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Este conto é ficcional. Todas as informações como locais e nomes, existem apenas na imaginação do autor e na de seus leitores. Amor nas profundezas, por René Henrique Götz Licht

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Este conto é ficcional. Todas as informações como locais e nomes, existem apenas na imaginação do autor e na de seus leitores.

Amor nas profundezas, por René Henrique Götz Licht – Junho/2019 Sinopse

Conto sobre jovens tentando viver suas vidas. Pais desinteressados ou arrependidos. Pessoas desaparecidas numa lagoa. Uma força desconhecida que a muitos intriga. Uma lagoa que amava.

I.

Marlon e Desyrée faziam mais uma de suas costumeiras caminhadas de final de tarde. Era quinta-feira, 23 de maio de 2003, dia típico de outono, com sol e temperatura bem agradável.

Dessa vez caminhavam pela ciclovia, em direção ao parque municipal. Estavam descontraídos e riam alto de si mesmos, dos outros e da própria vida. Estavam visivelmente felizes assim, como haviam escolhido estar.

Sentaram-se num banco e beberam um pouco de água que Desyrée havia trazido. Como era dia de semana, havia bem poucas pessoas caminhando; contaram talvez duas ou três. Não eram, mesmo, atraídos por grandes grupos; preferiam certa privacidade.

Apesar de morarem relativamente próximos ao parque municipal, nunca o haviam visitado.

Sabiam onde ficava e tinham uma ideia de sua extensão, mas não o haviam percorrido em sua parte interna. Talvez esse fosse o momento para essa descoberta. Decidiram, então, explorar um pouco do interior do parque.

Logo se depararam com uma área para crianças, com caixas de areia, balanços, gangorras e alguns outros brinquedos quebrados. A vegetação espessa do entorno dificultava um pouco a passagem do sol, mas parecia ser uma boa opção de lazer, especialmente para os cães e seus donos irresponsáveis, pois notaram muitos montes de fezes espalhados pelo local.

Sabiam que um riacho cortava o parque em algum lugar e decidiram descobrir onde ficava. Antes de avistar o riacho, um córrego ou apenas um fio d’água, depararam-se com uma lagoa, cuja existência ignoravam por completo. E nem era tão pequena: era circular com, talvez, quarenta a cinquenta metros de diâmetro e cercada por árvores altas, de copas espessas. A água, de coloração bem escura, parecia límpida e muito tranquila.

O parque municipal surgiu de chácaras que a indústria automobilística e a especulação imobiliária fez desaparecer. Numa dessas chácaras fora construída a lagoa que agora avistavam. Essa chácara pertenceu a um inglês de sobrenome Bay que morou ali com sua família entre as décadas de 1940 e 1960.

Na lagoa, na época dos Bay, havia peixes e abrigos para patos, marrecos, gansos e sua água era

utilizada na casa, na horta e para os animais. A lagoa fica entre dois rios, um hoje canalizado que

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corre sob a ciclovia e um riacho que atravessava toda a extensão da chácara. O nome junto aos órgãos da prefeitura é Lagoa Bay, mas isso é tão antigo e em desuso como as placas que proibiam a prática da natação, a pesca e a caça na lagoa.

Na face sul da lagoa, Marlon e Desyrée avistaram uma pedra grande e para lá seguiram, para apreciar a calmaria daquele final de tarde. Sentados sobre a pedra, em silêncio, respiravam aquele ar puro que só ali podia ser encontrado, com aquele cheirinho de mato úmido que os urbanoides desconhecem. Como era bom contemplar a natureza, nesse sentimento de liberdade!

Marlon aproximou-se da água e molhou as mãos. Estava numa temperatura convidativa. Por que não tomar um banho? Não havia aviso indicando alguma restrição para banhos. Certamente, em dias quentes, pessoas banhavam-se ali, principalmente jovens. E eles eram jovens!

Marlon decidiu, então, nadar um pouco. Tirou as roupas, dobrou-as e deixou-as sobre a pedra e foi para a lagoa. Ria e dizia para Desyrée olhar para o lado, pois tinha vergonha de ser visto nu.

Desyrée ria das brincadeiras de Marlon na água. Ele a chamou e ela, sem muita demora, tirou suas roupas também e foi juntar-se a ele. A água estava mesmo agradável e eles nem pensavam na possibilidade de aparecer alguém para surpreendê-los, nus, na água, ou para levar todos os seus pertences. São as inconsequências deliciosas da juventude que só são vividas uma vez.

II.

Dois dias antes, Marlon havia tido uma discussão muito intensa com seus pais. Dessas que põem um ponto final a muitas coisas.

Sua mãe estava feliz com o que supunha ser o namoro dele com Desyrée. E o pai, intransigente, reclamava que já não era sem tempo. Assim talvez parassem as insinuações.

Marlon e Desyrée eram amigos desde o curso de Arquitetura que iniciaram e concluíram sempre na mesma turma. Ele se interessava por design de interiores e paisagismo – o que o pai achava um absurdo para um homem - enquanto Desyrée se interessava pela parte mais “hard”, estrutural, da arquitetura. Ultimamente trabalhavam juntos, como freelancers, em projetos nos quais os dois pudessem atuar em suas especialidades. Embora ainda não ganhassem o suficiente para se tornarem arquitetos independentes, conseguiam se manter sem ter de recorrer aos pais.

Marlon explicou aos pais que os dois não eram namorados. Apenas gostavam da companhia um do outro, tinham gostos parecidos, faziam projetos juntos e, por isso, estavam mais próximos agora. Sua mãe insistia que isso podia ser chamado de namoro e o pai, mais enfático, retrucava que tinha de ser chamado de namoro. Afinal, o filho nunca havia mencionado uma namorada, nunca havia recebido visitas de uma possível namorada. O que era aquilo? Todos os filhos de seus amigos viviam cercados de garotas.

O clima tenso dentro de casa contrastava com a leveza da alma de Marlon. A pressão por uma definição, embora sutil, se fazia sentir, especialmente pela parte do pai.

- Se vocês vivem juntos, por que não estão namorando?

- Seu pai tem razão. Vocês passam tanto tempo juntos, por que não assumem logo o namoro?

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- Não somos namorados. Somos amigos e bons parceiros de trabalho. Só isso!

- Mas um de vocês deve estar apaixonado pelo outro, não?

