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INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA: UMA CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS DE GÊNERO À FORMAÇÃO DOCENTE

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Academic year: 2021

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INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA: UMA CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS DE GÊNERO À FORMAÇÃO DOCENTE

FRANÇA, Fabiane Freire1 CALSA, Geiva Carolina2

INTRODUÇÃO

Na cultura brasileira há muitas expectativas a respeito do comportamento considerado apropriado a homens e mulheres de acordo com sua posição social. Conceitos que nem sempre são conscientes são incorporados por meio de mecanismos e instituições sociais. “Desde o berço, meninos e meninas são submetidos a um tratamento diferenciado que lhes ensina comportamentos e emoções considerados ‘adequados’” (Silva, 2007a).

A diferença de gênero está presente nos vários contextos sociais, incluindo, a instituição escolar. Os professores e professoras ao transmitirem o conhecimento científico escolar, sem uma prática consciente – da produção dos conceitos –, podem reforçar os valores hegemônicos, que acabam por repercutir na formação da identidade de seus alunos, especialmente, quando tratam meninos e meninas de forma diferenciada, do ponto de vista do gênero.

Atualmente, o conceito de gênero tem sido discutido com mais freqüência, por várias instâncias – mídia, escola, família, etc., pois os movimentos sociais, principalmente, os ocorridos na segunda metade do século XX possibilitaram o início de pesquisas importantes nessa área. Esses estudos constataram a emergência de um processo social de desconstrução e pluralização dos gêneros no contexto social e educacional por meio de eventos, trabalhos, debates, palestras, dentre outros.

Pesquisas relacionadas ao gênero no âmbito escolar como o de Souza (2000) indicam que a representação do corpo e da identidade de professores/as reproduz estereótipos da mulher: mãe e feminina. A partir dos relatos de docentes de Biologia a autora constatou

1 Pós-graduanda do curso de Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e bolsista da CAPES.

2 Professora Doutora, Departamento de Teoria e Prática da Educação (DTP) e Programa de Pós-Graduação em Educação PPE/UEM.

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a predominância de abordagens sobre gênero com embasamento no discurso médico. Esse discurso acaba por legitimar a função social inferior e subalterna da mulher. As comprovações da autora vão ao encontro de conclusões de Foucault (1984; 1988) sobre a biologização e a medicalização da identidade dos gêneros durante o desenvolvimento da sociedade burguesa.

Em razão da importância política e social da discussão sobre o conceito de gênero e os resultados de estudos contemporâneos que constatam a reprodução de concepções convencionais na instituição escolar buscou-se responder a seguinte questão: Qual a compreensão de professores e professoras a respeito de gênero? Esse conceito pode ser ampliado e ou reconstruído por meio de uma formação continuada? Qual a contribuição desses estudos para a educação básica?

Para compreender o conceito de gênero como produto das relações sociais, culturais, físicas e econômicas, em primeiro momento fez-se um resgate das formulações de Michel Foucault acerca das relações de poder articulada à produção dos discursos e estratégias que formulam e postulam o lugar de onde o sujeito pode e/ou deve falar. Foram enfatizadas discussões de autores da teoria pós-estruturalista – Louro (2007), Soares (2007) que se utilizam das análises foucaultianas para a compreensão da produção do conceito de gênero nas práticas educacionais.

Uma vez que o objetivo do presente estudo é o de investigar a possibilidade de ampliação do conceito de gênero apresentado por professores/as, após a realização de um conjunto de intervenções psicopedagógicas, o segundo momento foi dedicado à apresentação de parte dos estudos de Jean Piaget sobre o processo de tomada de consciência sobre o seu pensar e o seu agir, tanto no que se refere à formação e às possibilidades de ampliação de seu conceito de gênero como as implicações deste processo em sua prática pedagógica.

Em um terceiro momento procurou-se demonstrar como, por meio de um conjunto de intervenções psicopedagógicas, professores voluntários utilizaram-se destes pressupostos teóricos para a realização de um movimento de reconstrução e ampliação de seu conceito de gênero. Após esse processo, elaborou-se com os professores

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propostas didático-pedagógicas para o ensino do conceito de gênero a alunos de 5ª e 6ª séries nas quais atuam os participantes da pesquisa.

