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Contribuições de Karl Marx ao problema da mimese artística

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Academic year: 2017

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Contribuições de Karl Marx

ao problema da mimese artística

VERSÃO CORRIGIDA

ANA AGUIAR COTRIM

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Contribuições de Karl Marx

ao problema da mimese artística

VERSÃO CORRIGIDA

ANA AGUIAR COTRIM

Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutora em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva.

De acordo

Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva Orientador

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_____________________________________________________

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À Vera,

a mais camarada das manas.

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Ao meu orientador, Franklin Leopoldo e Silva, a quem devo desde o início cada passo da minha carreira acadêmica.

Aos professores Hermenegildo Bastos, Daniel Puglia, Miguel Vedda e Juarez Duayer pela participação na banca de defesa.

À professoras Iná Camargo Costa e Ana Laura dos Reis Correa, e aos professores Celso Frederico e Bernard Hess, pelas indicações, interlocução e apoio.

Toda a família:

À minha mãe, Lívia, pela leitura, correções, indicações estéticas, elucidações sobre Marx, e pela orientação específica quanto aos termos em alemão e a história da Alemanha; a Tim, pela presença, diálogo e abertura; ao meu avô, Aloízio, pela proximidade e apoio em tudo; ao meu pai Ivan, que comemora minhas realizações; minhas tias Denise e Zilda, meu tio Marcus, aos primos Helena e Ricardo; e às minhas avós queridas, Célia e Maria, em memória.

À Vera, pela interlocução, leitura, ideias e os mil esclarecimentos sobre Marx, que não caberiam enumerados nesta página.

Ao Amaral, pela leitura e interlocução, que me renderam a resolução de começar pelo tema da sensibilidade e me ajudaram a aprofundar o sentido do trágico; e pela íntima amizade.

Ao Tomás, por todas as indicações e passagens da Ideologia alemã, inclusive a que se refere ao Tímon de Atenas, além da amizade genética, perene.

Às amigas: Iracema, Alexandre, Léa, Sérgio, Eduardo, Goreti, Vinícius, Sandro, Cida, Farago, Pedro Paulo, Vagner, Daniel, Paula...

À Lia, Theo e Raul, seres mitológicos.

Ao multitalentoso Pedro, criatura fantástica a quem devo toda energia e alegria de viver.

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COTRIM, A. A. Contribuições de Karl Marx ao problema da mimese artística. 2014. 352f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo.

Esta tese toma três momentos da obra de Karl Marx em que temas estéticos são aventados: a formação da sensibilidade nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, a passagem sobre a épica na Contribuição à crítica da economia política – Introdução, de 1857 e o debate epistolar entre Marx, Engels e Lassalle sobre a peça do último, Franz von Sickingen, de 1859. No contexto desses temas, buscamos descobrir as contribuições de Marx ao problema da mimese artística, da objetividade e especificidade da arte. São abordados a objetivação, mimese, historicidade dos gêneros, especificidade do reflexo artístico, o indivíduo e universalidade na obra artística, gênero artístico e revolução. Ao tratar desses temas, procura-se colocar Marx em diálogo com momentos da tradição estética, em particular pontos presentes em Aristóteles, Shakespeare e Schiller, Lessing, Hegel e Feuerbach. Lateralmente, algumas consequências para o marxismo contemporâneo são trazidas à tona, como a crítica de Marx à arte diretamente política. O trabalho conta com as contribuições de G. Lukács e M. Lifschitz, para quem a obra de Marx dispõe as linhas fundamentais de um pensamento estético coerente, a despeito da forma esparsa.

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352f. Thesis (Doctoral) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo.

This thesis takes three passages of Karl Marx’s work which bring out aesthetic subjects: the formation of senses in the Economic and Philosophical Manuscripts of 1844, the famous passage on the epic in the Contribution to the Critique of Political Economy - Introduction, 1857, and the epistolary debate between Marx, Engels and Lassalle on the tragedy written by the latter, Franz von Sickingen, held in 1859. In those contexts, we

search for Marx’s contributions to the problem of artistic mimesis, objectivity and

specificity of art. Objectification, mimesis, historicity of genres, artistic reflection specificity, individual and universality in artistic work, artistic genre and revolution are points approached. In order to address these issues, we put Marx in dialogue with relevant moments in aesthetic tradition, particularly points present in Aristotle, Shakespeare and Schiller, Lessing, Hegel and Feuerbach. Laterally, some consequences for contemporary Marxism are brought to light, such as Marx's critique of political art. The work counts on the contributions of G. Lukács and M. Lifschitz, for whom Marx's work provides the main lines of a coherent aesthetic thought, despite its sparse form.

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APRESENTAÇÃO

“Há e não há uma estética marxista”: a abordagem da arte em Marx e o

pioneirismo de Lukács e Lifschitz

09

I. Natureza e humanização: a arte como formadora dos sentidos humanos 18 I. 1. Objetivação e natureza em Hegel, conforme os Manuscritos de 1844 20 I. 2. Algumas considerações sobre sensibilidade e arte em Hegel 31 I. 3. Sensibilidade, natureza e arte em Feuerbach: um breve apontamento 50 I. 4. Marx: atividade genérica, natureza e liberdade 64 I. 5. “O homem é a natureza humana”: formação sensível e subjetividade 81 I. 6. A arte como formadora dos sentidos: breve comparação com Hegel e

Feuerbach 103

II. Sentidos e forma artística 109

II. 1. Um ponto de contato com Lessing: formas de arte, sentidos e imaginação 110 II. 2. Marx e Shakespeare: o sentido do ter; o conhecimento artístico 142

III. Mimese e história: a épica grega 188

III. 1. A épica grega: seu sentido histórico-universal 197 III. 2. Mimese, catarse e o caráter antropomórfico: um diálogo com Aristóteles 218 IV. Tragédia e revolução: em torno do debate sobre Franz von Sickingen 244

IV. 1.Franz von Sickingen: o drama e as intençõesde Ferdinand Lassalle 250 IV. 2. A abertura das cartas de Marx e Engels: ação e emoção 279 IV. 3. Gênero e história: o caso alemão e a objetividade dos gêneros artísticos 286 IV. 4. A tragédia do agonizante e a tragédia do revolucionário: os destinos de

Sickingen e Münzer 305

IV. 5. A oposição entre shakespearizar e schillerizar: as paixões e a dialética de indivíduo e universal na poesia

321

CONSIDERAÇÕES FINAIS 332

ANEXOS 335

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Musa, canta a probidade de Abranches, escrupuloso nas contas, exato nos pagamentos…”

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APRESENTAÇÃO

“Há e não há uma estética marxista”: a abordagem da arte em Marx e o

pioneirismo de Lukács e Lifschitz

Este trabalho se volta ao exame de um âmbito do pensamento de Karl Marx que não se encontra entre os mais estudados e comentados, o seu conteúdo estético. Existem inúmeros autores posteriores a Marx considerados ou autointitulados “marxistas”, que

trataram de temas estéticos e literários, e fundaram ou se alinharam às mais heterogêneas linhas de pensamento estético. O mesmo se pode dizer de artistas que

buscaram criar obras e tendências de talhe “marxista”, e também realizaram as mais

diversas criações. Teóricos, artistas e tendências artísticas “marxistas” emergem já em fins do século XIX e se estendem até os dias de hoje. Para ilustrar a diversidade, citamos alguns bem conhecidos: vão desde os teóricos da II Internacional, passando pela produção artística e teórica soviética (igualmente dissemelhantes, como os escritos de Lenin sobre literatura, os de Trotsky, os romances de reportagem, o teatro de jornal e revista, o “realismo socialista”), pelo teatro épico de Brecht, até o conjunto mais do que variegado que se chamou Escola de Frankfurt.