- Não. Nem eu nem ela estamos apaixonados um pelo outro. É só amizade e profissionalismo.

- Mas, por que você não tenta beijá-la?

- Não! Isso seria nojento! Nenhum de nós faria isso!

- Como um homem, junto com uma mulher, não sente vontade de beijá-la?

- Eu não sinto essa vontade e sei que ela também não tem vontade de me beijar.

- Isso é um absurdo. Você precisa agir como homem. Encoste-a contra a parede e beije-a!

- Eu jamais faria isso. Nunca!

- E por que não? Você não é homem?

- Você quer mesmo saber, não é pai? E você, mãe? Quer saber também? Vocês já sabem o que eu sou, só não têm coragem de admitir. Se vocês me acham uma peça defeituosa, Desyrée é tão defeituosa como eu. Então, jamais haveria algo entre nós.

- Ai que vergonha, meu filho. O que será da nossa família quando todos descobrirem? O que falarão de mim na Igreja? E do seu pai? Todos os nossos amigos irão rir dele!

- Eu estava certo, então. Um homem que anda com outros homens. Que vergonha, meu Deus!

Por que isso foi acontecer logo na minha casa? É claro, a culpa é da sua mãe que sempre mimou você, desde pequeno. Saia da minha frente! Eu tenho vergonha de ser seu pai! Saia daqui e não volte nunca mais. Nunca mais!

- Filho, você está arruinando toda a nossa vida! Um homem não se deita com outro homem. Nem uma mulher com outra, então! Ai, acho que vou vomitar!

III.

A polícia acabara de chegar à lagoa, ao local da pedra. Encontraram as roupas do Marlon e da Desyrée, e todos os seus outros pertences. Aparentemente estava tudo intocado, exceto pela umidade do orvalho da madrugada. Um corredor que percorria as trilhas internas do parque avistou as roupas sobre a pedra e, como não havia sinal de pessoas por perto, resolveu informar a polícia.

Inicialmente veio uma viatura com dois policiais. Algum tempo depois, uma segunda viatura chegou com mais três policiais. Um deles procurou pelo celular junto às roupas do rapaz. Havia algumas mensagens e uma ligação não atendida. Deixou todo o restante como estava e acionou a perícia técnica.

Enquanto aguardavam a chegada da perícia, examinaram o entorno da lagoa, mas nada

encontraram que lhes chamasse a atenção. No entanto, notaram pegadas, de pés descalços que

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indicavam que duas pessoas haviam recentemente entrado na água. Agora procuravam pelas pegadas que mostrassem que duas pessoas também saíram da lagoa.

Os peritos do instituto de criminalística chegaram com o costumeiro atraso e só encontraram dois policiais que tentavam resguardar o local. Um dos peritos queria saber quem tinha sido o idiota que havia manipulado o celular sem luvas. Todo os pertences dos dois jovens precisariam ser levados ao instituto para posterior perícia técnica.

Como não foram localizadas pegadas mostrando que os dois haviam saído da água, os peritos suspeitaram de afogamento acidental ou de suicídio. De qualquer modo, o local precisaria ser isolado com fita e os curiosos, mantidos afastados.

Por sorte, parecia que uma única pessoa havia notado os objetos deixados sobre a pedra, justamente o corredor que havia informado a polícia. Isso já seria suficiente para não alardear suspeitas e atrair curiosos.

Onde não havia arbustos em volta da lagoa, algumas hastes foram fincadas no solo para que a lagoa pudesse ser cercada com fita plástica em todo o seu perímetro. A fita continha a descrição

“não ultrapasse” em toda a sua extensão. A pedra e o local das pegadas estavam dentro desse perímetro cercado. Fotos das cenas – da pedra e das pegadas – foram tiradas de vários ângulos.

O corredor que havia informado a polícia já há muito havia sido ouvido e dispensado. Não sabia de coisa alguma, exceto que vira os pertences abandonados sobre a pedra e, pela umidade na superfície dos pertences, imaginou que estivessem ali um bom tempo, abandonados. Achou que seria o caso de informar a polícia. Deixou nome e endereço caso fosse necessário testemunhar novamente.

Os pertences, já no instituto de criminalística, foram avaliados por técnicos peritos. Do Marlon encontraram celular, camiseta, cueca, cinto, calça jeans, um par de meias, tênis, uma carteira com identidade, cartão de crédito e algum dinheiro miúdo e uns cartões de visitas. Na mochila da Desyrée encontraram celular, toalha de rosto, garrafa d’água, uma barra de cereais pela metade, pente e escova, junto com uma carteira que continha identidade, um cartão de crédito, alguns cartões de visitas e duas notas de cinquenta reais. Encontraram também suas roupas, calcinha, sutiã, um par de meias, tênis, camiseta, calça jeans e uma tiara. Não encontraram bilhete algum que indicasse despedida.

IV.

- Sim, Marlon é o meu filho. O que aconteceu? O que ele aprontou?

- Ele se machucou? Sofreu algum acidente? Como ele está?

- Sei onde é. Assim que desligar saímos de casa, eu e minha esposa.

...

- Esses objetos pertencem ao seu filho?

- Sim. Onde foram encontrados? Como ele está? Estamos muito apreensivos com a falta de

notícias. Por que as roupas dele estão todas aqui?

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- O senhor ou a senhora reconhecem esses outros objetos?

- Sim, sim, são da Desyrée, a garota que ele namorava. E por que as roupas dela estão todas aqui? Meu Deus, o que aconteceu com eles?

- Foi o senhor que ligou para ele ontem, de madrugada?

- Não. Eu liguei. Marlon não era de passar a noite fora, sem nos informar. Então liguei, mas ele não atendeu. Será que alguém pode nos dizer o que está acontecendo? Eu estou muito assustada com tudo isso. Meu filho sem roupas e a namorada, também.

- Sim, vamos conversar agora. Por favor, aguardem-me naquela sala. Eu vou só buscar café.

...

- Então, vocês estão achando que eles se afogaram, é isso? Mas meu filho sabia nadar, e bem. E Desyrée também sabia nadar. Não podem ter se afogado. Assalto também não foi, pois tudo o que era deles está aí. Será que o senhor pode nos explicar melhor o que está acontecendo?