Neste projeto de pesquisa optou-se por trabalhar com uma metodologia que integrasse as abordagens qualitativa e quantitativa para uma melhor articulação e análise dos dados coletados. A abordagem qualitativa propiciou a análise compreensiva e interpretativa dos dados (representações, crenças, valores, preconceitos frente as questões e situações apresentadas pela pesquisadora.), enquanto a análise quantitativa favoreceu sua confirmação estatística. Esse procedimento foi utilizado para a construção e avaliação de categorias conceituais geradas a partir das verbalizações dos/as docentes. Nesse contexto, a pesquisadora buscou atentar-se às suas manifestações ao interagir com modos distintos e provisórios de ser, agir e pensar durante o processo de intervenção psicopedagógica.

PRODUÇÕES DE CONCEITOS E RELAÇÕES DE PODER: O GÊNERO EM QUESTÃO

Refletir epistemologicamente sobre o que significa gênero implica problematizar a produção dos conceitos no contexto histórico, político e cultural. Nesse sentido, compreender gênero significa perceber a sua produção de conceitos como um processo permeado por relações de poder, interesses, conflitos, contradições e negociações entre os indivíduos e grupos.

Os conceitos compõem parte indispensável da cultura, pois as pessoas se comportam e pensam de acordo com os significados que circulam em determinado tempo e espaço. Todavia, os conceitos considerados legítimos podem vir a ser questionados e sofrer contestação por grupos ou indivíduos que tomam consciência da não naturalidade dos discursos sociais. Os discursos, entre outros aspectos, podem justificar as desigualdades sejam sociais, de gênero, de etnia, de raça ou de sexualidade. De outro lado, por conta desse questionamento novas visões e possibilidades de compreender os conceitos vigentes podem ser colocados em circulação.

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De acordo com Geiva Carolina Calsa3 (2002), estudos sobre conceitos vêm explicitando o seu caráter provisório, uma vez que se modificam a partir de diferentes contextos e são formados a partir das experiências e vivências dos sujeitos nas várias instâncias sociais. Para a autora, na instituição escolar, os conceitos variam ainda de acordo com as diferentes teorias de aprendizagem. Partindo da teoria construtivista, adotada como uma das referências teórico-metodológicas deste estudo, os conceitos são construções, ao mesmo tempo, individuais e sociais. Resultado da interação do sujeito aprendente com o meio físico e social, os conceitos implicam um processo de assimilação e acomodação contínua dos objetos de conhecimento. Nesse processo de reorganização e, portanto de ampliação gradativa e progressiva dos conceitos, o sujeito estrutura o meio e é estruturado por este.

Os seres humanos ao produzirem explicações para sua vida e as instituições sociais que as organiza, como a família, o casamento ou os papéis de homens e mulheres, assumem como naturais os discursos que são construídos pelo próprio conjunto social e fruto do jogo de poder que permeia às interações humanas. Para compreender o conceito de poder buscou-se em Michel Foucault (1988; 1984) a análise das diversas redes de discurso, práticas e estratégias sociais que o constituem.

O discurso é exemplo da complexidade do poder não centralizado em um único ponto, instituições ou instâncias sociais. O discurso que circula continuamente nas interações sociais busca persuadir o outro, que pode vir a aceitar ou não sua verdade e legitimidade. O conhecimento científico, neste contexto, pode ser considerado como um “discurso verídico”, na medida em que passa pelo aceite da comunidade acadêmica para que seja apresentado como legítimo e necessário. Foucault (1984) descreve os mecanismos de constituição das instâncias que regem o conhecimento científico. Seu interesse centra-se em identificar e explicar os domínios do saber prescritos por ciências como a psicologia, a biologia, e a medicina.

Na perspectiva foucaultiana, a ciência é produzida de acordo com os interesses e necessidades das diferentes conjunturas históricas, políticas, culturais e econômicas.

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É adotado pela pesquisadora o uso do nome e sobrenome do autor, quando esse é citado pela primeira vez no corpo do texto, para perceber mulheres e homens. Essa opção é característica do campo dos Estudos Feministas.

