oupontodepartidadeumanovaera...
PauloEsmeraldoCatarinoLopes*
AsnavegaçõesportuguesasrealizadasnaépocadosDescobrimentosforamdeprimordialimportânciapara amarchadahumanidade.Atravésdeescritosedesenhoscartográficos,osPortuguesesdesempenharamumpapel cimeiroedevanguardanadescriçãoobjectivadomundo.Poroutrolado,comosalientouLuísdeAlbuquerque, atransformaçãodaartedenavegarnumatécnicadenavegar,ouseja,apassagemdeumanavegaçãopautadapor processoselementaresparaumanavegaçãobaseadanamedidadeumacoordenadaastronómicadeumastro–ponto departidadarigorosanavegaçãomoderna–constituiu,semdúvida,umadasconsequênciasmaisrelevantesdas navegaçõesportuguesas1.Assistiu-secomoque,desdeaGréciaAntiga,aumprimeirograndeprimadodaobservação, daexperimentação,datécnica,enfim,darazãoedaciência.Istoéumfactoincontestáveleinabalável.
Pois bem, é precisamente sobre esta premissa, tantas vezes debatida e aperfeiçoada, que a presente comunicaçãonãosedebruça.Aoinvés,nelapretende-sereflectirsobreaquiloquedenominamosaface“obscura” dos Descobrimentos, a face do abstracto, do não mensurável, do subjectivo, em última análise daquilo que cientificamenteseconsideraoerroequetemporbaseamenosheróicadaspaixõeshumanas:omedo.
São,pois,estasmassasvolúveis,impossíveisdedefiniroudematerializarrigorosamente,quevamostentar analisaremrelaçãoànavegaçãonoAtlânticomagrebinonofinaldaIdadeMédiaeiníciosdaIdadeModerna, primeiragrandefasedaexpansãomarítimalusa,ondeasCanáriaseocaboBojadormerecemparticulardestaque. Talpropósitoimplicamergulharnodomíniodosonho,doimaginário,dafantasiaedomaravilhoso,procurando captarcomoonavegantedofinaldaIdadeMédiaencaravaodesconhecidoeserelacionavacomele.
Sãoescassasasfontessobreestatemática.Noentanto,essesrarosapontamentosiniciaisquandoassociadosaos registosexistentessobreasnavegaçõesposteriores,emespecialasrelativasàcarreiradaÍndia,edosquaispodemos fazerrecursodadaareduzidadistânciatemporaleaausênciadegrandesvariaçõesaoníveldascondicionantes, permitemavançaralgumashipótesesdereflexão.
Ohomemdomarportuguêséalguémexperimentado,podemosmesmoafirmarque,àépoca,éumdos maisexperimentadosdetodaaEuropa.Poroutrolado,temaoseualcancetécnicasdenavegação,embarcaçõese instrumentosnáuticoscadavezmaisdesenvolvidoseaperfeiçoados.Istoparaalémdetodoumsaberqueaumenta e se consolida a cada viagem, e do qual o conhecimento profundo das rotas, das correntes e dos ventos são exemplos paradigmáticos. OTratado da Agulha de Marear (1514) de João de Lisboa e oLivro de Marinharia
(c.1566)dePeroVazFragosocomprovamesteavançodosabermarítimo.Noentanto,nosderradeirosmomentos (enãosó),osantigosmedosvoltamàsuperfície,aindaquecadavezmaisfiltradosetransfiguradosportodauma novaexperiênciaeumanovaformadeconceberomundo.
*InstitutodeEstudosMedievais
Derealçarqueestetextoconstituiapenasumadasmuitasabordagenspossíveisaocomplexoediversificado temadomedodomarnoiníciodolongoprocessodosDescobrimentosportugueses;umprocessoqueabrangeu umperíododequasedoisséculoseseespalhoupordiversasregiõesdomundo.
1.Herançasecondicionantes
Quesentiaomarinheiroportuguês,independentementedoescalãosocialeculturaldequeéoriginário,ao pôrumpénumaembarcaçãocomvistaaumaviagemoceânica?Oquelhepercorriaamentequandoexperien- ciavaosprimeirosmomentosdeumatãolonga–esempreperigosa–deslocaçãonotempoenoespaço?Para encontrarumarespostaseguraaestasquestões,há,numprimeiromomento,quemergulharnomundodasorigens, mesmolongínquas,deumfenómenoefectivamentemuitocomplexo.Éque,tãoimportantecomoquestionara naturezadomedoqueohomemdomardofimdaIdadeMédiasentia,éperguntarporqueéqueeletinhaesse medo.
Com efeito, é no resultado da demanda das tradições ou equipamentos culturais (antigos e medievais) queestãonabasedestesentirrelativamenteaoviajarnooceanoque,numaprimeirafase,podemosencontrar basessegurasparaumaqualquertentativadeinterpretaçãosólida.Desalientarqueestetemafoiprofundamente exploradoportrêshistoriadoresportugueses:JoséMattoso,LuísKruseLuísAdãodaFonseca2.Paraosseusestudos remetemos,pois,aatençãodetodosaquelesquedesejamaprofundaratemáticadaherançaantigaemedievaldo imaginárioportuguêsdomarnaviragemdaIdadeMédiaparaomundoModerno.
Aaventuraatlânticatemantecedenteslongínquos.AodisseiamarítimadeS.Vicente,porexemplo,encontra oseucentrohistóriconoMediterrâneo,tornando-semanifestaçãoúltimadasviagensdosheróisdaAntiguidade edassuasaventurasmarítimas.Poroutrolado,asnavegaçõespelooceanofazempartedastradiçõesdospovos celtas, que durante a Idade Média serão devidamente cristianizadas ao ponto de constituírem uma referência incontornávelquandosetratadenomearospercursosmarítimos3.
HáumavisãodoAtlânticoanterioraosDescobrimentos–emgrandeparte,oAtlânticomedieval–feita apartirdeumaherançaqueremontaàAntiguidade.EháoAtlânticovividoesentidopelohomemocidental daviragemdaIdadeMédiaparaaIdadeModerna,frutoportantodeumespíritoedeumasensibilidadeque têmalgonovoediferente.Aprimeiraéumadimensãoonírica,nãoverdadeira,nãoracional,queaospoucosvai sendoultrapassadapeloevoluirdasegunda.Ultrapassada,masnuncaapagada.Antestransfiguradaeadaptada; enquadradanonovocenárioemergente.Daquiresultouummodoespecíficoeoriginaldeolhareviverarealidade marítimapelosprotagonistasdagestadosDescobrimentos.
Estamos,pois,aconsideraroAtlânticonumprocessoqueenvolveacoexistênciadeduasdimensõesneste momento de charneira: a primeira do maravilhoso e do fantástico, ou seja, uma visão tendencialmente não experimentaldoAtlântico;asegundabaseadanaexperiênciaenaobservaçãoemprimeiramãodomaralto.Trata- -se,comoLuísAdãodaFonsecarefere,do“imagináriodoAtlântico”edo“Atlânticoimaginado”4.
