenproject.

org/10-important-facts-about-child-soldiers-in-somalia/. Acesso em 12 dez.

2019.

32 UNITED NATIONS. Office of the Special Representative of the Secretary-General for Children and Armed Conflict. Somalia. Disponível em: https://childrenandarmedconflict.un.org/somalia/. Acesso em 15 dez.

2019.

33 SEN, Arijit. There Are at Least 500 Child Soldiers Fighting in Northeast India, and the World Hasn’t Noticed. TIME. 24 mar. 2014. Disponível em: https://time.com/33008/child-soldiers-recruited-into-northeast-india- insurgencies/.Acesso em 10 dez. 2019.

34 UNITED NATIONS. Office of the Special Representative of the Secretary-General for Children and Armed Conflict. Syrian Arab Republic.

Disponível em: https://childrenandarmedconflict.un.org/where-we-work/

syria/. Acesso em 10 dez. 2019.

35 ANISTIA INTERNACIONAL. Colômbia: O histórico acordo de paz deve garantir justiça e o fim das violações dos direitos humanos. 27 de set. de 2016. Disponível em: https://anistia.org.br/noticias/colombia-o- historico-acordo-de-paz-deve-garantir-justica-e-o-fim-das-violacoes-dos- direitos-humanos/. Acesso em 15 dez. 2019.

36 PEREIRA, Pablo. Meninos-Soldados. Infográficos Estadão. Disponível em:

https://infograficos.estadao.com.br/especiais/meninos-soldados/index.html.

Acesso em 15 dez. 2019.

37 HUMPHREYS, Gary. Healing child soldiers. UNICEF. Special Theme - Childhood injuries and violence. 2009. Acesso em: 30 dez. 2019.

38 Schauer & Elbert, op. cit.

39 WYLAN, Ursula. Child Soldiers: Solutions from a Humanistic Lens.

University of San Francisco. Disponível em: https://repository.usfca.edu/cgi/

viewcontent.cgi?article=1001&context=thes. Acesso em: 12 dez. 2019.

40 UNICEF – United Nations Children’s Fund (East Asia and Pacific Regional Office). Adult Wars, Child Soldiers: Voices of Children involved in Armed Conflict in East Asia and Pacific Region. Disponível em: https://

www.unicef.org/sowc06/pdfs/pub_adultwars_en.pdf. Acesso em: 09 dez.

2019.

41 Whitman et al., op. cit.

42 GREY, Rosemary. Sexual Violence against Child Soldiers: the limits and potential of international criminal law. University of New South Wales (Australia). Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/r37046.pdf.

Acesso em: 09 dez. 2019.

43 Wylan, op. cit.

44 Plante, op. cit.

45 Whitman et al., op.cit.

(7)

46 KEAIRNS, Yvonne E. The Voices of Girl Child Soldiers – Colombia.

Quacker United Nations Office. 2019. Disponível em: https://cdn.atria.

nl/epublications/2003/VoicesgirlSoldiersColombia.pdf. Acesso em: 12 dez.

2019.

47 Dallaire, op. cit.

48 UNITED NATIONS. Office of the Special Representative of the Secretary-General for Children and Armed Conflicts. Engagement with Parties to Conflict Who Commit Grave Violations Against Children.

2019. Disponível em: https://childrenandarmedconflict.un.org/tools-for- action/engagement-with-parties-to-conflict/. Acesso em: 30 dez. 2019.

49 Whitman et al, op. cit.

50 Idem; UN, op. cit.

51 UNITED NATIONS. Office of the Special Representative of the Secretary-General for Children and Armed Conflicts. Action Plans. 2019.

Disponível em: https://childrenandarmedconflict.un.org/tools-for-action/

action-plans/. Acesso em: 30 dez. 2019.

52 UNITED NATIONS. Office of the Special Representative of the Secretary-General for Children and Armed Conflicts. Child Recruitment and Use. 2019. Disponível em: https://childrenandarmedconflict.un.org/

six-grave-violations/child-soldiers/. Acesso em: 30 dez. 2019.

53 Whitman et al, op. cit.

54 UNICEF, op. cit.

55 Plante, op. cit.

56 UNITED NATIONS, Child Recruitment and Use, 2019, op. cit.

57 Plante, op.cit.

58 Grey, op.cit.

59 Dudenhoefer, op. cit.

60 Dallaire, op. cit.

61 Wylan, op. cit.

62 Dudenhoefer, op.cit.

63 Idem.

64 Idem.

65 Dallaire, op. Cit.

66 Keairns, op. cit

67 Dallaire, op. cit.

Série Conflitos Internacionais é editada pelo Observatório de Conflitos Internacionais da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP) - Campus de Marília – SP

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