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Esses elementos definem o que pode ou não ser considerado saber científico. Embora os indivíduos produzam saberes fora e dentro da escola ou da academia, as relações de poder é que determinam as concepções de verdade a serem legitimadas como conhecimento científico.

Para que ocorra a aceitação dos indivíduos do que é considerado legítimo, instituições citadas por Foucault (1984) – prisão, escola, hospital – têm a função de classificar, avaliar, recompensar ou de punir os indivíduos de acordo com as normas elaboradas por e para determinado grupo social. Com esse intuito, são criados sistemas de vigilância, que sustentam a produção, a distribuição e a imposição de saberes sobre os indivíduos. São exemplos dessa imposição, o conceito de oriental por parte do Ocidente, de aluno por parte da escola, dos doentes por parte dos hospitais, dos presos nas prisões, e dos papéis femininos e masculinos por parte de homens e mulheres, que devem corresponder às regras sociais.

Foucault (1988) caracteriza o discurso como algo construído a partir de práticas sociais que produzem saberes estruturados pelo poder e, ao mesmo tempo, estruturadores dessas relações. O poder se apresenta como uma rede de relações conflituosas que “fabrica” corpos dóceis e reduz a força e a dimensão das ações políticas dos sujeitos, sendo um dos objetivos do “poder disciplinar” manter as práticas dos indivíduos sob controle social. Essa força produz objetos e rituais que têm como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo ou mutilá-lo, mas para aprimorá-lo e adestrá-lo para o trabalho e a cidadania. As instituições sociais produzem práticas disciplinares difundidas e articuladas no corpo social com o objetivo de produzir corpos humanos úteis.

Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso (FOUCAULT, 1984, p. 08).

Neste excerto, o autor evidencia o aparecimento e manutenção de saberes em decorrência de outros fatores que não apenas a vigilância e a disciplina, como o prazer. Esses fatores são externos aos próprios saberes e são parte intrínseca das relações de poder (genealogia). Demonstra a impossibilidade de uma teoria geral do poder, pois este

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não apresenta características universais: não existe algo unitário e global chamado poder, mas sim formas heterogêneas, capilares e em constante transformação.

Em uma perspectiva complementar, Louro (1997, p.61) destaca que a divisão do trabalho, oriunda da estrutura de produção capitalista, permitiu que se organizassem politicamente outros grupos sociais, além da classe, baseados na raça, etnia, sexualidade e gênero. A partir das idéias produzidas por esses novos grupos, as relações de poder – que atribuíam às autoridades decisões “inquestionáveis” sobre o panorama social – foram questionadas. São exemplos disso, os gestos e sentidos “produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornando-se parte de seus corpos”.

Os estudos de gênero vinculados aos movimentos sociais permitiram o questionamento político e o processo de reflexão crítica sobre a situação das mulheres nas sociedades modernas. Posteriormente, esses estudos romperam com o paradigma de apenas compreender a condição das mulheres, propondo-se a refletir sobre os processos de construção da feminilidade e da masculinidade, e suas relações com a sexualidade e a representação dos corpos.

Tais estudos problematizaram a sexualidade e o gênero, com o intuito de romper com a visão binária, já mencionada (dois sexos e dois gêneros) e biologista, ou seja, quem nasce com uma genitália feminina terá, necessariamente, desejos sexuais por homens e se adequará às expectativas do gênero feminino. A problematização desses conceitos busca questionar as classificações sociais que padronizam gênero, sexualidade e corpo, compreendendo que existem identidades que não se enquadram aos padrões tradicionais dominantes. Assim, nem todas as mudanças de gênero indicam, necessariamente, mudanças no plano da sexualidade dos indivíduos e vice-versa.

De acordo com Louro (1999), a produção dos sujeitos está articulada às relações de poder que vigoram como “naturais” e que apresentam as diferenças como estigmas: ser gordo, ser pobre, ser velho, ser homossexual, ser mulher, etc. Estes estigmas geram discriminações e limitam as possibilidades de inclusão dos sujeitos na escola, bem como, afetam suas possibilidades de aprendizagem, entre outras conseqüências sociais, culturais, econômicas e éticas.

