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Memória, justiça e reparação às rupturas impulsionadas pelo estado brasileiro no período de 1961-1985: uma análise pautada na identidade da família de Elizabeth Teixeira

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Academic year: 2023

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – UFPB

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA NÚCLEO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS - NCDH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS,

CIDADANIA E POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGDH

MEMÓRIA, JUSTIÇA E REPARAÇÃO ÀS RUPTURAS IMPULSIONADAS PELO ESTADO BRASILEIRO NO PERÍODO DE 1961-1985: uma análise pautada na identidade da família de Elizabeth Teixeira

ANNA RACHEL DE ARRUDA TAVARES

JOÃO PESSOA – PB AGO/2022

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MEMÓRIA, JUSTIÇA E REPARAÇÃO ÀS RUPTURAS IMPULSIONADAS PELO ESTADO BRASILEIRO NO PERÍODO DE 1961-1985: uma análise pautada na identidade da família de Elizabeth Teixeira

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas – PPGDH, da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, como requisito do título de Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas.

Anna Rachel de Arruda Tavares

Linha de Pesquisa: 3 – Territórios, direitos humanos e diversidade.

Orientadora: Profa. Dra. Iranice Gonçalves Muniz.

JOÃO PESSOA – PB AGO/2022

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Memória, justiça e reparação às rupturas

impulsionadas pelo Estado brasileiro no período de 1961-1985 : uma análise pautada na identidade da família de Elizabeth Teixeira / Anna Rachel de Arruda Tavares. - João Pessoa, 2022.

167 f. : il.

Orientação: Iranice Gonçalves Muniz.

Dissertação (Mestrado) - UFPB/CCHLA.

1. Direitos humanos. 2. Memória - Identidade. 3.

Justiça - Reparação. 4. Elizabeth Teixeira. I. Muniz, Iranice Gonçalves. II. Título.

UFPB/BC CDU 342.7(043)

Elaborado por WALQUELINE DA SILVA ARAUJO - CRB-15/514

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ANNA RACHEL DE ARRUDA TAVARES

MEMÓRIA, JUSTIÇA E REPARAÇÃO ÀS RUPTURAS IMPULSIONADAS PELO ESTADO BRASILEIRO NO PERÍODO DE 1961-1985: uma análise pautada na identidade da família de Elizabeth Teixeira

Data de aprovação: 16 de agosto de 2022.

BANCA EXAMINADORA:

Prof(a). Dra. Iranice Gonçalves Muniz (UFPB)– Orientadora

Prof(a). Dra. Glória de Lourdes Rabay (UFPB) – Examinadora Interna

Prof(a). Dra. Maria Menendes Motta (UFF) – Examinadora Externa

JOÃO PESSOA – PB AGO/2022

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DEDICO este trabalho a minha mãe, Anatilde, por ser minha fonte de amor inesgotável e maior incentivadora.

A todos(as) os familiares de vítimas da ditadura militar brasileira, em especial aos doze filhos(as) de Elizabeth Teixeira.

À Elizabeth Teixeira, por nos ensinar diariamente a perseverar.

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AGRADECIMENTOS

Deus, a todo o tempo, é bom. A Ele meu maior agradecimento, sem seu amor, nada teria ou seria. A ele toda a vitória em minha vida. Durante a pesquisa, houve momentos de extrema alegria e outros tantos muito difíceis, em todos, a fé em Deus foi o que me sustentou e me conferiu a sabedoria necessária para vivê-los com gratidão e paciência.

Entre pesquisa, estudo, trabalho e o mundo novo da maternidade, meu lar, minha família, me manteve sã e segura de que estou no caminho certo. Aos meus pais, Anatilde e Mário, minha eterna gratidão, obrigada por não desertarem das minhas batalhas, por serem o meu farol, principalmente nos momentos de tormenta.

À minha irmã (Priscilla), cunhado (Rodrigo) e sobrinhos (Alice e Arthur), obrigada por todo o apoio, incentivo e carinho. Vocês tornam a caminhada mais leve e alegre.

Ao meu amado esposo, Aislan, e ao meu filho, Lucas, vocês dão sentido a todas as minhas batalhas, são a realização do meu maior sonho. Obrigada pela paciência, pelo afeto e compreensão.

À minha avó, Elizabeth, por ser a fonte inspiradora desta pesquisa, por me ensinar a virtude da tenacidade e por lutar por um mundo melhor.

Aos meus tios e tias, Isaac, Marta, Maria das Neves, Maria José, Carlos e Marinês, que prontamente se dispuseram a colaborar na minha pesquisa mesmo diante de um tema tão delicado e dolorido, muito obrigada. Nessa mesma colaboração, de forma contundente, esteve minha mãe, Anatilde. Foram tardes buscando documentos no acervo pessoal de Elizabeth e fornecendo informações que pudesse guarnecer o trabalho.

Aos meus sogros, agradeço toda a atenção sempre despendida, o cuidado e apoio de vocês são imprescindíveis.

À minha orientadora, Iranice Muniz, obrigada por todas as conversas e correções, pelas observações realizadas nos momentos certos. Agradeço também todo o carinho e dedicação à família de Elizabeth Teixeira.

Aos meus professores e professoras durante esse percurso, em especial às professoras Glória Rabay, Márcia Mota, Nazaré Zenaide e Fátima Rodrigues, por contribuírem imensamente na minha pesquisa. Obrigada por todas as observações e indicações.

Aos meus amigos do curso de direito e de vida, Adalgisa, Aline, Bianca, Camila, Giovanne, Jucielly, Kevin, Lílian Rita, Marcela, Pedro, Rafael, Caldeira, Rafael Branco, que me acompanham até hoje, especialmente Igor, que esteve comigo na caminhada do mestrado.

Obrigada pelas orientações, dicas e escuta atenta em meus desabafos.

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Por fim, obrigada a todos e todas que, de algum modo, participou e vivenciou comigo a realização deste trabalho, foi um desafio engrandecedor.

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RESUMO

O fenômeno estudado versa sobre a construção identitária de uma família vítima da ditadura militar brasileira, que se tornou símbolo de resistência na luta por direitos no campo, seja esta, a família de Elizabeth Teixeira. Assim, o objetivo geral do trabalho consiste em analisar - baseado no estudo histórico e memorialístico, bem como, dos direitos humanos - as rupturas impulsionadas pelo Estado brasileiro no período de 1961-1985, no que concerne à identidade de seus familiares. Sabe-se que as lesões aos direitos humanos foram muitas e tentativas de reparação ocorreram. Todavia, os danos, por vezes, são de proporção maior do que os feitos de reparação, principalmente quando se fala em dano imaterial, como o de natureza identitária. No caso de Elizabeth Teixeira, observa-se um núcleo familiar fragmento em decorrência direta das violações vividas no período ditatorial. Após o assassinato do líder sindical João Pedro Teixeira, Elizabeth assumiu a luta em defesa de uma reforma agrária no Brasil, tornando-se referência de resistência (feminina) camponesa. Por sua vez, assim como esta, cada um dos seus doze (12) filhos tiveram as identidades, de algum modo, modificadas ou silenciadas. Diante disso, os objetivos específicos são: (i) inferir, a partir da doutrina e através das concepções dos entrevistados, como se procedeu a constituição das relações identitárias dos integrantes da família; (ii) averiguar a relação existente entre as rupturas identitárias vividas na família no contexto dos direitos humanos; (iii) analisar como o Estado se portou frente à (des)construção identitária da família Teixeira vítima da ditadura militar, com destaque para a Lei da Anistia, núm. 6.683, de 28 de agosto de 1979.

Metodologicamente, no primeiro momento, apresenta-se o histórico metodológico utilizado.