2Cf.JoséMATTOSO,“Omaradescobrir”,inObrasCompletasJoséMattoso–NaqueleTempo–EnsaiosdeHistóriaMedieval,Lisboa,Círculo
deLeitores,2000,vol.I,pp.219-229;idem,“Oimagináriomarítimomedieval”,inObrasCompletas…cit.,pp.231-244;idem,“Osantepassadosdos navegadores”,inObrasCompletas…cit.,pp.245-264;idem,“Omedodomar”,inLeCaravellePortoghesisulleViedelleIndie:lecronachediscorpetafra realtáeletteratura.AttidellConvegnoInternazionale,Milano,1990,ConsiglioNazionaledelleRicerche/ComissãoNacionalparaasComemorações dos Descobrimentos Portugueses (org.), Roma, Bulzoni, 1993, pp. 265-274; José MATTOSO e Luís KRUS,“A representação do mundo”, inOs DescobrimentosPortugueseseaEuropadoRenascimento–“AVozdaterraansiandopelomar”–AntecedentesdosDescobrimentos,JoséMattoso(coord.), Lisboa,PresidênciadoConselhodeMinistros–ComissariadoparaaXVIIExposiçãoEuropeiadeArte,CiênciaeCultura–ImprensaNacional-Casa daMoeda,1983,pp.238-293;LuísAdãodaFONSECA(ed.),OAtlântico:amemóriadeumOceano.Vol.1–DoImagináriodoAtlânticoaoAtlântico Imaginado,Porto,BancoPortuguêsdoAtlântico,1993;LuísKRUS,“Oimaginárioportuguêseosmedosdomar”,inAdescobertadohomemedomundo, AdautoNovaes(org.),SãoPaulo,MinistériodaCultura–FundaçãoNacionaldeArte–CompanhiadasLetras,1998,pp.95-105;idem,“Primeiras imagensdomar:entreoDesejoeoMedo”,inAarteeomar,[Catálogoda]ExposiçãoorganizadapeloMuseuCalousteGulbenkian,18deMaioa30 deAgostode1998,FernandoAntónioBaptistaPereira,MariaIsabelPereiraCoutinhoeMariaRosaFigueiredo(coord.),Lisboa,FundaçãoCalouste Gulbenkian,1998,pp.29-39.
OsDescobrimentosportuguesesenvolveramumalongasériedeviagensquecomeçaramnoAtlântico,e nasquais,deumaformaoudeoutra,secomprometeuagrandemaioriadanaçãoportuguesa,bemcomoosmais diversossectoreseconómicos,sociais,políticosoureligiosos.Contudo,esteempreendimentocolectivoteveassuas origenseantecedentesnumperíodomaisrecuadoenãoapenasemterritórionacional.
Comefeito,nademandadosantecedentesmedievaisdosDescobrimentos,háquerelacionarosfactoresde ordeminterna5comoselementoseuropeus,maisgerais,masnãomenosimportantes6.Semnuncaperdermosde vistaaidentidadenacionaleopapelsingulardesempenhadopelosportugueses,nãodevemosesquecerquePortugal fazpartedeumtodoquedeveserolhadoemconjunto.Maisainda,emsentidolato,éfundamentalreterqueos Descobrimentossãoumfenómenoeuropeuenãoapenasportuguês,poisdiversosforamospaísesdaCristandade ocidentalquemobilizaramesforçosparacontactarcomomundoasiáticoouafricano.Acuriosidadenãoera,pois, exclusivamenteportuguesa.PodemosafirmarquePortugalfoipioneiroedurantealgumtempoograndeprotagonista dasviagensedoscontactos,masdeformanenhumasepodeadjudicaraexclusividadeaosPortuguesesdofenómeno globaldosDescobrimentos.Noutravertente,diversosestrangeiroshouvequeestiveramenvolvidosnosprojectos lusos,sobretudoitalianos,catalães,castelhanosemuçulmanos,emparticularnodomíniotécnico7.
AperspectivacomqueosPortuguesesencaramomundoqueosrodeiae,sobretudo,onovoquedesconheciam eagoravislumbrameexperimentaméaperspectivadoqueconhecemeesseconhecidoéomundocristãocom tudoaquiloqueocaracteriza:ahierarquiaeaorganizaçãopolítica,socialereligiosa,oscostumesesuperstições associados,aspráticasjurídicaselitúrgicas.Enfim,tudooquedistingueaCristandadeocidental.
AposturafortementecentralizadadaIgrejadeRomatorna,porumlado,eapesardecíclicosmomentos detensãoreligiosaeespiritualvividosnaCristandade,aidentidadereligiosaumdadoinquestionávele,poroutro lado,inequívocoosentimentodepertençaaumamesmacomunidadedevalores.
Portugal está, pois, invariavelmente ligado à Europa de que faz parte, nomeadamente a Castela, Itália, FrançaeInglaterra.Nãosurpreende,porisso,quepartilhedeumaidênticaconcepçãodomundo,bemcomodos seusreceioseansiedadesrelativamenteaonovoeaodesconhecido.
No entanto, como todas as nações coevas, Portugal tem traços únicos e directamente associados à especificidadedasuasituaçãogeográfica,socialecultural.Asuaidentidadecultural,sobretudonoSul,éneste períodoextremamentesingulardevidoaocontactopróximocomacivilizaçãomuçulmana.Especialmentenoque serefereàrelaçãocomomar.
ComorefereJoséMattoso,“éjustamenteolugarpeculiarquePortugalocupanoconjuntoeuropeuqueo predispõe,maisdoquetodososoutrospaíseseuropeus,parasereleadesencadearaaventuradosDescobrimentos”8. Aprópriasituaçãodefronteira,ouseja,ofactodePortugalestarlocalizadonolimiteocidentaldaEuropa,onde aterraacabaeomarcomeça,comodiriaoPoeta,garante-lheumavocaçãonaturalparaademandanoexterior desconhecido. Além disso, este carácter de extremidade, de ponta e de afastamento relativamente ao centro condicionadeimediatoumatendênciasupranacional9.
2.OAtlânticomagrebino
Comoreferimos,asCanáriaseocaboBojadorconstituemosprimeirosgrandesmarcosdaconquistado Atlânticopelosnavegadoresportugueses.Eambososcenáriosserevestemdeumafortepresençadomaravilhoso noquedizrespeitoaoimaginário.
5AformaçãodeumafrotamarítimadesdeiníciosdeDuzentos,odesenvolvimentodocomércioportuguêsnoAtlânticoNorte,ascarênciasde
recursosemsolonacionaleconsequentesdificuldadesgeraisdesubsistência,oespíritodecruzada,entreoutros…
6AsligaçõeshistóricasdoOcidenteeuropeucomoutrascivilizações,resultantenomeadamentedascruzadas,doestabelecimentodarededo
comérciomediterrânicopormercadoresitalianos,catalãesouandaluzes,dasembaixadasenviadasaoOrienteedasviagensdemissionáriosemercadores também ao Oriente. Por outro lado, os diversos contactos verificados entre os europeus e o elemento marítimo, através da pesca, da pirataria, do comércio,dasembaixadasoudaguerra,pelomenos,desdeoséculoXIII,equerevelamquenãopodeexistirumafronteirarígidaebemdefinidaentre omundomedievaleaeramoderna.
7Cf.JoséMATTOSO,“Omaradescobrir”…cit.
8Ibidem,p.221.
SendooAtlânticodoMagrebeoprimeiroobstáculoaultrapassarnoperíododenavegaçãoprogramada queconstituemosDescobrimentosportugueses(asactividadespiscatóriaseasexpediçõescomerciaisaoNorteda Europanãoseenquadramaqui),estãoaquibempresentestodososelementosdecaráctermítico-lendárioherdados daAntiguidadeedaIdadeMédia.Aindaémuitocedoparaumalibertaçãoseguradasamarrasdoimaginárioque levouséculosaenraizar-se.Certamenteficoubemconsolidadoenãoseriadeumdiaparaooutroquereceios secularesiriamdesaparecer,pormuitopalpávelquefosseanovaexperiênciadoreal.