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Louro (1999) afirma que a sexualidade, os corpos e os gêneros vêm sendo descritos, compreendidos, explicados, regulados, saneados e educados pelas instâncias sociais. Estado, igreja, família, escola, ciência – instituições tradicionais – concorrem atualmente com a mídia, com grupos organizados de feministas e de “minorias sexuais” que pretendem também ter voz sobre a sexualidade, o exercício do prazer, as possibilidades de experimentar os gêneros, de transformar e viver os corpos.

Lembrando desses aspectos, Silva (2007b) recomenda uma abordagem escolar que trate a identidade e a diferença como questões políticas, ou seja, como produções histórico-sociais. Nesse caso, o planejamento curricular não se preocuparia em reafirmar a diversidade de valores, crenças e identidades, e sim problematizar o modo como os conceitos são produzidos socialmente. Isso significa entender que mecanismos buscam fixar as identidades seja de gênero, raça, etnia ou sexualidade. Para tanto, é necessária à escola a opção por uma teoria que explique o processo de produção dos conceitos em questão.

TOMADA DE CONSCIÊNCIA SOBRE A PRODUÇÃO DO CONCEITO DE GÊNERO NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Nas últimas décadas, o modo de pensar a aprendizagem foi sendo reconstruído por diferentes olhares. Dentre as linhas que mais se desenvolveram, a construtivista foi predominantemente marcada pelas pesquisas de Jean Piaget. De acordo com Calsa (2002) e Catelão (2007), Piaget se constitui uma referência para a compreensão do desenvolvimento e da aprendizagem humana, sobretudo pela amplitude e precisão de suas investigações psicológicas e epistemológicas.

Até Jean Piaget organizar o método clínico de investigação, o pensamento infantil era investigado por meio de testes predominantemente quantitativos. Entre estes, os testes de inteligência criados por Alfred Binet e Theodore Simon no início do século XX se tornaram populares pela Europa e mais tarde mundialmente. Esses testes seguiam um princípio rígido de avaliação e comparação de crianças, como sua classificação em níveis de inteligência: acima da média, na média e abaixo da média. Este processo de

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classificação, de forma rígida, como era estabelecido, corria o risco de ser utilizado como parâmetro de desempenhos e condutas.

Em contraposição a essa forma de avaliar a conduta infantil, Piaget buscava observar sua fala e sua ação com o intuito de compreender como se processava o pensamento de cada um deles. Para ele, a função da inteligência é a de permitir a adaptação do indivíduo ao ambiente social e natural. Faz parte desse processo, a tomada de consciência, que permite aos indivíduos “compreender” e “explicar” suas ações e seu pensar. A tomada de consciência depende da mediação dos outros sujeitos ao colocar em questão o seu pensamento, a forma como pensa e os conceitos que domina e que considera verdade. É a mediação do outro e as condições extrínsecas – meio – e intrínsecas – conceitos prévios, estrutura e funcionamento cognitivo – do indivíduo que determinam o grau de amplitude científica alcançada por um conceito.

Para Becker (1997), o processo de tomada de consciência não se limita ao simples esclarecimento ou iluminação de um conceito. Esse processo consiste em reconstruções progressivas do conceito que passa sempre de um nível inferior para um nível superior de conceituação. Isso significa domínio, estabelecimento de relações e consciência da maior quantidade possível de variáveis que envolvem um fato ou fenômeno, seja social ou natural. Trata-se de uma construção e reconstrução gradativa e sempre provisória por parte do indivíduo.

Segundo os pressupostos epistemológicos de Piaget, à medida que o sistema cognitivo passa por desafios e situações-problema pode ocorrer um desequilíbrio, e a busca pelo reequilíbrio pode ser realizada com intencionalidade ou não. Catelão (2007) explica que nesse processo podem vir a ser integrados novos dados à estrutura cognitiva dos indivíduos, modificando-a. As transformações da maneira como o sujeito interpreta o mundo ocorrem com essa aquisição de novos esquemas conceituais e estruturais. Os indivíduos em suas ações e operações intelectuais assimilam elementos do meio físico e cultural aos esquemas conceituais pré-existentes e os transformam, acomodando os novos conhecimentos e formas de pensar ao seu sistema cognitivo.