No capítulo II, procede-se uma análise teórica acerca dos conceitos essenciais da pesquisa, que são memória, história e identidade, realizando, ainda, a conexão deste conteúdo com a constituição familiar no período ditatorial no cone sul (Brasil e Argentina) em particular. No Capítulo III, faz-se uma investigação biográfica de Elizabeth Teixeira, retratando o seu papel social e afetivo, sob o olhar já na velhice. O capítulo IV é destinado para a narrativa dos filhos e filhas de Elizabeth. Ainda neste capítulo, reflete-se acerca da perspectiva da Lei da Anistia e demais tentativas reparatórias que eventualmente vieram a se concretizar. A título de conclusão, são relacionados os principais conceitos teóricos ponderados aos dados obtidos, destacando-se, também, os danos identitários existentes, a efetividade dos feitos de reparação já intentados, bem como, os que ainda podem ser empreendidos.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Memória e identidade; Justiça e reparação. Elizabeth Teixeira.

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ABSTRACT

The phenomenon studied deals with the identity construction of a family victim of the Brazilian military dictatorship, which became a symbol of resistance in the struggle for rights in the countryside, be it the family of Elizabeth Teixeira. Thus, the general objective of the work is to analyze - based on the historical and memorialistic study, as well as human rights - the ruptures promote by the Brazilian State in the period 1961-1985, regarding the identity of their families. It is known that injuries to human rights have been many and attempts to repair have taken place. However, damages are sometimes greater than repairs, especially when it comes to non-material damage, such as that of an identity nature. In the case of Elizabeth Teixeira, a fragmented family nucleus can be observed as a direct result of the violations experienced during the dictatorial period. After the murder of trade union leader João Pedro Teixeira, Elizabeth took up the struggle in defense of agrarian reform in Brazil, becoming a reference for peasant (female) resistance. In turn, like this one, each of her twelve (12) children had their identities somehow modified or silenced. Therefore, the specific objectives are: (i) to infer, based on the doctrine and through the interviewees' conceptions, how the identity relations of the family members were constituted; (ii) to investigate the relationship between the identity ruptures experienced in the family in the context of human rights; (iii) to analyze how the State behaved in the face of the identity (de)construction of the Teixeira family victim of the military dictatorship, with emphasis on the Amnesty Law, núm. 6.683, of August 28, 1979. Methodologically, at first, the methodological history used is presented. In chapter II, a theoretical analysis is carried out on the essential concepts of the research, which are memory, history and identity, also carrying out the connection of this content with the family constitution in the dictatorial period in the southern cone (Brazil and Argentina) in particular. In Chapter III, a biographical investigation of Elizabeth Teixeira is made, portraying her social and affective role, under the gaze already in old age. Chapter IV is intended for the narrative of Elizabeth's sons and daughters. Still in this chapter, it reflects on the perspective of the Amnesty Law and other reparatory attempts that eventually came to fruition. By way of conclusion, the main theoretical concepts weighted to the data obtained are related, highlighting, also, the existing identity damage, the effectiveness of the repairs already attempted, as well as those that can still be undertaken.

Keywords: Human Rights; Memory and identity; Justice and reparation. Elizabeth Teixeira.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Elizabeth vai ao encontro das filhas Marta Cristina e Marinês Altina e do filho José

Eudes, no Rio de Janeiro, após viver "clandestinidade". ... 46

Figura 2 - Lideranças na CONTAG vão ao encontro de Elizabeth Teixeira. ... 48

Figura 3 - Elizabeth Teixeira com o cineasta Eduardo Coutinho recebendo o prêmio Tucano de Outo (1984). ... 48

Figura 4 - Escritura da casa em que Elizabeth passou a morar (residindo até os dias de hoje) em João Pessoa-PB, adquirida com recursos do filme “Cabra Marcado para Morrer”... 50

Figura 5 - Resolução 05, de 23 de maio de 1985 concede à Elizabeth Teixeira o título de cidadã pessoense. ... 51

Figura 6 - Elizabeth Teixeira com Ayala Rocha, trabalhando no Centro de Defesa dos Direitos Humanos. ... 52

Figura 7 - Elizabeth Teixeira com Dom José Maria Pires no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, em 2012. ... 53

Figura 8 - Elizabeth Teixeira comungando na igreja Nossa Senhora de Fátima, na cidade de Patos, no bairro Belo Horizonte, após viver "clandestinidade”... 53

Figura 9 - Elizabeth Teixeira com irmã Marlene (a esquerda) e irmã Tonny (a direita) na casa em que Elizabeth morou com a família, onde hoje é o Memorial das Ligas Camponesas. ... 54

Figura 10 - Elizabeth Teixeira descerrando placa de turma em Patos (1986). ... 55

Figura 11 - Semana Elizabeth Teixeira de Integração Acadêmica (2019). ... 55

Figura 12 - Medalha Chico Mendes de Resistência (1989)... 56

Figura 13 - Medalha Sindicalista Margarida Maria Alves (2005)... 56

Figura 14 - Elizabeth recebe chaves da casa em morou com a família pelas mãos do, à época, governador do estado da Paraíba, Ricardo Coutinho (2012). ... 57

Figura 15 - Carta de Marta Cristina Teixeira para Elizabeth Teixeira (1999). ... 79

Figura 16 - Carta de Marta Cristina Teixeira para Elizabeth Teixeira (2001). ... 80

Figura 17 - Elizabeth Teixeira com a neta Juliana no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas. ... 82

Figura 18 - Carteira de trabalho de Carlos Antônio Teixeira. ... 93

Figura 19 - Carta de Elizabeth Teixeira para Anatilde. ... 103

Figura 20 - Foto de Elizabeth Teixeira com a equipe de produção do filme “Cabra Marcado para Morrer”. ... 112

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADPF Arguição de Preceito Fundamental

BANERJ Banco do Estado do Rio de Janeiro através da SEPENE – Seleção de Pessoal do Nordeste

CEVPM/PB Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba

CF/88 Constituição Federal de 1988

CONPEC Conselho de Proteção dos Bens Históricos Culturais

CONTAG Confederação dos Trabalhadores na Agricultura em Brasília

EC Emenda Constitucional

IPHAEP Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba MLLC Memorial das Ligas e Lutas Camponesas

PB Paraíba

PE Pernambuco

RJ Rio de Janeiro

RN Rio Grande do Norte

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 14

CAPÍTULO I PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ... 17

1.1 Da história de vida colhida de forma oral ... 21

1.2 Dos participantes da pesquisa ... 22

1.3 Da estruturação da pesquisa ... 24

CAPÍTULO II HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE NO CONTEXTO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS ... 24

2.1 Compreendendo o conceito de identidade através da história e da memória ... 29

2.2 A proteção à identidade enquanto prerrogativa de direitos humanos... 37

CAPÍTULO III UM OLHAR NA HISTÓRIA E A MEMÓRIA DE ELIZABETH TEIXEIRA ... 42

3.1 A vida e suas reformulações (velhice) ... 44

3.2 As lembranças atuais e o legado histórico ... 60

3.3 Uma voz feminina no campo ... 65

CAPÍTULO IV UMA BIOGRAFIA AINDA NÃO CONTADA ... 72

4.1 Narrativa dos filhos e filhas de Elizabeth Teixeira ... 74

4.1.1 Isaac Pedro Teixeira ... 74

4.1.2 Marta Cristina Teixeira ... 78

4.1.3 Maria das Neves Altina Teixeira ... 80

4.1.4 Maria José Maurício da Costa... 85

4.1.5 Carlos Antônio Teixeira ... 89

4.1.6 Marinês Altina Teixeira ... 95

4.1.7 Anatilde Targino Alves de Arruda ... 97

4.1.8 Marluce Altina Teixeira – in memoriam ... 104

4.1.9 Abraão Pedro Teixeira – in memoriam ... 105

4.1.10 Paulo Pedro Teixeira – in memoriam ... 106

4.1.11 José Eudes Teixeira – In memoriam ... 106

4.1.12 João Pedro Teixeira Filho – In memoriam ... 107

4.2 A identidade da família de Elizabeth Teixeira ... 108

(13)

