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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Tecnologia e Ciências Instituto de Geografia. Lenice da Silva Lira

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Instituto de Geografia

Lenice da Silva Lira

A paisagem da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII: a invenção da marca-matriz carioca

Rio de Janeiro

2009

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A paisagem da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII: a invenção da marca-matriz carioca

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Gestão e Estruturação do Espaço Geográfico.

Orientadora: Profª. Drª. Zeny Rosendahl Co-orientador: Prof. Dr. Amandio Miguel dos Santos

Rio de Janeiro

2009

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CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CTC/C

Autorizo , apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese.

__________________________________ ___________

Assinatura Data

L768 Lira, Lenice da Silva

A paisagem da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII : a invenção da marca-matriz carioca / Lenice da Silva Lira. – 2009.

102 f. :il.

Orientador: Zeny Rosendahl

Co-orientador: Amandio Miguel dos Santos

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Geografia,

1. Paisagens culturais – Rio de Janeiro (RJ) - Teses. 2.

Passeio Público (Rio de Janeiro, RJ) - História - Teses. 3.

Valentim, Mestre - ca.1745-1813. 4. Joaquim, Leandro – ca.

1738-1798. I. Rosendahl, Zeny. II. Santos, Amandio Miguel dos. III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Geografia. IV. Título.

CDU 91(815.3)

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Lenice da Silva Lira

A paisagem da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII: a invenção da marca-matriz carioca

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Gestão e Estruturação do Espaço Geográfico.

Aprovada em 23 de setembro de 2009.

Banca Examinadora:

_____________________________________

Profª. Drª. Zeny Rosendahl (Orientadora) Instituto de Geografia da UERJ

_____________________________________

Prof. Dr. Amandio Miguel dos Santos Departamento de Educação da UERJ

_____________________________________

Profª. Drª. Maria da Glória Araújo Ferreira Escola de Belas Artes da UFRJ

Rio de Janeiro

2009

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DEDICATÓRIA

À minha família.

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Gostaria de registrar meu reconhecimento e gratidão àqueles que de diferentes maneiras contribuíram para a realização deste trabalho.

Agradeço à Prof. Dra. Zeny Rosendahl por sua orientação, competência, confiança, generosidade, afeto e ousadia em trilhar caminhos ainda pouco conhecidos na geografia, sem os quais esta dissertação permaneceria na condição de projeto.

Ao Prof. Dr. Amandio dos Santos, sou grata pelas sugestões e observações que possibilitaram outros olhares sobre o tema pesquisado.

Meu sincero reconhecimento às contribuições teórico-conceituais do corpo docente do Mestrado desta instituição.

Aos professores da Banca de Qualificação, Dr. João Baptista Ferreira de Mello e Dr.

Roberto Lobato Corrêa, agradeço pelas observações e advertências que foram importantes para o desenvolvimento desta pesquisa.

Agradeço à Prof. Dra. Glória Ferreira pelo encorajamento, confiança e generosidade, sempre renováveis.

Ao Prof. Antônio Carioca, je vous remercie infiniment pour la connaissance de la langue française.

Minha gratidão à Ana Carolina Terra pela realização da capa e configuração das imagens presentes nesta dissertação.

Agradeço também às secretárias do Programa de Pós-graduação em Geografia da Uerj:

Mayra e Nathália.

Aos familiares e amigos, especialmente à Penha, sou imensamente grata pelo incentivo

e carinho ao longo desse caminhar.

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Querer liberta: é esta a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade – assim vo-la ensina Zaratustra.

Mais não querer, mais não avaliar e mais não criar!

Ah! Oxalá nunca me chegue esse grande cansaço!

Foi para descobrir este segredo que eu atravessei o mar.

“Olha”, disse [a vida],

“eu sou aquilo que se tem sempre de superar a si mesmo.”

Friedrich Nietzsche

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RESUMO

LIRA, Lenice da Silva. A paisagem da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII : a invenção da marca-matriz carioca. 2009. 102 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

A presente dissertação de mestrado trata do processo de construção / constituição cultural da paisagem da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII. A abordagem do tema é realizada a partir da apropriação das pinturas de paisagem do artista-artesão Leandro Joaquim no contexto do Passeio Público do Rio de Janeiro de Mestre Valentim. Esta análise busca reconhecer, no século XVIII, a invenção da marca-matriz carioca, no olhar geográfico. Este objetivo principal que norteou nossa dissertação de mestrado desdobrou-se em objetivos secundários: 1) a identificação do olhar do pintor Leandro Joaquim sobre a cidade, que revela uma sociabilidade e uma espacialidade da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII; 2) o reconhecimento do Passeio Público como um elemento relevante na constituição da paisagem carioca; 3) a reflexão sobre a identidade carioca. Neste sub-item privilegiamos a presença artística de Mestre Valentim. Acrescentamos que não é de interesse de nossa análise, nesta dissertação, dar ênfase ao trabalho de Mestre Valentim, contudo não poderíamos analisar o jardim de Mestre Valentim sem abordar a sua influência. Assim a apropriação dessa obra vem completar nossa reflexão sobre a constituição da paisagem carioca.

Palavras-chave : Paisagem. Rio de Janeiro. Pintura. Jardim. Leandro Joaquim. Mestre

Valentim.

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Cette dissertation présente une réflexion sur le processus de constituition du paysage de la ville du Rio de Janeiro au XVIII

e

siècle. L’analyse du thème est réalisé à partir de la appropriation de la peinture du paysage de l’artiste brésilien Leandro Joaquim, dans le contexte de l’oeuvre architectural du Passeio Público do Rio de Janeiro, realisé par l’architecte brésilien Mestre Valentim. Cette analyse a pour objectif reconnaître, au XVIII

e

siècle, l’invention de l’empreinte-matrice carioca, au point de vue géographique. Cet objectif principal a se déployé en autres, à savoir : 1) l’identification du regard du peintre Leandro Joaquim sur la ville carioca ; 2) la reconnaissance du Passeio Público du Rio comme un élément fondamental de la constituition du paysage de la ville du Rio de Janeiro ; 3) la réflexion sur l’identité carioca.

Mots-clés: Paysage. Rio de Janeiro. Peinture. Jardin. Leandro Joaquim. Mestre Valentim.

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Figura 1 – Leandro Joaquim – Vista da Igreja e da Praia da Glória... 39

Figura 2 – Leandro Joaquim – Pesca da Baleia...40

Figura 3 – Leandro Joaquim – Visita da Esquadra Inglesa...42

Figura 4 – Leandro Joaquim – Revista Militar do Paço...44

Figura 5 – Leandro Joaquim – Romaria Marítima...46

Figura 6 – Leandro Joaquim – Lagoa do Boqueirão...47

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1 A EXPERIÊNCIA DA PAISAGEM ... 19

1.1 A paisagem no Ocidente ... 20

1.2 Paisagem e geografia ... 22

1.3 Paisagear: o espaço geográfico artializado ... 31

2 A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM CARIOCA: VISÕES DE LEANDRO JOAQUIM E DE MESTRE VALENTIM ... 34

2.1 Leandro Joaquim: tempo e espaço de um painel ... 35

2.2 O Passeio Público do Rio de Janeiro: Leandro Joaquim e Mestre Valentim .. 49

3 ENFIM A PAISAGEM: A INVENÇÃO DA MARCA-MATRIZ CARIOCA 53

3.1 A paisagem carioca: a figuração da natureza e da cidade por Leandro Joaquim ... 68 3.2 A paisagem carioca: a figuração da natureza e da cidade por Mestre Valentim ... 77 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: Pintura e jardim na construção de uma espacialidade ... 84 REFERÊNCIAS ... 95

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INTRODUÇÃO

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Tornai-me a aparecer, entes imaginários, Que me enchíeis outrora os olhos visionários!

Poder-vos-ei fixar?... Tenho inda coração Capaz de se render à vossa sedução?...

Goethe, Fausto

Nós, ocidentais, temos os olhos voltados para um mundo-objeto no qual buscamos informações e que, por isso, fazemos cúmplice de nosso conhecimento. Nós o violamos para conhecê-lo, pois lhe atribuímos o que não lhe é próprio. E o principal instrumento que usamos para isso é a razão – que confundimos com a nossa própria identidade.

