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A Violência Urbana Do Vazio. Um olhar sobre a questão da habitação e dos imóveis devolutos na cidade de Lisboa

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Academic year: 2023

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A VIOLÊNCIA URBANA DO VAZIO

UM OLHAR SOBRE A QUESTÃO DA HABITAÇÃO E DOS IMÓVEIS DEVOLUTOS NA CIDADE DE LISBOA

CAMILA COSTA BRUNO

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS E ENGENHARIA DO AMBIENTE DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA E PLANEAMENTO REGIONAL

MESTRADO EM URBANISMO SUSTENTÁVEL E ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO

Licenciada em Direito

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Orientadora: Doutora Mônica Maria Borges Mesquita, Investigadora do De- partamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Facul- dade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS E ENGENHARIA DO AMBIENTE

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA E PLANEAMENTO REGIONAL

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA E PLANEAMENTO REGIONAL

A VIOLÊNCIA URBANA DO VAZIO

UM OLHAR SOBRE A QUESTÃO DA HABITAÇÃO E DOS IMÓVEIS DEVOLUTOS NA CIDADE DE LISBOA

Júri:

Presidente: Doutor António Pedro de Nobre Carmona Rodrigues, Professor Auxiliar

Universidade NOVA de Lisboa

Vogais: Ana Filipa Ramalhete (Arguente), Professora Auxiliar Universidade Autónoma de Lisboa

Gonçalo Manuel Ferreira dos Santos Antunes, Professor Auxiliar Universidade NOVA de Lisboa

CAMILA COSTA BRUNO Licenciada em Direito

MESTRADO EM URBANISMO SUSTENTÁVEL E ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO Universidade NOVA de Lisboa

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A VIOLÊNCIA URBANA DO VAZIO: UM OLHAR SOBRE A QUESTÃO DA HABITAÇÃO E DOS IMÓVEIS DEVOLUTOS NA CIDADE DE LISBOA

Copyright © Camila Costa Bruno, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade NOVA de Lisboa.

A Faculdade de Ciências e Tecnologia e a Universidade NOVA de Lisboa têm o direito, per- pétuo e sem limites geográficos, de arquivar e publicar esta dissertação através de exemplares

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impressos reproduzidos em papel ou de forma digital, ou por qualquer outro meio conhecido ou que venha a ser inventado, e de a divulgar através de repositórios científicos e de admitir a sua cópia e distribuição com objetivos educacionais ou de investigação, não comerciais, desde que seja dado crédito ao autor e editor.

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Aos meus pais, com amor e gratidão.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer a minha orientadora Professora Doutora Mônica Mesquita, por toda dedicação, paciência, incentivo e por todas as palavras de carinho e con- forto ao longo de todas as dificuldades que enfrentei ao longo da elaboração desse trabalho.

Acredito que a orientação é uma vocação e posso afirmar que me senti muito bem amparada pela minha orientadora em todas as adversidades que precisei superar para poder chegar até aqui. Gostaria de agradecer a todos os membros do OLO - Observatório de Literacia Oceânica e do MARE - Marine and Environmental Sciences Centre, pelo acolhimento e pelas partilhas de conhecimento, vivencias e aprendizados.

Agradeço aos meus professores do MUSOT, por me ensinarem os caminhos do urba- nismo sustentável e as diversas formas de se trabalhar com o ordenamento do território. Além disso, agradeço aos meus professores do Direito Mackenzie, em especial, aos Professores Ales- sandro Soares e Lilian Pires que no ano de 2019, dedicaram algum tempo para me auxiliar no processo de ingresso neste mestrado.

Agradeço aos meus pais, Laisa e Dario. Os verdadeiros responsáveis pela concretiza- ção desse mestrado, os meus maiores incentivadores e as pessoas que mais acreditaram no meu futuro e na minha educação. Obrigada por nunca soltarem da minha mão, tanto quando estávamos fisicamente juntos, como agora com um oceano de distância. Eu senti a presença de vocês em todos os momentos, obrigada por serem os meus melhores amigos e por acredi- tarem em mais um dos meus sonhos. Agradeço a minha irmã, Caroline, minha maior saudade e também minha maior inspiração – a escolha por cursar esse mestrado veio de toda introdu- ção e trocas de conhecimento que tivemos. Obrigada por me apresentar o urbanismo e suas vertentes. Agradeço também ao Flávio, meu cunhado, que junto com a minha irmã, me pre- sentearam com o título de Tia da nossa amada Cecília. Por falar em família, agradeço ao meu companheiro Daniel, por ser a minha morada, o meu porto seguro e meu parceiro em todas as dores e alegrias que a vida nos reserva. Obrigada por todo cuidado diário, por ser meu ombro amigo e por nunca me deixar desistir. Agradeço a minha sogra, Lúcia, por todas as palavras afetuosas, por toda proteção e cuidados dispensados a mim, desde o dia em que nossas vidas se cruzaram. Agradeço também as minhas primas, Ivy Ananda e Aiana.

Agradeço as minhas amigas Gabriela e Luana, por terem plantado a semente do mes- trado em Portugal no meu coração e por semearem a nossa amizade, apesar de toda distância envolvida. Agradeço aos meus amigos de infância, Kamilla, Caio e Bianca, por fazerem parte da minha história. Agradeço ao meu amigo Maurício, que hoje me acompanha lá do céu, por todos os momentos que vivemos juntos, dentro e fora da faculdade de Direito.

Por fim, agradeço a Deus por sempre ir na frente em todos os meus caminhos e por me presentear todos os dias com o simples e ao mesmo tempo complexo, dom da vida.

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“É preciso amar o inútil”

(Lygia Fagundes Teles, trecho do livro “Ciranda de Pedra”, 1954)

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RESUMO

A questão da habitação e dos imóveis devolutos são duas problemáticas que atingem diversas cidades ao redor do globo. A presente investigação pretende traçar um paralelo entre esses dois pontos e a Violência Urbana do Vazio. Para tanto, parte-se do o entendimento de que a existência de pessoas sem habitação ou que habitam de forma precária, enquanto coe- xistem no mesmo espaço-tempo imóveis com potencialidades que poderiam atender as suas necessidades, mas que, por descaso e inércia tanto do poder público como de particulares, atualmente estão em situação de abandono, configurando um atentado contra quem quer ha- bitar, mas é impedido de o fazê-lo.

Para fundamentar essas alegações, será realizado um levantamento bibliográfico com temas diretamente relacionados com essas questões. Bem como, com o objetivo de apurar-se a situação habitacional na cidade de Lisboa, serão apresentados dados estatísticos e a legisla- ção afeta ao tema tanto da habitação como dos imóveis devolutos. Além disso, para tornar mais tangível o tema aqui abordado, serão realizadas saídas pontuais para campo, identifica- das como Deriva - estratégia metodológica exploratória que consiste no caminhar, no sentir e no uso de ferramentas de recolha de dados. Por fim, restará comprovado que os imóveis de- volutos configuram sim formas de violência contra os cidadãos.

Palavras-chave: Imóveis Devolutos – Habitação - Violência Urbana – Deriva – Vazio Urbano

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ABSTRACT

The issue of housing and vacant properties are two issues that affect several cities around the globe. The present investigation intends to draw a parallel between these two points and the Urban Violence of the Void. To do so, it starts from the understanding that the existence of people without housing or who inhabit in a precarious way, while coexisting in the same space-time immovables with potentialities that could meet their needs, but that, due to neglect and inertia of both public and private authorities, are currently in a situation of abandonment, configuring an attack against those who want to inhabit, but are prevented from doing so.

To substantiate these claims, a bibliographic survey will be carried out with topics di- rectly related to these issues. As well as, in order to determine the housing situation in the city of Lisbon, statistical data will be presented and the legislation related to the subject of both housing and vacant properties. In addition, to make the topic discussed here more tangible, specific field trips will be carried out, identified as Drift - an exploratory methodological strat- egy that consists of walking, feeling and using data collection tools. Finally, it will be proven that vacant properties do constitute forms of violence against citizens.