4.3 Dos feitos reparatórios aos danos indentitários à família de Elizabeth Teixeira

...113

CONCLUSÃO ... 122

REFERÊNCIAS ... 124

APÊNDICE A – Entrevista com Elizabeth Teixeira (12/09/2021) ... 130

APÊNDICE B – Entrevista com Isaac Pedro Teixeira (19/07/2022) ... 139

APÊNDICE C - Entrevista com Maria das Neves Teixeira do Nascimento (30/07/2022) ... 142

APÊNDICE D - Entrevista com Maria José Maurício da Costa (16/01/2022)... 145

APÊNDICE E – Entrevista com Carlos Antônio Teixeira (19/12/2021) ... 150

APÊNDICE F – Entrevista com Anatilde Targino Alves de Arruda (19/12/2021) ... 158

APÊNDICE G – Termo de consentimento ... 167

ANEXO A – Comprovante de submissão ao Comitê de ética ... 169

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INTRODUÇÃO

O século XXI traz consigo o rastro de sofrimento e barbáries cometidas cruelmente no século passado, onde a sociedade acompanhou as piores atrocidades que já foram levadas a público, no fulcro das duas grandes Guerras Mundiais e de sistemas repressivos, hoje, considerados desumanos, como o nazismo. As marcas da desumanidade no século XX foram tão profundas, podendo-se dizer que em níveis, até então, inimagináveis, que instigou às pessoas a não se permitirem o esquecimento da perversidade que o ser humano pôde chegar.

Conforme traz José Carlos Moreira da Silva Filho (2008, p. 158), bastava a simples rotulação de comunista ou subversivo para ser imediatamente colocado em uma zona na qual não há direitos e garantias.

Nesse cenário, a memória tornou-se o principal elemento que compõe o eterno luto.

Mas, não foi só. Fez-se necessário a imposição de limites, o desenvolvimento do que se denomina direitos humanos, do qual depreende-se o fundamento da dignidade humana, estampada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos tratados internacionais de direitos humanos e, no Brasil, na Constituição Federal de 1988 – no título dos princípios fundamentais, já que a garantia da dignidade é a razão de tais direitos.

A dignidade, por sua vez, mede-se não só com o que está no porvir, mas também no que se passou, na reparação do que foi violado. O passado, portanto, surge não como uma ilustração ou algo linear, para ser apreendido e repassado, torna-se algo a ser questionado, criticado, especialmente quando se assenta sob o sofrimento humano. Nessa perspectiva, insere-se o contexto da ditadura militar brasileira.

A lesão aos direitos humanos de fato aconteceu, e tentativas de reparação ocorreram.

Todavia, os danos, amiúde, são de proporção muito maior do que os feitos de reparação, principalmente quando se fala em dano identitário, elemento intrinsecamente ligado às memórias do ser humano.

A partir desse dano identitário, inicia-se o cerne desta pesquisa. Vários fatores de natureza subjetiva precisam ser observados quando se fala em relações humanas identitárias e, por conseguinte, afetivas. Cumpre destacar que, por vezes, a dor afetiva acarreta mais danos do que a própria dor corporal e, por sua vez, aquela apresenta-se mais difícil de reparação.

Dentro dessa discussão, pretende-se aprofundar o debate acerca das relações identitárias vividas pelas vítimas da ditadura militar, em um contexto de “clandestinidade” e repressões, utilizando-se como fenômeno de estudo o caso da família de Elizabeth Teixeira,

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testemunha, ainda viva, das atrocidades ocorridas durante o período da ditadura militar no âmbito do nordeste brasileiro. Por que a escolha do tema e sua relevância acadêmica?

Uma mulher que teve sua estrutura familiar completamente fragmentada, Elizabeth Teixeira foi obrigada a vivenciar a morte do esposo, líder sindical João Pedro Teixeira, e de alguns de seus filhos, bem como a dispersão de tantos outros, precisou incorporar um papel que não é comum na figura materna e os filhos necessitaram aprender a lutar para sobreviver às perversidades das perseguições políticas desde a infância.

Outrossim, Elizabeth Teixeira tornou-se um verdadeiro símbolo de defesa dos direitos humanos, uma mulher marcada para viver, lutar e esperançar. Hoje1, com seus (97) anos, perpassou o duro período da ditadura militar com muita perseverança, lutando a favor do movimento camponês por direito à terra, e sofreu defronte as escolhas realizadas em um período de total intransigência. Ato contínuo, cada um dos filhos, alguns pouco citados por grande parte das obras literárias, possui uma história em particular, que guarda em suas entranhas grande luta por sobrevivência e dignidade.

O interesse em investigar as questões identitárias da família de Elizabeth Teixeira parte tanto de elementos de cunho pessoal, pelo fato de ser neta da mesma, filha de Anatilde2, compartilhando toda a infância e adolescência com a minha avó, como pelo contexto em que

1 Ano de 2022.

2 É de salutar importância registrar um episódio que intensificou a relevância desse tema no âmbito pessoal.

Pouco tempo após minha aprovação na seleção do mestrado no PPGDH o qual sou matriculada, realizei a descoberta de fato pouco explorado e mesmo sabido pela grande maioria de obras e autores, respectivamente, que se debruçam sobre a temática, uma revelação de Anatilde, minha mãe, que afirmou ser filha do período de clandestinidade de Elizabeth Teixeira, sendo a sua 12ª filha, porém, não sendo filha de João Pedro Teixeira, mas sim de Luís Targino Alves.

O momento, de fato, foi divisor de águas para mim, que pude visualizar um sentido ainda maior na elaboração desta pesquisa, principalmente defronte o sofrimento narrado pela minha mãe, diante de todas as implicações do

“ser filha do período da clandestinidade de Elizabeth”, que perpassam pelas searas psicológica, familiar e jurídica.

Tal fato nunca sequer fora cogitado por mim ou minha irmã. Para nós, éramos, de fato, netas de João Pedro Teixeira. E, muito embora outrora a realidade jamais tivesse perpassado por nossas cabeças, naquele instante, uma série de elementos se sobrepunham de modo a percebermos sinais que antes eram simplesmente ignorados, pondo-se justificativas diversas, a exemplo do fato de que, em todas as visitas recebidas por Elizabeth, tínhamos a impressão de que era algo que não devia nos interessar e, assim como nossa mãe, nos recolhíamos ao quarto, como quem quisesse se esconder. Ou, o próprio fato de nunca se falar ao certo se eram onze ou doze filhos e mesmo nunca conseguir discernir de forma inconteste quem era nossa mãe nas fotos mais antigas de Elizabeth com os filhos e filhas.

Frisa-se que, até os dias atuais, o documento de identificação de Anatilde e, por conseguinte, de suas filhas, meu e de minha irmã, constam como a figura de mãe e avó materna, respectivamente, o nome Marta Maria da Costa, adotado por Elizabeth durante a “clandestinidade”. Outrossim, Anatilde nunca conheceu o pai, bem como, por ser a única que não é filha de João Pedro Teixeira, sempre se sentiu preterida, excluída da história oficial, não sendo diretamente mencionada na grande maioria de reportagens e mesmo em livros e demais obras de grande envergadura. Inclusive, amiúde, é mencionado que Elizabeth possui apenas 11 (onze) filhos, o que causa, até hoje, imensa dor nesta 12ª filha, que permaneceu em seu silêncio até as oitivas, quando da elaboração do Relatório Final da CEVPM/PB - Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba, onde pôde extravasar, pela primeira vez, a sua dor.