A ampliação ou a reorganização de um novo conceito ocorre à medida que o anterior apresenta-se ao insuficiente frente a uma situação-problema. Essa insuficiência ou

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lacuna ao promover um desequilíbrio cognitivo, pode levar o indivíduo a integrar novas formas de ação ou de pensamento aos seus esquemas anteriores. De acordo com a teoria construtivista essa é uma das formas de aprendizagem que o indivíduo pode realizar, concebida, então, como construção de conhecimento.

A partir do processo de acomodação – reequilibração cognitiva – o objeto de conhecimento passa a integrar o sistema cognitivo, reorganizando os conceitos e estruturas pré-existentes em um patamar superior. Esse movimento é dialético, uma vez que a trajetória da ação do sujeito sobre o objeto de conhecimento o transforma na mesma medida em que ele toma consciência das propriedades desse objeto, de sua ação e das relações existentes entre eles. Dessa forma, o conhecimento não se situa no indivíduo nem no objeto de conhecimento, mas como produto da interação entre eles.

Esse movimento de ampliação e integração contínua entre os esquemas de ação, operação e de conceitos já existentes pode ser explicado como um movimento em espiral, como lembra Calsa (2007, p. 87):

Esse movimento, mais do que circular, pode ser entendido como um movimento em espiral, no qual as condições históricas da sociedade influenciam fortemente as aprendizagens dos indivíduos que, por sua vez, influenciam a construção das condições econômicas, políticas, sociais e culturais do conjunto social, e assim por diante. O caráter espiral desse movimento representa a modificação contínua tanto do próprio indivíduo como da sociedade.

Segundo os pressupostos da teoria construtivista, a aprendizagem é facilitada pelo processo de tomada de consciência do indivíduo em relação ao que faz e ao que sabe. Isso significa ter domínio e controle sobre os processos endógenos e exógenos que envolvem formação de conceitos. Na medida em que o indivíduo torna conscientes as características do objeto de conhecimento e de sua ação ou operação mental sobre ele, o que antes não era percebido passa a sê-lo, oportunizando a criação de novas relações e inferências entre e sobre conceitos. Dentro dessa perspectiva teórica, trata-se da criação de novas possibilidades de compreensão do objeto de conhecimento (PIAGET, 1977).

Do mesmo modo que a construção de conceitos, o processo de tomada de consciência também é provisório. Cada resposta e solução construída, explicada e justificada é concebida como uma verdade possível – provisória e inacabada – e não absoluta e

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definitiva. Nesse processo de aprendizado e reflexão contínuo, o indivíduo compreende o mundo físico, social e cultural no qual está inserido; e a si mesmo, como indivíduo que é constituído pelo meio mas, ao mesmo tempo, o constitui a partir das interpretações e ações originais que é capaz de realizar. Neste sentido, a tomada de consciência se desdobra em conhecimento de si e do outro. Ao explicar a si mesmo, a realidade interior e exterior, o indivíduo conhece (aprende) sobre si e sobre o outro.

Calsa (2002) destaca que o processo de tomada de consciência é ancorado pela linguagem e reflexão que mobiliza os recursos cognitivos disponíveis no sistema dos indivíduos, ao mesmo tempo, que coordena os esquemas de ação e conhecimentos pertinentes à resolução do problema.

METODOLOGIA DA PESQUISA

O trabalho foi iniciado pelo contato com a direção de uma escola da rede pública estadual do município de Sarandi (PR), a qual se apresentou o objetivo e a proposta da pesquisa. A escola foi escolhida por situar-se em local favorável à pesquisadora, bem como por ter aceito o desenvolvimento da investigação em suas dependências. O consentimento da equipe pedagógica e dos docentes foi obtido a partir da exposição acerca do processo de coleta, registro e análise dos dados e o tema da pesquisa em curso desenvolvido em um período de hora-atividade desses profissionais.

A pesquisa foi desenvolvida com 12 professores que atuam em 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental, oito mulheres e quatro homens, que aceitaram a indicação da equipe de coordenação da escola e o convite da pesquisadora. Com esse grupo realizaram-se entrevistas individuais e sessões de intervenção psicopedagógica.