Keywords: Vacant Real estate - Housing- Urban Violence – Drift – Urban Void.

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ÍNDICE

1. INTRODUÇÃO ... 2

2. QUADROCONCEITUAL(ESTADODAARTE) ... 11

2.1.1 Violência Urbana ... 15

2.1.2. Violência Urbana do Vazio ... 18

2.2.1 ... 21

3. QUADROLEGAL ... 29

3.3.1 ... 46

4. UMOLHARSOBREOTERRITÓRIOPORTUGUÊSELISBOETA ... 49

5. DIÁRIODEUMADERIVASILENCIOSAPORLISBOA ... 60

6. CONSIDERAÇÕESFINAIS-DESAFIOS ENCONTRADOS E PONTOS FUTUROS.... 94

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 98

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ÍNDICE DE FIGURAS

IMAGENS

IMAGEM 1 – RUA CORREIA TELES (ESQUINA COM A RUA FERREIRA BORGES) CAMPO DE

OURIQUE...10

IMAGEM 2–GUERNICA -PABLO PICASSO - PINTURA À ÓLEO -1937-“UMA DECLARAÇÃO DE GUERRA CONTRA A GUERRA E UM MANIFESTO CONTRA A VIOLÊNCIA”...14

IMAGEM 3–LISBOA, CIDADE DA TOLERÂNCIA...16

IMAGEM 4 – DIAGRAMA DE VENN: DEMONSTRAÇÃO DOS ELEMENTOS ENVOLVIDOS NA VIOLÊNCIA URBANA DO VAZIO...20

IMAGEM 5–“MUROS QUE FALAM”LISBOA –ARROIOS,2021...23

IMAGEM 6–“MUROS QUE FALAM”LISBOA –BAIXA CHIADO,2021...28

IMAGEM 7-CIAMIX:A RELAÇÃO ENTRE A RUA E A CASA...32

IMAGEM 8– NAZARÉ (84 ANOS) ESTÁ A MORAR "TEMPORARIAMENTE" EM UMA CASA DA PROTEÇÃO CIVIL NO BAIRRO DO CASTELO EM LISBOA………56

IMAGEM 9-QUE SEJA CUMPRIDA A LEI………..………57

IMAGEM 10 E IMAGEM 11– ENCONTROS REALIZADOS PELA ASSOCIAÇÃO HABITA!...57

IMAGEM 12,IMAGEM 13, IMAGEM 14, IMAGEM 15, IMAGEM 16,IMAGEM 17 E IMAGEM 18- PARTICIPAÇÃO COLETIVA NA TOMADA DE DECISÕES REFERENTES A MELHORIAS NO BAIRRO DOS ALFINETES NA JUNTA DE FREGUESIA DE MARVILA………..……….………58

IMAGEM 19-LOGO DO PROJETO RÉS DO CHÃO……….58

IMAGEM 20-AS CINCO REGIÕES ADMINISTRATIVAS DE LISBOA ATUALMENTE...59

IMAGEM 21-INTERNATIONALE SITUATIONNISTE -DEBORD'S “THE NAKED CITY”...62

IMAGEM 22-PREÇO DAS RENDAS NAS FREGUESIAS DE LISBOA...65

IMAGEM 23-LOGO DA JUNTA DE FREGUESIA DE SANTA MARIA MAIOR...66

IMAGEM 24 - JUNTA DA FREGUESIA DE SANTA MARIA MAIOR - CENTRO HISTÓRICO LISBOA...66

IMAGEM 25-LOGO DA JUNTA DE FREGUESIA DE BELÉM...67

IMAGEM 26-JUNTA DA FREGUESIA DE BELÉM -ZONA OCIDENTAL DE LISBOA...67

IMAGEM 27-LOGO DA JUNTA DE FREGUESIA DO PARQUE DAS NAÇÕES...68

IMAGEM 28 - JUNTA DE FREGUESIA DO PARQUE DAS NAÇÕES - ZONA ORIENTAL DE LISBOA………...68

IMAGEM 29-LOGO DA JUNTA DE FREGUESIA DE SÃO DOMINGOS DE BENFICA...69

IMAGEM 30 - JUNTA DE FREGUESIA DE SÃO DOMINGO DE BENFICA - ZONA NORTE DE LISBOA...69

IMAGEM 31-LOGO DA JUNTA DE FREGUESIA DE SANTO ANTÓNIO………..………….70 IMAGEM 32 - JUNTA DE FREGUESIA DE SANTO ANTÓNIO - ZONA CENTRAL DE

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LISBOA...70

IMAGEM 33–DERIVA LISBOETA………...71

IMAGEM 34–“MUROS QUE FALAM”LISBOA –BAIXA CHIADO,2021...97

GRÁFICOS GRÁFICO 1-EVOLUÇÃO DA TAXA DE URBANIZAÇÃO NO MUNDO, POR REGIÃO (ADAPTADO DE NAÇÕES UNI-DAS (2006). WORLD URBANIZATION PROSPECTS: THE 2005 REVISION. NOVA IORQUE, DIVISÃO DE POPULAÇÃO, DEPARTAMENTO DE ASSUNTOS ECONÓMICOS E SOCIAIS, NAÇÕES UNIDAS)...16

GRÁFICO 2–CRIMES REGISTADOS PELAS POLÍCIAS: TOTAL E POR ALGUMAS CATEGORIAS DE CRIME...18

GRÁFICO 3–FAMÍLIAS A REALOJAR POR TIPO DE CONSTRUÇÃO...53

GRÁFICO 4–PREÇO DA HABITAÇÃO EM PORTUGAL POR TRIMESTRE (2014-2018)...65

QUADROS QUADRO 1– MEDIDAS ADOTADAS AO REDOR DO GLOBO……….…………..47

QUADRO 2-MUNICÍPIOS COM NECESSIDADES DE REALOJAMENTO……….…………..52

QUADRO 3-FAMÍLIAS A REALOJAR, FOGOS DE HABITAÇÃO SOCIAL EXISTENTES E VAGO E CAPACIDADE DE RESPOSTA………..….……53

QUADRO 4-FAMÍLIAS A REALOJAR POR SOLUÇÃO DE REALOJAMENTO ...………54

MAPEAMENTO DA DERIVA MAPEAMENTO 1-SANTA MARIA MAIOR...73

MAPEAMENTO 2-BELÉM...77

MAPEAMENTO 3-PARQUE DAS NAÇÕES...80

MAPEAMENTO 4-SÃO DOMINGOS DE BENFICA...84

MAPEAMENTO 5-SANTO ANTÓNIO...89

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1. INTRODUÇÃO

A presente dissertação pretende trabalhar a problemática dos imóveis devolutos na ci- dade de Lisboa, traçando um paralelo entre a violência, o acesso à habitação em Portugal e a legislação portuguesa afeta a esse tema.

O conceito de violência é apresentado de diversas formas, para que seja possível corre- lacionar os imóveis devolutos com a violência urbana caracterizando-o, então, como uma vi- olência urbana do vazio. Enquanto condutora nesse processo, optou-se por utilizar como linha de pensamento a visão plural de violência trabalhada pelo filósofo Slavoj Žižek, uma vez que as formas de violência abordadas pelo autor vão de encontro ao sentido de violência que se pretende aqui trabalhar.

Uma análise do vazio urbano e de como esse fenômeno contribui para o surgimento de cidades fragmentadas é aqui desenvolvida em direção à relação da decadência dos imóveis devolutos e o sentimento de (des)conforto tanto para o cidadão que não tem casa para morar, como para quem passa a conviver com um imóvel devoluto no seu percurso. Apresenta-se uma pesquisa bibliográfica de cunho exploratório, trazendo para esta dissertação os resulta- dos do levantamento e da análise do estudo proporcionando, assim, correlacionar os conceitos eleitos.