Nessa imensa produção – independentemente da importância ou qualidade das teorias e criações artísticas em seus próprios termos, e desconsiderando a real proximidade, afastamento e mesmo oposição com relação ao significado da obra marxiana como um todo – o fato é que se encontram apenas esforços pontuais por apreender o que Marx concebeu sobre arte e literatura. Nesse aspecto, constituem exceções significativas os trabalhos do filósofo húngaro György Lukács e do historiador e filósofo da arte soviético Mikhail Lifschitz.

Trabalhando em conjunto no Instituto Marx-Engels em Moscou no início dos anos trinta (onde Lukács viveu exilado desde 1930 até o fim da Segunda Guerra), dedicaram-se a estudar e organizar os textos de Marx, e estiveram entre aqueles que primeiro leram e trouxeram a público os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Conforme Lukács nos conta,1 nesse período de convivência e intensa apropriação do

1 No Prefácio à edição húngara de Arte e sociedade, de 1968 (LUKÁCS, G. Arte e sociedade – escritos

estéticos de 1932 a 1967. Organização, introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto Rio de janeiro, UFRJ, 2009.) e no Posfácio de 1967 à reedição de História e consciência de classe

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ideário de Marx, conceberam a necessidade de trazer à tona as suas ideias estéticas e desenvolver um pensamento estético sistemático fundado em Marx.

Esse projeto deriva do reconhecimento de que existe na obra marxiana uma concepção estética independente, coesa e coerente com a totalidade do seu ideário. É precisamente esse reconhecimento que distingue a aproximação desses autores. Lukács escreve em seu Prefácio à edição húngara de Arte e sociedade:

No Instituto Marx-Engels, conheci e trabalhei com o camarada Mikhail Lifschitz, com quem, no curso de longas e amistosas conversações, debati questões fundamentais do marxismo. O resultado ideal mais relevante deste processo de esclarecimento foi o reconhecimento da existência de uma estética marxista, autônoma e unitária. (LUKÁCS, 2009, 25)

Para compreender o alcance disso, é preciso esclarecer o modo como as questões estéticas são suscitadas nos escritos de Marx. Não tendo dedicado ao tema da arte nenhum texto inteiro e acabado, encontramos, contudo, esparsas ao longo de seus escritos, passagens sobre os mais diversos temas estéticos e objetos artísticos, bem como passagens literárias, voltadas não a esclarecer pontos estéticos, mas sim a enriquecer os conteúdos específicos dos textos. Contamos ainda com cartas de Marx, Engels e outros, além de notas e relatos de outras pessoas, dos quais se destacam os da filha Eleanor Marx-Aveling. A despeito dessa forma esparsa, é possível afirmar, com Lukács e Lifschitz, que há uma unidade conceitual no campo da estética. Lukács escreve em seu texto de introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels, de 1945:2

A constatação deste fato não implica, porém, de modo algum, que os trechos recolhidos deixem de constituir uma unidade conceitual orgânica e sistemática: só devemos esclarecer, preliminarmente, qual o caráter dessa sistematicidade, que resulta das concepções filosóficas de Marx e Engels. (LUKÁCS, 2009, 87)

Não sendo, pois, sistematizados por Marx, os trechos a que Lukács se referem foram recolhidos e organizados por Lifschitz, a quem devemos a primeira e maior coletânea de passagens das obras de Marx e Engels sobre arte e sobre temas relacionados às questões estéticas (determinação social do pensamento, formação da sensibilidade e da consciência, ideologia etc.), Marx und Engels über Kunst und Literatur3, projeto iniciado nos anos trinta e impulsionado pela identificação de um pensamento estético unitário em Marx. A primeira coletânea aparece na década de 1930,

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mas Lifschitz prossegue com o trabalho de pesquisa e organização até os anos quarenta. Do trabalho de Lifschitz descendem as coletâneas de Marx e Engels sobre literatura e arte hoje conhecidas e publicadas em diversas línguas. Além dessa contribuição, é de Lifschitz também o primeiro livro dedicado ao estudo de temas estéticos de Marx, traduzido em alemão por Karl Marx und die Ästhetik. Uma primeira versão, condensada, foi publicada em Moscou já em 1933 na Internationale Literatur4, e uma versão ampliada aparece em Dresden em 1960.5

Quanto a Lukács, sua produção estética com base em Marx é tão vasta e significativa, que cabe aqui apenas indicar dois momentos particularmente relevantes. O primeiro é o que decorre das descobertas dos anos trinta. Desse decênio em diante, Lukács passou a dedicar inúmeros ensaios (só na década de 1930 foram mais de cinquenta) e alguns livros aos mais diversos temas da arte e da literatura, buscando

partir da “concepção de mundo do marxismo”, com um “fundamento dialético

-materialista”, recém-descobertos em sua dimensão “universal”. Lukács escreve no Posfácio de 1967 à reedição de História e Consciência de Classe, sobre esse período:

Paralelamente, concebi o desejo de utilizar os meus conhecimentos nos domínios da literatura, da arte e da sua teoria no desenvolvimento de uma estética marxista. É aqui que toma forma o meu primeiro trabalho comum com Lifschitz. No decurso de numerosas conversas, compreendemos ambos que mesmo os melhores e mais capazes marxistas, como Plekhanov e Mehring, não tinham compreendido com suficiente profundidade o caráter universal da concepção do mundo do marxismo, e, por esta razão, não tinham compreendido que Marx nos dá também a tarefa de edificar uma estética sistemática sobre um fundamento dialético-materialista. (LUKÁCS, 1974, 376)

O segundo momento a se destacar é a realização da primeira de três partes planejadas de sua Estética, chamada A peculiaridade do estético,6 na década de 1960. Sobre a

4 Revista fundada em junho de 1931 em Moscou como um órgão central da União Internacional de

Escritores Revolucionários, formado por um conjunto de escritores provindos da Alemanha que se refugiaram na União Soviética fugidos do nazismo em ascensão. Além da edição em russo, há também uma edição alemã e outras em francês e inglês. Mantém-se como órgãodessa união de escritores até a sua dissolução em 1935, mas a revista permanece em funcionamento até 1945. Lifschitz e Lukács foram ativos colaboradores dessa revista.

5 LIFSCHITZ, M. Karl Marx und die Ästhetik. Dresden: Verlag der Kunst, 1960. Há traducões para o

inglês (The Philosophy of Art of Karl Marx. Traduzido do russo por Ralph B. Winn. Londres: Pluto Press Limited, 1973. Publicada originalmente em 1938 pelo Critics Group de Nova York. Prefácio de Terry Egleaton) e para o espanhol (La filosofia del arte de Karl Marx. Tradução do alemão por Malena Barro. México, DF, Ediciones Era, 1981.)

6 LUKÁCS, G. Estetica – La peculiaridad de lo estetico. Tradução de Manuel Sacristán. 4 Vols.

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necessidade de desenvolver uma estética sistemática com base em Marx, Lukács escreve no prólogo da obra:

Encontramo-nos na situação paradoxal de que há e não há uma estética marxista, de que se tem que conquistá-la, criá-la inclusive, mediante investigações autônomas e que, ao mesmo tempo, o resultado não pode senão expor e fixar conceitualmente algo que existe já segundo a ideia. (LUKÁCS, 1966, Vol. I, Prólogo, 16)

Para exemplificar o modo como a arte aparece em Marx, valem alguns casos e considerações. Encontramos, esparsas ao longo de seus escritos, passagens sobre os mais diversos temas artísticos, bem como excertos literários. No mais das vezes, essas passagens e excertos são voltados não a esclarecer pontos estéticos, e sim a particularizar, definir os conteúdos histórico-sociais específicos dos textos, ou seja, os temas que aparecem em primeiro plano. Sobretudo os excertos literários aparecem assim, destinados a caracterizar aquilo que constitui o tema principal que Marx toma como objeto – vale ressaltar que não se trata de ilustrar leis gerais com casos pinçados da literatura, mas de concretizar. A presença de Shakespeare nos textos de Marx pode atestar isso.