As entrevistas foram adaptadas do método clínico (PIAGET, 1977) e abordaram o tema da pesquisa: conceito de gênero, corpo e sexualidade. As verbalizações dos professores foram transcritas na íntegra, sem correção de vícios de linguagem, deslizes gramaticais ou erros de concordância próprios da linguagem oral. Para a análise selecionaram-se falas coletadas tanto nas entrevistas individuais como nas sessões de intervenção com o grupo de docentes. Nessa análise, as classificações e categorizações das falas dos

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docentes, elaboradas pelo pesquisador, buscaram fugir às oposições conceituais binárias. Em nenhum momento fixou-se uma concepção como norma ou verdade, e buscou-se compreender as verbalizações realizadas a partir da condição arbitrária do conceito de gênero. Imediatamente após a última sessão foi realizada uma segunda entrevista, e vinte dias após, realizou-se a terceira entrevista individual.

Após a entrevista individual realizaram-se oito sessões de intervenção psicopedagógica de caráter construtivista com o grupo de professores voluntários envolvendo o conceito de gênero e o processo de tomada de consciência. Cada sessão teve duração de três horas. As sessões apresentaram a seguinte organização: levantamento de hipóteses (definição dos professores sobre o conceito de gênero de acordo com seus conhecimentos prévios); apresentação das respostas e discussão de sua pertinência ou não, conforme parecer do grupo; e justificativa do saber e do fazer do professor diante das situações-problema apresentadas pela pesquisadora.

Esse processo consistiu em que os docentes percebessem as representações sociais que fundamentavam sua prática pedagógica permitindo novas possibilidades de organização. Discutir, problematizar e debater o conceito de gênero possibilitou a tomada de consciência sobre sua representação de gênero e a reconstrução deste conceito, tido sempre como provisório. Por meio de suas tentativas de compreensão e reconstrução de seus conceitos e/ou suas ações os docentes vivenciaram o processo de equilibração cognitiva e tomada de consciência.

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Como proposto na metodologia, organizaram-se categorias conceituais buscando levar em conta as impressões, sensações e reações dos docentes sobre o tema em foco. De acordo com as notas de campo da pesquisadora, suas reações evidenciaram diferentes níveis de envolvimento com a pesquisa, com o tema e com a situação de entrevista e intervenção, dentre outras variáveis, presentes no processo de investigação. Isso posto, é importante lembrar que esta análise aborda tão somente os aspectos conceituais manifestados pelos docentes, levando em conta a presença de elementos cognitivos e

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afetivos envolvidos na atividade (valores, crenças, sentimentos, emoções) sem, contudo, discuti-los cientificamente. Neste artigo serão apresentados e comparados dados obtidos na primeira e segunda entrevista individual (antes e após a intervenção psicopedagógica) realizada com os docentes.

Na primeira entrevista pretendeu-se verificar as impressões iniciais dos professores/as sobre o conceito de gênero. Fez-se seguinte questão: “O que é gênero para você?”Abaixo são apresentadas as respostas integrais de todos eles:

P1(F)4 – Gênero feminino e masculino não deveria ter divisão. Mulheres sofrem questão de discriminação de gênero. Acho que somos iguais nessas questões de direitos. Deveria ser igual nas questões de capacidades, mesmo a estrutura biológica sendo diferente. Tudo depende do contexto de onde você está discutindo gênero. É uma questão cultural mesmo.

P2(F) - Masculino e feminino P3(M) - Masculino e feminino

P4(F) - Um conjunto de coisas que tem as mesmas características; um grupo de mulheres, que têm suas características físicas iguais.

P5(F) - É feminino, é masculino, onde você vai definir do ser humano, se ele é do gênero masculino ou feminino.

P6(M) - Eu sou biólogo né, e na Biologia a gente fica um pouco confuso em relação a definir o que é sexualidade, o homem, a mulher, o macho, a fêmea. De um modo geral, é a questão da divisão dos sexos mesmo.

P7(M) - Essa questão de diferença sobre feminino e masculino que eu conheço. De estudo eu não sei.

P8(F) - Masculino e Feminino. P9(M) – É::: (Não respondeu). P10(F) - Feminino e masculino.