A análise da problemática levantada tem como recorte temporal mundial no segundo CIAM (Congrès Internationaux d'architecture Moderne), o qual propôs no ano de 1929 um debate dirigido à questão da habitação. O recorte local abrange a legislação afeta ao tema desde a Primeira República ao pós-25 de abril de 1974, onde a habitação era uma temática comumente usada nas manifestações pró-democracia, inclusive nas artes como, por exemplo, em músicas de intervenção, recordando, aqui, o trecho “a paz, o pão, habitação”, da canção “Liberdade”, escrita por Sérgio Godinho em 1974. Nesse sentido, torna-se possível uma análise das mudan- ças ocorridas na cidade de Lisboa no que tange as políticas habitacionais, bem como legisla- ções atinentes ao tema.

Dentro da problemática dos imóveis devolutos na cidade de Lisboa, surge muitas ques- tões. Porém, a relação entre a desigualdade social e o planeamento urbano como é trabalhado na cidade de Lisboa deixa uma questão latente: é possível afirmar que a violência faz parte do processo de urbanização, uma vez que, a desigualdade social está inserida nas cidades de forma intrínseca? Constata-se, por observação local e por análise documental, que os cidadãos vulneráveis economicamente estão sendo cada vez mais realocados para fora da cidade, o que faz com que eles estejam afastados das ofertas de serviços e equipamentos básicos, bem como de oportunidades de trabalho. Neste sentido, cada vez mais tais cidadãos vivem em zonas periféricas – bairros que partilham o adjetivo que remete ao “informal”, onde o processo de

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autoconstrução possibilita o desenvolvimento e a aplicação de normas urbanísticas limitadas apenas pelas capacidades financeiras e técnicas dos seus moradores de forma solidária (Cor- reia et al., 2020).

Infere-se, aqui, que tal problemática trata diretamente de uma forma de segregação es- pacial, uma vez que as diretrizes governamentais desenvolvidas até então não se mostram sensíveis aos problemas da população mais empobrecida. O desenvolvimento urbano formal na cidade de Lisboa não tem revelado preocupação com as questões atinentes ao território onde essa população é inserida e, muito menos, em buscar soluções para melhorar a qualidade de vida dessa população. Assim, tal problemática assume-se como um alimento ao surgi- mento do lado marginal da cidade, muitas vezes visto como ilegal, indesejável e decadente, podendo referir-se a este espaço como não sendo digno de desenvolvimento sócio urbano.

Senso assim, as ocupações surgem como um ato de resistência que ultrapassam o seu fim inicial – o de servir como moradia para população que não tem onde morar, e passam a fazer, também, a vez de palcos para que as reivindicações e as necessidades da população empobrecida, como um canal para que sejam vistas, ouvidas, notadas e respeitadas. Cabe des- tacar, aqui, o diálogo entre vazios urbano e governamental, já que a inércia do desenvolvi- mento urbano formal também reverbera na população que está inserida nas ocupações, uma vez que passa a ser subjugada pelo poder local com base no local onde vive e vista como algo indesejável e pouco apetecível.

Neste sentido, a constituição do estado da arte desta problemática decorre e funda- menta-se no fato da cidade de Lisboa apresentar-se em descontinuidades e em vazios de con- creto, que carregam consigo sinais da exclusão. Ninguém habita, mas também não podem habitar! Respostas a esta questão têm sido trabalhadas pelos movimentos sociais urbanos, res- ponsáveis por desempenhar um papel fundamental na luta pelo direito à habitação, direito ao lugar e o direito a cidade. Tais temas serão aqui abordados de forma sistemática, dialógica e criticamente em busca de fortalecer e (re)acender, mesmo que como um grão de areia, a emergente questão sobre a habitação e os imóveis devolutos na cidade de Lisboa.

Enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito.

Justificação do Tema A cidade de Lisboa é uma das capitais europeias mais visitadas, essa interferência in- tensa do turismo acarreta duras consequências na vida da população local. Seja para venda, arrendamento ou alojamento local, nos últimos anos muitas pessoas foram retiradas de suas casas para que estas pudessem ser ofertadas a estrangeiros e investidores. Os relatos de des- pejos, aumentos nos valores dos arrendamentos e falta de rendas a preços acessíveis são cada vez mais frequentes em reportagens jornalísticas, em redes sociais e em outros veículos de comunicação.

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Para além da informação que veicula nos meios de comunicação, essa dissertação tam- bém é pautada na própria vivência e no que se é sentido ao caminhar pela cidade. A experi- ência da observação complementa o conhecimento que vem tanto dos processos informativos quanto formativos. Por vezes, o que vem nos médias ou em livros e manuais não atinge inti- mamente o cidadão da mesma forma que o ato de observar. Experienciar situações e contextos de injustiça social, pode causar múltiplas sensações, como o desconforto e a inquietação e até mesmo proporcionar o sentimento de querer fazer a mudança com as próprias mãos. A busca pela diversidade do conhecimento – informativo e formativo, vem com o intuito de alimentar um caminho plural na investigação, o qual possa servir de instrumento para contribuir com o ponto de virada. Não é aceitável que as mudanças de temperatura ainda acarretem na morte de quem não tem onde morar, que ano após ano isso seja tratado como algo comum, não se pode e muito menos se deve acostumar-se com a ideia de que a rua é a morada de alguém, nossos olhares não podem de forma alguma passar batido diante de famílias vivendo em bar- racas em baixo de marquises, principalmente por termos em nossas mãos todos os instrumen- tos necessários para mudar esse cenário.

O interesse pelo tema trabalhado nesta dissertação vem do desejo incessante de que algo seja feito, de abrir espaço para a voz do indivíduo que não tem habitação ou para aquele que habita em condições precárias e, também, do indivíduo que habita em boas condições, mas que ainda sim é afetado pela violência urbana do vazio, bem como de propor caminhos para que o atual cenário seja resinificado. O acesso à moradia é um direito fundamental, previsto na Constituição da República Portuguesa. Por quais motivos esse direito não é efetivamente garantido? Há algo por trás da inércia do poder público? Quem se beneficia da especulação imobiliária? Esses são alguns questionamentos que se pretende responder.

As políticas públicas voltas para a habitação revelam-se pouco expressivas, o que faz com que os cidadãos que necessitam de uma moradia, passem a se organizar por conta pró- pria, de maneira informal e que desenvolvam meios de ocupar os referidos imóveis abando- nados, a fim de fazer valer mais um direito previsto na própria legislação – o que prevê o fim social da propriedade. Resta comprovar que os movimentos sociais urbanos que lutam por moradia agem em consonância com o diploma legal e fazem valer direitos adquiridos.

A escolha do tema parte da necessidade de dar notoriedade à violência urbana, acarre- tada pelos imóveis devolutos na cidade, e apontar a urgência na melhoria de políticas públi- cas, as quais contribuam para conferir dignidade e justiça espacial (Pereira & Ramalhete, 2017) à população que não possuí uma habitação e ponham fim no déficit habitacional da capital portuguesa. Assim, caminhos plurais para que a violência urbana do vazio venha a ser discu- tida, na ótica da diversidade do conhecimento, promove a ação da esperança – o esperançar (Freire, 1977), afim de (1) abrir espaços às vozes dos movimentos sociais em prol da moradia e servir como um canal que possibilite a criação de produtos voltados para a sociedade civil,

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(2) demonstrar a importância do fim social da propriedade e da necessidade de zerar o nú- mero de imóveis devolutos na cidade, bem como (3) proporcionar conhecimento sistemati- zado sobre os movimentos sociais urbanos , sobre o que são e como se organizam esses cida- dãos, contribuindo para desmitificar estigmas negativos que recaem sobre eles. O exercício de encontros dialógicos (Freire, 1970) entre os conhecimentos académico, técnico e local é a base da abordagem do tema, a qual fundamenta o processo desta investigação.

Objeto, Objetivo e Questão de Investigação Para um desenvolvimento efetivo de uma investigação faz-se necessário a definição do objeto de estudo e dos respectivos conceitos chaves que serão trabalhados durante todo o seu processo. O objeto de estudo nada mais é do que aquilo que se quer investigar (Carmo et al,1998), respondendo de forma quase imediata questões primordiais como: “Quem ou o que será investigado?”, “Onde será investigado?”, “Quando será investigado?” e “De que forma será investigado?”.