- Nós estamos tentando obter permissão para que mergulhadores façam uma varredura na lagoa Bay para ver se encontram algum corpo. Precisamos ter paciência, pois isso pode demorar um pouco. Precisamos trabalhar juntos: vocês nos informam se souberem de algo e nós faremos o mesmo.

- E sobre algum parente da Desyrée? Já fizeram contato? Conseguiram algo?

- Não. Ainda não descobrimos o contato dos pais dela ou de algum parente. Se vocês puderem nos ajudar, seria bom para ganharmos tempo.

- Nós não sabemos muita coisa dela. Ela mora numa edícula, nos fundos da casa da avó materna. Os pais são separados. Não sabemos o nome da rua, mas sabemos como ir até lá.

...

- Eu nunca vou perdoar você se nosso filho não voltar.

- Se você quer saber, entre um filho desaparecido e um filho gay, prefiro que esteja desaparecido.

- Você é um monstro! Nunca foi pai nem amigo dele. Um monstro, isso é o que você é!

- Você não é nem um pouco melhor do que eu, só está com a consciência pesada agora.

V.

Na manhã da terça-feira, 28 de maio, uma viatura com dois bombeiros mergulhadores finalmente chegou à lagoa. Lá encontraram uma outra viatura da polícia com os mesmos dois policiais que iniciaram toda a operação.

Até então, nenhum corpo fora encontrado boiando na lagoa Bay. Se estivessem ali, poderiam

estar presos a galhos ou a alguma estrutura submersa. Alguns corpos de suicidas e drogados já

haviam sido encontrados, boiando, mas isso há muitos anos.

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O primeiro mergulhador entrou nas águas, mas logo voltou à superfície. Disse que a lagoa era pouco profunda, mas que a água era muito escura. Precisariam de refletores potentes para iniciar a investigação. Pediram que dois refletores fossem enviados ao local, com urgência.

Depois de algumas horas de espera decidiram que não valeria mais a pena continuar esperando.

Começaram a arrumar tudo para partir. Os tanques de oxigênio já estavam acondicionados na viatura e as roupas de mergulho, também, quando apareceu uma viatura com mais um bombeiro mergulhador, um tanque e três refletores.

Mal-humorados, os dois mergulhadores começaram a tirar tudo da viatura novamente. Por que haviam mandado um terceiro mergulhador? Ninguém havia solicitado reforços, só refletores.

Possivelmente tratava-se de um erro de comunicação. Agora estavam lá três mergulhadores, três tanques de oxigênio e três refletores, junto com os dois policiais do início da cena. Embora já fosse um pouco tarde para iniciar uma operação dessas, avaliaram que seria melhor ao menos começar os trabalhos. Quem sabe, não teriam sorte e encontrariam logo os corpos, já que a lagoa Bay era bem pequena.

Acertaram o modus operandi: a lagoa foi dividida em três setores e cada mergulhador faria a varredura em um setor. Vestiram-se com as roupas de mergulho e entraram na água com seus refletores, cada um por um lado da lagoa. Agora, os três setores seriam vasculhados, das bordas para o centro.

Os dois policiais da equipe inicial ficaram próximos à pedra, observando a operação. Sabiam onde cada mergulhador se encontrava, pelas bolhas que subiam à superfície das águas.

Puderam perceber que os mergulhadores percorriam o fundo da lagoa em movimentos de ida e volta e em direção ao centro da lagoa.

A policial feminina, Cabo PM Valentina, estava especialmente interessada na operação. Era a primeira operação desse tipo a que assistia e tudo era novidade. Estava atenta às bolhas e sabia, assim, a localização de cada mergulhador. Parecia que a operação de varredura estava sendo bem-sucedida.

Um primeiro mergulhador veio à tona e encerrou a busca em seu setor. Saiu da água e se sentou sobre a pedra, para descansar um pouco. Relatou aos dois policiais que não havia encontrado nada de estranho, exceto que a lagoa tinha o formato de um funil e, no centro, sua profundidade era muito grande. Tentou mergulhar nessa região central, mas parou, pois a visibilidade começou a ficar nula.

Enquanto esperavam pelos outros dois mergulhadores, Cabo PM Valentina se deu conta de que havia dois mergulhadores ainda na água, mas só via um conjunto de bolhas na superfície.

Informou seu colega policial e o mergulhador que estava com eles. Esse mergulhador começou a ficar preocupado. O que estava acontecendo? Por que o tanque de seu colega não emitia mais bolhas?

VI.

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Os pais da Desyrée haviam sido encontrados, por telefone. Disseram que não tinham contato frequente com a filha; ela não era muito de ligar, nem eles. Não souberam dar informação alguma sobre o possível paradeiro dela, mas se colocaram à disposição para ajudar no que fosse preciso.

A avó materna da Desyrée, acostumada a vê-la muito pouco, não entendeu direito o que se passava. Além disso, parecia não estar bem de saúde. Conhecia o Marlon e gostava dele, mas os via pouco. Levantava-se bem cedo e recolhia-se cedo, o que não combinava com os horários dos jovens.

Os pais do Marlon já não contavam mais com a possibilidade de encontrá-lo com vida, mas estavam relativamente bem porque recebiam o apoio comovido de familiares e amigos. Alguns diziam que os dois estariam em algum lugar secreto, fazendo amor exaustivamente, como dois jovens saudáveis. As especulações sobre possíveis anomalias sexuais do filho haviam desaparecido e isso foi recebido com muito alívio pelos pais.

Os pais da Desyrée também ficaram menos apreensivos ao saber que ela havia desaparecido na companhia de um rapaz com quem andava junto, nos últimos tempos e que poderia ser seu namorado. Certamente seria e por que não? Afinal, as pessoas mudam.

O segundo bombeiro a sair das águas também relatou que foi até a parte central da lagoa e tentou descer, mas a profundidade era muita e a visibilidade, zero. Deve ter descido uns quatro ou cinco metro e decidiu retornar. Os dois policiais e os dois bombeiros estavam preocupados pela ausência de bolhas do terceiro mergulhador.

Cabo PM Valentina relatou aos colegas que o 1° Sargento BM Alexis estava se aproximando do centro da lagoa. Foi essa a última visão das bolhas, pois o primeiro mergulhador acabara de sair da água e ela deixou de observar as bolhas para ouvir seu relato.