Nós estamos tão embriagados pela razão que permitir o que não tem razão, o que nos escapa, parece, ainda assim, razoável. Tudo sugere passar por ela, ter o seu consentimento. A razão parece sempre dizer quem somos, o que estamos fazendo, que sentido temos, o que sabemos e o que não sabemos. O que está além ou aquém dela parece-nos estar além e aquém de nós.

Não há dúvidas de que existe algo fora de nós: a natureza. Mesmo considerando-a um para nós, não podemos negar sua primogenitura. Talvez o próprio fato de sabermos que a razão não elucida tudo permita o diálogo entre ela e a imaginação, uma vez que as possíveis experiências da mente diante da realidade ultrapassam os limites do pensamento lógico.

A racionalidade científica construiu uma representação do mundo que privilegia

alguns aspectos. O modo de pensamento próprio do ocidente - tanto em suas modalidades

lógicas como em seus hábitos e referências culturais - impõe obstáculos à apreensão ou à

abordagem de outros significados do mundo. A razão tornou-se senhora do homem, demarcou

seus limites, tentou objetivar tudo, inclusive a ela mesma, criando uma autoconsciência, a

qual ela não tem acesso e que se encontra por detrás da cortina. É preciso, agora, abrir novos

horizontes, avançar e ultrapassar as fronteiras da razão, e para além do pensar, também o

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sentir. É preciso que nos atrevamos a olhar o que há para além do horizonte. Esse convite alia- se à epígrafe de Goethe: rendamo-nos à imaginação.

Uma das características da geografia é o gosto pelas viagens. O geógrafo, um viajante teórico e empírico, é aquele que se deixa seduzir pelo desconhecido e pelo encontro com outros mundos, com diversas realidades. É através da imaginação que o desconhecido e o possível se manifestam. Denis Cosgrove, por exemplo, atribui à imaginação o principal modo de transformação que a existência humana possui diante da natureza. Para ele, a imaginação

“é o que dá significado ao mundo. A imaginação não é exclusivamente dos sentidos, aos quais nos alinhamos com a natureza, nem somente do intelecto, no qual nos separamos da natureza. (...) A imaginação representa um papel simbólico, apoderando-se de informações sem reproduzi-las como imagens miméticas e ‘metamorfoseando-as’ através de sua capacidade metafórica ao criar novo significado” (1994: 388).

É essa expansão de significado do mundo que a geografia cultural busca: compreendê- lo além da camada rasa da objetividade, difundida pelo paradigma moderno-clássico.

A questão central desta pesquisa é identificar o significado da paisagem da cidade do Rio de Janeiro na visão de Leandro Joaquim, pintor do século XVIII, no contexto do Passeio Público do Rio de Janeiro – obra da autoria de Mestre Valentim. Esta análise busca reconhecer no século XVIII a invenção da marca-matriz carioca, no olhar geográfico. Este objetivo principal que norteou nossa dissertação de Mestrado desdobrou-se em objetivos secundários:

(a) a identificação do olhar do pintor Leandro Joaquim sobre a cidade, que revela uma sociabilidade e uma espacialidade da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII;

(b) o reconhecimento do Passeio Público como um elemento relevante na constituição da paisagem carioca;

(c) a reflexão sobre a identidade carioca.

Neste subitem privilegiamos a presença artística de Mestre Valentim. Acrescentamos que não é de interesse de nossa análise, nesta dissertação, dar ênfase ao trabalho de Mestre Valentim, contudo não poderíamos analisar o jardim do artista colonial sem abordar a sua influência. Assim a apropriação dessa obra vem completar nossa reflexão sobre a constituição da paisagem carioca.

Propõe-se, então, uma abordagem geográfica das imagens de lugares, que concilie as

camadas objetivas e subjetivas – no que se refere à subjetividade do observador –, que

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compõem a realidade – simultaneamente objetiva e subjetiva, como assinalou Augustin Berque. Essa tendência vem sendo desenvolvida no cenário das geografias inglesa e francesa.

No Brasil, a tese de doutorado de Luciana Martins (1998) introduz essa abordagem geográfica e iconográfica da paisagem. Em seu trabalho, a autora estabelece um paralelo entre a produção de imagens dos trópicos, o conhecimento científico e a experiência de viagens, sob a ótica de uma “geografia imaginativa” (SAID, 1996) como discurso legitimador de entidades geográficas nas obras dos viajantes ingleses na primeira metade do século XIX. As imagens produzidas por artistas estrangeiros constituem expressões de atitudes sociais e processos materiais de um lugar, particularmente o Rio de Janeiro, e não apenas um registro da realidade local, cuja representação é pensada como espelho do mundo. Essa leitura da iconografia está presente nas análises de Luciana Martins, que critica o clichê Rio Antigo por reduzir essas imagens a uma condição estática e petrificada e impedir qualquer tentativa de abordagem desvinculada do caráter documental. O registro da paisagem também indica uma configuração de ideias que engendrou sua construção.

A literatura consultada nos permite reconhecer que as pinturas da paisagem da cidade do Rio de Janeiro, aqui apropriadas como objeto de análise e de interpretação de sua realidade, bem como um instrumento de conhecimento do mundo, abrigam visões de mundos que, na construção do olhar e do ambiente físico, instituem e constituem o sentido das coisas e da própria paisagem. Atitudes sociais, valores e significados são, dessa forma, motivados pelo sentido ora encarnado no espaço físico, ora a vagar em busca de territorialidade.

Assim, a paisagem significa a expressão mais contundente das relações materiais e simbólicas. Dentro desse cenário, direcionam-se as reflexões sobre a formação da identidade carioca adonada pela produção e circulação de imagens de sua natureza, de cenas urbanas e de gênero na Europa e no Brasil do século XVIII.

É neste contexto que as obras de Leandro Joaquim (ca.1738-1798) e o jardim do Passeio Público de Mestre Valentim (ca. 1745-1813), emergem como sítios da manifestação do sentido da paisagem carioca nessas duas expressões artísticas – a pintura de paisagem e a arte do jardim (paisagismo), onde também se expressa o sentido da existência de uma dada sociedade.

Estamos diante de dois artistas, uma nacionalidade, dois papeis imaginários

simbólicos, que partilham um projeto comum. A escolha de Leandro Joaquim deve-se,

sobretudo, ao fato dele ter sido o primeiro pintor de paisagens do Rio de Janeiro que temos

registro. Assim, acreditamos estar contribuindo para o resgate de significados desconhecidos,

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e esquecidos, das paisagens da cidade do Rio de Janeiro, e do olhar original sobre o espaço e a vida na cidade. A segunda escolha na obra de Mestre Valentim corrobora com a constituição da paisagem carioca. A obra do arquiteto fluminense também é ilustrativa das condições socioeconômicas, culturais e políticas do Rio de Janeiro do século XVIII, instaurando novos sentidos para a vida na cidade. Os mundos envolvidos nesses recortes temporais são vários, serão revelados a partir da análise das pinturas produzidas por Leandro Joaquim e do jardim de Mestre Valentim.

A escolha das obras dos artistas fluminenses justifica-se pela tentativa de compreensão dos primórdios da constituição da paisagem carioca. O tema em ambas as obras é o mesmo: a paisagem da cidade do Rio de Janeiro.

O campo da geografia cultural fornece uma trajetória clara, e, dentro desse cenário de redescoberta da paisagem e de suas variadas manifestações, nossos objetivos adquiriram forma nesta pesquisa. As indagações entrelaçam a construção e a transformação da paisagem do Rio de Janeiro. A paisagem marca visualmente e encarna em sua composição os elementos natural e exótico. Elementos esses de formação da identidade local, legitimada pela produção das imagens e ao mesmo tempo em que o consumo dessas imagens reforça a identidade forjada. A verificação dessa hipótese é a razão dessa dissertação, que se concretiza mediante a apropriação das obras do pintor Leandro Joaquim e a influência de Mestre Valentim.

