XXXIV E
NCONTROA
NUAL DAANPOCS
25 a 29 de outubro de 2010, Caxambu, MG.
FR - As Ciências Sociais e o Estudo da Política II: espaços de poder, estratégias escolares e ativismo militante
“Exercício Profissional, Formação Universitária e Atuação Política”
A
UTORA:
F
ERNANDAR
IOSP
ETRARCA(Universidade Federal de Sergipe)
Introdução:
Este artigo tem como objetivo apresentar um conjunto de reflexões sobre a relação entre defesa de causas sociais e a atuação profissional baseada em uma expertise e um conhecimento técnico. O ponto de partida consiste em um acúmulo de leituras e informações empíricas decorrentes de diferentes pesquisas realizadas nos últimos anos e que tem como foco a investigação de um conjunto de profissionais (advogados, psicólogos, médicos, jornalistas, assistentes sociais) que atuam na condição de portadores de saberes especializados em diferentes órgãos e movimentos dedicados a defesa de
“causas sociais e coletivas” (feministas, raciais, homossexuais, ambientais, direito da infância, movimento dos trabalhadores, etc.)
1.
Uma das questões que serviu como ponto de partida para as indagações iniciais do trabalho de investigação diz respeito às transformações do sistema de educação superior, sobretudo a sua expansão que consolidou, como nos mostra um conjunto de trabalhos sobre o tema, novas formas de investimento profissional. Nesse sentido, partiu- se do princípio que os processos de expansão do sistema de ensino superior permitiram uma maior diversificação das carreiras profissionais, permitindo novos usos da formação escolar e das percepções associadas ao título universitário (CORADINI, 2002;
PETRARCA, 2007, 2008, 2009; OLIVEIRA, 2009). Dentre essas novas diversificações apresenta-se a intensa atuação profissional em movimentos sociais e grupos voltados a defesa de “causas coletivas”.
Com o intuito de apresentar algumas discussões recentes sobre a relação entre exercício profissional, formação universitária e atuação política, esse artigo pretende, num primeiro momento, examinar as distintas problemáticas que se constituíram no âmbito das ciências sociais para pensar a relação entre profissão, política e militância. Tal relação tem atualmente, se tornado objeto de um conjunto de estudos e pesquisas. Num segundo momento, tomar-se-á o caso do ativismo jurídico na defesa de causas raciais para demonstrar analiticamente os desafios teóricos e metodológicos decorrentes do exame da relação entre usos de saberes especializados e investimentos militantes.
1 Dentre estas pesquisas podemos citar o trabalho de pós-doutorado, realizado em 2009, sobre ativismo jurídico e defesa de causas raciais no Rio Grande do Sul. E também o recente projeto sobre exercício profissional e atuação em organizações e movimentos dedicados a defesa de causas sociais e coletivas no estado de Sergipe, com o apoio do CNPq.
Institucionalização de Saberes Profissionais e a Esfera Política
Uma das preocupações centrais que tem orientado o conjunto das pesquisas feitas recentemente está relacionada às possibilidades de ampliação e intensificação das discussões, já consagradas na sociologia, da importância da esfera política na constituição de um projeto profissional, assim como do papel e do peso das profissões nos processos de construção política.
O estudo da relação entre Estado, esfera política e projeto profissional se constituiu nas Ciências Sociais como objeto legítimo de um conjunto de pesquisas que suscitou divergentes interrogações. A literatura referente à chamada sociologia das profissões tem destacado que o poder profissional está diretamente associado a uma menor influência e intervenção do Estado, e do campo político de modo geral, no controle e na organização das profissões. Essa escola, apesar de internamente diferenciada no que diz respeito às concepções sobre os processos de profissionalização, foi marcada pela análise do sistema de credenciamento social e dos critérios fundamentais de admissão numa profissão. Para os funcionalistas, que marcaram uma longa tradição na análise dessa temática, a profissionalização e a exigência de critérios legais se tornavam fundamentais para garantir a qualidade dos serviços prestados, uma vez que os clientes não dispunham de competências para apreciar tais serviços. Nessa perspectiva, o Estado tinha meramente o papel de conceder o monopólio legal às profissões reconhecendo a superioridade técnica das atividades profissionais (PARSONS, 1962).