O objeto de estudo da presente investigação são os imóveis devolutos na cidade de Lis- boa como geradores de violência. Através da perspectiva da “violência urbana do vazio”, a investigação abordará, sociologicamente, os conceitos de “violência subjetiva” e “violência objetiva” com o intuito de demonstrar que essas formas de violência ocorrem efetivamente quando um imóvel é deixado devoluto. Conceitos como o Direito ao Lugar e à Cidade também são abordados para suportar a perspectiva proposta.

Para tanto, o objetivo da presente investigação é desenvolvido de forma orgânica com a identificação do tema, a problemática de investigação e a identificação dos principais concei- tos que serão abordados (Moreira, 1994). Desta forma, o objetivo desta investigação é dese- nhar um caminho alternativo para potencializar uma análise plural da relação habitação e imóveis devolutos na cidade de Lisboa.

Neste sentido, destacam-se quatro objetivos específicos, para conduzir esta investiga- ção, sendo:

 Explorar a relação habitação e imóveis devolutos sob a lente dos conceitos de violência urbana e vazio urbano;

 Promover o encontro da diversidade dos conhecimentos sobre o tema habitação e imó- veis devolutos;

 Desenvolver de um quadro legal sobre a problemática habitação e imóveis devolutos;

 Realizar uma Deriva silenciosa por Lisboa.

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O cerne da questão de investigação, para dar resposta ao objetivo central, é explorar a relação entre os imóveis devolutos, a habitação e a violência, que se consolida em duas dire- ções: (1) Como uma análise plural na exploração da relação dos imóveis devolutos-habitação poderia mitigar a violência urbana?; (2) Qual o impacto da violência urbana do vazio na cons- tituição integral da cidade?

Estratégia de Investigação e Instrumentos de Recolha de Dados A fim de desenvolver um caminho alternativo para um olhar sistematizado sobre a ges- tão relacional imóveis devolutos-habitação na cidade de Lisboa, o qual atenta a questão e os objetivos desta investigação, propõem-se uma estratégia ao trabalho de campo, fundamen- tada em um processo metodológico exploratório que evoca um método reconhecido como Deriva.

O quadro teórico-metodológico da Deriva é trazido pelo pensador situacionista Guy Debord, influenciado pelos movimentos Dada1 e Surrealismo2), o qual encontrou em 1951, no festival de cinema de Cannes, um grupo com influências e interesses parecidos – os Letristas de Isidore (Isou). No ano seguinte, em 1952, Debord entrou em conflito com o Isou e fundou, nesse mesmo ano, com alguns amigos a Internacional Letrista. Passados alguns anos, foi cri- ada em 1958 e publicada no mesmo ano, no formato de esboço, a Revista Internacional Situa- cionista.

“Em função do que você procura, escolha uma região, uma ci- dade de razoável densidade demográfica, uma rua com certa anima- ção. Construa uma casa. Arrume a mobília. Capriche na decoração e em tudo que a completa. Escolha a estação e a hora. Reúna as pessoas mais aptas, os discos e a bebida convenientes. A iluminação e a con- versa devem ser apropriadas, assim como o que está em torno ou suas

1 “Dada ou dadaísmo era um movimento de arte da vanguarda europeia no início do século XX, com os primeiros centros em Zurique, na Suíça, no Cabaret Voltaire (por volta de 1916); O New York Dada começou por volta de 1915 e, após 1920, Dada floresceu em Paris. Desenvolvido em reação à Primeira Guerra Mundial, o movimento dadá consistiu de artistas que rejeitavam a lógica, a razão e o esteticismo da sociedade capitalista moderna, expressando, ao contrário, absurdos, irracionalidade e protestos anti burgueses em suas obras. A arte do movi- mento abrangeu médias visuais, literárias e sonoras, incluindo colagem, poesia sonora, redação e escultura. Os artistas dadaístas expressaram seu descontentamento com a violência, a guerra e o nacionalismo, e mantiveram afinidades políticas com a esquerda radical.” (Fonte: HiSoUR – Disponível em <https://www.hi- sour.com/pt/dada-34749/>. Acesso em 19 de dezembro de 2021).

2 “O surrealismo é um movimento cultural que começou no início da década de 1920 e é mais conhecido por suas obras de arte e escritos visuais. Artistas pintavam cenas enlouquecedoras e ilógicas com precisão fotográ- fica, criavam estranhas criaturas a partir de objetos do cotidiano e desenvolviam técnicas de pintura que permi- tiam ao inconsciente se expressar. Seu objetivo era “resolver as condições anteriormente contraditórias do so- nho e da realidade em uma realidade absoluta, uma super-realidade”.“ (Fonte: HiSoUR – Disponível em

<https://www.hisour.com/pt/surrealism-35130/>. Acesso em 19 de dezembro de 2021).

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recordações. Se não houver falhas no que você preparou, o resultado será satisfatório.” (Debord e outros, 1958)

Com base no trabalho de Debord (1958), vários investigadores desenvolveram trabalhos na área da Geografia Urbana e dos Estudos Urbanos recorrendo à Deriva como uma forma de investigação e práxis política.

A Deriva é apresentada como um procedimento psicogeográfico que visa estudar os efeitos do ambiente urbano no estado psíquico e emocional dos indivíduos que a praticam.

Partindo de um determinado lugar, a pessoa ou grupo que se lança à Deriva seguirá uma rota indefinida, deixando que o próprio meio urbano “os leve” ao acaso, pelo caminho que segue.

Quem Deriva terá, no entanto, todo o interesse em traçar um mapa do seu percurso. Tal mapa ilustrará anotações que servirão para compreender os motivos que o leva a seguir este ou aquele caminho: virando à direita ou à esquerda e não seguindo em frente, parar em certa praça e não em outra. Em suma, perceber por que razão a mente induz sensações agradáveis ou desagradáveis. Com base na teoria que visa transformar o urbanismo, a arquitetura e a cidade, a Deriva, na prática, consiste em construir ou reconstruir um espaço em que todos os habitantes são agentes construtores e em que a cidade é vista como um todo.

Por fim, as ideias formuladas pela Internacional Situacionista, entre as décadas de 1950 e 1970, consideram que o meio urbano em que vivemos é motivador da Deriva, tor- nando a cidade um espaço de liberdade

Considerando a Deriva como a estratégia de investigação adotada, tal metodologia ex- ploratória baseia-se em um caminhar e de observação crítica. O foco da observação é compre- ender o contexto por trás dos imóveis devolutos e a relação dos mesmos com o local onde eles estão localizados através de uma análise crítica, na qual insere-se um conhecimento prévio das leis de base sobre o tema em investigação e uma visão pluriversa (Khotari et all., 2019), aliada a uma escuta ativa (Freire, 1970), da representação sociocultural e política do objeto de estudo durante todo o trajeto da Deriva. Debord (1982), citando um estudo de do sociólogo urbano francês Chobart de Lauwe sobre aglomerações parisienses de 1952, afirma que um bairro urbano não está determinado somente por fatores geográficos e econômicos, mas tam- bém pela representação que seus habitantes e os de outros bairros têm dele. Neste sentido, a relação entre o indivíduo, o bairro e o imóvel devoluto torna-se o foco central da Deriva pro- posta nesta investigação.

A escolha do local da itinerância dentro do espaço da Deriva torna-se crucial para que, em um estudo científico, possam ser delineadas categorias de recolha de dados para investi- gação proposta. Para tanto, recorre-se à diversidade de instrumentos de recolha em uma De- riva, umas permitindo maior distanciamento do que outras (Amado & Silva, 2013).

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Nesta investigação o instrumento Notas de Campo reúne uma diversidade necessária para uma análise plural, assumindo diferentes formas de representações para a recolha de dados, indo além da escrita e abrangendo, também, desenho e fotografia, culminando estas em um mapeamento. A Análise Documental vem, nesta investigação, como um instrumento de recolha de dados para complementar a diversidade com fontes legais sobre o tema, asse- gurando a efetividade dos objetivos os objetivos da mesma. Tais instrumentos foram pensa- dos para obter tantos dados com diferentes fontes de saber-fazer, como desenvolver uma aná- lise relacional imóveis devolutos-habitação e construir, assim, uma compreensão dos espaços onde eles estão inseridos.