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a pesquisa se desenvolvera, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (PPGDH) da Universidade Federal da Paraíba, que tem firmado uma trajetória intimista com Elizabeth e familiares, através da constante rememoração das violações transcorridas e do papel de Elizabeth Teixeira enquanto mulher à frente do seu tempo e símbolo de resistência.

Ser filha de Anatilde e pesquisadora do contexto familiar de Elizabeth Teixeira é um grande desafio, visto descobertas que são realizadas no próprio processo de pesquisa. Ao passo que corresponde a elementos de natureza íntima, envolvendo sentimentos e a minha própria história de vida, é respaldada em métodos de natureza científica, devendo ser observada sob tal perspectiva, mantendo-se, porém, a sensibilidade derivada de um trabalho no campo dos direitos humanos. Em toda pesquisa, galgou-se a manutenção da respectiva postura, enfrentando os objetivos traçados com a seriedade necessária para que haja, também, a satisfação acadêmica.

Nesse cenário, propôs-se as seguintes indagações a fim de elucidar o caminho na obtenção de respostas ao problema proposto: como foi orquestrada a questão das relações identitárias nas vítimas da ditadura militar pelo Estado brasileiro? Por exemplo, como ficaram as relações entre mãe e filhos, e mesmo entre irmãos, no caso de Elizabeth Teixeira, em que os familiares necessitaram ficar longe uns dos outros por anos, muitos menores de idade? E quanto aos filhos que, ainda crianças/adolescentes, tiveram de esconder a identidade por anos? E mais, como se constrói, nesse parâmetro, a identidade das pessoas envolvidas?

Teriam todas o seu papel bem delineado dentro da história de Elizabeth Teixeira?

Essas problemáticas permeiam o problema central deste trabalho, que se volta para a seguinte pergunta principal: como se configuraram as rupturas identitárias impulsionadas pelo Estado Brasileiro, havendo como parâmetro o período de 1961-1985, e os respectivos processos reparatórios, com referência à família de Elizabeth Teixeira?

Destarte, de caráter fundamental a presente discussão no âmbito acadêmico, especialmente para os estudos de Direitos Humanos e Políticas Públicas, pois a dignidade da pessoa humana é efetivada não só em situações futuras, mas, também, na reparação do que foi violado, como forma, inclusive, de evitar a repetição dos danos. Educar para nunca mais.

Ainda, justifica-se o presente trabalho pelo próprio exercício da atividade memorialística, de não permitir que o esquecimento paire sobre a luta camponesa e as violências sofridas em um contexto de ditadura militar, havendo como parâmetro a vida de Elizabeth Teixeira, oxigenando, portanto, os motivos do fortalecimento democrático para a

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preservação da dignidade humana, analisando-se o papel da história e da memória na concretização desta.

O estudo possibilitará uma visão voltada para aspectos de natureza biográfica, envolvendo a correlação entre identidade e os direitos humanos. Nessa conjectura, apresenta- se como objetivo geral no trabalho: analisar - baseado no estudo histórico e memorialístico, bem como, dos Direitos Humanos - as rupturas impulsionadas pelo Estado brasileiro no período de 1961-1985, no que concerne à identidade da família de Elizabeth Teixeira.

Metodologicamente, o trabalho, para além da introdução, está dividido em quatro capítulos da seguinte forma: CAPÍTULO I – Procedimentos metodológicos. CAPÍTULO II – História, memória e identidade no contexto de cidadania e direitos humanos. CAPÍTULO III – Um olhar na história e a memória de Elizabeth Teixeira. CAPÍTULO IV – Uma biografia ainda não contada. CONCLUSÃO e REFERÊNCIAS.

CAPÍTULO I

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A metodologia, corporificando o conjunto dos métodos e técnicas de realização da pesquisa científica, possibilita ao pesquisador os instrumentos necessários para atingir os objetivos propostos. Nas palavras de Chizzoti (p. 26-27, 2014), “a pesquisa segue uma metodologia do trabalho, ou seja, a lógica subjacente ao encadeamento de diligências que o pesquisador segue para descobrir ou comprovar uma verdade, coerente com sua concepção da realidade e sua teoria do conhecimento.”.

Galgando-se alcançar a obtenção de respostas científicas no tocante ao problema levantado, realizar-se-á uma pesquisa à luz de um referencial qualitativo, pressupondo compreensões a partir da premissa da construção científica pautada nas interações humanas e sociais, recobrindo um campo transdisciplinar, entendendo-se que a pesquisa social não deve ser delineada de um ponto de vista engessado, mas sim, multifacetado. Nessa toada, ainda consoante Chizzoti (p. 28, 2014):

As ciências que pressupõem a ação humana devem levar em conta a liberdade e as vontades humanas e estas sempre interferem no curso dos fatos e dão significados muito diversos à ação; por isso, tendem a recorrer a esse tipo de pesquisa para encontrar informações seguras que suportem a interpretação.

Desse modo, observa-se a pesquisa qualitativa como meio de propiciar um entendimento mais profundo acerca do fenômeno que se propõe analisar neste trabalho, seja

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este, a construção identitária da família de Elizabeth Teixeira, apoiando-se na designação de maior relevância ao aspecto subjetivo das ações sociais e individuais, adequando-se à proposta da presente pesquisa, que se insere, essencialmente, no campo das ciências sociais.

Segundo Minayo (2002, p. 14):

[...] é preciso ressaltar que nas Ciências Sociais existe uma identidade entre sujeito e objeto. A pesquisa nessa área lida com seres humanos que, por razões culturais, de classe, de faixa etária, ou por qualquer outro motivo, têm um substrato comum de identidade com o investigador, tornando-os solidariamente imbricados e comprometidos [...]

Destaca-se que a escolha desta pesquisa parte da vivência da pesquisadora enquanto integrante da família de Elizabeth Teixeira, na qualidade de neta que residiu durante toda a infância e adolescência com a avó e, muito embora outrora ciente do papel de ativista política, líder sindical e símbolo de resistência da figura com quem dividia a moradia (seu lar), passa a se aprofundar nas histórias que envolvem as violências perpassadas por toda a família nesta oportunidade.

Para além das razões pessoais que levam a presente pesquisadora à escolha desta temática em específico, destaca-se que o trabalho será realizado no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da Universidade Federal da Paraíba, e assim não poderia ser diferente, frente toda a trajetória que essa universidade firmou com Elizabeth Teixeira e familiares, principalmente através de promoção de homenagens e realização de eventos que trazem à tona, através da história da família de Elizabeth, as violações aos direitos humanos que foram vivenciadas durante a ditadura militar e que não podem ser esquecidas, bem como, revitalizam a esperança na comunidade acadêmica e o ânimo à Elizabeth Teixeira e familiares, ao rememorarem os papéis - de mulher à frente de seu tempo, de força e de resistência - que a mesma representa até os dias atuais.

Parte-se de um método de pesquisa dialético, isto é, de uma análise crítica do objeto a ser pesquisado, contextualizando-se o problema enfrentado. A presente pesquisa está dividida em três grandes etapas: revisão bibliográfica, análise documental e pesquisa de campo.

Diante disso, fundamentar-se-á, em um primeiro momento, em fontes bibliográficas, através de obras históricas, como “Eu marcharei na tua luta!: A vida de Elizabeth Teixeira”, de Bandeira, Miele e Silveira (2012), “Elizabeth Teixeira: mulher da terra”, de Rocha (2016) e “Memórias do povo: João Pedro Teixeira e as Ligas Camponesas na Paraíba – deixemos o povo falar...”, organizado por Van Ham et al. (2006), bem como, respaldar-se-á no “Relatório Final da Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba”,

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organizado pela Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba (2017) e na recente obra “Os 41 anos da anistia e a família de Elizabeth Altina Teixeira” (2021), de Muniz3.