Em outras passagens, temas diretamente estéticos são aflorados para elucidar e particularizar processos históricos. É o caso das referências aos gêneros poéticos para distinguir os diferentes processos de constituição da sociedade burguesa na França e na Alemanha, na Introdução de 1843.7 A queda do antigo regime na França foi trágica, enquanto na Alemanha é cômica; os conflitos de classes na França são dramáticos, enquanto na Alemanha são épicos.

Há momentos em que o texto de Marx parece configurar-se como crítica literária. O caso mais desenvolvido é o exame do romance de Eugène Sue, Os mistérios

de Paris, em A sagrada família.8 A fim de objetar ao pensamento de Szeliga, que se vale do romance, a análise literária toma o primeiro plano do texto de Marx, cujo título

refere o protagonista: “Caminho terreno e transfiguração da ‘Crítica crítica’ ou ‘a Crítica crítica’ conforme Rodolfo, príncipe de Geroldstein”. O exame do romance é

extenso para os padrões que normalmente se encontram na obra de Marx, e inclui a análise individual de vários personagens.

7 MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução.

In MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo: 2006, 148-149.

8 MARX, K. A sagrada família. Tradução de Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2003, pp. 185-233

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De maneiras diversas, a imbricação dos conteúdos de primeiro plano com as suas caracterizações artísticas e estéticas é tal, que tanto se pode tomar a referência artística para elucidar o objeto histórico-social de que se trata – na maior parte das vezes parece ser essa a intenção de Marx – quanto, ao inverso, tomar a história para elucidar as referências estéticas. Observa-se que, em Marx, um mesmo objeto evidencia dimensões históricas, filosóficas, econômicas, artísticas etc., de modo que a divisão tradicional – moderna – das ciências é alheia à construção de seus escritos. Cada um dos temas levantados acima, bem como o exame da imbricação geral dos temas da arte com os demais momentos da sua reflexão, e ainda muitos outros, sem dúvida merecem ser estudados por si sós.

Este trabalho não pretende fazer um levantamento e panorama das concepções estéticas de Marx, mas sim discutir alguns dos temas presentes em sua obra com dois objetivos centrais: primeiro, mostrar como estatuto ontológico original do pensamento de Marx, o modo como ele entende a autoprodução humana, aparece em suas ideias estéticas e, paralelamente, como essas ideias acrescentam e elucidam essa originalidade; em segundo lugar, inseri-lo na história do pensamento estético. Foram selecionados para isso alguns temas específicos.

No primeiro capítulo, tomamos dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 a discussão sobre a sensibilidade humana, a formação dos cinco sentidos, que se insere no ambiente mais amplo da discussão sobre natureza e humanização. Ali, são aventadas referências à arte. Interessa-nos nesta primeira parte este fundamento do fazer artístico: a sua recepção sensível e o modo como a consideração da sensibilidade se estende para a compreensão de traços do objeto artístico. Trata-se assim da relação entre as concepções de natureza, sensibilidade e arte. Como os Manuscritos incluem uma crítica ao espiritualismo hegeliano, que visa centralmente a sua concepção de natureza e sensibilidade, estabelecemos aqui um diálogo com Hegel, buscando relacionar a noção de natureza e sensibilidade com certas ideias estéticas trazidas de seus Cursos de estética. Pontos da relação com o pensamento de Feuerbach nesse mesmo âmbito, da relação entre natureza, sensibilidade e arte, também são abordados.

No segundo capítulo, buscamos apresentar alguns pontos de contato e diálogo com certas noções de sensibilidade e arte presentes em O Laocoonte ou sobre as

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trazido para a discussão estética pelas considerações da arte como objeto dirigido aos sentidos, o que pode ser reputado como um primeiro plano da filosofia da arte. Discute-se aqui uma finalidade da arte, como formadora dos Discute-sentidos humanos. Mas, na medida em que não desenvolve as consequências dessa visão para a constituição do objeto artístico, procuramos na história da filosofia uma concepção sobre essa constituição que pudesse dialogar com as noções de Marx nos Manuscritos de 1844. A referência homérica indica também um ponto de contato fundamental entre os dois autores.

Ainda no segundo capítulo, aproximamos Marx das questões estéticas analisando uma das inúmeras passagens em que se utiliza da literatura para concretizar seus temas de primeiro plano. Enfocamos o caderno intitulado “Dinheiro” dos mesmos

Manuscritos em que Marx borda as consequências perniciosas do nexo do dinheiro para a formação da sensibilidade. Ali, nosso autor cita uma longa passagem do Tímon de Atenas, de Shakespeare, para elucidar esse nexo e mostrar como era sentido já em seu estado nascente. Com isso, elucida o caráter sensível e concreto do conhecimento trazido pela arte. A relevância dessa passagem também se expressa na sua reiteração ao longo da obra de Marx: além dos Manuscritos, é citada n’A ideologia alemã, referida nos Grundrisse e em nota no Capital – Livro I, sempre em passagens referentes ao dinheiro e destinadas, justamente, a concretizar a inversão dos atributos e relações humanas operada pela generalização do nexo do dinheiro.

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arte, bem como para a sua peculiaridade antropomórfica. Estes são traços estéticos universais que, ao contrário de negar, reafirmam as suas determinantes históricas. Aqui, indicamos pontos de diálogo com Aristóteles, no que se refere à mimese, à catarse e ao modo antropomórfico. Além disso, busca-se retomar a natureza sensível da arte para relacioná-la com a natureza mimética e antropomórfica e o efeito catártico, bem como mostrar como a concepção marxiana do indivíduo social constitui uma explicação da possibilidade do caráter antropomórfico da poesia já observado por Aristóteles na Poética.

No quarto capítulo do trabalho, tomamos o debate epistolar sobre Franz von

Sickingen, de F. Lassalle, que também é um momento privilegiado de análise marxiana de obra artística. O debate aconteceu entre Marx, Engels e Lassalle, e suscita duas questões estéticas centrais: a definição de tipos objetivos de tragédia e a proposição de um novo tipo trágico; e a oposição entre os meios poéticos designados por schillerização e shakespearização. Tratamos dos tipos de tragédia considerados por Marx e Engels a partir do sentido objetivamente trágico da derrota de certas revoltas ao longo da história alemã: a revolta da cavalaria e as lutas camponesas da passagem do século XV para o XVI; e a derrota do partido revolucionário nas lutas de 1848. A abordagem desses momentos históricos é necessária para acessar o modo como Marx entende a objetividade dos gêneros, bem como, a partir disso, distinguir a tragédia da

“classe agonizante” (queda da cavalaria) e o tipo de tragédia historicamente novo, a tragédia do revolucionário “prematuro”, para usar o termo de Lukács. Apresentamos

assim uma breve análise histórica que pretende fundar-se nos textos do próprio Marx (Introdução de 1843, Nova Gazeta Renana). Mas a finalidade da análise histórica é definir os tipos de tragédia que objetivamente se realizam nos conflitos históricos e o modo como a particularização do trágico se combina com uma noção também particularizada das revoluções. Valemo-nos também aqui das análises de Lukács e Lifschitz sobre o debate.