Os objetivos deste trabalho situam-se na intenção de mostrar como a paisagem pode constituir um modo de vida, um modo de ver, que estrutura e organiza o sentido da existência de uma dada sociedade no espaço; só a paisagem é capaz de atribuir sentimentos, recordações, história ao ambiente, tornando-se uma autorreferência da sociedade que a habita, portanto, parceira no jogo da vida. A paisagem entendida como uma relação específica da sociedade com o espaço e com a natureza, isto é, com o mundo exterior – os ambientes –, que desperta os sentimentos, a memória, a autorreferência, a alteridade, instaurando o sentido da existência humana.

O primeiro capítulo dessa dissertação apresenta a concepção de paisagem no Ocidente

e o seu desenvolvimento artístico e geográfico. É feita também a delimitação teórica e prática

nessas esferas do conhecimento. A estética do pitoresco é pouco ressaltada aqui, visto que

norteou a construção cultural e material da paisagem brasileira no século XIX. A visão

pitoresca é definida na literatura sob o primado dos valores pictóricos aplicados ao mundo

sensível observado. Cabe lembrar que a construção estética do mundo, como formas de

experiência e conhecimento, exige de seus habitantes o reconhecimento, a leitura e a

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interpretação dos diversos códigos que envolvem a construção da realidade. A paisagem então decorreria de um encontro entre o que é dado a ver e o que a cultura legitima no que ver.

Cabe aqui uma distinção entre paisagem e ambiente. A paisagem se situa a meio caminho de uma objetividade e de uma subjetividade. Ela tanto indica a separação como a possibilidade de reconciliação entre sujeitos e objetos. Sair para o mundo, abandonando a subjetividade, para ver a Terra, e contemplar paisagens, é um movimento que coloca a humanidade diante do outro, da alteridade, e de si mesma. Olhar o mundo e olhar a si mesmo.

Tal experiência remete a um outro modo de ser no mundo. Trata-se de um modo de ser que é espacial. O espaço passa a ser o fundamento da existência humana. Existir é lançar-se ao mundo, não ao recolhimento da interioridade pessoal.

É possível afirmar, desse modo, que a paisagem inaugura a experiência e olhar do e sobre o mundo. Já o ambiente, que é dado a ver a qualquer sociedade, não exige de nós o abandono de si e o repousar-se no outro, habitando-o. E neste caso (o da paisagem) significa habitar a Terra e reconhecer esse vínculo entre mundo e terra, que constitui o teor de nossa humanidade. São as paisagens e as obras de arte que nos permitem viver e expressar o sentido de uma existência que se realiza no espaço, no mundo, no exterior, com o mundo natural e construído. A arte exterioriza as relações pessoais com o mundo, que resultam em variadas manifestações artísticas. A paisagem é a manifestação de uma existência espacial. O existir não se restringe à condição espacial. O tempo é outro fundamento de nossa existência na Terra. O fato de falarmos pouco dele, deve-se à necessidade de dar visibilidade ao espaço como elemento constitutivo da realidade, da própria humanidade.

Ao darmos continuidade real à ideia da paisagem como manifestação de uma existência espacial, elaboramos o segundo capítulo. Nele apresentamos o artista-artesão Leandro Joaquim em uma análise das suas telas que retratam o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro e o arquiteto-artesão Mestre Valentim numa análise inicial de sua obra.

O terceiro capítulo vem completar as indagações sugeridas em nossos objetivos expostos nos capítulos anteriores. Nele são realizadas as reflexões sobre a formação da paisagem marca-matriz carioca privilegiando as obras desses dois artistas-artesãos.

A produção acadêmica, em geografia, com o objetivo de apropriar-se do registro visual nos permite falar de um início da paisagem carioca nesta dissertação de mestrado.

Trata-se de reconhecer a cidade-paisagem da época do Rio de Janeiro do século XVIII. A

magnitude dessas pinturas está no fato de ser a única referência do espaço carioca, nesse

período, retratada por artista. Lembramos que a figuração da paisagem brasileira existe desde

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o século XVII, com as obras dos artistas holandeses que imortalizaram a paisagem do

Nordeste. A partir daí é possível reconhecer os efeitos da invenção da paisagem na sociedade

e na produção do espaço da época e sua permanência na época atual. É nesse sentido que a

paisagem pode ser apropriada como conceito operacional, que permite a interpelação da

realidade, e, ao mesmo tempo, ser apropriada como objeto de investigação nesta dissertação,

pois em nossa análise a cidade-paisagem é apreendida enquanto real e representação.

(19)

1

A EXPERIÊNCIA DA PAISAGEM

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A sombra das nuvens corre pelo deserto e pelas estepes.

O céu está sempre tão perto.

A paisagem não se entrega.

O que você vê não se fotografa.

Mongólia, Bernardo Carvalho1

A experiência da paisagem significa em nossa abordagem o ver e sentir a natureza, seja no caráter ambíguo apontado por Alain Roger (1991) e/ou na relação complexa do sujeito e do objeto, como diz Berque (1994). Augustin Berque, geógrafo francês com estudos avançados em paisagem no Oriente, assume hoje na academia posição de destaque por sua produção de análise do conceito de paisagem. O conceito de paisagem é bastante antigo na ciência geográfica. Talvez seja um dos conceitos que mais tenha sofrido mudanças de paradigma. Sendo assim, neste capítulo, iremos nos deter na natureza da paisagem explorada por geógrafos e artistas. Traçamos esse caminho, pois acreditamos ser de fundamental importância à compreensão dos capítulos seguintes desta breve exploração.

1.1 A Paisagem no Ocidente

O termo paisagem foi empregado pela primeira vez em 1556, em Flandres (Bélgica), designando as cenas de trechos de uma região. Sua raiz mais antiga, século XV, situa-se nas línguas saxônicas: landskap, landschaft, landscape, e, por fim, nas línguas latinas: paesaggio, paysage, paisaje, paisagem.

A paisagem surge, no Ocidente, num período de transformações importantes nos âmbitos social e cultural denominado de modernidade. Nele, destaca-se a ascensão da burguesia, a laicizarão da cultura, a autonomia da Arte – e dentro de seu contexto a invenção

1 CARVALHO, Bernardo. Mongólia. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 41.

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do que os historiadores da arte chamaram de janela (veduta). Ela que dá para o mundo (natural) e que nos situa dentro e fora de sua cena. Imaginemos o espanto ou constrangimento que a paisagem deve ter provocado na sociedade da época ao indicar um novo modo de ver e de se relacionar com o mundo. O espanto/maravilhamento dessa percepção da natureza, ou do ambiente como é mais corrente dizer, inaugura o distanciamento, o recuo necessário para que se possa finalmente dizer a natureza e a nós mesmos. Então o espanto/maravilhamento transformou-se em júbilo depois de tantas viagens entre montes e vales sombrios, inóspitos e feios. Descobrir a beleza das montanhas, dos vales, dos rios, das florestas e dos mares, tornou os homens mais corajosos e aventureiros, determinados a conquistar o mundo através da visão. Enfim, o mundo como experiência visual; como tal, a paisagem estaria associada inevitavelmente ao ato de ver, que é marcado pela cisão entre "o que vemos e o que nos olha".

O sujeito que vê e o objeto visto, abrangendo todas as superfícies com as quais nos deparamos: o espaço da tela e a superfície terrestre. "Inelutável modalidade do visível", "que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha" (DIDI-HUBERMAN: 1998: 29). É essa cisão que caracteriza a modernidade e a invenção da paisagem no Ocidente.

A percepção imediata da paisagem refere-se aos volumes, às massas e aos contornos dos objetos, bem como às relações dos objetos entre si, apreendidos em um único golpe de vista. Ela é apenas aquilo que dela vemos: aparência. Sob essa perspectiva, é inevitável a descrição da paisagem. Contudo, em termos de paisagem, esse procedimento não basta. Pois, ela não se reduz às configurações espaciais, ao arranjo dos ambientes, às morfologias. Ela não se reduz ao visível, que operaria exclusivamente naquilo que vemos. Ela implica em um rebatimento do nosso olho nas coisas, que abre o nosso ser e nos olha, passando a nos habitar interiormente. O invisível nos espreita e sonda o Ser.