A complementar o apanhado de obras voltadas para a perspectiva histórica e memorialística do objeto de estudo, tem-se uma observação pautada em obras que se destinam ao estudo e análise do papel desenvolvido pela memória, como “Entre História e Memória: a problemática dos lugares” de Nora (1993), “Memória e sociedade - lembranças de velhos”, de Bosi (1979); “A memória coletiva” de Halbwachs (1990); “História e Memória”, de Le Goff (1994); “Direitos Humanos e a justiça ética da memória. Uma perspectiva das vítimas”, de Dornelles (2012), dentre outros.

Em continuidade, a fim de se alcançar os objetivos apresentados, faz-se um estudo crítico da relação existente entre as rupturas identitárias vividas no âmbito da família de Elizabeth Teixeira e os direitos humanos, reforçando-se, portanto, o necessário caráter transdisciplinar da pesquisa, sempre alicerçada no contexto dos direitos humanos.

Nesse ínterim, analisar-se-á conceitos essenciais à compreensão do problema, a citar:

história, memória e identidade, havendo como nicho principal os dilemas humanitários que circundam o tema, relacionando o Direito à Identidade aos direitos humanos. Aqui, vale-se de obras como: “Derechos y garantias”, de Ferrajoli (2004); “A era dos Direitos”, de Bobbio (2004); “A invenção dos Direitos Humanos”, de Hunt (2009); “A (re)invenção dos direitos humanos”, de Flores (2009); “Apologia da história, ou, O ofício do historiador”, de Marc Bloch (2001); “Introdução Teórica à História do Direito: biblioteca de história do direito”, de Fonseca (2012); “Memória e Identidade Social” (1989) e “Memória, esquecimento, silêncio”

(1992), ambos de Pollak; “Memória e identidade”, de Candau (2011), “A identidade cultural na pós-modernidade”, de Hall (2006), entre tantos outros, que trazem importantes conceitos e noções introdutórias que transpassam a percepção dos direitos humanos, especialmente no tocante ao seu viés garantista, assim como apresentam perspectivas tangentes à construção identitária, perpassando pelo horizonte social, cultural e mesmo afetivo.

Outrossim, a concepção identitária também é analisada no âmbito das violações transcorrentes na ditadura militar brasileira, sendo analisada tanto através dos elementos conceituais descritos e através do perfilhar histórico, por meio de produções como “Clamor: a vitória de uma conspiração brasileira”, de Lima (2003), pelos quais se poder ter uma visão mais ampla acerca da ditadura militar que se estendeu por todo o cone-sul (América Latina),

3 Iranice Gonçalves Muniz é integrante da CEVPM/PB, participando das oitivas realizadas com os integrantes da família de Elizabeth Teixeira.

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bem como, tem-se, também, “Violência de Estado na ditadura civil-militar brasileira (1964- 1985)”, de Ocariz; Silva Filho (2008), “Fé na Luta”, de Benevides (2009) e “O direito à memória: a história oral de mulheres que lutaram contra a ditadura militar (1964 – 84)”, de Oliveira (2013), que se destacam nas narrativas relacionadas ao período das ditaduras militares na América Latina, com destaque ao Brasil, de forma mais específica, enfatizando, também, o papel da memória na defesa dos direitos humanos.

No cenário normativo a ser considerado, encontram-se alguns dos dispositivos legais do ordenamento jurídico vigente, sendo destaque a Lei da Anistia (Lei nº 6.683/1979), que já restou analisada por alguns autores, possui caráter público e se associa diretamente ao presente estudo.

Com a análise do referido dispositivo legal, buscar-se-á verificar como o Estado galgou a execução de reparações em um primeiro momento e as consequências da lei editada, com destaque aos danos ainda existentes, averiguando como é possível concretizar uma reparação efetiva aos danos de natureza identitária, em especial à família de Elizabeth Teixeira.

São considerados, também, documentos audiovisuais, citando-se o filme- documentário “Cabra marcado para morrer”, dirigido por Coutinho (1964-1984)4 e “500 – os bebês roubados pela ditadura argentina”, dirigido por Valenti (2014), ambos de natureza pública, bem como, oitivas realizadas pela CVMPM/PB, fotografias (antigas e recentes a serem obtidas no próprio acervo pessoal de Elizabeth Teixeira e no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, localizando no município de Sapé) e documentos jurídicos, a exemplo dos documentos de identificação, como Registro Civil, Certidão de Nascimento e Carteira de Trabalho, esses de natureza privada, perante os quais poderá se analisar alguns dos efeitos da ditadura militar, especialmente os decorrentes do período de “clandestinidade”, nos registros civis de familiares de Elizabeth Teixeira e da própria Elizabeth.

Por sua vez, utiliza-se, ainda, dados obtidos na pesquisa de campo, através de entrevistas biográficas não diretivas, que são realizadas com a própria Elizabeth Teixeira e familiares, analisando-se as histórias de vida desses, examinando criticamente as falas, de modo a construir um panorama das relações familiares firmadas na família de Elizabeth Teixeira e, a partir disso, das relações identitárias de seus integrantes, possuindo como ponto referencial as memórias referentes ao período de 1961-1985.

4 Eduardo Coutinho foi cineasta e jornalista brasileiro, iniciou as gravações do filme “Cabra marcado para morrer” em 1964, sendo interrompido pela ditadura militar e retornando as filmagens 17 anos depois, com participação de camponeses e da própria Elizabeth Teixeira.

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As entrevistas são utilizadas para compreender a formação identitária dos envolvidos. Tem-se que esse trabalho exige uma visão voltada para aspectos que, amiúde, sequer são de conhecimento público, elementos de foro subjetivo, muitos decorrentes do período de “clandestinidade” vivido pela família, de modo que se faz imperiosa a realização de uma pesquisa pautada no método de histórias de vida, a fim de compreender a percepção dos integrantes da família, indo além de uma mera narrativa dos fatos.

1.1 Da história de vida colhida de forma oral

Quanto ao método escolhido, optou-se, no âmbito da pesquisa qualitativa, pela adoção da história de vida colhida de forma oral, através da realização de entrevistas, frente aos objetivos elencados, galgando-se apreender percepções do indivíduo para responder as questões enfrentadas na pesquisa. Nesse sentido, destaca-se:

Em termos gerais, o método de história de vida participa da metodologia qualitativa biográfica na qual o pesquisador escuta, por meio de várias entrevistas não diretivas, gravadas ou não, o relato da história de vida de alguém que a ele se conta. Nesse processo, a relação entre pesquisador e aquele que narra sua história é um ponto essencial e só acontece na presença de um vínculo de confiança mútua que é construído ao longo de um processo. Ao fim da escuta, todo o material é transcrito e discutido entre o sujeito participante e o pesquisador, que, a partir de então, fará um mergulho analítico para buscar identificar naquele material as pistas que o ajudarão a tentar responder suas questões de pesquisa. (NOGUEIRA et al; 2017)

Ainda, consoante Oliveira et al (p. 2, 2013), as histórias de vida são, para além de fontes de compreensão das experiências individuais relatadas, meio de entendimento dos fenômenos sociais nos quais os indivíduos se inserem, destacando os significados simbólicos conferidos pelos que viveram os fatos e, por sua vez, nada mais propício para quem trabalha com memória do que a remissão aos símbolos, que, muitas vezes, se transmutam em verdadeiros lugares de memória, conceito desenvolvido por Nora (1993), na publicação

“Entre História e Memória: a problemática dos lugares”. Percebe-se, assim, verdadeira interrelação entre história de vida oral e memória.

Oliveira et al (p. 5, 2013) também ressalta a importância de o pesquisador possuir conhecimento prévio acerca dos fatos a serem questionados ao entrevistado, baseado em outras fontes já existentes, pois o ato de memorar é um processo vivo e ativo, como também destaca Nora (1993), acrescendo-se, ainda, a sua reciprocidade, estando o pesquisador no papel de remeter o participante da pesquisa ao lugar do passado.