Os dois mergulhadores decidiram retornar à água, direto para a região central. Foram juntos, mas não demoraram muito a retornar. Realmente, a lagoa Bay se assemelhava a um funil em que a parte central, de alguns poucos metros de diâmetro, era bastante profunda e escura. Precisariam de outro tipo de equipamento. Não haviam encontrado sinal algum do 1° Sargento BM Alexis, nem do Marlon ou da Desyrée. Não podiam fazer mais nada naquela situação.

Os dois bombeiros que participaram da operação estavam inconsoláveis. O 1° Sargento BM Alexis, o mais novo desaparecido era exatamente o número três que se juntou a eles, sem ter sido convocado para a operação. Como ele poderia ter desaparecido assim, à vista de todos?

O quebra-cabeças estava ficando mais complicado. Uma lagoa pequena, num parque municipal, escondia aparentemente três corpos: um casal de jovens e um bombeiro também jovem. Águas tranquilas, sem perigo aparente, nas quais três pessoas haviam desaparecido, uma sendo muito bem treinada exatamente em mergulhos em águas turbulentas. A polícia já não tinha mais como manter o caso longe dos olhos da imprensa ávida por tragédias.

Os pais do 1° Sargento BM Alexis mantinham-se em silêncio. Eram pais separados e parece que

cada um achava que o outro é que se tinha de preocupar com o filho. Não parecia que se

orgulhassem da profissão do filho: bombeiro mergulhador. Será que teriam preferido outra

profissão?

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A lagoa Bay, mesmo isolada pela polícia, passou a ser visitada e temida, embora não houvesse um único registro oficial de desaparecimento em suas águas. Uma nova força-tarefa seria acionada para avaliar como proceder daqui para a frente. Se sobre o paradeiro dos jovens podia haver dúvidas, essas dúvidas não existiam em relação ao 1° Sargento BM Alexis: seu corpo estava em algum lugar, na parte afunilada, em águas profundas e escuras.

VII.

Os peritos investigavam a hipótese de os três corpos estarem no fundo da lagoa, na região central. Sabiam, pelas informações dos mergulhadores que esse ponto central era profundo, mas quão profundo? Essa resposta precisaria ser obtida para que os próximos passos pudessem ser definidos. A polícia estava a dever algumas explicações e precisava trabalhar para encontrá-las.

Como tinham pressa, optaram por uma solução mais simples: um peso de mais ou menos dois quilos seria lançado nas águas da região central da lagoa, preso a uma corda com pelo menos cinquenta metros de comprimento. Era o que havia no almoxarifado da corporação e seria isso o que utilizariam.

Na quarta-feira, 12 de junho, uma viatura do corpo de bombeiros chegou ao local para iniciar a medição da profundidade da parte central da lagoa. Na viatura estavam um bombeiro, Cabo BM Augusto, que faria a medição, um estagiário que cuidaria dos materiais e Cabo PM Valentina da dupla de policiais que acompanhava o caso desde o início. O estagiário retirou o pequeno bote da viatura, inflou-o, trouxe o peso, a roda com a corda e uma proteção de lona grossa para colocar sobre a bote por onde a corda deslizaria. Cabo BM Augusto trouxe o remo e foi para a beira da água. Entrou no bote e remou até o ponto central da lagoa.

Tudo estava bastante tranquilo, apenas um ou outro curioso acompanhando o serviço. O dia estava claro e um pouco mais frio. Tudo pronto e Cabo BM Augusto lançou o peso na água e foi soltando a corda, com vagar. A corda possuía marcas coloridas de cinco em cinco metros e o estagiário anotava cada grito de “cinco” que Cabo BM Augusto lhe dirigia.

Cabo PM Valentina foi surpreendida por um rapaz que se aproximou. Ele se apresentou como Floriano, amigo do 1° Sargento BM Alexis. Seu olhar era de profunda tristeza; de desolação, mesmo.

- Alexis está lá embaixo. Eu sinto que ele está lá. Ele precisa de mim e eu dele.

- Se ele estiver lá, nós o encontraremos. Agora, Floriano, fique ali próximo da pedra. É mais seguro.

Após mais um grito de “cinco”, Cabo PM Valentina virou-se para o estagiário e, numa fração de segundo, Floriano lançou-se na água, nadando em direção ao bote. Cabo PM Valentina ainda conseguiu gritar para o Cabo BM Augusto, mas Floriano já havia tocado o bote. Foi tudo muito rápido.

Floriano agarrou-se ao bote que adernou, o Cabo BM Augusto perdeu o equilíbrio e caiu na água

com corda e tudo. Cabo PM Valentina atirou-se imediatamente nas águas, mas quando se

aproximou da região central já não havia mais sinal dos dois. Haviam afundado. Ela ainda tentou

mergulhar, mas como estava com seu uniforme, não conseguiu impulso para mergulhar.

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Nadou de volta, desesperada. O estagiário estava pálido; deixara cair a prancheta no chão e tremia. Assim que Cabo PM Valentina saiu da água foi até o estagiário para acalmá-lo e os dois passaram a andar por todo o perímetro da lagoa, com olhar atento, mas nada de anormal puderam encontrar.

Por rádio, Cabo PM Valentina contatou a chefatura e, com voz trêmula e embargada, informou o ocorrido.

- Foi tudo muito rápido. Eu acho que o Cabo BM Augusto se desequilibrou com a chegada do rapaz e talvez a corda tenha ficado enrolada em sua perna quando caiu na água. O rapaz, talvez tentou ajudá-lo, mas foi puxado para baixo junto com o Cabo BM Augusto.

- Sim, sim, já percorremos todo o entorno e nada! Preciso de um socorrista pois não consigo dirigir a viatura dos bombeiros; estou toda suja e molhada. Meu Deus, o que está acontecendo?

VIII.

A operação voltara à estaca zero. O total de vítimas crescia: o jovem casal, dois bombeiros e um mais um jovem rapaz. E todo o serviço perdido. Nenhuma resposta à comunidade.

Cabo PM Valentina teve muitas dificuldades para explicar por que deixara Floriano entrar na água, mas o depoimento do estagiário amenizou um pouco as coisas para ela. Ele viu Floriano chegar e ouviu Cabo PM Valentina pedir para que ficasse um pouco mais longe, em local seguro.

O estagiário também informou que havia contabilizado nove marcas de “cinco” o que significava que, pelo menos quarenta e cinco metros de corda já haviam sido lançados na água.