Organização da dissertação A estrutura da dissertação encontra-se organizada em seis capítulos.

 Capítulo I:

O primeiro capítulo trata de todas as questões introdutórias e organizacionais da pre- sente dissertação, como a justificação do tema; o objetivo, os objetivos e a questão de investi- gação; as estratégias de investigação e instrumentos de recolha de dados adotados, bem como a organização da dissertação.

 Capítulo II:

O segundo capítulo corresponde a revisão de literatura na qual aborda-se o estado da arte da investigação proposta. Aqui são trabalhados e desenvolvidos conceitos e teorias que suportam a investigação e fundamentam o discurso central: a violência urbana do vazio. O tema vazio urbano é trabalhado entre a dança e o funcionamento harmonioso de uma cidade.

Além disso, serão desenvolvidos os aspectos do direito ao lugar e do direito à cidade, que estão diretamente relacionados ao tema da investigação proposta, assegurando maior emba- samento teórico para o seu desenvolvimento.

 Capítulo III:

O terceiro capítulo trata da legislação afeta ao tema da habitação, pontuando aspectos que vão desde Congressos, Tratados e Princípios Internacionais, até o levantamento his- tórico da legislação afeta ao tema em Portugal. Em seguida, são apontadas as consequên- cias do abandono de imóveis segundo prega a legislação nacional e são pontuadas medi- das que estão sendo adotadas ao redor do globo para o combate desses abandonos.

 Capítulo IV:

O quarto capítulo apresenta um olhar mais focalizado ao locus investigado, a cidade de Lisboa, através deum recorte histórico sobre a organização administrativa do país pós-25 de

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abril de 1974, para que seja possível chegar até a organização territorial da cidade de Lisboa nos dias de hoje. Este capítulo visa fazer uma análise documental para complementar o ras- treamento bibliográfico legal no tocante diagnóstico sobre a situação habitacional de Portugal.

Por fim, são elencados alguns movimentos sociais urbanos que lutam pela habitação e pela requalificação de espaços na cidade de Lisboa.

 Capítulo V:

O quinto capítulo, por sua vez, corresponde ao trabalho de campo - onde fora aplicado a estratégia metodológica exploratória da Deriva. Neste capítulo é proposta uma Deriva Silen- ciosa para trazer um olhar sistematizado sobre imóveis devolutos dispersos pelas 5 Juntas de Freguesias da cidade de Lisboa. Aqui apresenta-se uma análise sobre o processo experienci- ado no campo de investigação em diálogo constante com a teoria discutida nos capítulos II e III, bem como o levantamento documental trazido no quarto capítulo.

 Capítulo VI:

O sexto capítulo abarca as considerações finais e as dificuldades encontradas ao longo do desenvolvimento da investigação.

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Imagem 1 - Rua Correia Teles (esquina com a Rua Ferreira Borges) Campo de Ourique | Fonte:

A autora (data: 28 de maio de 2021 - 17:52hrs)

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2. QUADRO CONCEITUAL (ESTADO DA ARTE)

Para desenvolver uma investigação com a problemática dos imóveis devolutos, optou- se por explorar a relação entre esses imóveis, a habitação e a violência. Existem diversas for- mas de violência e, sendo assim, o caminho escolhido foi trabalhar com esse conceito através da perspectiva do filósofo Slavoj Žižek sobre violência objetiva e subjetiva.

Para traçar um paralelo entre as duas formas de violência trabalhadas por Žižek, faz-se necessário tratar da questão do vazio urbano, buscando compreender do que se trata e quais são os fatores que o faz surgir na paisagem das cidades. Em seguida, parafraseando uma frase dirigida à coreografa Pina Bausch, fora criada uma relação entre a dança e a cidade, de forma a demonstrar que ambas requerem harmonia e sincronismo, caso contrário, tudo está perdido ou ao ponto de ser perdido.

Além disso, trabalhou-se com os conceitos Direito ao Lugar e Direto à Cidade. O Direito ao Lugar é de suma importância para a compreensão do “reavivamento” ou da conservação do patrimônio edificado visto que, por de trás de uma construção, sempre haverá histórias, pessoas e momentos vividos e sensações experienciadas. Por fim, as noções sobre o direito à cidade funcionam como uma engrenagem que faz com que todos os outros conceitos explo- rados nesta investigação façam sentido e interajam entre si.

2.1 Violência A palavra violência remonta ao adjetivo em latim “violentĭa”, a qual é a “qualidade ou estado do que é violento; ato de violentar; força empregue contra o direito natural de outrem;

ação em que se faz uso de força bruta; crueldade; força; intensidade; veemência; ímpeto; pre- potência; tirania; coação” (Porto Editora, 2003-2016).

Existem diversas ideias totalmente opostas sobre o surgimento da violência na história humana. Para o filósofo inglês Thomas Hobbes, a violência é a “guerra de todos contra todos"

e existe desde o surgimento da humanidade (Leviatán, 1651). Para o filosofo suíço Jean-Jac- ques Rousseau, o homem selvagem era pouco sujeito às paixões e foi empurrado ao "mais horrível estado de guerra" pela "sociedade nascente" (Discurso sobre a origem e os fundamen- tos da desigualdade entre os homens, 1755). Anos mais tarde, o filósofo francês Étienne Bali- bar, classifica dois modos distintos mas complementares de violência excessiva: a violência sistêmica ou “ultra objetiva”, própria às condições sociais proporcionadas pelo sistema eco- nômico e político global, que implica a criação “automática” de indivíduos excluídos e dis- pensáveis (dos sem -teto aos desempregados); e a violência “ultras subjetiva” dos novos “fun- damentalismos” emergentes, de caráter étnico e/ou religioso e, em última instância, racistas (La crainte des masses: politique et philosophie avant et après Marx, 1997).

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O mito do humano pré-histórico selvagem e guerreiro, que persiste até os dias de hoje, fora criado na segunda metade do século XIX. Porém, através de investigações arqueológicas, restou comprovado que a violência coletiva surgiu com a sedentarização das comunidades e a transição de uma economia de predação para uma de produção (Patou-Mathis, 2011).

A partir das perspectivas apresentadas, compreende-se que a violência entre os huma- nos pode ser tanto uma característica intrínseca da espécie, adquirida através do processo evolutivo, como uma reação ao ambiente que o retira do seu estado de natureza – que pode ser compreendido como pacífico. Assim, a violência humana, em dado momento, passou a se estabelecer de forma geracional, através de discursos e ações – como no nazismo, por exemplo, onde o discurso de ódio proclamado por um indivíduo se tornou a bandeira de toda uma nação em diferentes gerações, acarretando a morte de centenas de milhares de pessoas. A violência na nossa sociedade é por vezes normalizada, sendo por vezes motivo de indignação – variando de acordo com alvo e os agentes praticantes dessa violência.

Cabe destacar que somente a partir da década de 1980 e, mais intensamente, na década de 1990, a problemática da violência adquiriu maior força nos debates sócio-políticos e no planejamento em saúde pública. Foi apenas nesse período que a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) começaram a falar, explicita- mente, em violência como uma epidemia social.

A violência foi definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) como o “uso intencional da força ou poder em uma forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa ou grupo ou comunidade, que ocasiona ou tem grandes probabilidades de oca- sionar lesão, morte, dano psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações” (retirado da internet).

Para o desenvolvimento do conceito de violência, aqui discutido, aponta-se para três perspectivas de violência: a “subjetiva”, “objetiva” e da “linguagem”, desenvolvidas por Sla- voj Žižek – filósofo marxista e psicanalista lacaniano, nascido na Eslovênia em 1949 e profes- sor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana e diretor internacional da Birkbeck, Universidade de Londres.