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poéticos moldam a matéria artística e lhe conferem significado, definindo o efeito da obra. Na crítica a Lassalle, Marx e Engels atrelam a escolha da escrita à Schiller às suas insuficientes considerações das lutas de classes, bem como da revolução, provindas da abstração própria à perspectiva burguesa, e ao conseguinte falseamento da colisão trágica que pretende retratar. Buscamos apresentar brevemente a defesa de Schiller pelo coro na tragédia e sua discordância com um modo shakespeariano, a fim de abordar modos como a universalidade pode figurar-se na arte e a posição de Marx sobre a relação de indivíduo e universal na obra. Assim, retoma-se, neste capítulo, o significado do caráter antropomórfico, o modo individual pelo qual a arte figura a realidade, bem como a centralidade da ação. Abordam-se a peculiaridade da arte em oposição à ciência, o posicionamento político na arte; recuperam-se os temas da sensibilidade e da historicidade da arte.

A escolha desses temas se baseia em Lukács e Lifschitz em dois sentidos. Em primeiro lugar, no reconhecimento que pauta os escritos estéticos desses autores, qual seja, a existência de uma concepção estética autônoma e unitária na obra de Marx. Como tal, sua obra discute problemas que pertencem à história da estética, posiciona-se com relação a eles e lhes traz contribuições originais, de modo que entra, ela mesma, na história da estética como um de seus momentos. As suas considerações sobre os sentidos, a épica e a tragédia, conforme as passagens acima descritas, atingem as questões da mimese artística e da objetividade da arte. Não pretendo fazer Marx

dialogar com a produção do “marxismo”, mas sim tomar seus escritos próprios para

mostrar como ele se posicionou diante dos problemas estéticos que enfrentou.

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dominantes propostas no contexto da II Internacional (entre as quais a consideração de

que “a estética não era parte integrante do sistema marxista”, de Mehring e Plekhanov),

Lukács observa:

Essas novas posições foram divulgadas pela primeira vez em um ensaio de 1933, no qual analiso a discussão teórica que Marx e Engels mantiveram com Lassalle a propósito de sua tragédia Franz von Sickingen. (LUKÁCS, 2009, p. 25)

Lukács e Lifschitz são, portanto, pioneiros na concepção de que a ampla visão de mundo original de Marx inclui uma concepção sobre a arte, que tem uma unidade, mas que aparece na forma descontínua e pouco desenvolvida. Por isso, este trabalho pretende prosseguir a vertente de pensamento inaugurada por eles, e toma especialmente Lukács como comentador privilegiado. Partindo de suas análises e indicações, busco, contudo, seguir os caminhos que os escritos de Marx oferecem.

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I. Natureza e humanização: a arte como formadora dos sentidos humanos

Dos inúmeros temas que envolvem a estética, tanto no que tange a produção como a fruição artística, talvez o mais elementar seja o problema da sensibilidade. Na medida em que são os órgãos da apropriação artística e parâmetros da construção do objeto artístico, a constituição dos sentidos é um problema primário da filosofia da arte. Marx dedicou atenção ao tema da formação dos sentidos, que, entre outras passagens de sua obra, aparece de maneira privilegiada nos Manuscritos econômico-filosóficos de 18449. Ali, seu interesse não recai sobre problemas estéticos, mas, antes, a arte é referida em sua relação com a sensibilidade a fim de elucidar questões mais amplas, entre as quais a mútua conformação ativa de sujeito e objeto e a necessidade da superação do estranhamento. Do conjunto dessa tematização, interessa-nos a formação dos cinco sentidos na relação com os objetos criados pela atividade humana. Em certos momentos, Marx destaca entre eles os objetos artísticos, mas a ideia não é restringir a discussão a esses momentos, e sim procurar distinguir elementos de uma concepção estética de Marx na sua consideração mais geral da sensibilidade.

Ao abordar a sensibilidade humana, a primeira questão que se coloca é o seu caráter imediatamente natural. A relação com a natureza externa, o corpo inorgânico dos seres humanos, bem como a naturalidade imediata de si próprios e das relações que estabelecem entre si é tratada por Marx nos Manuscritos em diversos momentos e contextos. A maior dificuldade que se apresenta àquela que pretende sistematizar o estatuto natural e o processo de humanização da natureza (objetiva e subjetiva) conforme esse texto é o ponto de partida.

Nos Manuscritos, o tema da formação da sensibilidade – a natureza humana –

aparece destacado em duas partes, “Complemento ao caderno II, Propriedade privada e comunismo” e em passagens da “Crítica da dialética e da filosofia hegelianas em geral”.10 No caderno “Trabalho estranhado e propriedade privada”, nosso autor estabelece a prioridade da objetivação na conformação do mundo humano, bem como da apreensão dos objetos conformados para si na humanização da natureza própria dos

9 Utilizo a última edição brasileira, MARX, K.

Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo: 2004. Doravante referido como Manuscritos.

10 Os títulos dos cadernos foram conferidos pela Zweite Widergabe da MEGA (Marx und Engels

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seres humanos. Mas a discussão se desenrola com o objetivo de evidenciar as facetas do estranhamento da atividade de objetivação, bem como de definir a propriedade privada como relação social, como idêntica ao trabalho estranhado. Esses temas serão apenas tangenciados no trabalho, conforme a necessidade para a exposição da matéria central.

Optou-se por partir de “Crítica da dialética e da filosofia hegelianas em geral”,

em que Marx tece uma crítica ao ser único, espiritualista de Hegel, ao qual opõe a certeza sensível de Feuerbach, para então afirmar o caráter natural ativo, genérico dos seres humanos. Buscamos apresentar a crítica de Marx a Hegel e vincular o modo como Hegel entende a sensibilidade e a natureza com certos traços da concepção sobre a arte, por algumas passagens dos Cursos de Estética. A contraposição a Hegel traz contribuições para analisar salientar os nexos entre o estatuto da sensibilidade e as noções estéticas de Marx.

Para introduzir a concepção de Marx, passamos pela contribuição que ele vê em Feuerbach: afirmar a positividade e a prioridade do sensível. Estendemos essa exposição com alguns traços das ideias estéticas feuerbachianas, com base no estudo de Celso Frederico11 e indicamos o significado geral da crítica a Feuerbach com base em

passagens d’A ideologia alemã. Em seguida, apresentamos passagens deste mesmo trecho dos Manuscritos e de “Propriedade privada e comunismo”, em que se estabelecem a plasticidade da natureza humana e o sensível como atividade. Buscamos apresentar sua visão da formação dos sentidos como parte da atividade humana de objetivação e as formulações positivas acerca da natureza humana. Indicamos relações entre essa concepção e suas noções artísticas. Uma finalidade da arte – a formação dos sentidos – aparece como participando na definição do novo estatuto ontológico que a concepção marxiana representa no evolver do pensamento humano. Interessa-nos, neste capítulo, um fundamento do fazer artístico: a sua recepção sensível e o modo como a consideração da sensibilidade se estende para a compreensão de traços do objeto artístico. Trata-se, assim, da relação entre as concepções de natureza, sensibilidade e arte. Passagens pontuais de outros textos de Marx da década de 1850, a Introdução de 1857 e as Formações econômicas pré-capitalistas são apresentadas para enriquecer a discussão centrada nos Manuscritos de 1844.