A hipótese de que a corda pudesse se ter enrolado na perna do Cabo BM Augusto ganhava força, já que era um peso razoável. Se o local fosse ainda mais profundo, havia o peso da corda mais o peso preso à corda. Isso poderia levar qualquer um às profundezas. Se Floriano tentou salvar o Cabo BM Augusto ou o Cabo BM Augusto agarrou Floriano para salvá-lo era algo que precisava ser esclarecido. Mas como, se ambos estavam desaparecidos?

A polícia local estava sob grande pressão tanto por parte de alguns familiares como por parte da sociedade e da imprensa. Os políticos da oposição classificavam as operações de amadoras, desajeitadas, irresponsáveis, catastróficas. Havia cinco desaparecidos – ninguém ousava dizer

“cinco mortos” – nenhum corpo encontrado numa região relativamente pequena e a vida não podia prosseguir, pois não havia óbito e, sem atestado de óbito, tudo permanece em suspenso.

O clima era propício ao aparecimento de charlatães, os pseudocientistas, que afirmavam que no centro da lagoa havia um buraco negro que sugava tudo. Outros defendiam que no fundo da lagoa havia uma porta para o inferno. A equipe ampliada que agora conduzia as investigações sabia que essas hipóteses eram absurdas, pois que vários profissionais haviam estado no centro da lagoa e não haviam sido “sugados” como estava sendo alardeado.

A hipótese mais provável era de que a parte central era realmente muito profunda e que um

redemoinho submerso forçasse tudo para baixo. Chegaram a cogitar que poderia haver um

sumidouro na lagoa que estaria em contato com os dos cursos d´água entre os quais a lagoa

estava localizada. Não havia muito mais a ser explorado. A equipe sabia que os cinco corpos

estavam nessa região profunda e teriam de içá-los antes que se decompusessem por completo.

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Considerando que não havia chances de encontrar algum dos cinco ainda com vida e que novas operações requereriam mergulhadores especialmente treinados e equipados para sondar regiões profundas e que nem esses profissionais nem os equipamentos estavam disponíveis com facilidade em território nacional, o que fazer daqui para frente? O desânimo tomou conta de todos. Com o passar do tempo o próprio assunto deixou de ser referência na imprensa.

Mas havia ainda um outro problema que, em algum momento, precisaria ser superado, caso as investigações continuassem. O medo havia se instalado entre policiais e bombeiros. Medo de ir e não voltar. Medo irracional e, por isso, forte. Medo infundado e, por isso, medo. Alguns profissionais foram sondados sobre disponibilidade de datas para um novo mergulho, mas todos, sem exceção, alegaram conflitos nas agendas. Sem muitas explicações, todos os consultados acabaram por declinar de um eventual convite.

Só a Cabo PM Valentina andava com inquietações: por que Floriano foi lá no fatídico dia 12 de junho para tentar salvar seu amigo Alexis. Que amizade era essa, afinal? Seria para salvá-lo ou para simplesmente juntar-se a ele. E por quê? Será que ele caminhou voluntariamente para a morte?

IX.

Alguém que participa de uma operação fracassada em vários momentos, não fica imune à sensação de fracasso. Cabo PM Valentina havia participado de todas as operações e todas haviam fracassado e sua imagem estava desgastada, associada com incompetência, falta de profissionalismo, de autoridade, enfim, falta de tudo quando falta um verdadeiro culpado.

Ela havia recebido uma oferta de licença do próprio departamento para evitar desgaste maior de sua imagem. Claro, além dos fracassos sucessivos da operação de investigação, ela era uma policial. Uma mulher que, mesmo em tempos modernos, ainda era vista como uma estranha no meio policial.

Ela aceitou a licença e começou a pensar no que faria durante esse mês em que ficaria com tempo livre. Não poderia viajar com o namorado pois ele estaria trabalhando. Teria mesmo de se ocupar com alguma coisa. Ela entendia que estava sendo posta como ré e entendia os porquês disso. Alguém tinha de ser responsabilizado e ela era a parte mais vulnerável e conveniente para todos. Seu chefe, policial experiente, sabia disso também e achou melhor preservá-la.

A ida do Floriano à lagoa para salvar seu amigo Alexis – ou a ele se juntar - ainda a perturbava.

Quem era esse Floriano, afinal? A retrospectiva em sua mente indicava que ele havia ido até o local, com convicção de que encontraria o 1° Sargento BM Alexis em algum lugar, no fundo da lagoa. E que precisaria estar lá, com ele. Tudo parecia como se uma força maior o tivesse atraído para lá para, enfim, doar-se à morte. Mas por quê? Ela começava a achar que Floriano sabia que tinha de ir para junto do amigo Alexis, para com ele permanecer na morte.

Ela decidiu que aproveitaria a licença para obter algumas respostas ou talvez mais perguntas sem respostas. Ela só não conseguiria ficar parada. Sua consciência a cobrava por respostas.

Como policial, ela tinha facilidade de acesso ao corpo de bombeiros onde o 1° Sargento BM

Alexis e o Cabo BM Augusto estavam lotados. Ela começou procurando fazer contato com

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colegas mais próximos aos dois. Desses colegas ouviu apenas obviedades: que eles eram profissionais sérios, valorosos, dedicados e que fariam muita falta à corporação. Até encontrar a Soldado BM Stela, uma colega de trabalho dos dois, em início de carreira e ainda muito abalada com as duas perdas.

Agora duas mulheres estavam conversando e as defesas pareciam amenizadas. A soldado BM Stela começou a falar deles mais como pessoas do que como profissionais. Costumavam sair juntos com certa frequência, para almoçar ou jantar, os três. Enquanto falava, não conseguiu conter as lágrimas: perdera dois amigos queridos, com os quais se identificava, em tão pouco tempo.

Cabo PM Valentina sentia que a Soldado BM Stela sabia de muita coisa que poderia interessá-la, mas que não revelaria tudo o que sabia, a menos que sentisse que podia confiar na Cabo PM Valentina. Cabo PM Valentina tinha de conquistar a amizade da Soldado BM Stela e isso não seria muito difícil, pois a Soldado BM Stela estava carente e vulnerável.