A escolha em trabalhar com o referido filósofo se deu por conta dos seus últimos posi- cionamentos e estudos, em especial, por sua obra intitulada Violência, publicada pela primeira vez em 2007. Nesta obra o autor trabalha de forma detalhada diferentes perspectivas do con- ceito de violência. De forma significativa, Žižek agiu com grande protagonismo ao discursar durante os protestos organizados pelo movimento Occupy Wall Street (OWS) – movimento de protesto contra a desigualdade econômica e social, a ganância, a corrupção, o tráfico de in- fluência e interferência de empresas do setor financeiro no agravamento das desigualdades socioeconômicas. O Occupy Wall Street (OWS) ocorreu em setembro de 2011 e reuniu cerca de

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150 pessoas, que ficaram acampadas com barracas e tendas no Zuccotti Park, localizado em Manhattan – um dos maiores centros financeiros dos Estados Unidos da América.

O primeiro conceito apontado por Žižek (2007) em sua obra é a “violência subjetiva”, compreendida como uma forma de violência menos direta e não tão visível, mas tão perversa quanto as outras formas de violência identificada pelo autor. Tal tipo de violência é comu- mente praticada por agentes claramente identificáveis que agem para mascarar e dificultar a visibilidade de suas ações nocivas. Além disso, a “violência subjetiva” é constituída por um trio, que inclui também outros dois tipos mais objetivos de violência: a “violência simbólica”

e a “violência sistêmica”. A primeira está encarnada na nossa linguagem e em suas formas, sendo definida pelo filósofo alemão Martin Heidegger como a “nossa casa do ser na qual o homem habita”. Isso quer dizer que essa forma de violência pode ser identificada tanto de uma forma sútil, como de uma maneira mais clara, não estando limitada apenas aos casos mais evidentes, mas também está nas relações de dominação social, nos nossos discursos, isto é, na própria forma como nos expressamos – situações essas que não são visíveis a olho nu – palpáveis, mas que são perfeitamente passiveis de serem sentidas, vivenciadas e experimen- tadas. A segunda, por sua vez, consiste mais precisamente nas consequências, muitas vezes desordenadas, do funcionamento e aplicação dos nossos sistemas econômico e político (Žižek, 2007).

Para Žižek (2007), a “violência subjetiva” é de fato a que pode ser percebida de forma mais evidente em nossa sociedade. Porém, o autor ressalta que para o seu entendimento pleno faz-se necessária uma análise mais profunda das situações que a envolvem, visto que, para entendermos a “violência subjetiva” é necessário dar um passo para trás e observar o que contorna tal violência, quais sãos os seus percursores e os motivos que causaram sua eclosão.

Basicamente, para identificar-se a violência em seu tipo subjetivo, precisamos elaborar um panorama que leva em consideração os motivos por trás do seu “nascimento”.

“O passo para trás nos permite identificar uma violência que subjaz aos nossos próprios esforços que visam combater a violência e promover a tolerância.” (Žižek, 2007, p. 20)

Um dos exemplos mais marcantes usados por Žižek (2007) para demonstrar a “violência subjetiva”, é uma anedota já amplamente conhecida, na qual é narrada o encontro entre um oficial alemão e Pablo Picasso, em seu ateliê em Paris durante a Segunda Guerra Mundial.

“Na ocasião, o oficial demonstra certo espanto ao se deparar com o “caos” vanguardista de uma das obras primas do pintor, a “Guernica”, e questiona: “Foi você que fez isto?”. Ao que Picasso responde, calmamente: “Não, isto foi feito por vocês!”. (Žižek, 2007, p. 30).

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Para Žižek (2007) a “violência subjetiva” deve ser compreendida também como uma perturbação ao estado “normal” e pacífico das coisas, ou seja, trata-se de uma anormalidade, que abala o estado normal e pacífico das coisas. Tal incomodo serve como um pano de fundo para um grau zero de não violência.

Dessa forma, pode-se criar uma ligação com a “violência objetiva”, esse tipo de violência que é precisamente inerente ao estado “normal” das coisas, ou seja, é intrínseco, uma vez que está diretamente inserida no dito “grau zero de não violência” – estado esse em que se fica impossibilitado de perceber algo como subjetivamente violento. Em outras palavras, a “vio- lência objetiva” funciona da mesma forma que a “matéria escura” na física, ela está lá, mesmo que não a possamos ver.

Por fim, Žižek (2007) demonstra que a “violência subjetiva” e a “violência objetiva” não podem ser compreendidas do mesmo ponto de vista. Enquanto a primeira serve apenas como um artificio, onde a vítima pensa se encontrar em um estado de não-violência – ou seja, pací- fico, enquanto os agentes geradores dessas ações prejudiciais agem, com o objetivo de manter o mundo no estado em que está, onde a paz não é um assunto em pauta, visto que, tal fenô- meno não é de interesse dos mais poderosos – como no exemplo citado pelo autor, uma reu- nião ocorrida em Davos, na Suíça, que contou com a presença das pessoas mais ricas do pla-

Imagem 2 - Guernica - Pablo Picasso - pintura à óleo - 1937 - “Uma declaração de guerra contra a guerra e um manifesto contra a violência” | (Fonte: DW. Disponível em: <https://www.dw.com/pt- br/1937-bombardeio-de-guernica/a-800994>. Acesso em 2 de abril de 2021.

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neta e de personalidades influentes, onde uma das pautas foi justamente o interesse em “man- ter as coisas do jeito que estão”. Tal decisão vai totalmente de encontro com um dos objetivos do nosso atual sistema económico, que preconiza o acúmulo da capital nas mãos de uma pe- quena parcela da população mundial e a manutenção da desigualdade social.

Violência Urbana

Em sua obra “A Era das Revoluções”, publicada em 1962, Eric Hobsbawm discorre so- bre o mundo no século XVIII, citando que nesse período o modo de vida ainda era essencial- mente rural. A população russa, por exemplo, vivia quase que 100% no campo, mesmo com algumas regiões do país já contando com algum tipo de desenvolvimento industrial. Segundo o autor, a própria Inglaterra que fora a percussora nesse movimento de êxodo rural, obteve somente a partir de meados do século XIX uma população urbana capaz de ultrapassar a rural, mais precisamente por volta de 1851, quase um século depois do início do processo de indus- trialização. Assim sendo, é possível compreender que alguns fluxos migratórios entre o rural e o urbano foram mais tardios, enquanto em alguns lugares esse fenômeno ocorreu de forma mais desordenada – como no caso de Lisboa, que será apresentado mais adiante.

“A cidade provinciana de fins do século XVIII podia ser uma próspera comunidade em expansão, como a sua paisagem dominada por construções de pedra em modesto estilo clássico ou rococó ainda hoje testemunha em parte da Europa Ocidental. Mas essa prosperi- dade vinha do campo.” (Hobsbawm, 1962)

Segundo a ONU, atualmente cerca de 55% da população mundial vive em áreas urbanas e a perspectiva é que até o ano de 2050 esse número cresça e atinja dos 70%. Como consequên- cia desse crescimento desordenado e na maioria das vezes não planeado, começam a surgir

“gaps” – uma espécie de lacuna/vazio, e são nesses vazios dos conglomerados urbanos que normalmente está instalada a desigualdade social na sua forma mais latente.

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Com o aumento da concentração populacional nos grandes centros urbanos, os indicies de violência também dispararam, o ambiente urbano por si só proporciona uma percepção mais hostil para com o outrem, os espaços de convivência e sociabilidade são cada vez mais apagados dos planos e programas das Câmaras, os vizinhos mal se falam ou se conhecem e a própria atmosfera da competição e luta por sobrevivência nos faz abandonar o senso de co- munidade e unicidade.

Todos os dias tem-se algum tipo de contato com a violência, seja ao assistir ao jornal na televisão, ao ler uma notícia em algum site ou nas redes sociais, ou mesmo ao caminhar pelas ruas das cidades quando somos expostos à violência nas suas mais diversas formas, as pessoas inclusive conversam sobre violência com muita naturalidade. O fato é, somos bombardeados

Gráfico 1 - Evolução da taxa de urbanização no mundo, por região (adaptado de Nações Unidas (2006). World Urbanization Prospects: The 2005 Revision. Nova Iorque, Divisão de População, Depar- tamento de Assuntos Económicos e Sociais, Nações Unidas).