A experiência da realidade do mar alto e a consequente observação directa dos seus efeitos tiveram no Atlânticomagrebinooseuinício.Emtermosmentaisestefoi,pois,omomentoeoespaçoporexcelênciadafusão entreodomíniodatradiçãoeodaexperiênciamoderna,conformeaosnovostemposrenascentistas.
Podemos sempre dizer que os Portugueses já circulavam no mar. Sem dúvida; mas numa navegação essencialmentedecabotagem,portantonuncalongedacosta.Averdadeiraexperiênciadomaralto,daintempérie oceânica,começounesteperíodo.Avivênciadastempestades,dasondasoceânicasedosnaufrágiosemalto-mar, bemcomodohorizonteazuloucinzento-escuroaperderdevistaemtodasasdirecçõeseraalgoquedesconheciam. Easombramíticadafinisterraestavasemprepresente.Anoitenooceanoeraalgoqueestavaagoraacomeçara serrealmentevivenciadaesentida.Poroutraspalavras,começavamamaterializar-seeaconcretizar-seosantigos receiosrelativamenteaomarprofundo.
Omedododesconhecidoqueestálonge,tãoprópriodamentalidademedieval,dáagoralugaràterrível ansiedadeeangústiadoexperimentadoaquieagora.Istoapesardetodoodesenvolvimentotécnicoqueestavaa aconteceredacuriosidadeevontade,genuínas,deirmaisalémdesvendaroincógnito.Doirserfinalmentemais fortedoqueoficar.Dasmotivaçõesseremtãopreponderantesquetudopermitiamexperimentareenfrentar, mesmoosreceiosmaisprofundoserecônditos.
Neste processo novo – diversificado, complexo e violento em termos não apenas físicos, mas também mentais e emocionais –, esses temores antigos não desapareceram simplesmente. Apesar de derrotados pelo confrontoquotidianocomoreal,nuncaforamapagados.Falamosdeumsubstratomentalquenãoapenasresistiu epermaneceucomoemváriosaspectossetransfigurouemalgonovo,sempredoforodacrençaedoimaginário religioso.
Oestabelecimentoeproliferaçãoderituaispropiciatóriosecrenças(emterraeabordo)comvistaalegitimar espiritualmenteessanovapráticamarítimacomprovamatransfiguraçãodosantigosdemóniosemnovosreceios (projecçõeseavataresdosterroresancestrais).Ditodeoutromodo,comprovamopermanecerdomedodooceano, agora transformado e “rejuvenescido” pelo duro contacto directo com a realidade. Exemplos maiores, numa sociedadeaindaesempreprofundamenteancoradanosagrado,sãoosex-votoseasdevoçõesmarinheirasasantos protectores.
Trata-sedepráticasdoâmbitodosagradoquetinhamporprincipalobjectivocristianizaromar,puxando-o assimparaa“segurança”sacradomundocristão,equereflectemonovoposicionamentoeclesiásticoepopular faceaomar.Destaforma,neutralizava-seacarganegativaemaléficadooceanoegarantia-seprotecçãodivinaaos praticantesdasrotasoceânicas.
Ooceanoimprevistoesusceptíveldemudançassúbitaseperigosasabria-se,pois,ànavegaçãoquotidiana. Ejuntamentecomasrotasfísicas,reais,abriam-seoscaminhosmentaisemfavordaimensidãooceânica.
2.1.)AsCanárias:entreorealeaimaginação
OimagináriodoAtlânticorevela-nosumoceano“horizontal”povoadodeilhas.Sãoelasque,imaginárias ou reais, povoam esse espaço sem limites, transformando-o em espaço navegável, apetecível. “É que ninguém navegaparapartealguma”10.
EntreoslugaresfeéricosdoimagináriomedievalrelativamenteaooceanoAtlânticomerecemespecialatenção asIlhasAfortunadaseadeS.Brandão,ambosostópicosrelacionadoscomoarquipélago,real,dasCanárias.
As primeiras, segundo Jean Delumeau, remetem para uma tradição clássica, baseada nos textos de Homero(séc.IXa.C.),deHesíodo(séc.VIIIa.C.)edePlutarco(c.45-c.120),quesituava,paraalémdoimenso Atlas marroquino, ilhas de jardins encantadores, de clima temperado, onde os homens não precisavam de trabalhar e atingiam uma notável longevidade. Mais tarde, já no período cristão, Isidoro de Sevilha (c.560- -636)recuperaestacrençadando-lheumlugarnasuageografiadomundo,quefoideterminanteparaacultura ocidental11.
JáaligaçãodailhadeS.BrandãoàsCanárias,noquadrodotemadasAfortunadas,constituioexemplo porexcelênciadapresençadomaravilhosonoimagináriodonavegadoreuropeudaviragemdaIdadeMédiapara aépocamoderna.Elaéosímbolomaiordaausênciadefronteirasprecisasentreficçãoerealidadenesteperíodo, estadodirectamenteherdeirodosanterioresséculosmedievais.
Era,pois,profundaeintensaamitologiainsularrelacionadacomoAtlânticodoMagrebenofinaldaIdade Média.Lugaresespeciaisdaimaginaçãodoseuropeus,desdecedo,desdeosGregos,asilhasforamsempreespaços deconstruçãodeutopias.Quandoem1492ColombochegouàsuaÍndia,julgouencontrarnasilhasdoNovo MundoosvelhosmitosdaAntiguidadeClássica,provadefinitivadeterchegadoaoseudestino.
AidentificaçãodeS.BrandãocomumadasilhasCanárias,aoitavaparasermaispreciso(quedevidoàssuas característicasecomportamentosinsólitos,comooapareceroudesapareceratrásdeumaespessaneblina,assumiu diversasdesignaçõescomoAInacessível,AEncoberta,APerdidaouAEncantada),surgiránosúltimosséculosda Idade Média e manter-se-á até muito tarde nas representações cartográficas e textuais das ilhas Canárias. Esta uniãodomitodeS.BrandãoaomitoclássicodasIlhasAfortunadascontribuiuparareforçaraimagemquedesde aAntiguidadesetinhadoarquipélago.
O peso deste elemento do maravilhoso no imaginário de então é tal que diversas foram as expedições realizadasparaencontraraoitavailhaCanária.Emesmoapósomomentodoconhecimentorealedirectodo arquipélago,cujaexistênciajátinhasidoidentificadahámuito,nemnosdocumentosoficiaisomesmoperdeasua imagemdeespaçomítico:fala-sesemprederedescobrimentoeassuasilhassãochamadasdeencontradas.
Paraseteraplenanoçãodasimplicaçõesreaisdestaidentificaçãodoimaginário,veja-seque,em10de Novembrode1475,oreiD.AfonsoVatribuiaFernãoTelesasilhasperdidas,entreasquais“asSeteCidades ou algumas outras ilhas povoadas que ao presente não são navegadas nem achadas nem tratadas por meus naturais”12.
Poroutrolado,alendadeS.BrandãoestevecertamentenabasedasexpectativasdeColombo,pois,como refereoseufilho,“pareciaaoAlmiranteque,sealgumacoisadeverdadenoquelhecontavaAntónioLemequanto atervistoalgumailha,elanãopodiaseroutrasenãoalgumadasjáreferidas,comosepresumequefosseaquela quechamamdeS.Brandão,ondesecontateremsidovistasmuitasmaravilhas”13.