Entretanto, é com base nas críticas à escola funcionalista que as gerações seguintes relacionaram o processo de profissionalização à formação de um mercado fechado, a um instrumento de poder e a base de um monopólio. Por um lado, alguns estudiosos, voltados à sociologia interacionista
2, relacionaram a preservação do controle profissional e a organização para manter a autonomia aos processos de interação social (HUGHES, 1981). Por outro lado, a crítica ao modelo internalista da análise das profissões, cedeu lugar às novas teorias sobre as profissões que se desenvolveram no curso dos anos 1970/1980 (DUBAR &TRIPIER, 1998). Este momento é marcado pelo contexto social e ideológico da época, no qual havia um acentuado antiprofissionalismo e
2Este termo é utilizado tal como definido por Dubar & Tripier (1998) e designa a perspectiva operacionalizada pelos sociólogos de Chicago, especialmente Everett Hughes e aqueles que foram os seus alunos, mais tarde seus colegas, como Howard Becker, Anselm Strauss, dentre outros.
uma dura crítica as profissões como um sistema injusto e desigual (RODRIGUES, 2002).
Dentre os autores a ganhar proeminência, neste contexto, estão Magali Larson e Eliott Freidson. Estes autores, de maneiras diferentes, relacionaram o processo de profissionalização a um conjunto de estratégias coletivas para estabelecer o monopólio sobre um mercado específico de serviços com a ajuda do Estado. Nesse sentido, o Estado permite à profissão a autoridade legal para selecionar, recrutar, examinar, licenciar, reavaliar desempenhos e estabelecer os limites formais da sua jurisdição. Contudo, a distância da política governamental é essencial para marcar a independência das profissões com relação ao universo político. Ao construir uma política própria, as profissões protegem-se dos interesses específicos do mundo da política. Portanto, o domínio da expertise e a demarcação de fronteiras no mundo do trabalho são as características principais da profissionalização.
Tais autores permitiram demonstrar que, em determinados contextos sociais, políticos e econômicos, a história das profissões tem sido marcada pela progressiva autonomia concedida a determinados grupos profissionais pelo Estado para realizar a função de reprodução e controle do mercado (BARBOSA, 1993; FREIDSON, 1998, 2001). Nesta linha, as profissões não estão separadas do processo político de construção do Estado moderno que concede menor ou maior autonomia aos grupos profissionais na definição dos critérios de acesso aos postos. Destacou-se como objeto de análise: o papel do Estado como intermediário deste processo, considerando seu maior ou menor poder de influência, seu grau de centralização, o desenvolvimento do Estado-providência e o tipo de intervenção sobre os sistemas de ensino e formação (RODRIGUES, 2002).
Enquanto nas abordagens funcionalistas o Estado responde quase que de maneira passiva na aprovação das competências específicas das profissões e nos direitos das associações profissionais, nas análises posteriores o poder profissional aparece associado ao poder do Estado, uma vez que as instituições do profissionalismo necessitam do Estado para se manterem e estabelecerem espaços reservados de atuação (FREIDSON, 1996). Contudo, um dos limites deste modelo centrado no mercado é o de não considerar os processos de institucionalização das profissões como uma maneira de ter acesso aos recursos do Estado e de fazer das carreiras profissionais uma forma de se promover no Estado e conquistar funções políticas e profissionais.
Entretanto, apesar da vasta tradição dos estudos sobre os universos profissionais,
a análise da relação entre estes profissão e política tem sido um objeto novo para as
ciências sociais, uma vez que a bibliografia sobre movimentos sociais e profissões destacou, durante muito tempo, a organização e a dinâmica interna destes espaços sem estabelecer um diálogo entre esses dois espaços sociais. Por um lado, destacou-se um conjunto vasto de trabalhos na linha dos processos de engajamento e mobilização coletiva, inserindo as discussões na sociologia dos movimentos sociais e da ação coletiva. Por outro lado, salientaram-se os estudos da formação de grupos profissionais e sua dinâmica interna de organização e funcionamento, inserindo, desse modo, as discussões na chamada “sociologia das profissões”. Nesse sentido, a relação entre
“profissão”, “política” e “militância”, recentemente, têm se tornado objeto de um conjunto de estudos e pesquisas.