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No Brasil, observa-se a importância do estímulo do método de história de vida, especialmente após o contexto da ditadura militar de 1964, em que se proibiu e reprimiu a difusão de experiências, opiniões, pensamentos políticos e filosóficos, o que ratifica, ainda, a importância do método escolhido.

1.2 Dos participantes da pesquisa

As entrevistas são coletadas de Elizabeth Teixeira e seus filhos e filhas5, que correspondem atualmente à Isaac, Marta, Maria das Neves, Maria José, Carlos, Marinês, Anatilde, galgando apreender os sentimentos e percepções acerca de suas histórias de vida, relacionadas às vivências familiares uns com os outros durante o período de ditadura militar.

A proposta da pesquisa (entrevistas) foi encaminhada para a Comitê de Ética em Pesquisa e restou devidamente aprovada6. Apenas após aquiescência da respectiva comissão foram iniciadas as entrevistas.

Ademais, as histórias de vida apreendidas são apreciadas pelo filtro identitário que se propôs averiguar, de modo que as perguntas norteadoras são direcionadas para aspectos de cunho mais subjetivo, refletindo-se acerca as violações de natureza identitária e seus efeitos no tempo. A dimensão subjetiva, por sua vez, permite demonstrar como os participantes foram e ainda são marcados pelos ditames de cada época, isto é, pelas influências do contexto social e histórico vivido (NOGUEIRA ET AL, p. 4, 2017).

Realizada a tarefa das entrevistas, as mesmas são analisadas a partir do um estudo associativo dos dados coletados com os dispositivos legais e demais procedimentos estatais utilizados como possíveis instrumentos de restauração, a exemplo da Lei da Anistia, indagando-se a efetividade desses e a possibilidade de se chegar a novas propostas reparatórias.

Nessa toada, destaca-se que os entrevistados são, além da própria Elizabeth Teixeira, os descendentes que se relacionam diretamente à história da vida dessa após o seu relacionamento com João Pedro Teixeira durante a ditadura militar brasileira, sejam estes, os descendentes de primeiro grau em linha reta, os seus filhos, que, atualmente, configuram sete ao todo. Tal proposição relaciona-se com a própria metodologia (história de vida oral) utilizada, visto que, conforme destaca Oliveira et al (p. 5, 2013): “Para a coleta de dados a

5 Apresentados no trabalho em ordem cronológica de nascimento, do(a) mais velho(a) para o mais novo(a).

6 Certificado de Apresentação de Apreciação Ética 48791221.1.0000.5188.

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história oral privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram ou testemunharam acontecimentos, conjunturas, visões do mundo como forma de se aproximar do objeto de estudo.”.

Por sua vez, diante da proximidade existente entre a pesquisadora e os participantes da pesquisa, na qualidade de integrante da família, observa-se que já se encontra presente o vínculo de confiança mútua necessário para a realização das entrevistas, que é destacado por NOGUEIRA et al (2017), como acima mencionado. Ademais, como comungo dos papéis de pesquisadora e parente, a fim de não causar estranhamento, até mesmo pelo natural afeto familiar, respeito e hábito rotineiro de chamamento, opta-se por manter os vocativos “avó”,

“mãe”, “tio” e “tia”, durante as entrevistas com os respectivos.

Há familiares residindo na Paraíba, como Anatilde, Maria José e Maria das Neves.

Carlos, por sua vez, mora no estado do Rio Grande do Norte e Isaac no estado do Ceará.

Quanto a Marta Cristina e Marinês Altina, foram as únicas que saíram da região Nordeste, residindo no estado do Rio de Janeiro. Esse fato não prejudica o transcurso das entrevistas, visto que as mesmas são realizadas através de mecanismos virtuais, por ligação ou videochamada.

Para além da distância dos entrevistados, não se pode deixar de ressaltar o contexto pandêmico da COVID-19 que o mundo enfrentou, de modo que, apresentou-se prudente a realização das entrevistas de forma virtual com a maior parte dos sujeitos, a exceção de alguns com quem a pesquisadora já possui convívio presencial rotineiro, a exemplo da própria Elizabeth Teixeira.

Antes da realização de cada entrevista, todos os participantes são devidamente informados acerca do conteúdo da pesquisa, requerendo-se a autorização para a gravação e realização das perguntas, expondo o contexto do trabalho previamente às entrevistas. Como a pesquisa versa sobre identidade, o início de cada entrevista se dá com o questionamento acerca da identificação civil, data de nascimento e endereço de cada entrevistado, a fim de deixar registrado como, atualmente, se intitulam, bem como, constatar a locação de cada um no espaço-tempo.

Muito embora a ditadura militar tenha se estendido por todo o Brasil e mesmo com os participantes da pesquisa (Elizabeth Teixeira e familiares) estando espalhados pelos mais variados estados brasileiros, tem-se que os fatos ocasionadores do problema e da problemática que regem o trabalho ocorreram, primordialmente, na região Nordeste do país, com uma ênfase maior no estado da Paraíba, onde Elizabeth Teixeira e família moravam no instante da instauração do Golpe Civil Militar de 1964 - e onde Elizabeth reside atualmente.

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1.3 Da estruturação da pesquisa

O estudo tem como marco temporal, a priori, os anos de 1961 a 1985, período decisivo para a família de Elizabeth Teixeira, bem como, para a grande maioria das vítimas da ditadura militar brasileira, na qual se viu a instauração do sistema ditatorial, seu apogeu e seu declínio. Nesse lapso temporal, a vida de Elizabeth Teixeira e seus familiares mudaram completa e drasticamente, ocasionando os impactos identitários que se pretende aprofundar.

Daí a necessidade de as entrevistas serem realizadas com auxílio de um roteiro orientador, que permita alcançar os objetivos da pesquisa, contudo, não se seguiu uma cartilha rígida de perguntas, o que possibilita aos entrevistados expressar seus tormentos, dores e preocupações, suas narrativas, com liberdade de expressão e opinião, consubstanciando, na qualidade de instrumento de coleta de dados, a realização de entrevistas semiestruturadas, a fim de captar as reais rupturas vivenciadas. Além das falas, são observados gestos e atitudes e perquiridas as histórias de vida de cada um.

Cabe especificar ainda que, à Elizabeth foi destinada uma quantidade menor de questionamentos, bem como, mais direcionados, não obedecendo uma cronologia rígida de perguntas, tendo em vista que a mesma já possui noventa e sete (97) anos, sendo necessário atentar para as limitações naturais da idade.

Aos filhos, por sua vez, são destinadas uma maior quantidade de perguntas, diante do fato de que são as pessoas que participaram mais ativa e intensamente da presença ou ausência de Elizabeth Teixeira nos momentos durante e pós ditadura militar.

Todas as entrevistas são analisadas individualmente e de forma conjuntural, utilizando-se os dados que se relacionam e influenciam à discussão identitária dos integrantes da família, de modo a não fugir dos objetivos propostos.

CAPÍTULO II

HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE NO CONTEXTO DE CIDADANIA E

DIREITOS HUMANOS

No contexto das sociedades democráticas modernas, a proteção aos direitos humanos é prerrogativa lapidar dos seus documentos constituintes. Tal realidade, segundo Bobbio (p. 7,

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2004), dar-se-á pelo fato de que, sem os direitos dos homens não há democracia e, sem essa, não há as condições necessárias para a solução pacífica dos conflitos.