11 FREDERICO, C. A arte no mundo dos homens – o itinerário de Lukács. São Paulo: Expressão Popular,

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Conforme indicamos, seguimos aqui a tradução brasileira de Jesus Ranieri dos Manuscritos de 1844, publicada pela Boitempo. Contudo, as traduções de alguns termos foram alteradas, conforme indicado ao longo do texto.12

I. 1. Objetivação e natureza em Hegel, conforme os Manuscritos de 1844

O caráter religioso da velha filosofia consiste na separação da essência humana dos seres humanos reais, sua exteriorização e perda, na medida em que se caracteriza como abstração, localizada na esfera pura do pensamento, num âmbito estritamente espiritual. Tal como na religião, a essência e motor da existência humana se encontra fora dos

homens reais: “o espírito filosófico nada mais é do que espírito pensante [a partir] do

interior de seu estranhamento-de-si, isto é, espírito estranhado do mundo, [espírito] que

se concebe abstratamente” (M., 120)

12

Para Entäusserung, Äusserung, Entfremdung e seus derivados, optamos pelas traduções propostas por Mônica H. M. da Costa em seu trabalho As categorias Lebensäusserung, Entäusserung, Entfremdung e Veräusserung nos Manuscritos Econômico-filosóficos de Karl Marx de 1844 (Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: UFMG / FAFICH, 1999. 177 f.), ao invés das soluções propostas por Jesus Ranieri, por considerar que aquelas exprimem de modo mais claro especialmente a distinção entre alienação e estranhamento, de um lado, e objetivação, exteriorização ou exteriorização de vida, por outro. Como evidencia Costa, as diferentes traduções até então existentes dos Manuscritos, “associadas às notas e

observações preliminares ou conclusivas dos respectivos tradutores, ofereceram um amplo painel dos embaraços e dificuldades nas quais eles se enredaram”, dificuldades relativas, em sua maior parte, à indistinção ou excessiva aproximação entre tais categorias. Visando “recuperar as expressões originais utilizadas por Marx”, Costa retraduziu o texto marxiano realizando um “exame minucioso de cada termo (e não só dos que estão em questão)”, concluindo pela existência de distinções entre eles que justificam

suas escolhas tradutórias: Entäusserung – alienação; Äusserung e Lebensäusserung – exteriorização e exteriorização de vida; Entfremdung– estranhamento; Veräusserung– venda. Ranieri, embora afirme que é preciso distinguir Entäusserung (alienação) de Entfremdung (estranhamento), expõe o sentido de

Entäusserung do seguinte modo: “Entäusserung significa remeter para fora, extrusar, passar de um estado a outro qualitativamente distinto. Significa, igualmente, despojamento, realização de uma ação de

transferência, carregando consigo, portanto, o sentido de exteriorização (que, no texto ora traduzido, é uma alternativa amplamente incorporada (...)) momento de objetivação humana no trabalho, por meio de um produto resultante de sua criação. Entfremdung, ao contrário, é objeção socioeconômica à realização

humana (...)” (M., 16 – Introdução). E, assim, nas passagens dos Manuscritos citadas neste trabalho, o termo Entäusserung é sistematicamente traduzido por Ranieri por exteriorização. Entendemos que, desse modo, a distinção entre objetivação e alienação se perde, perda que parece não ser tomada como tal por Ranieri, uma vez que ele considera a alienação como “momento de objetivação humana no trabalho”. O

uso do termo externação para traduzir Äusserung não contribui para clarear a diferença que, seguindo Costa, entendemos que está presente em Marx. Ranieri, por seu lado, insiste na presença de um “vínculo

intelectual de Marx com o idealismo alemão, principalmente com a filosofia de Hegel”, que balizou suas

(22)

Em Hegel, conforme lemos nos Manuscritos, essa essência espiritual comporta todo um automovimento em direção à sua própria tomada de consciência de si. Esse movimento auto-engendrado e autoposto, dirigido à sua autoconsciência, ao saber-se, inclui um momento de objetivação, de fazer-se coisa no mundo. Importa-nos aqui precisamente esse momento de objetivação, já que ele é o ato engendrador da objetividade e da sensibilidade. Como produtos da objetivação do espírito, os objetos são exteriorizações da consciência de si do espírito:

A questão principal é que o objeto da consciência nada mais é do que a consciência de si, ou que o objeto é somente a consciência de si objetivada, a consciência de si enquanto objeto. (Assentar do homem = consciência de si) (M., 124)

Assim, a intuição de que o mundo objetivo é produto da ação humana, da

“objetivação humana, das forças essenciais humanas nascidas para a obra”, aparece em Hegel na ideia de que as construções humanas, tais como “a sensibilidade, a religião o

poder do Estado etc. são seres espirituais.” (M., 122) O caráter humano do mundo objetivo, da natureza humanizada como resultado da atividade humana, reside em que esta se compõe de seres abstratos, seres de substância espiritual, como momentos do automovimento do pensamento:

A humanidade da natureza e da natureza criada pela história, dos produtos do homem, aparece no fato de estes serem produtos do espírito abstrato e nessa medida, portanto, momentos espirituais, seres de pensamento. (M., 122)

É relevante que no processo de objetivação esteja contida, como mais significativa contribuição de Hegel, segundo se lê nos Manuscritos, a acentuação da produção ativa do mundo objetivo, particularmente dos seres humanos efetivos. Os homens são produto de sua própria atividade, de seu trabalho:

A grandeza da Fenomenologia hegeliana (...) é que [Hegel] compreende a essência do

trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem efetivo, como resultado de seu próprio trabalho. (M., 123)

Esse resultado é também compreendido como produto da “ação conjunta dos

(23)

Contudo, preso no abstracionismo, como Marx acentua em seguida, a autoconstrução do homem efetivo, como resultado de seu próprio trabalho, é em Hegel concebida de maneira unilateral, quer dizer, apenas como atividade espiritual, movimento do pensar. O trabalho assim compreendido não consiste em atividade sensível, efetiva:

O trabalho é o vir-a-ser para si do homem no interior da alienação [Entäusserung] ou como homem alienado [entäusserter]13 O trabalho que Hegel unicamente conhece é o

abstratamente espiritual. (M., 124)

A atividade de autoprodução humana é a atividade do homem alienado porque a essência ativa do homem encontra-se fora de si, num ser espiritual abstrato. É unicamente a atividade do pensamento do ser único, externo aos indivíduos reais, por isso, a atividade em questão é do homem exterior a si, abstrato, e assim concebido por Marx como estranhado. Em conformidade com o caráter abstrato dos seres objetivos, postos pelo pensamento, bem como da própria atividade de objetivação, também o sujeito é compreendido de modo abstrato e espiritual:

Portanto, da mesma forma que a essência, o objeto enquanto ente do pensamento, o

sujeito é, portanto, sempre consciência ou consciência-de-si, ou antes, o objeto aparece apenas como consciência abstrata, o homem apenas como consciência-de-si, as diferentes figuras do estranhamento que surgem são, por conseguinte, apenas diferentes figuras da consciência ou da consciência de si. (M., 123)

O sujeito é portanto este ente abstrato, o Si – automovimento da

consciência-de-si – que Marx define como “somente o homem abstratamente concebido e gerado por

meio da abstração” (M., 125), quer dizer, a abstração do que se concebe como essência humana, elevada a ser espiritual automotor. Os indivíduos reais não são sujeitos da objetivação, mas sim a consciência-de-si, a essência humana abstrata.