O filósofo e escritor Alain Roger (1991) ressalta o caráter ambíguo da paisagem expresso na dupla articulação país/paisagem, presente em várias línguas como pôde ser visto mais acima. Para Roger, o país

2

- o substrato material – constituiria o degrau zero da paisagem, ou seja, a base sobre a qual é realizado o ato de paisagear: que significa estetizar, artializar o ambiente. Artializar, segundo o autor, deve ser entendido, de um lado, como a inscrição dos códigos artísticos na materialidade do lugar, se artiliza

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in situ; e de outro lado, artiliza-se através do olhar – in visu – , do esquema de visão e percepção do lugar.

2 Cabe aqui um esclarecimento, o termo país será empregado com o sentido de região, de um trecho de terreno que pode ser percebido por qualquer indivíduo.

3 O termo artialisation foi empregado inicialmente por Michel de Montaigne (Essais. Paris: PUF – Quadrige, 1992, vol. 1, p.

89). Alain Roger retoma o conceito montaigniano com o intuito de enfatizar a importância da arte no processo de

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Não esqueçamos que no Oriente, uma estética paisagística, de matriz chinesa, figura na história desde o ano de 220 da nossa era. Sua datação implica que a paisagem é um fenômeno recente no Ocidente e, por essa mesma razão, nem sempre existiu ou esteve presente em todas as sociedades. Delimitar o que é e o que não é paisagem torna-se importante quando a tomamos como um instrumento de interpretação e conhecimento do mundo, e particularmente em uma análise filosófica, geográfica e ontológica.

Augustin Berque (1995) também assinala a importância da sensibilidade estética na aparição da paisagem, pois sem ela não haveria distinção entre ambiente e paisagem. Tendo em vista essa apreciação estética, o autor identificou algumas condições essenciais de existência da paisagem nas sociedades, são elas as seguintes representações: lingüísticas – termo ou termos para designá-la; literária; pictórica e territorial como os jardins.

Sem o distanciamento em relação à natureza, ao mundo externo, de modo tal que se operasse a sua transformação em objeto de contemplação, de apreciação estética, não haveria condições favoráveis ao desenvolvimento do que passou a ser designado, no Ocidente, de paisagem.

1.2 Paisagem e Geografia

Nem morfologia do ambiente nem psicologia do olhar. A Paisagem reside na inter- relação complexa do sujeito e do objeto, diz Berque (1994: 05). O estudo paisagístico se dedica à complexa relação indissociável entre sujeito e objeto, entre a instituição mental e a constituição material, entre forma e matéria: passagem, movimento. Nele reina a contradição, fundada pela dialética. O lógico e o ilógico, racional e irracional. A supremacia de um sujeito, que é a medida de todas as coisas, sucumbe, ou, pelo menos, tomba ao desregramento da natureza e das coisas externas que o atravessam e se projetam em sua direção.

A paisagem é essa contaminação de forma e matéria, sujeito e objeto, imagem do ambiente produzida pelo olhar. Dizemos contaminação porque são indissociáveis, contudo

transformação da natureza em paisagem, a partir da elaboração de um esquema artístico/estético de percepção e apreensão do mundo.

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distintos; unidos ao transitar de uma esfera à outra, perdendo suas identidades nesse trânsito.

O paradoxo paisagístico se instaura justamente neste ponto: sua unidade só é possível por meio do reconhecimento de sua fragmentação – no intercruzamento/inter-relação desses dois polos sujeito/objeto, tão bem definidos pela modernidade. Situar a paisagem em um desses polos concorreria para que a tomássemos por aquilo que ela não é: uma pureza de forma ou de matéria, natural. Teríamos configurações territoriais e pontos de vista diferentes do espaço.

Ela é de natureza híbrida.

Então o que qualifica a paisagem? A paisagem é um conceito e uma realidade que expressa a unidade e a fragmentação do mundo moderno. Na contemporaneidade, a paisagem tem passado por um processo de reinvenção, tanto no sentido da construção e adaptação a novas sociabilidades, como na elaboração de diferentes manifestações artísticas – a body-art e a land-art seriam exemplos.

A paisagem não é a forma ou a configuração espacial que nos cerca ou que chega ao alcance dos olhos. Mas precisamente aquele fragmento espacial que separo, suspendo e, depois de ruminá-lo, devolvo-o ao mundo, não mais como ambiente, e sim como paisagem.

Não basta percorrer, passear pela terra sob nossos pés, nem reconhecer suas formas com o olho. É preciso habitá-la, torná-la nossa, torná-la íntima, familiar e reconhecível como o nosso rosto. Pintar paisagens é esboçar nossa própria face na tela e/ou no ambiente.

Paisagear ou paisagismo é esculpir na rocha ou em outros materiais faces conhecíveis e reconhecíveis, até mesmo, faces ocultas de nosso ser. É sentir e, de algum modo, saber reconhecer um vínculo original com o mundo natural e construído.

Aqueles que desaprenderam a ver e para quem as coisas são o que parecem ser, é preciso a educação ou ensaio de novas experiências da paisagem, em que o anseio de contaminação entre os diversos meios de sua expressão – pintura, fotografia, cinema, escultura, Land Art, jardins paisagísticos, parques públicos e a paisagem geográfica – se apresenta como uma nova tendência. As conexões entre os diversos campos do conhecimento denunciam tanto a crise da paisagem – em termos de representação, interpretação e construção material –, quanto uma tentativa de resgate de conceitos, teorias, metodologias e práticas que permitam outras formulações sobre as mesmas. O que se verifica então é a ausência de parâmetros teóricos e instrumentais de análise das paisagens contemporâneas e do passado.

Definir paisagem entre os geógrafos tem sido uma tarefa difícil e arriscada. Ela parece

sempre nos escapar. Um sentido clássico perdura nas noções contemporâneas; elas acabam

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por não dar conta das metamorfoses sofridas pela paisagem enquanto experiência, prática e ideia. Categorias que antes auxiliavam na demarcação de seus limites desviaram-se e se tornaram tão problemáticas quanto o conceito que as evidenciou. A pintura, o enquadramento, o olhar parecem esconder segredos e intenções. E é essa possível verdade, velada nas paisagens, que buscamos. Pois acreditamos que os homens tecem suas ideias, sonhos e projetos de modos variados: pintura, literatura, música, espaço. O espaço não é, entretanto, tão somente matéria já constituída ou por se constituir; ele antes de assumir ou adquirir forma, já foi uma ideia, um projeto. O que são nossas paisagens senão ficções transformadas em realidade ou realidades travestidas de ficção, ilusão?

A geografia torna o conceito de paisagem mais rico. Podemos ao menos tentar vislumbrar alguns de seus contornos. Ela seria recortes de espaço que substituem o todo. Ela não poderia ser vista como pura fixidez, sem dinâmica social. Se tomarmos o espaço como um conjunto de objetos e ações, matéria e símbolos, relações sociais, ideias, valores, a paisagem de maneira alguma se reduziria ao aspecto material, visível. Tal definição estaria então em contradição com o conceito de espaço supracitado. A paisagem como categoria espacial deve conter os dois aspectos. Ela significa precisamente uma das abordagens do espaço (realidade) e traduz uma relação específica com a natureza, com o espaço, com o mundo. A paisagem é um modo de conhecer e interpretar a realidade: instituindo e constituindo realidades no espaço e no tempo ao atribuir-lhes significados e valores. O que poderia ser introduzido é a experiência estética, como elemento participante na construção de uma realidade que se percebe enquanto paisagem. Talvez esse seja o grande desafio para os geógrafos culturais: colocar a abordagem estética como abordagem espacial. Entender, ver e sentir seu agenciamento na elaboração e construção de uma realidade espacial.

Extrapolaríamos as generalidades que envolvem a cultura e entraríamos no território da vida dos homens. Construir geografias não seria um ato mecânico tão somente de modelar a superfície terrestre, mas de dar forma ao espírito. E assim estar mais próximo dos homens, da Terra, da natureza, do mundo, do ser, dos sentidos que tornam a nossa existência possível e histórica.