Assim, os direitos humanos são necessários para a existência de um estado democrático de direito, e por conseguinte, é preciso, cada vez mais, uma análise pautada do ponto de vista dos direitos dos cidadãos. Tem-se uma relação direta entre democracia, direitos humanos e direitos dos cidadãos. Abre-se a um direito chamado de jusnaturalista, de natureza fundamental, suprema, considerado inerente ao ser humano, que pressupõe um olhar voltado para o cidadão ao invés do Estado, que outrora predominava.

Mas, em uma sociedade marcada pelas diferenças de classes, o que faz com que pessoas, imersas em um ambiente com tantas desigualdades, comecem a refletir sobre direitos humanos?

Para Hunt (2009), a mudança de pensamento se dá a partir da construção da ideia de empatia. Até o século XVIII, a noção de empatia não existia. Porém, a partir de então, com o processo da Revolução Industrial, iniciou-se, também, o contexto de urbanização, com a migração das populações do campo para cidade. Milhares de pessoas passaram a trabalhar nas grandes fábricas. Emergiu, por conseguinte, o sentimento de injustiça sendo compartilhado por todos aqueles que se viam explorados por uma seleta burguesia.

Não se pode deixar de mencionar, nesse cenário, a Revolução Francesa, com os ideais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, que se tornaram parâmetros diretivos para as noções atuais de justiça e democracia. Desenvolve-se a luta por liberdade, mas também por igualdade, por direitos em prol dos trabalhadores, que passam a entender as dores uns dos outros.

Paralelamente, em passo similar, menciona-se o processo de Independência Americana, que tanto influência, como é influenciada, pela Revolução Francesa. A Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), trata não só da preservação da vida e da buscar por direitos inerentes à humanidade, como também, a “busca da felicidade” - ideais contrastantes para um escritor (Thomas Jefferson7) que ainda era “proprietário de escravos” na época. Percebe-se o afloramento de discussões e ideias relacionadas a direitos inerentes e inalienáveis no seio de uma sociedade com inúmeras diferenças sociais. Ferrajoli (2004, p. 80) descreve o contexto em que se firmaram as Declarações do século XVIII (de modo geral):

7 Thomas Jefferson foi o principal autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos, sendo terceiro presidente do país, reputado pela difusão de ideias republicanos.

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Es lo acontecido con las Declaraciones del siglo xviii, que entraron en contraste no sólo con la realidad de las relaciones sociales sino también con el derecho entonces vigente. Es bien cierto que esta antinomia fue debida y al mismo tiempo largamente ocultada por el hecho de que el modelo normativo de la igualdad había sido pensado con referencia exclusiva al sujeto macho, así como blanco, propietario y ciudadano.

Es también cierto que semejante operación se basaba en una implícita e inconfesada teoría descriptiva de la igualdad y de la desigualdad que, del mismo modo que en nuestro segundo modelo, asumía como «iguales» y antes aun como «personas»

solamente a los varones blancos, propietarios, instruidos y ciudadanos y sólo por sucesivas asimilaciones, de idéntica forma que nuestro tercer modelo, a todos los seres humanos diferentes de ellos. Es así como de hecho el modelo universalista ha podido ser desatendido durante mucho tiempo, no sólo en el plano de los hechos, sino también en el del derecho a través de las múltiples discriminaciones de mujeres, prolerarios, analfabetos y, hoy todavía, de todos los nociudadanos, siempre excluidos de la clase de los «iguales».

A Declaração Norte-americana perpetua que todos foram criados iguais, dotados de direitos inalienáveis, entre esses se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade.

Na França, por sua vez, o documento criado foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), preocupando-se em se tornar um manual de governo e de política, indicando que os direitos naturais e inalienáveis do homem devem ser premissa básica de qualquer governo, atribuindo a soberania à nação e não ao rei, desenvolvendo-se, portanto, a noção de igualdade.

Tal igualdade sendo vista não como um fato, mas como um valor, uma prescrição fixada em norma, reconhecendo que, de fato, os seres humanos são diversos e buscando-se evitar que a diversidade funcione como vetor de desigualdade (FERRAJOLI, 2004, p. 79).

Todos os “cidadãos” teriam o direito de participar da vida política, da formação das leis, defende que ninguém deveria ser atacado por suas opiniões e propicia a emergência do debate político (HUNT, 2004, p. 132-133). Para Bobbio (2004), uma das heranças da Revolução Francesa é justamente o direito de resistência, isto é, de se opor.

Dois documentos que reverberam versões da linguagem vigente no século XVIII, cada uma com suas peculiaridades, uma particularista, voltada para direitos específicos de um povo (Declaração de Independência dos Estados Unidos) e outra universalista, direcionada aos direitos do homem de modo geral (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão), com o debate transcorrendo através de célebres pensadores, como Thomas Hobbes e John Loke. Porém, ambas apontando para uma nova visão acerca dos direitos.

Ao declarar os direitos significa tornar inquestionável a sua existência e possibilitar a abertura para o debate político, eternizando, de certo modo, as memórias de um processo histórico e se tornando instrumento memorialístico. Consoante Hunt (2004, p. 113), “Uma

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afirmação formal e pública confirma as mudanças que ocorreram nas atitudes subjacentes.

Mais ainda, tornam efetiva a mudança (de soberania).”.

Nesse contexto, Hunt aduz que os direitos humanos foram inventados, a partir do momento em que se passou a desenvolver o sentimento de empatia, quando um ver o outro como semelhante, surgindo a noção de individualismo8, concepção burguesa, que é fonte basilar dos direitos humanos.

Ainda assim, vale destacar que, eventos como as revoluções francesa e americana, mesmo que sejam momentos de relevo para mudança social, deixaram várias desigualdades em aberto, não incluindo com igualdade as mulheres, os negros e os estrangeiros, por exemplo, ao não possibilitar a participação política desses.

A Declaração Universal dos Direitos do Humanos – aprovado em 19489, estabelece um leque de direitos que pode ser traduzido nos direitos de primeira, de segunda e de terceira dimensão10, sendo os de primeira àqueles referentes a atuação negativa do Estado, relacionados à liberdade; os de segunda, referentes à ação positiva do Estado, direcionados aos direitos econômicos, sociais e culturais; e os de terceira, referentes aos direitos difusos e coletivos, de fraternidade e de solidariedade11.

Tais direitos foram se somando uns aos outros, em um processo histórico, consoante as necessidades sociais requereram. Porém, a despeito de direitos existirem no papel, a crítica a ser feita, realizada por Bobbio (p. 11, 2004) desde 1990, recai, sobretudo, na ausência de sua efetividade, do acesso aos direitos.

Para Ferrajoli (2004, p. 75-76), um dos modelos de configuração jurídica das diferenças é a valorização igualitária dessas, baseado na ideia de igualdade dos direitos fundamentais12 (sejam políticos, civis, liberais e sociais) e, simultaneamente, de sistemas de garantias capazes de assegurar sua eficácia.13

88 A noção de indivíduo está ligada a ideia de privacidade. Até o século XVIII, as pessoas não tinham a noção de

“ambiente civilizado”, a exemplo de as refeições serem em cédulas específicas da casa. Não havia a ideia de intimidade enquanto um espaço próprio. O desenvolvimento desse individualismo possibilita ver o outro como semelhante. Já no século XIX, vê-se, por exemplo, pessoas utilizando diários, a realização de pinturas das pessoas, atentando-se para a igualdade de nascimento, de mesma condição humana.

9Após a positivação dos direitos sociais nas constituições do México (1917) e da Alemanha (1919).

10 Alguns autores também utilizam o termo “gerações” ao invés de “dimensões”, porém, a grande maioria utiliza este último, tendo em vista que o primeiro pode direcionar a uma equivocada ideia de superação de uma fase por outra, quando, em verdade, há o somatório de direitos, constituindo um plexo.

