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Horiz. antropol. vol.11 número24

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Academic year: 2018

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APRESENTAÇÃO

Pelo menos há mais de três décadas que o termo “performance” vem adquirindo visibilidade e espaço de interlocução na literatura antropológica ternacional, sobretudo a anglo-americana. Por outro lado, no Brasil, a sua in-serção no vocabulário cotidiano para expressar desde o bom desempenho de uma máquina, de um político ou de uma atividade burocrática até a artisticidade de um ator, de um cantor ou uma banda de rock, bastaria para enfatizar a

pertinência do olhar antropológico sobre tal fenômeno. Com efeito, esse termo transfronteiriço, de poucas transparências, ora reclamado individualmente pe-las artes, ora consorciado com as humanidades, despertou o seu interesse na antropologia como categoria artística, epistemológica, heurística, graças a ob-servações pontuais presentes já nos estudos etnográficos pioneiros de Malinowski, Radcliffe-Brown e Franz Boas. Portanto, estamos falando de uma herança deixada pelos clássicos – em estado latente, é bem verdade – que vem se reatualizando conjuntamente com outras questões que interpelam a teoria e a prática antropológica na contemporaneidade. Acreditamos que a variabilidade semântica e o deslizamento conceitual da performance, como não poderia dei-xar de ser, em se tratando de um termo reivindicado por uma multiplicidade de campos e vozes disciplinares, estimula ainda mais o diálogo e o posicionamento estratégico das etnografias antropológicas em um espaço acadêmico multissituado. É nessa perspectiva que enquadramos a contribuição do presen-te volume de Horizontes Antropológicos.

Como ponto de partida, lembramos que a centralidade do antropólogo anglo-americano Victor Turner (1920-1983) nos estudos teóricos e etnográficos da performance começa finalmente a despontar na literatura antropológica brasi-leira, depois de um longo período em que o conhecimento desse autor ficou restrito à tradução em português do seu livro O Processo Ritual, acrescido

mais recentemente da tradução de A Floresta de Símbolos. Talvez tenhamos

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uma práxis antropológica revigorada pelo humanismo intenso do encontro intersubjetivo em campo. É assim que Turner recupera a sua densa experiência etnográfica na África e a projeta, juntamente com as colaborações teóricas desenvolvidas nos Estados Unidos com o sociólogo E. Goffman e com o diretor de teatro Richard Schechner, para o cenário de uma antropologia que coloca sob suspeição a fixidez e coerência de sistemas sociais em favor do foco em eventos esquecidos, desprezados, que emergem nas descontinuidades, ambi-güidades, mesclas e indeterminações processuais do cotidiano. Este “progra-ma” teórico encontrará no caráter emergente, movente da noção de performance em rituais, gêneros artísticos, formas da cultura expressiva e microinterações da vida cotidiana um campo aberto a inúmeras experimentações e refinamen-tos posteriores nas etnografias de corte menos “realista”. As observações etnográficas focadas na performance situam o late Turner junto daqueles que

passam a rejeitar a noção de cultura como uma resposta a normas de conduta preestabelecidas pela estrutura social, redirecionando o foco analítico para o construtivismo social, o agenciamento, a historicidade das práticas sociais, re-tomadas em suas descontinuidades, no fluxo e fluidez do encontro de intersubjetividades em campo. Assim, a importância hermenêutica da performance na análise do processo social vai se delineando juntamente com as discussões na antropologia do paradigma “pós-moderno”, um conceito cujas implicações para a disciplina Turner antecipara em seus últimos trabalhos.

Os vinte e tantos anos decorridos desde os primeiros confrontos epistemológicos e discussões sobre o tema da pós-modernidade nas ciências humanas ajudaram a “naturalizar” certos termos do debate, ao ponto de não mais causarem estranhamento certas categorias que nem mesmo chegaram a passar pelo crivo da estréia e já se instalaram no discurso acadêmico. Esse parece ser o caso em especial da performance. Portanto, quando se trata de historicizar ou problematizar o seu percurso teórico, como o fazem alguns tex-tos desta coletânea, não é por acaso que Turner constitui-se em uma espécie de Leitmotiv, ainda que outras linhagens mesmo dentro da antropologia possam

ser identificadas, como é o caso da “etnografia da fala”, com importantes rami-ficações dentro e fora da antropologia ou das teorizações desenvolvidas mais especificamente no campo da antropologia da política entre poder e performances culturais, notadamente pelo antropólogo inglês Abner Cohen, como Turner, ou-tro ex-aluno de Max Gluckman oriundo da “Manchester School”.

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performance, esta coletânea contempla justamente essa centralidade sem per-der de vista as implicações que a historicidade do pensamento turneriano acar-reta para aqueles que realizam hoje a sua exegese e para os que exploram outras possibilidades.