O movimento de objetivação se realiza como um colocar-se no mundo de si própria, engendrando seu ser-outro objetivo, essência objetiva. Ou seja, a essência humana abstrata, por moto próprio, faz-se essência objetiva no mundo. Objeto, coisa no mundo coincide com a essência objetiva da consciência de si:

A alienação [Entäusserung] da consciência-de-si põe a coisidade. Porque o homem = consciência-de-si, então sua essência objetiva alienada [entäussert]14, ou a coisidade – o

(24)

que para ele é objeto, e objeto é verdadeiramente para ele apenas o que lhe é objeto essencial, o que é, consequentemente, sua essência objetiva. (M., 126)

Nesse processo de fazer-se coisa no mundo, o objeto não se destaca

completamente da consciência já que continua sendo ela mesma objetivada: “nesta

alienação [Entäusserung]15 ela [a consciência] se assenta enquanto objeto ou põe o objeto como a si mesma por causa da inseparável unidade do ser-para-si” (M., 125). Assim, a coisidade, os objetos, não se fazem entes autônomos diante da consciência, dotados de essência e força próprias. Marx reitera que a coisidade se faz como “uma

simples criatura” que não confirma a si mesma, mas sim confirma o “ato de pôr” da consciência, “que por um instante fixa sua energia como produto e, para fazer de conta

– mas só por um momento –, lhe concede o papel de um ser autônomo, efetivo”. (M., 126)

No interior da unidade do ser-para-si, o momento de exteriorização carrega um significado negativo. A própria objetivação se caracteriza como movimento de estranhamento, ou melhor, de auto-estranhamento da consciência-de-si, de modo que toda exteriorização é estranhamento, toda coisidade é objeto estranho à essência

humana (como consciência, portanto, espírito, abstração):

A objetividade enquanto tal vale por uma relação estranhada do homem, não correspondente à essência humana, à consciência-de-si. A reapropriação da essência objetiva do homem, produzida enquanto [algo] estranho sob a determinação do estranhamento, tem assim não somente o significado de superar [aufheben]16 o

estranhamento, mas a objetividade, ou seja, dessa maneira, o homem vale como uma essência não-objetiva, espiritualista. (M., 124-25)

O estranhamento pertence ao próprio caráter objetivo do objeto. Nos termos de

Marx, é o “seu caráter objetivo que constitui, para a consciência-de-si, o escandaloso e o

estranhamento” (M., 128-29). Por essa razão, o objeto deve ser reapropriado pela consciência, processo no qual se supra-sume a própria objetividade: “Vale, portanto,

vencer o objeto da consciência” (M., 124)

Assim, a objetividade tem um caráter evanescente, efêmero. Existe como um momento a ser superado, e por isso sua efetividade é fantasiosa. Se o traço que faz do objeto um objeto, qual seja, sua efetividade, seu caráter objetivo, é simulado, então o

(25)

próprio objeto é negatividade, um nada, um não-ser: “O objeto é por isso um negativo, um [negativo] que supera [aufheben]17 a si mesmo, uma nulidade” (M., 129)

Mas todo o processo de objetivação e reapropriação do objeto não é mais que o movimento interno da consciência. Marx o desvenda como um ato de saber, movimento que se faz apenas como atividade do pensamento:

O modo como a consciência é, e como algo é para ela, é o saber. O saber é seu único ato. Por isso, algo vem-a-ser para ela na medida em que ela sabe este algo. Saber é seu único comportamento objetivo. (M., 129)

Para o objeto, isso implica novamente a sua nulidade, inexistência como ente

independente. O que aparece para o pensamento como objeto “é somente ele mesmo” (o

pensamento mesmo):

Ora, a consciência-de-si sabe a nulidade do objeto, isto é, o ser-não-distinto do objeto com relação a ela, o não-ser do objeto para ela, na medida em que ela sabe o objeto enquanto sua auto-alienação [Selbstentäusserung]18, isto é, ela se sabe – o saber como objeto – na medida em que o objeto é apenas a aparência de um objeto, uma emanação enganadora, o seu ser nada além do que o saber mesmo, o qual se conformou consigo mesmo e, por isso, opôs a si uma nulidade, um algo que, fora do saber, não tem

nenhuma objetividade; (M., 129)

O objeto é o saber que aparece para si mesmo, o modo como o saber relaciona-se consigo mesmo. Para saber-relaciona-se, a consciência relaciona-se exterioriza no objeto. Se, por um lado, para o objeto, isso implica a sua completa negatividade, porque é a negação de seu caráter objetivo, para a consciência existe nessa relação uma positividade. O significado positivo da nulidade do objeto está em que, como evanescente e retornante à consciência na qualidade de saber de si, o objeto confirma a natureza abstrata, não-objetiva, da própria consciência. Nos termos de Marx,

Esta nulidade do mesmo [do objeto – A.C.] não tem para a consciência uma significação apenas negativa, mas positiva, pois aquela nulidade do objeto é justamente a

autoconfirmação da não objetividade, da sua própria abstração. (M., 129)

Novamente, aparece o automovimento da consciência: exteriorização de si e retomada do objeto, como saber de si, reconhecimento de si no outro de si objetivado. De qualquer modo, todos os momentos desse movimento são a consciência de si, todo o processo é de natureza abstrata. Para o que mais nos interessa, ou seja, o estatuto da objetividade na filosofia especulativa, cabe antes de tudo reiterar ainda a sua nulidade,

17 Ranieri traduz por supra-sume.

(26)

seu ser apenas aparente: “a consciência – o saber enquanto saber – o pensar enquanto pensar finge ser imediatamente o outro de si mesmo, [finge ser] sensibilidade,

efetividade, vida, o pensar que se sobrepuja no pensar”. (M., 129)

Por conseguinte, contudo, o sobrepujar do objeto, dando-se no interior do

pensamento, enquanto saber, é, portanto, “um superar19 do ser pensado”, que deixa

intacto seu objeto efetivo.

E porque o pensar se supõe ser imediatamente o outro de seu si, efetividade sensível, portanto a sua ação vale para ele também como ação sensível-efetiva, este superar20 pensante, que deixa o seu objeto permanecer na efetividade, acredita tê-lo ultrapassado efetivamente e, por outro lado, porque se tornou momento de pensamento para ele, também vale por isso para ele, em sua efetividade, como autoconfirmação de si mesmo, da consciência de si, da abstração. (M., 131)

Os objetos que são superados na concepção hegeliana, como objetos do pensar, se fazem já como objetos filosóficos. Além de todo o movimento ser um movimento do pensar, ele é primeira e verdadeiramente apreendido, para a concepção especulativa, pela filosofia. Assim, o sobrepujamento da propriedade privada, do Estado, da religião, etc., se fazem como um superar não da propriedade privada real, mas da propriedade privada como objeto da filosofia, portanto, trata-se da superação do direito privado; não do Estado efetivo, mas do Estado como objeto filosófico, portanto da jurisprudência, da ciência política; não da religião efetiva, mas da religião como filosofia, ou seja, da dogmática (cf. M., 131). Marx escreve:

Assim, por exemplo, na filosofia do direito de Hegel, o direito privado superado =

moral, a moral superada = família, a família superada = sociedade civil, a sociedade civil suprado = Estado, o Estado superado = história mundial.21 (M., 130)

A superação dos objetos como entes estranhados se realiza como superação, no pensar, desses objetos pensados. De todas as maneiras, a existência efetiva não é superada no pensar, mantendo-se na sua condição de existências objetivas:

Na realidade continuam subsistindo direito privado, moral, família, sociedade civil, Estado etc., apenas se tornaram momentos, existências e modos de existência do homem, que não têm validade isolados, se dissolvem e se engendram reciprocamente etc., momentos do movimento. (M., 130)

19 Ranieri traduz por supra-sumir. 20 Ranieri traduz por supra-sumir.

(27)

Trata-se portanto de um automovimento no interior do sujeito único, abstrato. O processo se realiza como auto-realização do sujeito absoluto, místico, sujeito que não tem objetos fora de si, portanto não é sujeito para nenhum objeto e não é objeto para nenhum outro sujeito. Configura-se como sujeito-objeto na medida em que se conforma como resultado do movimento pelo qual aciona a si mesmo e se torna conhecido para si:

Este processo tem de ter um portador, um sujeito; mas o sujeito só vem a ser enquanto resultado; este resultado, o sujeito que se sabe enquanto consciência-de-si absoluta, é, por isso, o Deus, o espírito absoluto, a ideia que se sabe e aciona. O homem efetivo e a natureza efetiva tornam-se meros predicados, símbolos desse homem não efetivo oculto, e dessa natureza inefetiva. Sujeito e predicado têm, assim, um para com o outro, a relação de uma absoluta inversão, sujeito-objeto místico ou subjetividade que sobrepuja o objeto, o sujeito absoluto como um processo, como sujeito exteriorizando-se e retornando a si da exteriorização, mas, ao mesmo tempo, retomando-a de volta a si, e o sujeito como esse processo; o puro círculo infatigável em si. (M., 133)