Tida como testemunho de uma viagem real – donde cada ilha referenciada tinha necessariamente um correspondentenageografiadomundo–,aNavigatioSanctiBrendanimotivouelaprópriaumsem-númerode expedições,especialmenteapartirdasCanárias.AaventuradomongequeviveunoséculoVacompanhaassim ossonhosdehomensdotempodosdescobrimentosmarítimos,“emnomedeumacuriosidadequesefundecom
10LuísAdãodaFONSECA(ed.),OAtlântico:amemóriadeumOceano…cit.,p.23.
11Cf.JeanDELUMEAU,UmaHistóriadoParaíso–OJardimdasDelícias,Lisboa,Terramar,1994,p.121.
ogostopelomaravilhosoenaqualumacertarelaçãoreligiosa,deconfiançanaProvidênciadivina,temaparte necessáriaeútilparasuperarosmedosdodesconhecidoearrostarosperigosinevitáveisdomarlargo”14.
Oquedevemosreterdestemitoé,pois,asuatranscendênciaeoseusignificadosimbólico:anarraçãodopériplo domongeirlandêsatéaoParaísoacabouporreforçaraimagemquesetinhadasCanáriasdesdeaAntiguidade.Com essaidentificação,omitodailhadesaparecidaadquireumarealidadeauto-suficiente,umarealidadeimaginária masnemporissomenosreal–porqueailhadeS.Brandãoencerraemsimesmaascaracterísticasdomisteriosoe dooculto,dosurpreendenteedoinexplicável,agrandiosidadedofabuloso,amisturadomitocomoquotidiano. Desdeoinício,aduplafacetadeficçãoerealidadeconverteuailhadeS.Brandão(e,porconsequência,asCanárias nafiguradasuaoitavailha)numespaçosimbólicodoAtlântico,numapossibilidadesempreabertadeencontrar eaproximardolocusamoenus,ooutromundoalternativoaoreal–umarealidadenumaalcançadaeeternamente procuradaouumafantasianuncaconcretizada.Nelasecongrega,pois,todaaideiadesonho,fábula,felicidade, harmonia,calma,purezaelibertação,queestánabase,afinal,detodasasutopiasfelizes.
Por outro lado, o relato da viagem de S. Brandão reúne quase todos os “ingredientes” do maravilhoso marítimomedieval:aviagem,aprocuradoOutroMundo,omonstruosoeofantástico,entreoutros.Sendoóbvio quecadaumdelespossuisignificadosimbólicopróprio,oimportante,noentanto,équeésempreoconjuntoque maisressalta.EcomoescreveMirceaEliade,“umsímbolorevelasempre,qualquerquesejaocontexto,aunidade fundamentaldeváriaszonasdoreal”15.
Apesardeestarmosnosalvoresdamodernidade,maispertonãonospoderíamosencontrardamirabilia medieval,entendidoesteconceitonosentidoquelheatribuiuJacquesLeGoff,ouseja,comaacepçãoquetinha overbolatinomirari,comoadmiração,surpresa,gostopelonovoeoextraordinário,acepçãodoinverosímile do inexplicável, acepção dos elementos fantásticos, próprios da cultura monástica da época que reinterpretava deformacristãosmitosclássicos,árabeseceltas(ailhadaFelicidade,oparaísodospássaros,aconcepçãoda embarcaçãocomotransporteparaooutromundo,ailha-baleia,omitodaIdadedeOurocomassuasfontesde eternajuventude,entreoutros)16.
Emsuma,otextodeS.Brandãofoilidoeinterpretadocomoumrelatoverídicoatéaoparaísoterreal,uma viagematéàterraprometidaque,poucoapouco,sefoiidentificandocomasCanáriasequeveiojuntar-seaum
continuumculturaleaumaimagemmíticaquedesdeaépocaantigasituavanoarquipélagoasutopiasclássicasdas
IlhasdosBemAventuradosdeHesíodo,dosCamposElíseosdaOdisseia,doJardimdasHespéridesoudaAtlântidade Platão,e,claroestá,dasIlhasAfortunadas.
ÀépocadoiníciodasviagensregularesàsCanárias,estearquipélagoconstituíaolimitesudoestedoAtlântico conhecido.Eésabidoqueosgeógrafosmedievaislocalizavamasilhasoceânicasquasesempreemregiões-limite dooceano.Oseucaráctermaravilhoso,bemcomodacomponenteinsólitadetodososseresquenelahabitavam, resultavaemboapartedestadistância.Estaé,aliás,precisamenteacausadosmirabiliaencontradosporS.Brandão duranteasuagestamarítimapelasilhasdooceanoAtlântico.
IntegradanomitodasilhasAfortunadasdaAntiguidade,alendadeS.Brandãosurgeligadaaosonhodeum mundoderiqueza,bem-aventurança,felicidadeelongevidadeinfinitas.JáafiguradeS.Brandãoeotextoquea imortalizaocupamumlugarmuitoespecialnoimagináriomedieval.Sejapelomovimentodeiniciaçãoaomistério divinoqueomongeeasuaviagemprotagonizam,sejapelofactodeconfrontarohomemmedievalcomoespaço dograndemaroceano,esselugardeerrânciaporexcelência,aomesmotempogigantescodepositáriodosmedose receiosmedievospeloseucarácterdeelementoincerto,mutável,misterioso,desconhecido,plenodemonstrose deperigos17.
ComorefereJacquesLeGoff,“osimbolismocristãorodeiaaindaasilhasdeumaauréolamísticaqueassim fazdelasaimagemdossantosqueconservamintactososeutesourodevirtudes,emvãobatidosportodosos
14Ibidem,pp.63-64.
15MirceaELIADE,ImagenseSímbolos,SãoPaulo,MartinsFontesEditores,2002,p.123.
16Cf.DoloresCORBELLA,“ElmitodeSanBorondón:entrelarealidadeylafábula”,inLibrosdeviaje.ActasdelasJornadassobre‘Loslibros
deviajeenelmundorománico’,celebradasenMurciadel27al30denoviembrede1995,FernandoCarmonaFernándezyAntoniaMartínezPérez(ed.), Murcia,UniversidaddeMurcia,1996,pp.127-135.
ladospelasvagasdastentações”18.Estasilhassãoigualmentecenáriodeseres(homenseanimais)fantásticose excessivos,cujoconhecimentopermitefugiràmedíocrerealidadedafaunadaEuropaOcidental.Permite,pois,um reencontrara“inesgotávelimaginaçãocriadoradanaturezaedeDeus”19.Nestecontexto,osonhodeabundância edeextravagância,dequeLeGofffalarelativamenteaoÍndico,podeperfeitamenteadequar-seaoAtlânticonesta faseinicialdasuadescobertaeexploração.“Sonhoqueseexpandenavisãodeummundodavidadiferente,onde ostabussãodestruídosousubstituídosporoutros,ondeaextravagânciasegregaumaimpressãodelibertação, deliberdade.[…]Maisparaláainda,éosonhododesconhecido,doinfinito,domedocósmico.”20Defacto,o Atlânticomagrebino,emparticularnocontextodasCanáriasedadobragemdocaboBojador,apresenta-secomo aportaparaomareinfinitum,conceitoqueLeGoffaplicaaoÍndico21.
TambémLuísAdãodaFonsecaassinalaestacorrespondência:“[…]apesardaincomunicabilidadefísica que a geografia da época — de inspiração ptolomaica — defendia, ao nível do imaginário, deu-se constante projecçãodesdeoÍndicoparaoAtlântico[…].AssimoÍndico,receptáculodetodooimagináriooceânicooriental, transforma-sesimultaneamenteemhorizontedoimagináriooceânicoocidental.”22
Traduzidaparaváriaslínguasromancesecontandocomumlargonúmerodemanuscritosparaaversãomais difundida,aNavigatioSanctiBrendaniéumdostextosmaisdivulgadosnaIdadeMédia,oquedizbemdasua amplacirculaçãoefortuna.OromancehagiográficoquenarraademandadeS.Brandãoconstitui,emsíntese,uma dasfontesquealimentarampormaistempooimagináriodoAtlântico,emparticularomagrebino.