Imagem 3 – Lisboa, cidade da tolerância. | (Fonte: Rafael Marchante, Reuters, 2014).

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(in)voluntariamente pela violência. A violência aqui não se limita a violência física, ela tam- bém está relacionada a violência moral, económica, social e visual. As cidades se tornaram um ambiente hostil, onde as leis muitas vezes não são efetivamente aplicadas ou cumpridas, fi- cando limitadas ao papel.

“Para compreendermos essa natureza paralaxe da violência, de- vemos focar os curtos-circuitos entre diferentes níveis. Por exemplo, entre o poder e a violência social: uma crise econômica que leva à de- vastação é experienciada como um poder incontrolável quase natural, enquanto deve ser experienciada como violência.” (Žižek citando Marx Weber, prefácio, edição brasileira).

Como destacado anteriormente, a vida no ambiente urbano ainda é algo relativamente recente para a espécie humana. O processo de adaptação humana, apesar de parecerem rápi- dos devido a capacidade de desenvolver raciocínios lógicos, ainda é suscetível a diversas fa- lhas, dentre elas destaca-se a falta de planeamento urbano, por exemplo. A sociedade ociden- tal determinou que a vida nos grandes centros urbanos deveria ser compreendida como a vida moderna, como um ideal a ser seguido, onde as “coisas de fato acontecem” e as oportunidades de crescimento são praticamente garantidas. Ocorre que, sem um bom plano de ação, só alte- ramos a problemática de lugar.

No contexto português, o êxodo rural se desenvolveu como uma fuga em massa para o ambiente urbano. Adota-se o termo fuga pelo fato do grande movimento de saída do rural para o urbano ter-se dado como uma forma massiva de luta pela sobrevivência, uma vez que o país se desenvolveu de forma mais efetiva apenas nos grandes centros urbanos, aprofun- dando ainda mais a dicotomia entre o rural e o urbano. Segundo Alarcão, 1958), não se sabe ao certo quais foram os períodos de fluxos migratórios mais intensos, uma vez que, não houve um controle ou registro dessas informações, mesmo que estas pudessem ter sido obtidas atra- vés de inquéritos ou de censos. Ainda segundo esta autora, os únicos dados que podem auxi- liar na análise dessa "fuga" são os dados a respeito da população presente nos concelhos e distritos à data dos recenseamentos (Alarcão, 1958).

"A cidade de Lisboa é o grande pólo de atracção das massas po- pulacionais em êxodo rural. O urbanismo parece ter saturado, po- rém, de gente o território —ou talvez que a especulação dos valores dos terrenos e das rendas das casas, e as limitações ao fomento de habitações económicas o expliquem melhor—e não somente se anula como inverte, no mais recente decénio, o sentido dos movimentos migratórios que tradicionalmente procuravam a capital como «terra de promissão»."(p. 540).

Não cabe no foco da presente investigação analisar dados migratórios – por se tratar de informações que requerem a realização de cálculos complexos, que levam em consideração

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muitas questões técnicas. Porém, evidencia-se com tais dados que Portugal vive um processo constante de êxodo rural ao urbano, o qual é um processo contínuo e os seus motivos, na maioria das vezes, ainda são os mesmos, como por exemplo, acesso à educação, saúde, me- lhores condições de trabalho e aquela velha premissa de que a vida na cidade “abre mais oportunidades” e consequentemente, mais conforto.

Como discutido anteriormente, a vida no ambiente urbano tende a ser mais violenta.

No contexto português não é diferente, as maiores taxas de violência estão concentradas em seus maiores centros urbanos; Lisboa acaba por ficar em primeiro lugar no ranking. Pode-se associar esse fenômeno ao fato desta cidade ser a capital do país e a mais populosa. Outro fator que deve ser levado em consideração nesta classificação é a desigualdade social atrelada a essa concentração populacional.

Nesse sentido, compreende-se a violência urbana como uma forma de “violência subje- tiva”, a qual ocorre de forma mais evidente e tende a ser uma consequência das ações dos agentes que poderiam agir para que ela fosse evitada. Se a vida no meio urbano, na cidade de Lisboa, por exemplo, tivesse sido desenvolvida para acolher os que chegam e melhor acomo- dar os que já estão, a realidade atual seria diferente.

A cidade só existe de forma orgânica se a opinião da população for levada em conside- ração nas tomadas de decisões. Faz-se necessário enxergar o que muitas vezes passa “desper- cebido”, é preciso falar sobre o que causa incomodo e acima de tudo, é emergente construir de forma coletiva e horizontal (Freire, 1970) uma cidade de pessoas e para as pessoas. Nesta busca, uma abordagem relevante é o clamor pela atenção plena aos espaços devolutos que ocupam a cidade, ou que a cidade não pode ocupar.

2.2.1. Violência Urbana do Vazio Vazio, adjetivo do latim “vacivus”, definido em dicionários de língua portuguesa como algo: “1. que não contém coisa alguma; que só contém ar; 2. desprovido de móveis; 3. que não

Gráfico 2 – Crimes registados pelas polícias: total e por algumas categorias de crime. | (Fonte:

Pordata, 2020).

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tem ninguém; desocupado; 4. que não tem habitantes; despovoado; 5. esvaziado; despejado;

6. sem recheio; oco” (Porto Editora, 2003-2016).

Criando um paralelo entre todos os conceitos trabalhados até aqui, compreende-se que a violência urbana do vazio é resultado de um conjunto de ações ou da própria inércia. Pode- se, aqui, abordar a violência urbana do vazio como a ausência de ações e medidas que visam coibir o aumento do número de imóveis devolutos, bem como a reutilização dos imóveis que já se encontram nessa condição. Assim, a violência pode ser tanto um estado de natureza do indivíduo, como pode ser desencadeada por uma série de fatores alheias à vontade do agente.

Pode-se, também, assumir que a violência ocorre muitas vezes em decorrência das circuns- tâncias pelas quais o indivíduo é submetido – para Jean Rousseau (1762), “o homem é produto do meio” e “é bom por natureza” (p. 22).

Com base nas perspectivas do conceito de violência elaborados por Žižek (2007), com- preende-se que os imóveis devolutos são geradores de violência objetiva e subjetiva. A pri- meira forma, ocorre de forma mais direta, ou seja, quando o indivíduo é colocado diante de um imóvel devoluto e experimenta a sensação de desconforto que ele proporciona. Já a se- gunda forma age de maneira mais sútil, tratando-se da própria ação de permitir que um imó- vel fique devoluto, principalmente tendo ciência da carência sofrida por algumas pessoas em relação à habitação. O agente causador de tal violência é perfeitamente identificável e se uti- liza de artifícios para permanecer perpetuar essa conduta.

Assim, a violência do vazio ocorre devido ao ócio dos imóveis e os agentes afetados são tanto os indivíduos que não têm onde habitar ou que habitam, mas em péssimas condições – sejam elas a própria precariedade da construção ou a própria distância entre tal imóvel e pon- tos de interesse/necessidade do indivíduo. Ademais, existem outras formas de violência para com o indivíduo que é (im)posto diante do vazio de um imóvel devoluto, sendo elas, a vi- sual/paisagística – o que também fere o plano de ordenamento da cidade, e as próprias sen- sações de insegurança e desconforto proporcionadas por um “gap” no percurso por ele feito.

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Sendo assim, compreende-se os imóveis devolutos como uma “arma” apontada para os indivíduos de uma cidade, mesmo que dentre eles haja alguns que disponham de moradia em boas condições ou até mesmo para aqueles que não se preocupam ou não se impressionam com o abandono de património edificado. Trata-se de perfurações na composição de uma ci- dade, bem como de uma jogada de especulação imobiliária, onde apenas o lucro é posto como prioridade e a existência das populações mais economicamente vulneráveis é cada vez menos protegida.