P11(F)- Masculino e feminino, mas tem a questão que a gente tinha abordado lá no curso né, pode ter um determinado grupo é

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assim, são questões assim, o homem, a mulher, as questões aí que cada um coloca que cada um tem, por exemplo, de seu corpo.

P12(F) - Hormônios masculino e feminino

As falas dos docentes evidenciam um conceito de gênero sustentado na diferença biológica dos sexos, como opostos. Apenas uma das professoras, P1(F), além dos fatores biológicos também lembrou de elementos relacionados à cultura, como quando declarou “Tudo depende do contexto de onde você está discutindo gênero. É uma questão cultural mesmo”. Esse conjunto de verbalizações sugere a inexistência por parte desses docentes sobre os fatores sociais que envolvem a construção dos papéis masculinos e femininos, assim como das relações de poder que se estabelecem entre eles.

Durante a intervenção psicopedagógica, a pesquisadora percebeu um movimento coletivo de desconstrução dos conceitos considerados, até então, “legítimos”. É como se os docentes se permitissem questionar, discutir e modificar seus conceitos em um processo de percepção das contradições e oposições existentes entre o conceito anterior e os apresentados e discutidos no grupo.

Esse movimento ficou bastante evidente nas respostas formuladas pelos docentes na segunda entrevista, após o processo de intervenção psicopedagógica. A mesma questão enunciada na primeira entrevista “O que é gênero para você?”os professores/as responderam de forma bastante diversificada.

P1(F) - Seria identidade mesmo, pois nem sempre condiz com o biológico. Temos as sua definições o biológico masculino e feminino e a questão mais psicológica que diz respeito as escolhas.

P4(F) - É construído socialmente, pois ele pode ser homem e gostar de outro homem, é construído socialmente, não é a característica física que determina o gênero.

P7(M) - Ampliou essa visão a gente vê que não se restringe apenas a isso daí, tem mais questões que abrange isso daí, e pra mim não é uma coisa que ta acabada tenho que buscar mais informações.

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P8(F) - É todo aquele conhecimento que ele aprendeu no dia-a-dia, escola, família, igreja, toda a formação da identidade dele de onde ele está presente.

P9(M) - Não está relacionado apenas a homem e mulher, mas sim a forma que se apresentam na sociedade. São características que as pessoas demonstram no decorrer de sua vida.

P11(F) - Tanto a mulher quanto o homem, eles são produtos de um determinado grupo social e isso não significa que o homem ou a mulher determina o gênero dele, não é porque ele tem órgão lá que ele vai ser homem, ou a mulher, o meio que ele vive, tudo, pode ser também desde o nascimento dele, a educação, o meio que ele vive pode estar mudando.

Na primeira entrevista 92% dos sujeitos afirmaram que gênero corresponde ao sexo masculino e feminino; na segunda, 33% afirmaram que esse conceito é produzido socialmente, de acordo com interesses, interpretações sociais; enquanto 67% afirmaram que o conceito é mais amplo, pois envolve identidade, sentimentos, orientação sexual, descriminação, formação, concepção, dentre outras questões. Essas respostas revelam que os docentes passaram a refletir sobre gênero para além do caráter biológico, o que aponta para o seu caráter cultural e social, permeado por jogos de poder e interesses.

As verbalizações emitidas na segunda entrevista fazem supor que o processo de intervenção psicopedagógica foi capaz de fazê-los repensar seus conceitos e, sobretudo, a maneira como esses conceitos são produzidos na sociedade. O grupo parece ter vivenciado um processo de (des)construção e (re)construção de significados. Por outro lado, a característica do trabalho realizado em pequeno grupo (12 docentes e a pesquisadora-coordenadora) parece ter facilitado esse processo na medida em que não somente a pesquisadora, mas os colegas entre si puderam expressar livremente seu pensamento, questionar, argumentar e contra-argumentar. Pode-se afirmar que a dinâmica da intervenção psicopedagógica acabou por promover um movimento de tomada de consciência dos docentes sobre o que, como e por que pensavam determinado conceito sobre gênero.