É possível trazer à luz o invisível, o que está oculto e esquecido: o sentido relacional

de todas as coisas existentes, e dentre elas o da vida humana na Terra. Isso aconteceu com a

sociedade chinesa; na paisagem chinesa o rosto de seu povo está estampado, seu caráter

singular, aquilo que a torna única e reconhecida diante dos outros e de si mesma. O mesmo

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não ocorre com o espaço. Ele é cosmopolita. A paisagem é província, particular. Um mundo que toma forma torna-se imagem, e viaja por terras próximas e longínquas.

Há que se desconfiar dessa síntese entre natureza e cultura, como se não houvesse uma terceira camada que revestisse ou modelasse uma paisagem que se apresenta como original, singular, ou pitoresca. Mas a paisagem não poderia ser outra coisa senão uma construção cultural, demasiada humana na preocupação dos ambientalistas. E anunciada por muitos como a revitalização da própria humanidade.

Cabe lembrar que nem todos os geógrafos compartilham dessa mesma ideia de paisagem. Para Milton Santos (1996), por exemplo, a paisagem constitui uma realidade congelada em um determinado tempo, um cristal que apresenta os sucessivos espaços-tempos de um lugar. Nesses termos, a ênfase recai sobre o tempo. E podemos acrescentar: a paisagem se situa no âmbito do puramente visível, deixando escapar as relações das quais a paisagem é marca-matriz.

É preciso pensar a paisagem como algo dinâmico, que envolve história e cultura em sua formação, e nas transformações do espaço e da natureza. Em virtude desse aspecto da paisagem – dinâmica e ambígua – que se pode fazer uma crítica à leitura picturalista desse conceito apresentada por Milton Santos (1996). Para o autor a paisagem é sempre o que é afetado, mas não algo que afeta, que promove mudanças, que opera nas instituições sociais, políticas e econômicas, quer dizer, na instituição da vida. Ela é mantida à distância do sujeito transformador; parece-nos que a paisagem só é experienciada enquanto imagem e contemplação, como denotam as palavras do próprio autor: “(...) a paisagem é (...) o espaço humano em perspectiva” (1996: 85); “imagem imobilizada”; “a dialética não é entre sociedade e paisagem, mas entre sociedade e espaço” (1996: 88). A paisagem não é a forma por excelência que muda de fisionomia de acordo com a mudança de sua função. O território, por exemplo, é uma das expressões do espaço. Logo, os limites entre as diversas manifestações do espaço devem considerar a escala de apropriação do espaço por cada conceito. No caso da paisagem, ela remete a uma apropriação sensível, que encerra a produção e reprodução do espaço, e que pode se situar tanto no âmbito do lugar até a terra inteira (planeta).

A paisagem é, decerto, para Santos (1996), o espaço da ausência de vida. Mas será

justamente como ausência, assim como a noite escura e indefinidamente sem contornos, que

emergirá a paisagem. Ela aparecerá então como paradoxo da ausência que torna presente o

invisível no visível. O importante geógrafo Milton Santos discorreu em seus estudos sobre a

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distinção entre paisagem e espaço a partir do exemplo de um espaço destruído pela guerra.

Para o geógrafo, este evento configuraria uma paisagem e não um espaço; isto porque este conteria a vida que o anima. Uma ausência começa assim a delimitar a paisagem como o lugar não-habitado, vazio ou deserto, que possui uma realidade fictícia, é só imagem. Contudo, há um outro sentido.

Em termos de paisagem, o fluir da vida não se realiza apenas nas passadas que damos no terreno, nas habitações que ocupamos, ou ainda nas cercas que levantamos e pontes que construímos para nos utilizarmos delas. Não são somente os usos e práticas que fazemos cotidianamente que qualificam a paisagem. Esta se constitui quando o pensamento que orienta nossa prática socioespacial é marcado pelas visões que temos do mundo natural e humano.

São visões singulares. Pensamos e produzimos o espaço a partir do nosso modo de vida, de um esquema de percepção e de concepção, de um sentido existencial que se fundamenta em algo essencial: o capital, o sonho, a natureza, a paisagem. No caso acima, a paisagem começa a ser esboçada como uma ideia que guia nossas ações e que nos acompanha em nossos percursos; e então ela nos habita, seja como memória ou como experiência cotidiana.

Sabemos então o ângulo exato para enquadrá-la e compô-la, concluí-la. No entanto, podemos considerar que essa “ficção” produz realidades materiais e até mesmo se confunde com elas.

Se aquele “pedaço” de espaço pode ser chamado de paisagem, não é porque as formas ali se encontram congeladas e a vida ausente. É além disso. É porque há ainda a presença humana, mesmo distanciada, através do olhar.

A natureza da paisagem é da ordem do visual e visível, em sentido amplo: feita para ser vista e fazer ver. Significa dizer que ela é constituída por matéria, que se dá a ver no ato de percepção e representação da mesma: objeto e construção mental. Parafraseando Didi- Huberman "o que vemos, e o que nos olha". Quando contemplamos uma paisagem, o primeiro contato se limita à apreensão de sua aparência enquanto entidade física, daquilo que se dá unicamente pelo visível, que apela aos sentidos. O ambiente ou uma configuração espacial do ambiente, composta por objetos e pelas relações deles entre si. Podemos descrever as variações espaciais desses objetos em relação. Esse polo reúne os objetos que se tornam presença diante do olho. Vê-se simplesmente.

Um outro momento é caracterizado pelo que nos atravessa, pelo que “nos olha”, é

aquele em que contemplamos o mundo. Esse atravessamento – constituído por sensações,

sentimentos, razão, faz o artista criar paisagens e os homens comuns ou ordinários

construírem paisagens, inspirados no que já viram e têm diante de si. Não conseguindo

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desviar o olho, sondam o que há por trás dessa aparência tão completa e vazia que nos olha.

Inspiração e imaginação dão início ao processo de produção das paisagens. A paisagem é esse objeto inspirado e imaginado que sob essa condição conseguimos diferenciá-lo no espaço. Isto significa que a paisagem não é algo dado e que se encontra diretamente na natureza ou nos espaços humanizados. Para encontrá-la, é preciso buscá-la incessantemente, selecionar o melhor ângulo, e enquadrar os elementos da área que se destacam e nos chamam mais a atenção. O que determina essa escolha é a qualidade do lugar: um determinado ângulo agrada mais a vista que outro, ou pode sintetizar a essência do lugar.

A paisagem feita para ser vista e fazer ver é marca e matriz. Ambiente e construção mental. Coisa e representação. Forma e matéria. Sujeito e objeto. Natureza e cultura. Ela não se situa tão somente em um desses polos. A paisagem deixa-se atravessar por essas duas perspectivas. Privilegiar uma delas é interditar as possíveis construções e experiências que possamos dela ter. É recusar habitá-la, permitindo assim que os sentidos atribuídos à ela, por gerações passadas e presentes, vivam na obscuridade do espaço vazio – desprovido de vida. É nesse sentido que podemos situar a ideia de médiance, difundida por Berque. Essa noção abrange a constituição de uma realidade em que a relação sujeito/objeto é anulada. Não há uma alternância de realidades, simbólica ou fenomenal, onde a verdade seja alcançada. A realidade emerge a partir dessas duas dimensões.

A ideia de paisagem estaria então ligada à matéria e às suas manifestações simbólicas.

Ela não possuiria somente uma existência material ou mental. Sua instituição e constituição se dão no momento em que é possível situá-la na matéria e na mente, nas realidades fenomenal e imaginativa.

A genealogia do conceito geográfico de paisagem remete ao princípio do século XIX, quando foi utilizado como um meio para explicação da realidade da superfície da Terra;

mediante a diferenciação de áreas, a paisagem era considerada o traço diferenciador das diversas unidades morfológicas.