NoLivrodoConhecimento23surgemduasreferências(numtotaldetrêsocorrências)àsCanáriasnoâmbito damirabilia.Aprimeirarefere-sedirectamenteàsIlhasPerdidas,quandooanónimoautorafirma“efuyaberlas ysllasperdidasquellamaTolomeolasyslasdelaCaridat”24.Asegundareferênciaenvolveaevocaçãodomitodos seresmonstruososhíbridosdenominadossciapodesoumonocoli,igualmentesituadosnestedocumentonasIlhas Perdidas,ouseja,noarquipélagodasCanárias:“Etodasestasyslas[islasperdidas]nonaypobladasdegentesmas delastres,quesonCanariaetLançaroteetForteVentura.Etlasgentesqueendemoramsonatalescommoestas.”25 Comoobjectivodemelhoresclareceroconteúdodotextoetambémcomoreforçodaimportânciadamirabilia emsi,estareferênciavemacompanhadaderepresentaçãoiconográfica.
ComestareferênciaaomaravilhosoAtlântico,oautordoLivrodoConhecimentooperaatransferênciade umdosmitosparadigmáticosdarepresentaçãodocorpodoshabitantesdosconfinsdomundodoseuespaço tradicional,aÍndia,paranovaselongínquasparagens,igualmentepoucoexploradas,comoasCanárias.Isidoro deSevilhajáhavialocalizadoossciapodesoumonocoli(homenscomapenasumpé,cujadimensãodesmesurada lhesdásombra)naEtiópia26.Contudo,comoLivrodoConhecimento,é,defacto,aprimeiravezqueaparecemnas ilhasCanárias.
18JacquesLEGOFF,“OOcidentemedievaleooceanoÍndico:umhorizonteonírico”,inParaumNovoConceitodeIdadeMédia–Tempo,
TrabalhoeCulturanoOcidente,Lisboa,EditorialEstampa,1993,p.274.
19Ibidem,p.275. 20Ibidem,p.276. 21Cf.ibidem.
22LuísAdãodaFONSECA(ed.),OAtlântico:amemóriadeumOceano…cit.,p.17.
23Preciosoregistohistórico,sejaemtermosartísticoseheráldicos,sejaaonívelliterárioegeográfico,oLivrodoConhecimentoéumdostextos
ibéricosmaissignificativosaoníveldosrelatosdeviagenstardiosdaIdadeMédia.DocumentodatadodefinaisdoséculoXIV,maisespecificamente entre1390e,omaistardar,1402,dataemqueoscapelãesdeBethencourtpartiramparaasCanáriaslevandoconsigoumexemplardaobra,oLivrodo Conhecimentoconstituiumarelaçãoapresentadacomoverídica,naqualoautordescreve,naprimeirapessoa,assuasdeslocaçõesporvastaselongínquas regiões,que,aofimeaocabo,abarcamtodoomundoconhecidoàépoca(finaisdoséculoXIVeprimeirosanosdacentúriaseguinte).Naessência, estamosperanteumasíntesehistórico-geográficaqueexpressaomodocomoapenínsulaolhavaomundo,fazendocomquenãofossejáaBíbliaadar sentidoaoespaço,masaviagemetudoaquiloquecomelaserelaciona,sejaoencontrocomummeioestranho,sejaainformaçãohistórica,política ougeográficadosterritóriospercorridos.Poroutrolado,oLivrodoConhecimentoéumtextodevanguardaqueantevêomodernismo,poiscontém umavertenteutilitária(constituiumaperfeitarelaçãoentrecartografiaeconhecimentosletrados)edáaveromundocomoumconjuntodepoderes, claramenterepartidos,enãodecomunidades.Éumavisãonobiliárquica.Nãoháterradeninguém.Tudotemdono.
24Librodelconosçimientodetodoslosrregnosettierrasetseñoriosquesonporelmundo,etdelasseñalesetarmasquehan,MaríaJesúsLacarra,María
delCarmenLacarraDucayyAlbertoMontaner(ed.),ed.facsimilardelManuscritoZ(Múnich,BayerischeStaatsbibliothek,Cod.Hisp.150),Zaragoza, Institución“FernandoElCatólico”(CSIC),DiputacióndeZaragoza,1999,p.166.
25Idem,p.167.
Tradicionalmentetidocomohabitantedatórridaregiãodosantípodas,osciapodeérepresentadoemobras dearteeuropeiasdesdeaAltaIdadeMédia,tantonaPenínsulaIbéricacomoparaládosPirenéus.É,semdúvida, umdosmaisrecordadosentreosseresfantásticos.Desdeosmapamundiàscatedraisoumosteiros,passandopelos maisdiversoscódices,asuapresençaéquaseconstantenasrepresentaçõesmedievaisdoimaginário.
Plínio,oVelho(23-79),nasuaHistóriaNatural ,atribuiaCtésiasadescriçãodeumaraçadehomensdeno-minadosmonocoli devido ao facto de apenas possuírem uma perna. São seres dotados de uma surpreendente agilidadeparadarsaltos.Sãotambémchamadossciapodes,porquequandoestámaiscalorsedeitamdecostasno chãoparaseprotegeremcomasombraprovocadapeloseuenormepé.
TambémSantoAgostinho(354-430),naCidadedeDeus,faladeumpovocujoselementosestãodotados apenasdeumapernaparadoispés.Admirava-oaextraordináriarapidezcomquesedeslocavam,tantomaisque nãodobravamapartedapernapordetrásdojoelho27.
NasEtimologias,IsidorodeSevilhalocaliza-osnaEtiópia:“DizenqueenEtiopíaexisteelpueblodelos
esciopodas,dotadosdeextraordinariaspiernasydevelocidadeextrema.Losgriegoslosdenominandeskiópodai porqueduranteelverano,tumbadosdeespaldassobrelatierra,sedansombraconlaenormemagnituddesus pies.”28
A presença deste elemento do maravilhoso nas Canárias constitui um importante indício de como, intrinsecamenteassociadaaoconceitodeespaço,arepresentaçãodocorponoperíodomedievoobedeceuauma lógicadecentro-periferia:àmedidaquenosafastamosdaCristandadeocidental—istoé,domundoconhecido, docentroordenador—,avisãodocorpoganhaemfantasiaeperdeemrealidade.Passaentãoamovimentar-se nodomíniodoimaginário,encerrandoosreceioseespelhandoosdelíriosmaisprofundosdohomemeuropeu. Poroutraspalavras,ocorpodoshabitantesdasregiõesperiféricas,ouseja,oantimundo,oespaçodocaoseda desordem,passaaintegrarouniversodemirabilia29.
Ocorpodohomemdosconfinsdomundojánãoéocorporeal;éocorpometamorfoseado,“estranho”, impelidoparaouniversodomaravilhoso,masque,noentanto,ésempreverosímileatésedutor,pois,emúltima análise,definearelaçãodoeuropeucomomundoquecadavezmaispretendeexplorar.