A literatura atual tem salientado tanto a profissionalização da militância e da política, como as retribuições da atuação militante e as reconversões das competências profissionais (OFFERLÉ, 1996, 1999; SAWICKI, 1999). Podemos apresentar pelo menos três problemáticas principais que tem se destacado no sentido de demonstrar a imbricação entre profissão e política.
Uma destas problemáticas parte do princípio que os processos de profissionalização pelos quais passam as atividades ocupacionais não representam apenas uma forma de controle sobre a atividade e reservas de espaços no mercado de trabalho, mas constituem também os confrontos pela definição dos recursos legítimos para o ingresso e exercício profissional (BOIEGOL e DEZALAY, 1997, DEZALAY, 2002;
BOLTANSKI, 1982, BOURDIEU, 1984). Nesses confrontos, a esfera política e os recursos oriundos dos vínculos e investimentos em tal esfera têm se mostrado, fundamentais para definição de um espaço de atuação profissional. Destaca-se nessa linha um conjunto de estudos que investem na forma como são mobilizados os recursos oriundos de várias esferas, em especial a política, para os investimentos e definições profissionais. Portanto, trata-se de apreender os recursos sociais e os princípios de legitimação que estão na base dos processos de profissionalização (BOIEGOL e DEZALAY, 1997; DEZALAY, 2002; BOLTANSKI, 1982; BOURDIEU, 1984).
Uma segunda problemática que podemos dar ênfase é aquela que tem se
preocupado com os processos históricos específicos da relação entre política e profissão
que, como demonstrou Freidson (2001) são fundamentais para compreender a noção de
profissão aí implicada. Em situações como a brasileira, um conjunto vasto de trabalhos
tem demonstrado que a regulamentação das profissões e a exigência da formação
acadêmica voltaram-se não só para uma reserva de espaços, mas se constituíram como recursos fundamentais para atuar na esfera política. Nesse sentido, o processo de profissionalização das profissões envolveu tanto o Estado, que ofereceu oportunidades para que as elites profissionais usassem o seu conhecimento para investir na construção política do país, como os segmentos sociais de elite que se organizaram para influenciar o processo político através do conhecimento formal, obtido em universidades. Alguns estudos oferecem a base para pensarmos nessa problemática como, por exemplo, os estudos sobre o Direito (BONELLI, 1999, DEZALAY, 2002), os quais revelam uma relação dinâmica entre Estado e direito, em que os advogados brasileiros, por meio das associações profissionais, exploraram um diversificado conjunto de possibilidades para influenciar o Estado e não exclusivamente controlar o mercado. Assim, o Estado atuou como promotor da cooptação profissional, apadrinhando, inclusive com nomeação para postos públicos, os membros dessas organizações. Processo semelhante aconteceu com os economistas (LOUREIRO, 1997), em que os conselhos técnicos e outros que foram criados pelo Estado, contribuíram para formação do campo dos economistas no Brasil, além de consolidá-los como novo segmento da elite dirigente capaz de, através do conhecimento técnico, ocupar os postos oferecidos pelo Estado. Por conseguinte, as competências profissionais pouco eram avaliadas pelas capacidades técnicas e uma das características principais era a inserção dos profissionais em outras atividades para elevar seu prestígio social e profissional.
3Assim, o processo de formação das profissões e a imposição dos critérios legais se constituíram como uma forma de ter acesso ao Estado e, de modo geral, à esfera política que está na base de todo esse processo. A regulamentação e a exigência de critérios oficiais, como o diploma, se constituíram enquanto recursos vitais para agir em outras esferas sociais e, conseqüentemente, colocar a profissão a serviço de causas sociais diversas. Em função disso, as instituições de defesa da categoria exerceram tanto o papel de controle do exercício profissional e sua institucionalização como se constituíram como instâncias de acumulação de recursos sociais fundamentais para permitir um investimento na política estatal. Portanto, profissionalização e intervenção
3 Os trabalhos de Coradini (1997a) e Coelho (1999) mostram a importância, no caso dos médicos, da posse de um conjunto de outros recursos, além do diploma (como o amplo domínio de uma língua estrangeira, o conhecimento dos modelos médicos que se destacavam na Europa, elevada origem social, posse de uma cultura humanística e referências sociais, obtidas pelo intenso contato e pelas redes de relações de amizade e de reciprocidade) para garantir o reconhecimento e prestígio profissional.