Em fins do século XIX, período em que a Geografia foi institucionalizada, a paisagem

tornou-se, nos meios acadêmicos, o próprio objeto dessa disciplina, que passou a ser

denominada de “ciência da paisagem”. Entretanto, o tratamento dos fenômenos analisados à

luz dessa perspectiva remetia a um certo determinismo ambiental, tributário do pensamento de

Darwin, segundo o qual o homem estava submetido às leis da natureza e a uma objetivação da

realidade estudada – referência direta ao positivismo. Na geografia tradicional, a ideia de uma

paisagem definida pelas marcas do visível e, portanto, do dado material, foi bastante

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difundida. Essa visão garantia à ciência geográfica a possibilidade de ser objetivada. O estatuto científico era alcançado através de descrições minuciosas de lugares, configurando um verdadeiro inventário do mundo. O sujeito-observador não participava da construção do conhecimento.

Augustin Berque (1990) chama a atenção para esse caráter objetivo e fragmentário do conhecimento geográfico e da ciência em geral. No saber científico, não há conciliação entre a subjetividade do conhecedor e o mundo-objeto a ser conhecido. O sujeito conhece o mundo distanciando-se dele. Que tipo de mundo teremos, então? Decerto um mundo esvaziado de sentido, pois este se realiza quando há inserção do sujeito na construção do conhecimento. Assim, a instauração da paisagem se dá no momento em que o sujeito- observador lhe atribui um significado. É justamente essa busca do significado das coisas que anima as pesquisas na geografia cultural.

Para Denis Cosgrove (1994: 387),

geógrafos culturais partilham o objetivo comum de descrever e entender as relações entre a vida humana coletiva e o mundo natural, as transformações forjadas por nossa existência no mundo da natureza, e, sobretudo, os significados que as culturas inscrevem em sua existência e em suas relações com o mundo natural.

Passada a primeira fase de expansão e desenvolvimento desse conceito nos meios acadêmicos

4

, na geografia contemporânea, na Nova Geografia Cultural, a partir da década de 1970, reabilitou-se o uso do conceito de paisagem em suas investigações. Entretanto, essa reapropriação, ocorreu sob um novo prisma, no qual as pesquisas privilegiaram uma abordagem da paisagem geográfica fundada em seus aspectos material e simbólico, e em que a cultura é mediadora das relações. Ao comunicar e produzir significados, a cultura ativa as atitudes e os processos materiais de uma sociedade particular, ao mesmo tempo em que é ativada por eles. Nesse contexto, esta análise se desenvolve em direção a uma abordagem comprometida com o sentido da relação sociedade/natureza/espaço expressa nas representações de paisagem. Nossa reflexão impõe o real e o imaginário, o sujeito e o objeto em constante amálgama.

Os geógrafos culturais têm analisado e interpretado as produções artísticas em sua relação com a consciência de um conhecimento geográfico. O que se pretende com essas

4 Nas primeiras décadas do século XX, são notórios os estudos de Carl Ortwin Sauer (1925) sobre a paisagem. O autor privilegia o aspecto visível da paisagem, a “paisagem-marca”, em detrimento das concepções e construções que engendram a sua produção (“paisagem-matriz”).

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pesquisas é revelar o papel do conhecimento geográfico nas produções artísticas (CROWCH;

TOOGOOD: 1999). A paisagem, em particular, convida a essa abordagem, visto que nela reside uma referência direta ao ambiente e à sensibilidade ou afetação produzida pelo espaço nas pessoas. Desse modo, podemos vislumbrar uma aproximação entre geografia e arte, que se manifesta na experiência estética do real/lugar que perpassa ou freqüenta a construção das paisagens. Elas não se reduzem à construção do olhar. Também ele é capturado pela terra, pelos lugares que provavelmente chamaram a atenção dos viajantes, passando a habitá-los. A imaginação ecumênica produz imagens que não são apenas ideias, mas matéria, e, sob os pincéis do artista, guia o movimento das tintas criadoras e delineadoras da paisagem tropical, inventando-a para o olhar europeu e para o nosso olhar. Essa ambiguidade característica da paisagem – objetiva e subjetiva – despertou o interesse pela análise do Rio de Janeiro através de recortes da produção visual que a representa. A paisagem dessa cidade constituía, em fins do século XVIII e início do século XIX – e talvez ainda hoje – , um elemento gerador de uma identidade carioca. A imensa produção visual deste período endossa essa afirmação.

Toma-se como pressuposto que a paisagem constitui uma construção e uma dada concepção do mundo, feita não para ser vista apenas, mas para fazer ver o que indica: um mundo por ser visto. A imagem da cidade vem sendo construída ao longo do tempo, através da identificação com sua natureza. As montanhas do Pão-de-acúcar e do Corcovado, e mar, praias e Baía de Guanabara; e formas espaciais fortemente simbólicas – estátua do Cristo Redentor, estádio do Maracanã e outros. Basta vislumbrarmos um desses elementos, e a cidade de São Sebastião é evocada; afinal, a arte da paisagem constitui um meio de pensar as formas urbanas e naturais. A identidade carioca, portanto, resulta da difusão de suas imagens pelo mundo, nas quais a natureza e seus artefatos frequentemente a substituem.

Nesse sentido, a paisagem carioca é manifestação das múltiplas relações dos homens com o meio. De valores e atitudes, mesclados por mitos, utopias e visões de mundo que direcionaram o olhar sobre a paisagem.

Afigura-se, por isso, importante analisar e compreender a relação entre a cidade e suas

paisagens: sob as formas de céu, mar e montanhas, concreto, asfalto, ruas e edifícios, ocultam-

se os vários significados da urbe carioca. Não obstante, apreendida em sua realidade múltipla,

a paisagem expande o horizonte do conhecimento, de tal modo que as coisas, ao serem

nomeadas e representadas, assumem valores e sentidos em contínuo processo de

transformação. O valor tem caráter mediador entre as coisas, os seres e as representações de

ambos; ao mesmo tempo, forja o encontro dos homens com a natureza, ou seja, com a

conformação de um espaço em que se solidarizam, inaugurando o pensamento e a ação: o

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sujeito e o objeto em devir, isto é, o movimento do sujeito em direção ao objeto e deste em direção ao sujeito. Logo, é preciso pensar a paisagem não como algo fixo, mas como algo dinâmico que envolve tempo e espaço em sua formação.

Nas paisagens, as transformações temporais e espaciais preservam certas marcas da experiência humana com o meio. Nesse sentido, pode-se dizer que a paisagem é memória, como sugere Simon Schama (1996), e, ao mesmo tempo, recurso de interpretação do mundo, como aponta Augustin Berque (1984):

A paisagem é uma marca, porque exprime uma civilização; mas também é uma matriz, porque participa do sistema de percepção, concepção e ação – quer dizer da cultura – que canaliza a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza5.

Os elementos culturais, sociais e naturais, presentes na paisagem, constroem o imaginário coletivo em relação às concepções de cidade e de natureza redefinindo a relação dos homens entre si, com a natureza e com o espaço. Assim, a paisagem é vista como expressão dos elementos naturais e artificiais e, no aspecto cultural, é também o resultado da apropriação simbólica desses elementos.

Nesses termos, delineia-se uma abordagem da paisagem que se diferencia por entender a simultaneidade inerente à realidade subjetiva e objetiva. A subjetividade humana, nas palavras de Augustin Berque, “é reflexiva, portanto ela é capaz de objetivar em certa medida”.

Assim é que vemos, no apelo à arte – com seus meios (forma, cor, superfície, volume, textura), um recurso de aproximação entre as dimensões subjetivas e objetivas do mundo.

Segundo Vânia Carvalho (1991),

a obra de arte (...) [é] um suporte de representações coletivas indissociáveis da prática social. A ordem do imaginário, na qual a obra de arte se insere, opera como uma das forças reguladoras da sociedade (legitimação, resistência, coesão), sendo tão ativa quanto as demais estruturas sociais6.

Nessa perspectiva, a Geografia rompe com a ideia de que a realidade se reduz ao reflexo imediato do real e aspira revelar, pensar e criar mundos coletivos e individuais, ricos em significações, podendo, desse modo, melhor compreendê-los. É a paisagem que permite

5 BERQUE, A. “Paysage-empreinte, paysage-matrice. Eléments de problématique pour une Géographie Culturelle”. L’Espace Géographique, 1984, 13 (1), p. 03.

6 CARVALHO, Vânia. “A representação da natureza na pintura e na fotografia brasileiras do século XIX”. In:

FABRIS, Annateresa (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, p. 199-231, 1991.