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CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Comparados os dados obtidos na primeira e segunda entrevista com os decentes evidenciou um movimento de ampliação e (re)construção de seus conceitos sobre gênero que sugere a abertura do grupo a outras possibilidades de ser, agir e pensar, não restrita aos padrões determinados socialmente. Abertura válida tanto para si mesmo como para seus alunos, como evidencia a fala da professora P12(F), durante o processo de intervenção psicopedagógica “Essa semana eu, eu me policiei nesse sentido, estava lendo as atividades feitas no caderno né, e quando vinha as meninas e os meninos eu me policiei em elogiar os dois [...]”.

Sem dúvida, há um grande desafio em desconstruir dogmas em relação ao gênero, pois envolvem preconceitos morais, religiosos e científicos produzidos pela tradição social e cultural. Ao perceberem que o poder econômico, social, político e cultural que circula pela sociedade geram estratégias de produção e reprodução de saberes e de identidades, incluindo a de gênero, os docentes parecem ter se dado conta de que o ensino desse tema não implica somente transmitir conhecimentos, e sim refletir sobre sua arbitrariedade. Daí a importância de interrogar, problematizar e tomar consciência dos efeitos das práticas sociais que ao selecionarem conteúdos, pensamentos e ações como verdades universais podem silenciar outras formas possíveis de ser, sentir e pensar.

A “diferença” masculino/feminino tem implicações significativas na instituição escolar, pois, conforme vários estudos demonstram (BOURDIEU, 1995 e LOURO, 2007), são reproduzidas desigualdades sociais, evidentemente o mesmo ocorre com as relações de gênero. Todavia, a partir do momento que as relações sociais e de poder são questionadas e discutidas, os indivíduos são capazes de compreender o papel contraditório da instituição escolar. Se por um lado, a escola reproduz as desigualdades sociais, culturais, de gênero, por outro, pode ser um ambiente que desenvolva essas questões por meio do processo de tomada de consciência dos sujeitos sobre seus pensamentos e ações.

Para tanto, Louro (1997; 1999) salienta que é preciso problematizar a lógica de mercado instituída sobre o conceito de gênero por meio de um processo de (des)construção.Esse processo não elimina o pensamento hierárquico construído historicamente em relação

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aos gêneros, entretanto, busca inseri-los nas relações de poder existentes e analisá-los criticamente de forma a não serem reproduzidas posturas legitimadoras de desigualdades entre os indivíduos.

Um diálogo necessário à escola é abordar as subjetividades, os sentimentos, os anseios, os conflitos, as ambigüidades e as contradições dos indivíduos. Sobretudo, os professores precisam compreender que nenhuma identidade é natural, é produzida pelas crenças, valores, costumes, hábitos, normas e regras trazidas pelas diferentes comunidades de práticas nas quais os sujeitos viveram e vivem.

A instituição escolar, não apenas “fabrica” os sujeitos que a freqüentam como é também produzida por eles, inclusive pelas representações de gênero que nela circulam. São exemplos disso, a forma de ocupação dos espaços físicos, as relações entre docentes e estudantes, suas posições e papéis dentro da escola, entre outros. Essas práticas escolares, via currículo oculto, transmitem condutas e valores considerados ideais e normais que segundo Silva (2007b) e Louro (2007), podem ser contrapostas somente por meio de seu questionamento, tomada de consciência e desconstrução.

Sexualidade e gênero são dimensões que integram a identidade pessoal de cada indivíduo, pois são produzidas pelos efeitos do poder e se transformam conforme os valores sociais vigentes em uma dada época. Em síntese, é a cultura que constrói o gênero e representa as atividades como masculinas e femininas de acordo com os interesses que circulam em determinado momento. É necessário, portanto, que as pessoas tenham essa consciência, sobretudo, no ambiente escolar para que as práticas escolares contribuam de forma crítica na construção de identidade, ou seja, possibilitando aos indivíduos mais conhecimentos sobre si, sobre o outro e sobre o mundo.

REFERÊNCIAS

BECKER, F. Da ação à operação: o caminho da aprendizagem; J. Piaget e P. Freire. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

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BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1999.

BOURDIEU, P. A dominação masculina. In: Educação e Realidade. v.20(2), julho/dezembro 1995.

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Referências

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