Assim, o texto de John Dawsey – O Teatro dos “Bóias-Frias”: Repen-sando a Antropologia da Performance – propõe um olhar ao inverso: se os

estudos de Victor Turner sobre performance, sobre os paradigmas de teatro na antropologia são sugestivos para a análise de uma etnografia entre trabalhado-res dos canaviais no interior paulista, a contrapartida é que esse “teatro de canaviais e carrocerias de caminhões” também é sugestivo para se repensar um conjunto de questões sobre os limites e alcances teóricos das interfaces da performance e antropologia.

Na seqüência, Rubens Alves da Silva retoma detalhadamente a discussão sobre a noção de performance e drama na antropologia ao modo de uma genealogia dessa problemática, traçada a partir do diálogo com textos fundantes de Victor Turner, Clifford Geertz, Michael Taussig e Richard Schechner.

Em Ritual, Schechner e Performance, Regina Polo Müller, ao modo de

uma auto-etnografia, reflete sobre os diferentes posicionamentos vividos em sua trajetória acadêmica ao enfrentar como antropóloga-performer profissio-nal um novo estranhamento – o do teatro experimental do conhecido parceiro intelectual de Turner, Richard Schechner. Ao mergulhar neste próximo-distante campo da cultura acadêmica e artística, revisitando teoria antropológica e performance ao vivo sob a supervisão do próprio Schechner, a autora devolve ao leitor preciosas nuanças do ofício antropológico apreendido no jogo de ten-sões criativas entre teatro-performance-etnografia.

No mesmo registro reflexivo, em Mestres do Tao: Tradição, Experiên-cia e Etnografia, José Bizerril Neto trama a experiência vivida (Erlebnis) em

um campo de sociabilidades multissensoriais como o do taoísmo, para refletir sobre o etnógrafo como um performer, nos seus usos específicos e ambivalentes da linguagem e do corpo e como isso se traduz na produção do conhecimento antropológico.

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fábrica, o escritório – muito contribuíram para o enquadre antropológico de microssituações de falas e conversas sob a ótica da performance.

Esse é o caso da etnografia desenvolvida por Luciana Hartmann sobre a performance nas narrativas orais dos contadores de “causos” da fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai, em que a autora, na esteira da etnografia da fala, enfrenta o desafio metodológico de textualizar as inflexões corporais e vocais dos narradores e reposicioná-las nos referentes do universo cultural em questão.

De certa forma, essa mesma questão metodológica reaparece no texto de Rose Satiko Gitirana Hikiji, transposta para um grupo de jovens da Febem, músicos de uma orquestra formada no âmbito de um dos muitos projetos soci-ais ora em andamento no país, em que as dimensões conflitivas das diferenças entre autoridades, público e participantes do projeto emergem nas falas sobre e nas performances do grupo.

Uma última mostra exemplar das possibilidades abertas pelos estudos focados na performatividade verbal nos é oferecida pelo trabalho de campo da diretora teatral Paula Vilas junto a uma comunidade quilombola do Estado de Goiás. A autora no seu estudo aponta valiosas sugestões de percurso teórico-metodológico para que as vocalidades afro-brasileiras, em seus múltiplos as-pectos performativos captados pela etnografia, sejam a escuta da memória “in-corporada” da diáspora afro-atlântica, da vocalidade enquanto produção histó-rico-social.

Inverter o olhar antropológico do Sul para o Norte, do nativo para o intér-prete, eis a proposição do instigante artista mexicano Guillermo Gómez-Peña, contida em inúmeras de suas criações performáticas informadas pelas teorizações dos estudos pós-coloniais. Ao apresentarmos o volume com ima-gens na capa da performance El Naftazteca, preludiamos aos leitores uma

seqüência de apresentações acadêmicas que foram performatizadas do ponto de vista teórico e artístico no texto do mesmo autor que encerra esta secção temática. Esperamos, assim, que as possibilidades heurísticas da performance, vistas de fora ou de dentro, sirvam para manter em permanente estado de atualização o diálogo sobre o caráter contingente, emergente e reflexivo do trabalho de campo na antropologia.

No Espaço Aberto deste número foram incluídas as contribuições de dois

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Cidadania no Brasil dos Anos 1830, desvela as ambigüidades que

marca-ram as primeiras gerações de militantes anti-racistas no país, sobretudo em seu conformismo com a escravidão.

Um último registro: a força do uso corrente do termo “performance” em português e em outras línguas latinas como o espanhol, o italiano e o francês, gerando inclusive neologismos como performero, em espanhol, ou o verbo

“performatizar” e o adjetivo “performático”, em português, nos fez empregá-lo neste volume sem o recurso do itálico.

Referências

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