(31)

essa riqueza e essa liberdade de interpretação do mundo. E é essa liberdade insinuada pela paisagem que nos impele a rasgar horizontes e desvendar universos desconhecidos e sentidos ausentes.

1.3 Paisagear: o espaço geográfico artializado

A pintura constitui uma imagem produzida por um sujeito individual – o artista, e, num primeiro momento, de caráter contemplativo, para capturar o imaginário do observador, uma vez que é próprio do Eu se projetar nas imagens em que se espelha.

As imagens são vistas sob um olhar de desconfiança, tendo sempre um tom pejorativo em quase todos os discursos sobre os meios de comunicação de massa. A tirania da imersão pictórica dos espectadores resulta em envolvimento emocional descontrolado sem a devida distância crítica da mensagem pictórica (BUDDEMEIER, 1993).

A pintura parece encontrar-se na fronteira entre a manipulação opressora, persuasiva, convidativa e, muitas vezes, dócil, e a libertação dessa manipulação. As relações entre o visível e o invisível, na pintura, aparecem intricadas. Para iludir, convencer, é necessário competência e faz parte desta antecipar com precisão a moldura, o olhar do observador, as circunstâncias da recepção da imagem, os códigos em jogo. O ilusionismo tem como principal função, e talvez única, fazer desaparecer a fronteira entre o real e o imaginário. A leitura da imagem não se faz imediatamente. É resultado de um processo, onde intervêm não só as mediações que estão na esfera do olhar que produz a imagem, mas também aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe. Pois, este não é inerte, ele participa do jogo.

Há vários elementos e operações comuns entre o processo pictórico e o olho humano

que favorecem uma identificação do meu olhar com o do pintor, resultando daí um sentimento

da presença do mundo na tela, simultâneo ao reconhecimento de sua ausência, uma vez que se

trata de imagens e não das coisas mesmas. A imagem recebida compõe um mundo

evidenciado por um olhar exterior a ele, que lhe organiza uma aparência das coisas,

estabelecendo uma ponte e um obstáculo entre o espectador e o mundo. A produção do

acontecimento que lhe é permitido ver e o seu próprio olhar são dois momentos distintos e

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separados por todo um processo. No ato de pintar estão implicados uma co-presença, um compromisso, um risco, um prazer e um poder de quem tem a possibilidade e escolhe pintar.

O espectador contempla uma imagem sem ter participado de sua produção, sem escolher ângulo, distância, sem definir uma perspectiva própria para a observação ou pontos de vista. Ao contrário das situações da vida em que se está presente ao acontecimento, no quadro, não se tem o trabalho de buscar diferentes posições para observar o mundo; tudo se faz em nome do espectador, antes de seu olhar intervir, num processo que evidencia o que talvez de outro modo seria, para ele, de difícil acesso. O espectador tem seus privilégios. Por outro lado, algo lhe é negado: a escolha. Pode-se escolher a emoção que se espera sentir, sem, no entanto, escolher o enredo a ser trilhado.

Vê-se tudo de perto, e bem visto, detalhado na tela, de modo a surpreender o curso dos acontecimentos, dos gestos suspensos. O usufruto desse olhar privilegiado, não a sua análise, é algo que a pintura nos tem garantido, propiciando esta condição prazerosa de ver o mundo e estar a salvo, ocupar o centro sem assumir encargos. Estar presente, sem participar dele. Na ficção pictórica, junto com a superfície revestida de tintas, o espectador está em toda parte e em nenhum lugar; em todos os cantos, sem preencher espaços, sem ter presença reconhecida.

O olhar da pintura é um olhar sem corpo. Identificado com este olhar, o espectador tem o prazer do olhar que não está situado.

Ao narrar essa estória, a pintura faz fluir as ações, no espaço e no tempo, tornando o mundo apresentável aos olhos do público. Em seu tornar visível, a mediação do olhar pictórico otimiza o efeito da ficção. A ilusão se apresenta tal e qual o real, fazendo com que haja uma identificação dos acontecimentos narrados com os da vida, identificação do espectador com a personagem e a paisagem. É nesse processo que ocorre a captura do olhar e a instituição de uma intenção, fazendo do espectador prisioneiro da mensagem, pois a representação, o olhar sem corpo, cria, na tela, um mundo abstrato, de sentido fechado, pré- julgado e organizado por ela.

Mas, também, a pintura permite que haja, ou melhor, evidencia a distância entre o real

e o imaginário. Na criação de uma encenação, ela nos mostra nosso lugar, o nosso espaço, ou

se preferirem, o estar ao lado, à margem do enredo, no belvedere ou no espaço do museu, na

condição de espectador/observador. Somos apresentados ao mundo retratado e com isto

apreendemos o seu significado e o seu lugar, como ficção ou ilusão. A consciência desse fato,

meio que óbvia, que toda obra de arte, nos liberta da necessidade de apreender sua mensagem.

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E faz com que vejamos mais claramente a mobilidade das construções imaginárias, e mesmo, que são construções.

A pintura é evidentemente um dos fabricantes de imagens. O olhar não é inocente.

Toda leitura de imagem é produção de um ponto de vista. O olhar fabricado é uma constante oferta de pontos de vista. Observar o mundo com este olhar fabricado, mas também colocá-lo em foco, recusando a condição de total identificação com o aparato, permite encontrar nos significantes pictóricos essa falsa homogeneidade cultural, ou seja, os signos, temas e símbolos que fazem parte do universo pictórico não podem ser reduzidos a um mesmo denominador comum cultural e contextual.

Nesse cenário, a paisagem cultural, conceito revalorizado pós 1980, contribui, e muito, para a interpretação do espaço. O geógrafo hoje possui mais um paradigma de compreensão à leitura de textos, gravuras, pinturas, escultura, arquitetura. Muitos foram os artistas!

Precisávamos selecionar dois deles. A nossa escolha premiou o pintor-cenógrafo Leandro

Joaquim e sua visão da cidade do Rio de Janeiro - que será o tema do próximo capítulo, e o

arquiteto Mestre Valentim – objeto de análise do capítulo subsequente.

(34)

2

A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM CARIOCA: VISÕES DE LEANDRO JOAQUIM E

DE MESTRE VALENTIM

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Ora, é do tempo e do devir que devem falar as melhores metáforas: elas devem ser um elogio e uma justificação de toda a transitoriedade.

Friedrich Nietzsche7

Este capítulo deve ser primeiramente contextualizado no espaço e tempo que ele ocorre. A cidade do Rio de Janeiro, início do século XVIII, tempo de cidade-sede do Vice- Reino de Portugal.

O artista destaca-se pela nacionalidade. É brasileiro. O contexto sócio-político o distanciou dos pintores portugueses, franceses e holandeses presentes em telas que retratam a vida na sociedade colonial nos séculos XVIII e XIX.

Acrescentamos que a nossa escolha por Leandro Joaquim ocorreu em virtude dessa nacionalidade. Pensamos: o artista do lugar na arte de representar o lugar; o artista morador do Rio de Janeiro na arte de representar o simbolismo do lugar em que vive. Isto constitui o tempo e espaço do Rio de Janeiro nos pincéis de um brasileiro.

O Passeio Público do Rio também terá análise neste capítulo.

2. 1 Leandro Joaquim: tempo e espaço de seus painéis

O artista/artesão Leandro Joaquim foi um dos poucos artistas mulatos que, à sua época, obteve destaque na arte brasileira. O pintor, cenógrafo e arquiteto, pertenceu à Escola Fluminense de Pintura.

Nasceu, viveu e morreu no Rio de Janeiro, então capital do Brasil colônia. A data de seu nascimento é desconhecida; estima-se que tenha sido no ano de 1738; e a de sua morte, em 1798.

7 NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1998.

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A sua vida e obra foram estudadas a partir do século XIX. Segundo o estudo de Amandio dos Santos (1994), os seus analistas se detiveram em suas imperícias técnicas;

apesar de reconhecerem o virtuosismo de suas pinturas, não reconheceram a importância de sua obra como uma das pioneiras no processo de laicização das artes plásticas do Rio de Janeiro. Gilberto Ferrez (1969), por exemplo, ressaltava a falha na perspectiva de suas pinturas, o que demonstrava o pouco domínio do artista do gênero pintura de paisagens. Já Araújo Porto-Alegre atribuía a Leandro Joaquim pincel suave.