Nesteponto,éfundamentalrecordarquenaNavigatioSanctiBrendanienoLivrodoConhecimento,ede umaformageral,atrevemo-nosadizer,emmuitadaproduçãoculturalescritadaerudiçãomedieval,nãoexiste umafronteirademarcadaentregeografia,história,lendaemito.Fábulaefactocaminhamdemãosdadas.Como salientaMirceaEliade,“‘Laspsicologíasdelasprofundidades’hanreconocidoaladimensióndeloimaginario elvalordeunadimensiónvital,deimportanciaprimordialparaelserhumanoensutotalidad.Laexperiencia imaginaria es constitutiva del hombre, al mismo nivel que la experiencia diurna y las actividades prácticas.”30 Emsuma,naIdadeMédiaestescamposhojetidoscomodiversosnãoconstituemumaantinomiatotal,antesse estabeleceentreelesumarelaçãodecomplementaridade,reconhecendo-seosestreitoslaçosqueasunem.
Aprovadavalidadedestapremissaresideprecisamentenasexpediçõesefectuadasembuscadaoitavailha CanáriaenautilizaçãodasinformaçõescontidasnoLivrodoConhecimentopelosconquistadoresdasCanárias, queoconsideravamumafonterigorosaefidedigna.Defacto,estedocumentofoieleitoporJoãoVerrierePedro Bontier,capelãoecronistadeJoãoBethencourt,parafacilitaraoseusenhornotíciassobreascostasdocaboBojador, queestepensavaincorporarnosseusdomínioscercadoanode1404.Poroutrolado,devemosigualmenteter emcontaahipóteselevantadaporPeterRussell31emrelaçãoàeventualutilizaçãodoLivrodoConhecimentopelo InfanteD.Henriquenapreparaçãodasexpediçõesaolitoralocidentalafricano.Afinal,oinverosímildoitinerário queestruturaaobranãoimpediuqueamesmafosseescolhidaparaguiarumaexploraçãocomaenvergadura
27Ibidem. 28Ibidem,p.36.
29Cf.MariaAdelinaAMORIM,“Viagememirabilia:monstros,espantoseprodígios”,inCondicionantesCulturaisdaLiteraturadeViagens
–EstudoseBibliografias,FernandoCristóvão(coord.),Almedina,Coimbra,2002,pp.126-181.
30CitadoporIgnacioMALAXECHEVERRÍA(ed.),Bestiariomedieval,Madrid,Siruela,1999,p.8.
31Cf.PeterE.RUSSEL,“AQuestTooFar:HenrytheNavigatorandPresterJohn”,inTheMedievalMind:HispanicStudiesinHonourofAlan
dadeBethencourt.NoCapítuloVIIdaCrónicadaGuiné32,éfacilmenteidentificávelapresençadoLivrodo
ConhecimentoquandosenoticiaodesejodoInfanteD.HenriquedeentraremcontactocomoPresteJoão,jáque seafirmaserpossível,atravésdafozdoriodoOuro,enquantobraçodoNilo,umtalobjectivo,ouseja,apartirda costaocidentalafricanaatingiraÁfricaOrientale,maisespecificamente,oreinodoPresteJoão.Possibilidadeem relaçãoàqualoLivrodoConhecimentoébastanteclaroepositivo.
DanotávelrecepçãodanarrativadeS.Brandãodãoboaprovaos120manuscritosdotextolatino,assim comoasinúmerasversõesemromancequeseconhecem.Aobranãofoi,pois,lidanaIdadeMédiacomouma simpleshagiografiaoucomoumaperegrinação.S.Brandãoconverteu-senumheróiprotagonistadeumaaventura quedeviaserimitada.OtextodeS.Brandãodeixaassimdeserumitinerárioliterário,comoodeUlissesoude Eneias,paraseconverternumverdadeirorelatodeviagens,ouseja,comoumtextonoqualéaviagemeoque estaimplica(oencontrocomummeioestranho,ainformaçãohistórica,políticaougeográficadosterritórios percorridos,aaventuraemsi,entreoutrosaspectos)oquedáosentidoúltimoànarrativa33.
GomesEanesdeZurara,noCapítuloVIIdasuaCrónicadaGuiné,aofalarasCanáriasnãodeixadereferir que“beméquealgunsdisseramquepassaraporaíSãoBrandão;outrosdiziamqueforamláduasgalésequenunca maistornaram”34.Estaúltimaalusãodocronistarefere-seclaramenteàmalogradaexpediçãodosVivaldi.
Como Aires Nascimento salienta: “A viagem brandaniana contribui de forma decisiva para alimentar o imagináriomedievalconfrontadocomoreconhecimentodograndeespaçodomaroceanoqueohomemmedieval vaiaprendendoapercorrer,seduzidopelosonhodeencontrarosmirabiliadeummundodenovidade,reservado por Deus aos seus eleitos, […] não obstante o temor que o próprio elemento líquido suscita. […] O oceano abre-seoracomoevasãodeumquotidianoredutororacomopossibilidadedeencontraranovidade.Aosterrores do desconhecido o homem medieval contrapõe, por outro lado, a sua confiança numa Providência, que não desamparaquemnelaconfia,easuacapacidadedeaceitaraexperiênciadeoutrosqueoprecederamelheservem deguiaoubemassimasuamilitânciacontraomalqueessesterroresrepresentam.”35
É,comopodemosconcluir,inegávelarepercussãoqueesteslivrosdeviagenstiveramnahistóriadascivilizações queosviramnascereaformanotávelcomocontribuíramparaaampliaçãodohorizontedeconhecimentosda época.
2.2.)OBojador:oprimeirograndeobstáculo
Antesdeserdescobertoeexperimentado,oAtlânticodistantefoiimaginado.Eantesdeserconhecido,foi lido,pensado,projectadocomoumespaçosituadoparaalém,comolugardodesconhecidoe,porisso,receptáculo deumimaginárioedeummaravilhososingulares.
Osmeioscultosmedievais,ouseja,clericais–eque,porconsequência,maiorinfluênciativeramnosrestantes grupossociais–,identificamaEuropaOcidentalcomaCristandade.Destaforma,aEuropacristãéidentificada comoomundodaOrdem,dasegurançaedoconhecido.OOriente,porsuavez,éidentificadocomolugardas origensmíticas,aopassoqueÁfricasurgeinequivocamentecomooterritóriodosinimigosdaIgrejaedafécristã. Ooceanoéoelementoquerodeiatudoisto.Éoantimundo,oespaçodocaosondehabitammonstroshediondos. Oespaçooceânicoé,pois,concebidocomoolugardanaturezadesencadeadaeameaçadora,ondeohomemnãose deveaventurarsobpenadeperigosextremose,sobretudo,deperderavida.Apenasolitoralénavegáveleoferece segurança36.
Naculturaantigaaáguaocupaumpapelcentral,aopassoquenaculturamedievalelaé“devidamente colocada”naperiferia(inclusiveoMediterrâneoquepassaaserconotadocomoperigodaameaçaislâmica).O maréperiferia,limiteefronteiraúltimadomundoconhecidoeseguro.Daíqueaherançamedieval(muçulmana ecristã)empoucoestimuleaaventuranomisteriosomaroceano.
32Cf.GomesEanesdeZURARA,CrónicadaGuiné,Lisboa,Civilização,1998. 33Cf.DoloresCORBELLA,“ElmitodeSanBorondón…”cit.
34Cf.GomesEanesdeZURARA,CrónicadaGuiné,cit.,p.47.
OimagináriodohomemdofimdaIdadeMédiaocidentalrelativamenteaooceanoAtlânticoestava,desta forma,preenchidoporumvastoconjuntodelendasesuperstições,sempreenvolvidasdemistério.Umpesado equipamentomitológicoquecondicionavatodasasacçõesperanteodesconhecido.