Cabo PM Valentina adotou a estratégia de revelar particulares sobre si mesma, como ambições pessoais e profissionais, seu relacionamento com o namorado e com os pais. Tocou num ponto crucial ao falar de sua situação profissional, com ênfase na rejeição, no fato de estar sendo usada como bode expiatório e sobre as mazelas que as mulheres enfrentam num ambiente predominantemente masculino. Parece que surtiu efeito e o gelo se foi quebrando. Soldado BM Stela identificava-se com a trajetória da Cabo PM Valentina e isso as aproximou, talvez mais do que o necessário.

X.

O 1° Sargento BM Alexis foi quem informou o Cabo BM Augusto e, posteriormente, a Soldado BM Stela, de que havia vagas na corporação dos bombeiros. Ajudou-os na preparação teórica e na prática para enfrentarem os exames, os testes e toda sorte de provas. Após um longo período probatório, os dois foram efetivados e deviam isso ao 1° Sargento BM Alexis.

Fora da corporação eles se encontravam em alguns clubes para gays. Embora nenhum dos três fizesse segredo sobre sua orientação sexual, nada era alardeado. Eram discretos, não tinham perfil de ativistas. Eram competentes e sabiam que teriam chances de conseguir ser aceitos na corporação por questões de mérito pessoal. Nos eventos sociais da corporação apareciam sempre desacompanhados. Não desejavam suscitar mal-estar algum.

Parece que, em algum momento, houve um princípio de relacionamento afetivo entre Alexis e Augusto, mas que não foi adiante. E parece que isso os aproximou mais, como amigos. Eram realmente devotados um ao outro; uma amizade bonita de se ver. Foi por isso que o Cabo BM Augusto se voluntariou para ajudar a encontrar seu amigo Alexis.

O 1° Sargento BM Alexis vivia um momento muito feliz em sua carreira e em sua vida pessoal.

Havia encontrado alguém muito especial, com quem sabia que passaria o resto dos seus dias.

Estava certo disso. Sabia-se estar amando e sabia-se estar sendo amado de um jeito único,

diferente de tudo o que já vivenciara. Desta vez era verdadeiro. Desta vez era para valer. E esse

grande amor de sua vida chamava-se Floriano.

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Exceto pelo Cabo BM Augusto e pela Soldado BM Stela, ninguém mais sabia do relacionamento entre os dois. Eles tinham planos de morar juntos, casar-se e ter muitos cães. Os dois adoravam cães. Estavam poupando o máximo que podiam para, com calma e no devido tempo, concretizar os planos. Não havia pressa, pois o futuro era deles, juntos.

Agora tudo fazia mais sentido para a Cabo PM Valentina: o desaparecimento do 1° Sargento BM Alexis, a vinda do Cabo BM Augusto para ajudar no que fosse possível e a chegada do Floriano.

Agora ela entendia por que Floriano apareceu lá naquele dia 12 de junho. Como ele teria conseguido saber local, dia e hora, se não fosse por meio do amigo Cabo BM Augusto.

Agora ela também entendia por que Cabo BM Augusto não mandou Floriano voltar. E, ao cair do bote, a reação instintiva do Floriano de segurá-lo com toda firmeza. Agora ela entendia o significado da última fala do Floriano: “ele está lá e precisa de mim e eu, dele”. Os dois estavam certos quanto afirmavam que ficariam juntos para sempre. E o melhor amigo comum, Cabo BM Augusto, desceu com eles às profundezas das águas para, na eternidade, continuarem a viver o amor e a amizade.

Depois de todas essas revelações tão passionais e pessoais, a Soldado BM Stela e a Cabo PM Valentina estavam muito próximas uma da outra. Cabo PM Valentina sentia que estar com a Soldado BM Stela era tão mais compensador do que estar com seu namorado. Ela sentia-se atraída por ele só que, exceto pelo sexo, não havia companheirismo, diálogo, identificação; era como se fossem dois conhecidos que ocasionalmente faziam sexo. Mas a Cabo PM Valentina não se via como lésbica ou será que a dúvida se havia instalado?

Soldado BM Stela também se sentia muito bem na companhia da Cabo PM Valentina: a pessoa certa apareceu no momento de maior necessidade. As duas passaram a se falar mais e mais e até a participar mais, uma da vida da outra. Se isso que estava acontecendo as encaminharia para um relacionamento afetivo ainda era cedo especular. Mas estava sendo muito gratificante para as duas.

XI.

Cabo PM Valentina comentou pormenores da investigação policial sobre o casal Marlon e Desyrée, com a Soldado BM Stela. Será que as mesmas circunstâncias levaram esse casal à morte? Mas não fora suicídio. Nem homicídio. A disposição dos objetos pessoais sobre a pedra não permitia essa hipótese. Cabia, apenas, a hipótese de acidente. Mas parecia que a força libertadora do amor estava presente nesse caso, também. Cabo PM Valentina queria investigar e foi prontamente apoiada pela Soldado BM Stela.

Cabo PM Valentina ainda tinha vários dias de licença para se pôr a campo. Coletaria informações e as discutiria com a Soldado BM Stela. Dois cérebros imaginativos pensam melhor que um único.

Enquanto isso, todas as operações de busca na lagoa Bay estavam suspensas, por prazo

indeterminado. Essa decisão serviu de pretexto para que a Cabo PM Valentina contatasse os pais

do Marlon para tentar obter deles alguma informação. Teria de fazer isso sem levantar suspeitas,

pois não era do departamento de investigações e estava sob licença. Mas pensaria numa forma

de atuar.

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Ela falou com a mãe do Marlon por telefone e perguntou se poderia lhes fazer uma breve visita de rotina. A mãe concordou e no dia marcado, ela foi visitar a família. Não foi uniformizada, mas mostrou seu distintivo e mencionou que a visita era apenas de cortesia para saber se a polícia poderia ajudá-los em alguma coisa.

Os pais foram cordiais, mas secos. Parece que não queriam mais tocar no assunto. Era como se a imagem do Marlon estivesse sendo paulatinamente deletada. Ela perguntou sobre como estavam os amigos do Marlon. Os pais se entreolharam e não souberam responder. Ela insistiu que poderia oferecer algum tipo de ajuda a algum deles quando a mãe mencionou um nome de um amigo, mas que nada seria necessário fazer. Ela percebeu que não conseguiria seguir mais adiante. Colocou-se à disposição deles e se despediu.