No caso de Lisboa, a situação é alarmante, uma vez que, é possível encontrar imóveis devolutos em praticamente todas as 24 freguesias da cidade. Sendo que a maior concentração de imóveis (apesar da Câmara Municipal se recursar a divulgar a lista de imóveis que se en- contram devolutos), está localizada em regiões centrais e de grande pressão imobiliária, assim como estão situadas próximas de pontos de interesse, como empregos, transportes, centros de saúde e espaços para prática de lazer.

Assim, é crucial trazer a público o discurso dos imóveis devolutos na cidade enquanto uma forma de violência, sendo ela habitacional, visual ou aquela que coloca em risco a própria segurança e a liberdade de ir e vir dos indivíduos. Tal problemática não pode e não deve cair

Imagem 4 – Diagrama de Venn: Demonstração dos elementos envolvidos na violência urbana do vazio. | Fonte: A autora.

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no senso comum, nem se integrar a paisagem ou passar a fazer parte da realidade e das me- mórias que constituem uma cidade no seu espaço tempo.

2.2 Vazio Urbano O conceito de vazio urbano é trabalhado por diversos autores que adotam diferentes nomenclaturas: Não-lugares (Augè, 1992), Terrain Vague (Rubió, 1995), Brownfields (Vasques, 2005), Urban Voids (Minock, 2007), Não-Espaço (Mesquita et al., 2011) e Death Zone (Araújo, 2016). Essas são designações comuns que definem espaços esquecidos, devolutos, fragmenta- dos, desprovidos de qualquer identidade ou afeto. Um vazio marcado pelo desgaste, pela decadência, pela incapacidade de comunicar ou estabelecer qualquer tipo de relação com a cidade, se não apenas um sentimento de perda, desprezo, preconceito ou revolta.

Para Jean Labasse (1966) esses espaços são chamados de “friches sociales", ou seja, vazios sociais, tendo sido ocasionados por mudanças económicas, isso significa que, se trata de es- paços que podem ser construídos ou não, que estão desocupados ou com pouca utilização, em locais onde antes eram realizadas atividades industriais ou outras atividades económicas (Motta, 2001).

A socióloga Saskia Sassen (2013) afirma que “um espaço vazio, é um espaço crítico” por estar sempre destruindo e reconstruindo como forma de substituir a história de determinado lugar. Além disso, um vazio urbano se torna um problema por muitas vezes pertencer ao poder privado, ocorrendo a especulação imobiliária. Aqui, o vazio urbano acaba transfor- mando um espaço com alta capacidade funcional em um “nada”.

Os Planos Diretores Municipais têm o poder e o dever de manejar através do planea- mento urbano a distribuição dos espaços de uma cidade de maneira a promover seu desen- volvimento equitativo e sustentável, evitando a carência habitacional e infraestrutural aten- dando as demandas básicas dos cidadãos. Da mesma maneira que o poder público é respon- sável por essas ações, a sociedade civil também usufrui do direito e do dever de exigir cidades que priorizem os cidadãos e seu bem-estar através de processos e projetos participativos, como audiências públicas e movimentos estratégicos de articulação que reivindiquem o di- reito à cidade.

2.2.1 “Dança, dança, senão estamos perdidos”

A frase que intitula o presente subcapitulo é associada a coreógrafa alemã Pina Bausch.

Segundo Pina, durante uma viagem pela Grécia, ao observar um grupo de ciganos dançando sentiu receio de se juntar a eles por medo de não conseguir acompanhá-los, até que uma ga- rota de cerca de 12 anos a convidou para os acompanhar na dança e lhe dirigiu a seguinte afirmação “Dance, dance, otherwise we are lost” (dança, dança, senão estamos perdidos). Nesse

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momento, a coreógrafa percebeu que a dança deveria ter outro proposito além da simples aplicação de técnicas e expertise. Ela considerava a técnica como um elemento importante, mas que muitas vezes não passava de um mero fundamento, com pertença apenas para a cultura que a criou. Uma vez que, para além de através de palavras e sons, é possível se ex- pressar por meio de movimentos.

Assim como na dança, a vida na cidade não pode parar, caso contrário, assim como na frase dirigida para Bausch (2000) alguns aspectos também estarão perdidos. Nesse sentido,

“estamos perdidos” não se limita apenas a dificuldade em se encontrar o caminho certo, mas principalmente ao fato de que em decorrência de uma escolha ruim, tudo começar a desandar, se desordenar e ruir – a entropia e a anomia urbana (Harvey, 2012). É sobre esse ponto que aqui se estressa: uma análise da decadência dos imóveis que não entram “na dança” do pla- neamento urbano e como eles tendem a criar uma “perda” para população e para a cidade.

“Trata-se da vida e, portanto, de encontrar uma linguagem para a vida; e, como sempre, trata-se do que ainda não é arte, mas talvez possa se tornar arte”. (Bausch, 2000, retirado da internet)

O sociólogo alemão Theodoro Adorno, ao desenvolver seu pensamento com base nas ideias do escritor francês Marcel Proust sobre a ideia de que as obras acondicionadas em mu- seus “nunca morrem”, mas sim despertam para uma “segunda vida”, reinterpreta os signifi- cados e a classificação que lhes é imposta pela mensagem museológica que passa a recair sobre ele (Adorno, 1998).

Proust diz que essa noção de “segunda vida” está diretamente associada com a noção de “memória involuntária”, essa memória provoca no expectador um despertar de sentimen- tos que muitas vezes estavam adormecidos, sendo assim, para o autor essa sensação pode ser experimentada durante uma visita a um museu. Essas sensações “sobem” pelo próprio corpo de Proust e restituem-lhe uma experiência biográfica esquecida, que a vontade própria não conseguia reconstituir (Proust, 1982).

Sendo assim, é possível correlacionar a ideia de “segunda vida” aos imóveis devolutos e consequentemente a “memória involuntária”. Para criarmos uma ligação entre essas ideias, basta fazermos um exercício de observação – ao olhar para um imóvel devoluto é convidado a imaginar como ele era no passado, a questionar-se sobre quem ali viveu, quais os motivos por trás do abandono, como por exemplo: – O que deu errado? Em que momento? Quem são os atuais proprietários? São muitos questionamentos possíveis e poucas são as respostas en- contradas.

O exercício de observação pode ir além. O simples ato livre de observar e contemplar pode vir acompanhado do cheirar e do ouvir o mundo ao redor, constituindo verdadeiras sensibilidades existenciais. Esses são outros modos válidos de trabalhar com as significações

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do espaço possibilitando, assim, a apropriação do individuo das paisagens e ambientes ocul- tos, inviabilizados ou mesmo desaparecidos (Marco, 2010; Mortimer, 2017; Rosa, 2019). Um dos resultados possíveis dessa observação mais aprofundada é a ressignificação do espaço, proporcionando uma valorização e um sentimento de pertença, pois tal exercício possibilita o desenvolvimento de um vínculo do indivíduo com o espaço, mesmo que muitas vezes tal sentimento seja apenas curiosidade sobre o passado.

2.3 Do Direito O conceito de “direito” é aqui discutido enquanto uma ideia sociológica. Nesse sentido, busca-se, aqui, trazer as ideais e pensamentos de escritores e especialistas nos temas de direito humanos voltados para habitação, direito ao lugar e direto à cidade. A legislação afeta ao tema em Portugal será discutida mais adiante, quando serão apontados os programas e medidas do governo em escala nacional e local que tem como objetivo minimizar as problemáticas que giram em torno desse tema.

Para se falar em direito, faz-se necessário ressaltar que muitas vezes o próprio direito ao acesso ao direito não é garantido. O processo para se ter voz e se fazer ouvido é extremamente árduo, muitas pessoas são inviabilizadas quando o assunto é “direito”. Dessa forma, busca-se construir um – canal para que muitas vozes sejam escutadas e para que o tema da habitação em Lisboa seja efetivamente discutido, fazendo com que os olhos sejam voltados para os imó- veis devolutos, os quais poderiam cumprir uma função social – prevista em lei, ao invés de operar como parte de um sistema que visa exclusivamente o lucro e a especulação do mercado imobiliário.

Imagem 5 – “Muros que falam” Lisboa – Arroios, 2021. Fonte: A autora.

Referências

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