Noutravertente,apesardeterpercorridoinúmerasvezesasregiõesatlânticascosteirasemitineráriosvários quepermitiramdesenvolver,denorteasul,umaprimeiraexperiênciamarítima,ofactoéquenomomentode seaventurarememrotasdealto-marosmarinheirosmedievos(àexcepçãodosescandinavos)nãopossuíamuma experiênciaoceânicasuficientementesólidaquelhespermitissetomarumaatitudefundamentadaemrelaçãoàs novidades(edificuldades)quecomeçavamaselhesapresentar37.
Graçasaumcontactocontínuocomacruezadarealidade,osPortuguesesforamosprimeiros38atentar rompercomestequadromental,empurrandopoucoapoucoecadavezparamaislongeosprimeirosmedos; nuncaconseguindo,contudo,fazerquedesapareçamporcompleto(talsóacontecerábemmaistarde).Oprocesso dedobragemdocaboBojadorfoiumdestesprimeirosmomentosarquetípicosdeconvivênciadirectaerealcom umadasmaioresfontesdeterrordaIdadeMédia.E,nasequência,foiigualmenteumdosprimeirosgrandes movimentosdetransposiçãodessemedoestruturaldooceanomaisparadiante,nestecasoespecíficoparaocabo daBoaEsperança(entãodasTormentas).
Terror da navegação, dizia-se marcar a derradeira fronteira da terra habitável. Com um litoral sempre inabordável,oBojadorconstituíaazonalimitedomedoedaantigafamadaimpossibilidadedenavegar.Aqui congregavam-seosmedosmarítimosbaseadosemexperiênciaspassadas,nasquaisamorte,porvezes,erauma constante. Medos que ganhavam uma proporção desmesurada no momento da tempestade. Naturalmente, o marinheiro de Quatrocentos não podia deixar de espelhar nas suas acções quotidianas a bordo o peso de tal imaginário. Afinal, conduzindo ao distante e desconhecido, o mar desembocava em regiões onde tudo era possíveleondeoestranho,muitasvezesassustador,imperava.DaíoreceiodastripulaçõeslusasquandooInfante D.HenriquelhespediaparadobraremocaboBojador.OuçamosavisualdescriçãodocronistaZurara:“‘—Como passaremos—deziameles—ostermosqueposeramnossospadres,ouqueproveitopodetrazeraoInfantea perdiçãodenossasalmasjuntamentecomoscorpos,queconhecidamenteseremoshomicidasdenósmesmos? PorventuranãoforamemEspanhaoutrospríncipesnemsenhorestãocubiçososdestasabedoriacomooInfante nossosenhor?Porcerto,nãoédepresumirqueentretantosetãonobresequetãograndesetãoaltosfeitosfizeram porhonradesuamemória,nãoforaalgumquesedistonãoantremetera.Massendomanifestosdoperigoefora daesperançadahonranemproveito,cessaramdeofazer’.—‘Istoéclaro—deziamosmareantes—quedespois desteCabonãohaaígentenempovoaçãoalguma;aterranãoémenosareosaqueosdesertosdeLíbia,onde nãohaagua,nemarvore,nemhervaverde;eomarétãobaixo,queaumaléguadeterranãohadefundomais queumabraça.Ascorrentessãotamanhas,quenavioquelápasse,jamaisnuncapoderátornar.Eportantoos nossosantecessoresnuncaseantremeteramdeopassar.Eporcertonãofoiaelesoseuconhecimentodepequena escuridão,quandoonãosouberamassentarnascartasporqueseregemtodolosmaresporondegentespodem navegar.Oraqualpensaisquehaviadeserocapitãodonavioaqueposessemsemelhantesduvidasdiante,emais porhomensaqueerarazãodedarféeautoridadeemtaeslugaresqueousassedetomartalatrevimento,sobtão certaesperançademortecomolheanteosolhosapresentavam?’”39
Propósitoque,dopontodevistatécnico,nãoerasequeralgomuitodifícil.Tratava-sesobretudodeuma resistênciamental.Easuaforçaeratalqueforamnecessários12anosdecontínuastentativasatéque,em1434, GilEanesconseguelevaramissãoabomtermo:“Ótu,virgemTemis,–dizoautor–queentreasnoveMusas domonteParnasohaviasespecialprerrogativadeescoldrinharossegredosdacovadeApoio!Euduvidoseoteu temoreratãograndedepoerosteuspéssobreaquelasagradamesaondeasrevelaçõesdivinaestedavamtrabalho
37Cf.JoséManuelCORREIA,“MedosevisõesdosmareantesnapassagemdoCabodaBoaEsperança”inCongressoInternacionalBartolomeu
Dias e a Sua Época. Actas, vol. IV – Sociedade, cultura e mentalidades na época do Cancioneiro Geral,Porto, Universidade do Porto/CNCD, 1989, pp.215-224.
38Umachamadadeatençãoaquiparaositalianos,que,comojádissemos,participaramemlargonúmeronasnavegaçõeslusas;paraalém,claro
está,daconhecidaempresadosirmãosVivaldi.
poucomenosdemorte,quantoeraemaquestes,ameaçadosnãosomentedomedo,masdesuasombra,cujo grandeenganofoicausademuigrandesdespesas,quedozeanoscontinuadosdurouoInfanteemaquestetrabalho, mandandoemcadaumanoàquelaparteseusnavios,comgrandegastodesuasrendas;nosquaesnuncafoialgum queseatrevessedefazeraquelapassagem.”40Ounãosetratassedaquelequefoiconhecidodurantemuitotempo comoo“cabodomedo”.Nãoé,porisso,deestranharqueZuraralhedediqueumcapítulotãointensoquanto emotivonasuaCrónicadaGuiné(oCapítuloVIII,intituladoprecisamente“Porquerazãonãoousavamosnavios passaraalemdocaboBojador”).
N’OsLusíadas(1572),Camões(1524/1525-1580)evocaoterrorsentidopelosmarinheirosportuguesesnas proximidadesdocabodaBoaEsperança,emúltimaanálise,olugarondeseprojectaramosreceiosvencidos–mas nãodesaparecidos,apenastransfigurados–,aquandodapassagemdocaboBojador.AconquistadoAtlânticofoi, pois,descoberta,perseverança,deslumbramentoeterror,muitoterror.
AvontadeinquebráveldepassaroBojadorleva-nostambémareflectirsobreaquestãodasatitudesmentais doseuropeus,emaisespecificamentedosPortugueses,queevoluíramdetalforma,quepassaramdarecusade penetrarodesconhecidoecontactaroOutrocivilizacionalparaumnovocenárioplenodecontactoseintercâmbios culturais.Esteúltimoaspectosignificamergulharnasemprecomplexaedifíciláreadahistóriadasmentalidades, procurandocompreenderosistemadepensamento41eamundividênciacaracterísticosdacivilizaçãoeuropeia.Esta éachaveparaacedermosaosentidodadisposiçãoparaenfrentarostemíveisperigosoceânicos,davontadepara descobrireconhecernovosespaçosenovasgentes,completamentediferentes,situadosbemparaládostradicionais limitesdaCristandadeocidental,dacuriosidade,enfim,poroutrasculturasecivilizaçõescomqueseestabeleceram relaçõesdenaturezadiversa42.