Com esse nome e algum esforço de pesquisa ela conseguiu o número do telefone desse amigo do Marlon. Ligou para ele apresentando-se e oferecendo-se para ajudar. No princípio, ele relutou em conversar com ela, mas ela soube ser suficientemente sutil e paciente. Ela lhe propôs que tentassem conversar e, se ele não se sentisse à vontade, interromperiam tudo, de imediato. Ele acabou cedendo às investidas e agendaram dia e hora para conversarem pessoalmente.

Como na conversa com os pais do Marlon, ela deixou claro que não se tratava de um depoimento e sim, uma conversa para tentar prestar algum tipo de ajuda. Ela não estava uniformizada, mas apresentou-lhe suas credenciais e relatou suas impressões, como policial, acerca do tipo de pessoa que Marlon era.

Ela conduziu a conversa de um modo que fazia parecer que ela era quem estava transmitindo informações ao amigo. Ela blefou quando disse que achava que o relacionamento dele com os pais não era muito bom. Essa foi a porta de entrada para que o amigo começasse a desabafar.

Os pais não aceitavam o fato do filho único ser gay. Não conseguiriam conviver com as censuras de familiares, amigos e colegas. Nem a presença da Desyrée abrandou as coisas, mesmo porque acabaram descobrindo que ela era lésbica e que nada resultaria daquele relacionamento. Marlon não namorava, mas um rapaz da comunidade gostava muito dele, mas não era correspondido.

XII.

Com essas informações, a Cabo PM Valentina foi correndo se encontrar com a Soldado BM Stela para tentar amarrar tudo o que já tinham. Será que ela se apressou porque queria conversar sobre as informações recolhidas ou porque queria apenas revê-la?

Sabiam que Marlon era gay e Desyrée, lésbica, e que estavam juntos porque acabaram se tornando grandes amigos e bons parceiros de trabalho. Um subproduto não desprezível dessa amizade era o fato de muitos passarem a pensar que os dois eram namorados e algumas demonstrações um pouco mais hostis foram sendo amainadas.

As duas imaginaram que o casal estava caminhando quando avistaram o parque e a lagoa Bay.

O banho não fora premeditado, já que nenhum dos dois levou toalha de banho nem roupa de

banho. Devem ter aproveitado o momento de felicidade, de paz e se lançado na água, como

muitos outros já devem ter feito. Para Marlon, seria um banho para se purificar dos fluídos

maléficos que ainda carregava da discussão que havia tudo com os pais.

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Devem ter-se aproximado da região central da lagoa e acabaram sendo puxados pelo redemoinho, sem muita chance. Mas não deixava de ser uma celebração do amor tendo as águas por testemunha. Também se deram conta de uma estranha coincidência: os cinco desaparecidos eram todos gays.

Cabo PM Valentina acrescentou que ela também havia mergulhado nas águas da lagoa quando do afogamento do Cabo BM Augusto e do Floriano e nadado até a parte central, retornando logo, pois sentia que as roupas e os coturnos a atrapalhavam e ela poderia se converter em mais uma vítima.

Soldado BM Stela, brincando, disse que Cabo PM Valentina não fora atraída ainda para as profundezas, mas o que ocorreria hoje, se tentasse mergulhar naquelas águas, como que fazendo menção a uma descoberta tardia da verdadeira orientação da Cabo PM Valentina. Foi uma provocação muito instigante para as duas.

Nesse interim, a prefeitura havia decidido intervir nesse imbróglio e, junto com o departamento de polícia e com o corpo de bombeiros, fariam esvaziar a lagoa, drenando a água para o córrego que corta boa parte do parque. Assim que a água tivesse sido retirada, uma nova inspeção seria feita.

A lagoa deixaria de existir e, em seu lugar, até pelo contorno geográfico, poderia surgir uma ampla pista de skate que atrairia muitos jovens ao parque.

Um dos técnicos da prefeitura que participava dessas discussões lembrou-se de que, num dos depósitos da prefeitura havia uma grande circunferência de concreto armado, de uns doze centímetros de espessura, por oito ou dez metros de diâmetro que fora encomendada para servir de portal para o município, mas se mostrou desajeitada para ser erguida e fixada com segurança.

Esse elefante-branco estava encostado, ocupando espaço e agora poderia ser aproveitado para ser colocado sobre o tal buraco central e servir de base para a pista de skate. A ideia agradou a todos, de imediato: vários problemas seriam solucionados de uma só vez.

Assim foi feito: as águas começaram a ser bombeadas para fora da lagoa Bay por duas poderosas bombas a diesel e canalizadas no riacho que corria bem perto da extremidade leste da lagoa. Em menos de dois dias a lagoa estava sem água, exceto por sua parte central que, como estimado, tinha em torno de três metros de diâmetro. O formato era mesmo de funil. A extremidade de uma das bombas foi levada para dentro do funil para tentar esgotar a água dessa parte interna, mas foi interrompida porque o comprimento da mangueira era insuficiente.

Retomariam os trabalhos no dia seguinte.

Partindo da grande pedra, os operários depositaram tapumes no chão até a parte central, para poderem caminhar com segurança sobre o fundo úmido e lodoso da lagoa.

XIII.

Cabo PM Valentina e a Soldado BM Stela não puderam acompanhar essa operação de perto, mas sentiam que deviam homenagear as cinco vítimas, de alguma forma. Compraram flores e arranjos e montaram dois pequenos buquês para depositá-los junto à pedra.

O dia seguinte era de folga parcial para a Soldado BM Stela e combinaram de ir à lagoa logo de

manhã, para a cerimônia pessoal de homenagem. Ao chegar, avistaram os técnicos

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desmontando a estrutura da bomba. Aproximaram-se, após se identificar e apresentar credenciais e tiveram o acesso liberado.

O chefe da operação disse que não removeriam a água da parte central porque, no dia anterior haviam esvaziado uns cinco metros da parte afunilada e hoje pela manhã tudo estava lá, novamente. Ele suspeitava que o riacho se comunicava com a lagoa e que retirar a água dali seria como enxugar gelo. A parte central seria coberta com tapumes para evitar acidentes e toda a área da lagoa continuaria interditada.

Elas, com os buquês nas mãos, pediram permissão para lançá-los sobre a água da parte central, num momento pessoal de silêncio e oração. Ele concedeu-lhes a permissão, mas pediu para que tomassem cuidado. Elas agradeceram e responderam que iriam pelo caminho de tapumes e que, sim, tomariam cuidado.