Marx desvenda, no automovimento do sujeito absoluto, o estatuto de predicados que os homens efetivos e a natureza efetiva adquirem na filosofia especulativa. Contudo, a concepção desse movimento não se contenta com os entes puramente abstratos, quer a determinação. Marx mostra que, em Hegel, os seres humanos são indivíduos singulares, diferenciados entre si, cujas forças essenciais, sentidos etc. são

particulares, únicos. “O homem é áutico (selbstisch). Seu olho, seu ouvido etc., são áuticos; cada uma de suas forças essenciais tem nele a propriedade da ipseidade (Sebstigkeit)” (M., 125). Como tais, estes traços de sua constituição não podem ser atributos da consciência-de-si, que é essência humana abstrata, portanto não

particularizada: “Mas por essa razão é, então, totalmente falso dizer: a consciência-de-si

tem olho, ouvido, força essencial” (M., 125). Ou seja, um ser abstrato, não material, não pode ser dotado de qualidades sensíveis, que presumem a materialidade e objetividade, que caracterizam necessariamente entes independentes e singulares. Para Marx, essas qualidades próprias da natureza humana não são qualidades da consciência-de-si, mas

esta é um atributo da natureza humana: “A consciência-de-si é, antes, uma qualidade da natureza humana, do olho humano etc., não é a natureza humana [que é] uma qualidade da consciência-de-si. (M., 125)”.

(28)

de modo especulativo. A consciência, como totalidade dos momentos de seu movimento, retoma para si, no ato de superar os objetos, o conjunto das determinações objetivas, ou seja, os objetos em todas as suas particularidades. O objeto apenas se constitui como essência espiritual pela totalidade das suas determinações:

(...) ela [a consciência – A.C.] tem de, do mesmo modo, relacionar-se com o objeto segundo a totalidade de suas determinações, e tê-lo apreendido segundo cada uma delas. Essa totalidade de suas determinações faz do objeto em si a essência espiritual, e para a consciência isto vem a ser, em verdade, pelo apreender de cada determinação singular como [sendo uma determinação] do Si, ou através da relação espiritual para com elas, antes nomeada. (M., 126)

Quer dizer que a exteriorização do Si se realiza como objetivação de determinações, e só assim os objetos contam como essência espiritual. O sujeito se reconhece e se realiza como sujeito ao apreender-se como saber dos objetos em seu conjunto de determinações.

No entanto, na medida em que os objetos não se apresentam à consciência como independentes, como coisas sensíveis e externas no mundo com existência autônoma e conteúdo próprio, mas sim como essência espiritual externada, cujo caráter de ente objetivo ou externo constitui precisamente a sua negatividade, a filosofia especulativa não admite uma concepção positiva da natureza. A natureza, como primeira exteriorização da ideia absoluta, é, segundo o que Marx nos traz de Hegel, uma intuição. A passagem da ideia absoluta à intuição da natureza, conforme reproduzida nos Manuscritos, é uma ideia que se comporta de modo “estranho e barroco”, “que ocasionou aos hegelianos tremendas dores de cabeça” (M., 134). Com efeito, lemos Marx citando Hegel (Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio):

A ideia absoluta, a ideia abstrata “considerada segundo sua unidade consigo é intuir”,

que “a absoluta verdade de si mesma decide-se a deixar sair livremente de si o momento de sua particularidade, ou do primeiro determinar-se e ser outro, a ideia imediatacomo seu reflexo, como natureza”. (M., 134)

(29)

difícil de explicar em termos hegelianos como provindo do impulso do “pensador abstrato” a “abandonar a abstração e contemplar por fim a natureza liberta dela”:

Toda esta transição da lógica para a filosofia da natureza nada mais é do que a transição

– tão difícil de realizar para o pensador abstrato e, por isso, descrita de forma tão excêntrica – do abstrair ao intuir. O sentimento místico que impele o filósofo do pensar abstrato ao intuir é o tédio, a nostalgia de um conteúdo. (M., 134-35)

Contudo, no interior do pensamento abstrato, essa ânsia por conteúdo e particularidade não se satisfaz. Marx mostra que, ao contrário de conceber a natureza em suas determinações, novamente essas determinações são compreendidas como ideias abstratas, manifestações sensíveis das categorias lógicas.

Assim, por exemplo, o tempo = negatividade que se refere a si (p. 238, 1 [§257]). Ao vir-a-ser superado como existência corresponde – em forma natural – o movimento superado22 como matéria. A luz é a forma natural da reflexão em si. O corpo, como lua

e cometa, é a forma natural da oposição que, segundo a lógica, é, por um lado, o

positivo repousando sobre si mesmo, e, por outro, o negativo repousando sobre si mesmo. A terra é a forma natural do fundamento lógico, enquanto unidade negativa da oposição etc. (M., 136)

Não cabe aqui a explicação dessas correspondências específicas. Afinal, como

poderíamos explicar de que maneira o “movimento superado como matéria” vem a ser a forma natural do “vir-a-ser superado como existência”, por exemplo? Como Marx

explica, trata-se de uma compreensão lógica e abstrata dos elementos da natureza e não, evidentemente, de um efetivo engendramento. Nesse raciocínio, fica claro que as abstrações que valem pela natureza efetiva e lhe são ontologicamente prioritárias (no modo especulativo) nada mais são do que abstrações das determinações da natureza efetiva. Marx escreve:

(...) para falar uma linguagem humana, o pensador abstrato experimenta, junto de sua intuição da natureza, que os seres que ele, na dialética divina, imaginava criar a partir do nada, da pura abstração, como produtos puros do trabalho do pensar que se tece sobre si próprio e nunca olha para fora em direção à efetividade, nada mais são que abstrações

de determinações da natureza. (M., 135)

Com isso, deixemos de lado aquela explicação para ficar com Marx: a intuição hegeliana da natureza é uma intuição abstrata, ou seja, que concebe a natureza abstratamente. A natureza que se separou da ideia é “apenas a coisa de pensamento da

natureza”, e “a natureza inteira repete para ele, portanto, apenas em forma sensível,

(30)

externa, as abstrações lógicas” (M., 135). Mas a lógica é, na metáfora de Marx, “o dinheiro do espírito, o valor do pensamento, o [valor] especulativo do homem e da

natureza”. (M., 120) Quer dizer, a lógica faz abstração das especificidades do objeto, das suas qualidades determinadas como ser efetivo, de modo que é, nos termos de Marx, uma essência não efetiva do homem e da natureza. Não reflete como abstração a sua

essência efetiva: “e portanto – continua Marx – sua essência tornada totalmente indiferente contra toda determinidade efetiva e, portanto, essência não-efetiva” (M.,

120) É o “pensar abstrato” e, mais uma vez, tal como no movimento geral de objetivação, a exteriorização da natureza serve a confirmar o caráter abstrato do ato de

intuir realizado pela consciência: “Sua intuição da natureza é, portanto, somente o ato

de confirmação de sua abstração da intuição da natureza, o curso gerador de sua

abstração, repetido por ele com consciência” (M., 135-6)

Mas a exteriorização da natureza é um momento particular do movimento geral da objetivação, porque, como objeto intuído, ela se faz como pura externalidade, pura sensibilidade. Esta é a sua essência, mas essa essência é a pura oposição ao pensar. Para

a concepção especulativa, segundo Marx, “esta externalidade da natureza é sua oposição ao pensar, sua deficiência”; “na medida em que se diferencia da abstração, é

um ser deficiente” (M., 136). Assim, se a natureza é tomada por si, separada dos

conceitos lógicos pelos quais é abstratamente entendida pelo filósofo especulativo; e considerando que a externalidade é pura negatividade, já que oposta à verdadeira essência que reside no pensar, na ideia, então a natureza como tal, como sensibilidade, é uma nulidade, um nada. A natureza é exterior ao pensar abstrato, é a “perda de si” do pensamento abstrato (M., 120); por isso ela é concebida abstratamente, mas como

“pensamento abstrato alienado [entäusserte ]23” (M., 120, grifo meu) e, por conseguinte, apenas negatividade em sua efetividade sensível.