“QuemquerpassaralémdoBojador,Temquepassaralémdador”escreveuFernandoPessoanaMensagem. MasmuitoparaalémdosofrimentofísicoqueatarefadepassaroBojadorexigia,destacavam-seostemorese osreceios,queabatiamosmaiscorajosos.NaproximidadedoBojadorvinhaaodecimaomaisangustiantee aterradorimagináriomítico,quefaziaqueosnautasacreditassemestaràbeiradoslimitesdomundo,ondeaságuas domarseprecipitavamnumabismoeternodeondeninguémpodiavoltar.
ImperavatambémacrençadequeessaszonasinóspitasseriamtãoquentescomoopróprioInferno,tornando avidaimpossível.Aterraseriadesertaecompletamenteestéril.Aausênciadevegetaçãoquemarcavaapaisagem sarianaesevislumbravadomarpareciaconfirmarestesreceios.Nãoseriapossíveloreabastecerdeáguapotávele osmarinheirosacabariampormorrer,emplanomar,doatroztormentodasede:“[…]despoisdesteCabonãoha aígentenempovoaçãoalguma;aterranãoémenosareosaqueosdesertosdeLíbia,ondenãohaagua,nemarvore, nemhervaverde;eomarétãobaixo,queaumaléguadeterranãohadefundomaisqueumabraça.Ascorrentes sãotamanhas,quenavioquelápasse,jamaisnuncapoderátornar.Eportantoosnossosantecessoresnuncase antremeteramdeopassar.”43
Provavelmente,apartirdecertopontoosventosseriamtãofortesecontrários,queasembarcaçõeseram irremediavelmente arrastadas para o abismo onde o mar desaparecia (de acordo com o imaginário de então). Talacontecimentosignificavaalgoaindamaisatrozdoqueaprópriamortefísica:acondenaçãodasalmasdos navegantesàdanaçãoeterna,semhipótesesdeascenderemaoscéus,pornãoteremsidosepultados.
Outro espectro terrível seria o da presença nessas águas inóspitas de seres monstruosos, como serpentes marinhaseoutrascriaturasdiabólicascapazesdeengolirembarcaçõesinteiras,semdarquaisqueresperançasde sobrevivênciaàstripulações.
Masasafliçõescertamentenãoterminavamaqui,pois,paraalémdoterrorrelacionadocomosobrenatural, existiaoreceiodatempestade,quepodiasurgirdeummomentoparaoutro.Comefeito,omedodatormentaque
40Ibidem,pp.50-51.
41Englobamosaquioconjuntodedesenvolvimentostécnicosquepermitiramdesenvolveranavegaçãodelongocurso,emparticularabússola,
o leme, as cartas-portulano, o aperfeiçoamento das velas e, num sentido mais geral, a transmissão dos conhecimentos geográficos e astronómicos desenvolvidospelosmuçulmanoseprovenientesdomundoclássico.
42Cf.JoséMATTOSO,“Omaradescobrir”cit.
podiaoriginaronaufrágioemplenooceanolevavaosmareantesapedirperdãopelosseuspecadosaDeus,jáque omautemposedevia,naqueleimaginário,ainjúriasfeitasaoCriador.
Noaugedarevoltadoselementos,asondaseramtãograndesquepareciamtocarnocéu.Odemóniovinha nosventoseaschuvadasescurasseriamoanunciardoInferno.Amisericórdiaconstituíaquasesempreoúltimo apelo44.
Portudoisto,ocaboBojador,ouTenebroso,constituiuagrandebarreiramentaleazonalimitedomedo até 1434. Sinónimo por excelência da impossibilidade de navegar, este marco-símbolo da limitação e finitude humanasmaterializavanumúnicopontotodasasforçascontráriasàaceitaçãodomar.
MediantedeterminadasrepresentaçõesrelacionadascomapassagemdocabodaBoaEsperança,podemos comalgumasegurançaperspectivaraansiedadevividaabordonomomentodeenfrentarotemívelBojador.Por outraspalavras,dadaararefacçãoderegistoscoevosparareflectirsobreoimagináriomíticorelacionadocomo enfrentardocaboBojador,podemosfazerrecursodosrelatosrelativosàpassagemdocabodaBoaEsperança,no quadrodaCarreiradaÍndia,tendosempreasegurançadeque,se,deummodogeral,asdevoçõesabordodasnaus daCarreiradaÍndianãosofreramgrandesalteraçõesdoséculoXVIparaosseguintes,éentãoplausívelavançar ahipótesedequeestasmesmasdevoções,oupelomenospartedelas,jáexistissemnaprimeirafasedaExpansão perantecircunstânciassemelhantescomoastempestades,anoiteoceânicaeapassagem,sempreextremamente intensadopontodevistaemocional,deumgrandecabo.
Noutravertente,oquesefalaemrelaçãoaoÍndicoemtermosdereceiosdenavegaçãoemistériosoceânicos pordesvendar,maisforteseriaemrelaçãoaoAtlânticosetivermosemcontaqueestefoi,defacto,oprimeiro momentonolongoprocessodeenfrentaroperigoeodesconhecidooceânico.Parasechegaràqueletevedese passarevencereste,quenamentalidadedohomemmedievalconstituíaoprimeirograndeobstáculo(comtudoo queimplicaosactosprimeirosemgeografia).TevenomeadamentedeseultrapassaroBojador,consideradouma barreiraintransponívelpoissupostamenteomundoacabavaaí.Poroutrolado,temostambémdeteremcontaque oconhecimentotécnicodanavegaçãooceânicafoielepróprioprogredindolentamente,eissoaconteceusobretudo noquadrodasviagensatlânticas.Aíensaiaram-seembarcaçõesetécnicas.Detalmodo,quequandosechegaao Índico,alongaesempreprogressivaexperiênciadoAtlânticojáhaviapermitidodarumconjuntodeimportantes passos(ascartasevoluíamacadaviagem,bemcomooconhecimentodacosta,dosventos,dascorrentesedas marés).
Foi a experiência inaugural do Atlântico magrebino que marcou e abriu, de facto, a porta ao mistério. Aexperiência(ambivalente,pois,repletadepontosdecontactoentreoantigoeonovo,entreaclarezadacerteza easombradadúvida,entreatormentaeaesperança)desse“primeiro”momentopossibilitouaprenderalidare avivercomomedooceâniconoquotidianoabordo.Foiessaconquistapioneiraquedeu,afinal,apreparação earesistênciamentalnecessáriasaosnavegadoresportuguesesparavencerocabodasTormentasenavegarno Índico.
Omedocombasenaexperiênciaouomedopassadopelosentimentodemistério,eispoisoqueafligia aquelesquetentavamvenceroBojador.
AaberturadefinitivadooceanoAtlânticodecorrentedavitóriasobreoBojadorteveduasconsequênciasde grandepesoanívelculturalegeográfico:assinalouoencerrardeumalongaignorânciae,poroutrolado,significou adestruiçãodofundamentodomitodainavegabilidadedooceanoAtlânticoparasuldocaboBojador.Ummito cujosalicercesresidiamprecisamentenaconvicçãodeummaremirabiliaquetransformavaoAtlânticoasuldo Magrebenumcenárioidealdemitos,lendas,pesadelos,mistériosefantasias.
Maisumavezédeapontarquetalcrençaresultavadofactode,aindanaBaixaIdadeMédia,verificar-sea ausênciadeumaclaraseparaçãoentreficçãoerealidade,emespecialtratando-sederelatosdeviagensfictícias.
Nesteponto,enosentidodeconsolidarmosanossaposição,achamosconvenienteabordaraquestãoda distinção–edaprópriaclassificaçãoemsi–entrerealefictício,queconsideramoscrucialparaaproblemáticaque nosocupa.