Autor de vários retratos, painéis sacros e cenas do cotidiano do Rio de Janeiro colonial, Leandro Joaquim foi pintor oficial do Vice-Reino, retratista de D. Luis de Vasconcelos, coadjuvou Mestre Valentim em várias obras. O artista/artesão foi, muito provavelmente, o primeiro pintor de paisagens e cenas de costumes do Rio de Janeiro. Entre as suas obras destacam-se os seis painéis elípticos, pintados para o Pavilhão de Apolo no Passeio Público do Rio de Janeiro, e aquelas elaboradas para a documentação iconográfica do incêndio e reedificação do prédio do Recolhimento do Parto:

Vista da Igreja e da praia da Glória (fig. 1), Pesca da Baleia na Baía de Guanabara (fig. 2), Cena Marítima / Visita da Esquadra inglesa (fig. 3), Desfile Militar no Largo do Paço (fig.4),

Procissão Marítima ao Hospital dos Lázaros / Romaria Marítima (fig. 5), Vista da Lagoa do Boqueirão (fig.6),

Incêndio do Recolhimento e Igreja de N.SRA. do Parto, e

Feliz e Pronta Reedificação do Recolhimento e Igreja de N. Sra. do Parto.

Amandio dos Santos (1994) ressalta a sensibilidade de Leandro Joaquim em incorporar elementos naturais em formas livres. As suas pinturas apresentam uma organização geométrica ora perspectivada e ora cósmica. Para o autor, as suas obras têm uma influência do barroco-rococó, manifesta na organização dos grupos de figuras, nas atitudes e na composição geral. Contudo o artista fluminense transgride este modo de ver, fazendo aparecer sempre uma dualidade entre a natureza e o artifício, entre a ficção e a documentação, entre o instantâneo e o cenográfico.

Rodrigo Naves (1997) afirma que a pintura brasileira caracterizava-se pela temática

religiosa copiada das estampas vindas da Metrópole até o século XVIII. Assim, o pintor

colonial, quando recebia da irmandade a encomenda de um painel parietal ou de forro de teto,

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tomava as estampas religiosas como modelo de conteúdo e forma de sua composição. Em suma, ampliava ou mesmo modificava as estampas, estas muitas vezes eram escolhidas pelas próprias irmandades. Daí decorrem nas nossas pinturas coloniais certas "anomalias" no eruditismo da composição com o empirismo da técnica. E, de qualquer modo, deve-se levar em conta o modelo como valor de empréstimo, dilema que encontrou várias saídas na arte latino-americana do século XVIII, entre as quais uma nova invenção de iconografias que correspondeu a preocupações ideológicas regionais, já afeitas ao crescente poder da sociedade civil sobre o religioso e do processo de laicização urbana, ainda que em sua maioria, pelas mãos do Estado.

Amandio dos Santos, analisando a obra de Leandro Joaquim, descreve-a como inovadora:

Forma uma atitude distinta na qual se acentua a tendência na superação da bidimensionalidade física da representação das imagens oriundas das estampas. A construção de um espaço tridimensional é sugerida por atenuadas intenções de perspectiva e de trabalho em volume, que se conjuga a uma estrutura por superposições planimétricas. E as figuras e o cenário, em que se desenvolve a narrativa, exploram e superam a limitação do suporte. Reforça-se ainda que este processo é acompanhado por um movimento de dimensão psicológica, executado por uma gama de impressões. Desta maneira o artista buscou uma expressão de acordo com sua própria realidade e incorporou as estampas às suas necessidades expressivas, afastando-se da repetição dos modelos. (…) (1994: 133).

Em uma análise inicial da tela Vista da Igreja e Praia da Glória (figura 1), podemos

observar que a paisagem é composta pelos elementos Igreja da Glória, baía de Guanabara,

figuras humanas (pescadores), morros, embarcações e edificações. A presença desses

elementos indica o entrelace entre o artifício e o natural, entre cultura e natureza, que guarda

uma harmonia. Remete a um evento comum da vida na cidade do Rio de Janeiro, em que a

religiosidade guarda e proteja a cidade e seus habitantes. No primeiro plano avistamos duas

embarcações na baia de Guanabara: a da direita de pequeno porte, na qual se identifica um

provável pescador, a outra de porte médio, com velas recolhidas. O segundo plano também

apresenta embarcações (à esquerda da imagem) e a prática da pesca de arrastão. A imagem

sugere um papel para a baía de Guanabara: ela é responsável pelo fluxo de vida da cidade

como fonte de alimentação e como uma via de movimentação de pessoas, que chegam e saem

da cidade. O terceiro plano é composto pela Igreja da Glória, que ocupa o centro da imagem,

o que lhe garante uma posição privilegiada, indicando a importância da religiosidade na

cidade do Rio de Janeiro; à esquerda temos morros já com a vegetação devastada; à direita

encontra-se o casario que margeia a linha da praia.

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Essa pintura de Leandro Joaquim, em cada traço e pincelada, nos mostra e esconde

uma cidade, a cidade real e a cidade ideal, a cidade da época e a cidade do futuro. Formas

fortemente simbólicas. Luccock (1808-1818) afirmou ser esta a mais antiga representação

iconográfica da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro do Rio.

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Fig. 1 - Vista da Igreja e Praia da Glória, fim do séc. XVIII Leandro Joaquim (ca.1738 - ca.1798)

Óleo sobre tela (83 cm x 113 cm ) Museu Nacional Histórico (Rio de Janeiro, RJ)

(40)

Fig. 2 – Pesca da Baleia (circa 1785) Leandro Joaquim (1738-1798) Óleo sobre tela (112 cm x 131 cm) Museu Histórico Nacional (Rio de Janeiro, RJ)

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Essa composição, intitulada “Pesca da Baleia”, apresenta, segundo Santos (1994), no primeiro plano a ilha de Villegaignon, seguindo-se várias embarcações que vão à caça de baleias. À esquerda, a fábrica de extração de óleo das baleias, onde se vê, com detalhes, o processamento das várias fases desta operação. Esta “indústria” floresceu desde o século XVIII, quando os contratos de armações de baleias constituíam fonte rendosa para a Fazenda Real.

Era comum, nesse período, a presença das baleias do Atlântico Sul, que vinham

procriar na baía de Guanabara. Esse fenômeno ocorreu até o surgimento do navio a vapor. As

baleias, afirma Santos, tiveram uma grande importância na vida do Rio colonial, visto que

delas provinha o azeite que iluminava a cidade. A essência do óleo era também usada para

perfumar a urbe carioca. Esse aspecto pode ser considerado como um fator de atração

turística, visto que coloca em jogo uma tentativa de qualificação estética da cidade, de torná-

la atraente aos olhos do visitante estrangeiro.

(42)

Fig. 3 – Visita da Esquadra Inglesa (circa 1785) Leandro Joaquim (1738-1798)

Óleo sobre tela (111 cm x 149 cm) Museu Histórico Nacional (Rio de Janeiro, RJ)

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Na tela “Vista da Esquadra Inglesa”, segundo Santos, observa-se diante da fortaleza de

Villegaignon uma frota mercante inglesa, pois apresentam a bandeira britânica – white ensign

– aparecendo, nos mastros, galhardetes da mesma nacionalidade. Os navios salvam e são

respondidos por uma única fragata portuguesa que está na extremidade esquerda da tela. Vê-

se também a fortaleza de Gragoatá, a ilha de Boa Viagem com sua igrejinha, Jurujuba e

montanhas do Estado do Rio de Janeiro. A fragata, assim como as fortalezas e um pequeno

veleiro no primeiro plano, desfraldam a bandeira portuguesa.

(44)

Fig. 4 – Revista Militar no Paço (circa 1785) Leandro Joaquim (1738-1798)

Óleo sobre tela (111 cm x 139 cm) Museu Histórico Nacional (Rio de Janeiro, RJ

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