A natureza enquanto natureza, isto é, na medida em que ainda se diferencia sensivelmente daquele sentido secreto oculto nela, a natureza separada, diferenciada dessas abstrações, é nada, um nada confirmando-se enquanto nada, é sem-sentido (...) (M., 136)

Assim, a natureza tem já no ato de sua intuição, como externalidade, o sentido de uma pura alienação, portanto “um equívoco, uma debilidade que não pode ser”, e,

por conseguinte, “apenas o sentido de uma externalidade que tem de ser superada” (M.,

(31)

136). Como nulidade, ser deficiente, cuja essência é algo diferente dele mesmo, “a

natureza tem, portanto, de se superar a si mesma, porque já foi posta por ele [pelo pensador abstrato – A.C.] como um ser em potência superado” (M., 136).24 Como pura negatividade, pois, a intuição da natureza já contém em si a sua superação.

Vemos assim o estatuto negativo que tem para Hegel a objetividade em geral, como sinônima do estranhamento, e a particularidade da natureza como exteriorização, que se constitui como pura negatividade. A objetivação carrega um sentido positivo, em todo caso, como movimento da consciência-de-si em direção a si mesma, e, mesmo no que tange ao primeiro ato, de intuição da natureza, há também o sentido positivo de, primeiro, inaugurar o automovimento e, segundo, confirmar a essência abstrata, espiritual do verdadeiro ser. Mas, segundo Marx, no pensar especulativo, assim como o caráter propriamente objetivo dos objetos é negatividade, a natureza como tal, em sua essência sensível, é nada.

Marx não mostra as consequências estéticas da concepção hegeliana de natureza nos Manuscritos. Tampouco temos aqui a finalidade de recuperar o complexo sistema hegeliano das artes que constitui parte fundamental do automovimento do espírito em sua posição fenomenológica. Contudo, valem algumas aproximações. O ponto central aqui é distinguir os diferentes estatutos que o caráter necessariamente sensível da arte adquirem no pensamento de Hegel e Marx. Em Hegel, a arte vale pela ideia que se apresenta na forma sensível. Esse modo de manifestação da ideia é própria de um momento inicial, de baixa determinação do espírito. A necessidade da sensibilidade para a tomada de consciência de si é o que denota esse momento pouco desenvolvido da determinação. Aquilo que representa para a arte a sua perfeição é imperfeição do ponto de vista do espírito: assim como a objetividade sensível deve ser suprassumida no interior do movimento do espírito, assim também essa forma específica de sua manifestação (arte, ideia no sensível) deve ser superada no decorrer do movimento de sua autoconsciência (ou, em termos humanos, no decorrer da história). Essa superação se faz no interior do campo da própria arte e por outras formas da consciência humana distintas da arte, a religião e a filosofia. Significa o caminho da autoconsciência, da determinação e do reconhecimento do espírito em seu próprio âmbito, o pensar.

(32)

Passemos por alguns pontos da estética hegeliana que são centrais para a questão aqui proposta. A apresentação sobre Hegel aparece aqui com o intuito não só de distinguir, posteriormente, a sua visão da arte da de Marx, mas principalmente, mostrar que, assim como a sua visão negativa da natureza e da sensibilidade (sistemicamente pertencente à sua concepção espiritualista de objetivação) se relaciona com a concepção estética, também em Marx a concepção positiva da sensibilidade tanto conduz a uma visão diversa da arte, como colabora para a sua elaboração. Quer dizer, embora Marx não tenha dedicado ao tema da arte nenhum texto inteiro e acabado, podemos vincular certas concepções da arte que aparecem nas passagens a serem analisadas com a sua visão ampla e fundante da formação dos sentidos pela atividade humana de objetivação, original dentro da história da filosofia. Os apontamentos muito gerais sobre a estética hegeliana valem para iluminar essa relação.

I. 2. Algumas considerações sobre sensibilidade e arte em Hegel

Dissemos que a arte se insere na lógica da objetivação, sendo também uma manifestação objetiva, sensível, do espírito. Ela é a primeira objetivação pela qual o espírito absoluto toma consciência de si, a primeira forma de objetivação que dá a conhecer aos homens a sua própria essência efetiva. Celso Frederico, em seu A arte no mundo dos homens – o itinerário de Lukács, faz uma síntese do lugar da arte no interior do sistema de Hegel (cf. 26-30). Ele escreve: “Na odisseia do pensamento, marcada sempre pelo ritmo ternário de sua dialética, a arte desponta como o primeiro momento da afirmação do Espírito Absoluto, a ser superado, em seguida, pela religião e pela

filosofia” (FREDERICO, 2013, 26).

(33)

quais o espírito toma consciência de si, e que constituem modos da atividade humana, são apenas as atividades do pensamento. A filosofia da natureza pode constituir uma forma da autoconsciência, mas não a própria natureza, o que é coerente, já que de fato a natureza imediata não é produto da ação humana. Mas, as transformações efetivas que os homens impõem à natureza, a sua humanização (nos termos de Marx) pela atividade prática do trabalho, tampouco é reconhecida por Hegel como momento da autoconsciência. Novamente, apenas as atividades ditas espirituais compreendem tais momentos. Quanto mais pertencentes ao elemento do pensar, mais apropriadas ao espírito são as atividades ou objetivações humanas.

Na Introdução geral aos Cursos de Estética (Vol. I)25, há duas passagens que abordam esse problema, contribuindo para compreendermos o estatuto da atividade prática no conjunto da caracterização do ser humano como ser pensante, como autoconsciência. Nessas passagens, Hegel distingue o humano da naturalidade. Lemos:

A necessidade universal e absoluta, da qual a arte brota (sob seu aspecto formal), tem sua origem no fato do homem ser uma consciência pensante, isto é, que ele faz a partir de si mesmo e para si o que ele é e o que em geral é. As coisas naturais são apenas

imediatamente e uma vez, mas o homem como espírito se duplica, na medida em que primeiramente, como as coisas naturais, é, mas logo é igualmente para si, ele se intui, se representa, pensa e através do ser para si ativo é espírito. (E. I, 52)

Vemos que para Hegel, como para Marx (veremos em seguida), o homem é imediatamente ser natural. Os seres naturais existem imediatamente porque são dados na natureza (ainda que esta seja, como vimos, uma intuição do espírito em seu estágio de indeterminação), e não produtos da atividade. Existem uma vez, porque reproduzem-se reproduzem-sempre da mesma maneira, e reproduzem-sempre como meras existências em si, desprovidos de autoconsciência. O homem é primeiramente ser natural e portanto imediatamente um mero em-si; contudo, é também uma consciência pensante, espírito. A qualidade espiritual é o que o caracteriza como ser distinto da mera naturalidade. Pela atividade do espírito, o homem se duplica em representações de si mesmo. Essa atividade o torna um ser para si, na medida em que suas reproduções de si o tornam progressivamente consciente de si como espírito. A passagem prossegue:

25 Utilizo a edição brasileira dos Cursos de Estética: HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética. Volumes I a

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