11 Hoje, fala-se em outras dimensões, a quarta, a quinta e até mesmo a sexta dimensão, consoante emergem novos direitos.

12 Para Ferrajoli, um direito ser fundamental significa que todos possuem igual direito a ele.

13 Ferrajoli (2004, p. 15), por exemplo, cita que, mesmo nas mais avançadas democracias, vê-se uma crise profundo e crescente do direito, expressa, dentre outros fatores, pela ausência ou ineficácia dos controles.

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O referido modelo assumiria que todos possuem igual valor, devendo ser conferido tratamento e respeito igual para todos, reconhecendo as diferenças e as valorizando, como um traço identitário, em que cada um encontra sentido em si. A igualdade de direitos fundamentais seria o direito à afirmação e proteção da própria identidade, associada as diferenças que fazem cada pessoa um ser individual, diferente de todos, mas, também, igual a todos, por ser pessoa.

Um ideal que se transformaria em norma e, como tal, sujeita a ser violada em algum grau e medida.

Acerca de como a respectiva Declaração se funda, após o mundo perpassar pelo holocausto, VILELA (2000, p. 127) destaca:

Perante uma quase impossibilidade em coordenar os princípios antagônicos defendidos pelos representantes de diferentes culturas, aquilo que possibilitou a afirmação universal da Declaração foi um processo de negociações políticas contínuas, a partir do qual se desenhava uma arquitetura formal de valores que se congregaram em torno das questões históricas urgentes. As respostas a essas questões eram enunciadas sob uma forma discursiva quase abstractizante. Em vez de realizar uma reflexão sobre a situação concreta vivida pelos diferentes estados soberanos ali representados, a reflexão deslocou-se para a enunciação daquilo que devia ser a cena de uma humanidade futura.

Percebe-se, desse modo, que a construção de direitos é lenta e gradual. Muito embora alguns momentos sejam exaltados pela história oficial, por, de fato, trazerem à tona a consagração de direitos que se fazem necessários à sociedade, inúmeras brechas permanecem para fomentar a análise e a luta das gerações vindouras.

Isso porque tal construção perpassa, como já mencionado, por um encadeamento histórico (e memorialístico), que não é inteiro, mas sim, feito de recortes, da soma de experiências, vivências, pessoas, lutas, revoluções, embates, empatias (como traz a Lynn Hunt) e mesmo de retrocessos.

Nesse contexto, este capítulo tem por base, de forma prioritária, a realização de análise bibliográfica, buscando realizar uma descrição de como história e memória se relacionam na construção da identidade, direito de natureza humana, de modo a possibilitar a reflexão sobre os conceitos que regem a presente pesquisa e expondo como se relacionam com os direitos humanos.

Quando se menciona a expressão “direitos”, no que concerne aos direitos humanos, é importante concebê-los para além de “simples” normas, sendo, também, valores e princípios, elementos que possibilitam a efetivação da dignidade humana.

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O que torna universais os direitos não se baseiam em seu mero reconhecimento jurídico, nem na adaptação de uma ideologia determinada que os entenda como ideais abstratos além dos contextos sociais, econômicos e culturais nos quais surgem e para os quais devem servir de pauta crítica. A universalidade dos direitos somente pode ser definida em função da seguinte variável: o fortalecimento de indivíduos, grupos e organizações na hora de construir um marco de ação que permita a todos e a todas criar as condições que garantam de um modo igualitário o acesso aos bens materiais e imateriais que fazem com que a vida seja digna de ser vivida. (FLORES, 2009, p. 17)

Flores (2009) propõe uma compreensão inovadora dos direitos humanos, observando-os como fruto de lutas sociais, galgados por aqueles que tiveram barrados o acesso a bens jurídicos. Afasta-se, portanto, da ideia de direitos humanos na qualidade de direitos inatos, destinados aos seres humanos simplesmente por ser humanos, mas os coloca como fruto de um processo, algo conquistado e consolidado socialmente. É uma outra percepção, igualmente válida.

Por outro lado, a identidade será analisada como elemento (um direito) inserido na discussão de direitos humanos. Será examinado como a identidade é construída, o papel da memória e da história nesse processo, e averiguado como se davam as violações ao direito à identidade durante períodos ditatoriais na América Latina, com destaque ao contexto brasileiro e argentino, a exemplo das decorrentes da inserção na “clandestinidade”, como ocorreu com Elizabeth Teixeira.

Nessa perspectiva, dois tópicos serão analisados: i) o primeiro direcionado à noção de identidade e sua constituição através da memória e da história, desenvolvendo-se esses conceitos; ii) o segundo, voltar-se-á para da identidade enquanto prerrogativa de direitos humanos; associando os conceitos às violações transcorridas no período da ditadura militar brasileira, havendo como base, a identidade da família de Elizabeth Teixeira, o que será fio condutor para os capítulos seguintes, que tratarão da vida e memória de Elizabeth e seus filhos, detalhando, no caso específico em estudo, as violações identitárias.

2.1 Compreendendo o conceito de identidade através da história e da memória

As histórias do Brasil, as histórias das guerras, as histórias das personalidades, as histórias das ideologias, as histórias que são oficializadas como verdadeiras, legitimadas por quem as contou e repassadas de geração em geração.

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Mas, quem define qual será a história? Há apenas uma única história? As histórias dos livros, dos filmes e dos prêmios é a mesma história vivida? E, qual sua relação com o tempo? Seria a história algo imóvel e intangível?

A historiografia busca desvendar essas perguntas e tantas outras que a ciência da história nos propõe, galgando um sistema de explicação universal.

Sabe-se, contudo, que outrora não havia uma formação em história, visto que sequer constituía uma disciplina científica. Os autores dos livros de história se restringiam a profissionais liberais, homens da nobreza ou mesmo da igreja, subordinando-se ao contexto político vigente. Muitas vezes, inclusive, confundida com a própria memória coletiva.

Na França, a história começa a ocupar um espaço mais incisivo, desenvolvendo-se nas universidades a partir da década de 1870, no âmbito da terceira República, frente ao intuito dos governantes em reforçar o controle estatal perante o ensino superior. A ideia de estudo histórico estava atrelada a uma visão distante dos fatos, que era propiciada através de um considerável espaço de tempo, era preciso que o passado fosse distante o suficiente para ser arquivado e catalogado e, assim, poder ser estudado (FERREIRA, 2000, p. 2).

Trata-se de uma história positivista, hegemônica na Europa do século XIX, havendo como grande expoente Leopold von Ranke14. As fontes históricas deveriam ser apenas as consideradas “oficiais”, documentos estatais, públicos. Profissionaliza-se o ofício do historiador, que passa a ser visto como encarregado de buscar “a verdadeira história”, de modo que o mesmo deveria ser totalmente isento, distante de qualquer tendência religiosa ou doutrinária. Na França, nesse mesmo entendimento, fundou-se a denominada “escola metódica”, com pesquisadores como Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, que, inicialmente, definiram as regras da história enquanto disciplina (FONSECA, 2012, p. 55-56).

Observa-se, portanto, a constituição de uma historiografia que busca objetividade e neutralidade, acreditando que qualquer subjetividade invalidaria a cientificidade da disciplina.

Porém, sabe-se que tal modelo não se encontra coincidente com a realidade da pesquisa científica, visto que os acontecimentos históricos não se encontram fora do olhar do historiador e, muito menos, este visualiza tudo de forma neutra. Toda a formação histórica perpassa pela própria construção do historiador enquanto pessoa, sujeito da própria história, que seleciona a pesquisa a ser realizada, possui um ponto de vista, uma forma de contar, entre várias outras subjetividades que não há como afastar do pesquisador.

14 Historiador alemão do século XIX, expoente da historiografia positivista, sendo importante no processo de profissionalização da história, de sua configuração enquanto disciplina. Destaca-se na revolução das fontes historiográficas, direcionando a disciplina para a utilização de fontes oficiais, estatais.

Referências

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