Elas se aproximaram da parte central, bem apoiadas no tapume. Estavam de pé, a cerca de um metro e meio do funil cheio de águas tranquilas e inofensivas. Soldado BM Stela segurava seu buquê na mão esquerda e estendeu sua mão direita para Cabo PM Valentina que a apertou firme.

Cabo PM Valentina tinha seu buquê na mão direita. Fecharam os olhos por instantes, em ação de graças pelas vidas das cinco vítimas.

Soldado BM Stela foi a primeira a lançar seu buquê sobre as águas e algo estranho aconteceu: o buquê imediatamente foi como que sugado e desapareceu. Assustada, a Cabo PM Valentina inclinou-se para mais perto e foi fortemente atraída para o funil, a ponto de deixar cair seu buquê nas águas para vê-lo ser igualmente sugado e desaparecer.

Soldado BM Stela puxou-a com força e Cabo PM Valentina caiu para trás, fora da área de perigo.

Soldado BM Stela ajudou-a a se levantar e as duas deixaram o local, bastante transtornadas.

Subiram pelo caminho de tapumes, de volta à pedra. Encostaram na pedra para respirar. Cabo PM Valentina suava; estava ofegante, completamente sem forças. Resolveram deixar o local, sem mesmo se despedir da equipe de operários. Eles entenderiam o abalo emocional das duas mulheres.

Cabo PM Valentina estava sem forças para caminhar. Precisou sentar-se no acostamento da ciclovia, amparada pela Soldado BM Stela. O momento não era para falar e sim, para silenciar.

Silenciar para juntar forças. Respirar fundo para recuperar forças a partir do ar. Soldado BM Stela massageava suavemente as costas da Cabo PM Valentina quase como a acariciá-las.

Cabo PM Valentina procurou pelas mãos da Soldado BM Stela e as apertou com ternura, em sinal de reverência. Em sinal de agradecimento. Sabia que a Soldado BM Stela lhe havia salvo a vida. Mas esse aperto de mãos tinha, também um outro e novo significado: há pouco uma descoberta valiosa fora feita, mesmo que de modo assustador. Agora não havia mais dúvidas nem incertezas. As coisas estavam claras e as forças mentais e físicas começavam a retornar aos seus centros vitais.

A cumplicidade entre as duas tornara-se evidente; nada precisava ser dito nem demonstrado.

Tudo estava ali, claro e cristalino e forte, como naquelas águas. Mas essas águas eram de vida!

XIV.

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Cabo PM Valentina se levantou e sugeriu que tomassem um espresso. O espresso foi acompanhado por dois pequenos éclairs de creme de avelãs. Ficaram sentadas por um bom tempo, olhando-se, sem dizer palavra. O ar de degustação do espresso e dos éclairs preenchia todo o ambiente porque refletia o ar do novo, do seguro, do porvir.

Soldado BM Stela precisaria retornar e se aprontar para assumir seu plantão e a Cabo PM Valentina tinha outros assuntos para pôr em ordem. Despediram-se com um longo, apertado e silencioso abraço.

Cabo PM Valentina entendera que seus buquês estavam imantados com suas energias e, por isso, foram sugados às profundezas e levados para juntos dos cinco desaparecidos.

E lá, nas profundezas, os cinco receberiam seus eflúvios saudosos.

A licença da Cabo PM Valentina venceria em breve e sua rotina recomeçaria. Só que num outro patamar de consciência. Precisava conversar com seu namorado e teria de ser hoje mesmo.

Era uma primavera excepcionalmente quente e seca. Isso contribuiu para secar o lodo da lagoa e acelerar as obras de revestimento. A parte central receberia, nos próximos dia, a enorme circunferência que serviria de tampa protetora e como piso para a futura pista de skate.

Um memorial seria erguido junto à pedra que seria adaptada para servir de rampa de partida e de chegada para os skatistas. A pista teria o nome dos cinco desaparecidos e passaria a ser conhecida como pista dos cinco.

Numa cerimônia ecumênica marcada para sábado, 14 de dezembro, o padre Jurandir, ou Padre Jura como era chamado, dirigiu-se às famílias dos desaparecidos e o fez de modo simples e caloroso. Os familiares receberam, da justiça local, os atestados de óbito. Só os mais próximos estavam presentes e a Cabo PM Valentina conhecia todos, exceto por um rapaz e uma moça que se puseram mais ao fundo do salão da igreja, em separado de todos os demais.

Ao término da cerimônia, o rapaz foi tentar cumprimentar os pais do Marlon, mas foi repelido pelo pai. A moça, vendo o tratamento dispensado a ele, nem tentou. Afastou-se devagar para ir embora.

Cabo PM Valentina sabia quem eram, mesmo sem conhecê-los. Correu para alcançá-los enquanto aguardava pela Soldado BM Stela. Cabo PM Valentina abraçou os dois e a Soldado BM Stela também os abraçou. Estavam fardadas e isso lhes assegurava identidade e certa imponência.

Cabo PM Valentina sugeriu que fossem até a pedra para que eles dois pudessem prestar sua homenagem. Passaram por uma pequena floricultura e a Cabo PM Valentina comprou dois pequenos arranjos de flores.

Quando chegaram à pedra, notaram que outras pessoas haviam colocado flores e acendido velas ali, em sinal de homenagem às cinco vítimas. Cabo PM Valentina entregou aos dois os arranjos que havia comprado e cada um deles depositou o seu ao pé da pedra. Mesmo já se tendo passado meio ano, alguns sentimentos ainda permaneciam vivos.

Depois de alguns minutos de silêncio, os dois jovens se ergueram. Ele, mais emotivo, abraçou a

Cabo PM Valentina e a Soldado BM Stela e, depois, abraçou a garota. Ela, bem mais tímida,

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estendeu a mão a cada uma delas e inclinou a cabeça, em sinal de gratidão. Despediram-se com um ar de que haviam feito o que precisava ter sido feito.

Cabo PM Valentina e a Soldado BM Stela ficaram um pouco mais para apreciar a pista de skate quase pronta. Nada mais fazia lembrar que ali, até recentemente, ficava a lagoa Bay.

XV.

Era sábado, 28 de dezembro e a Cabo PM Valentina e a Soldado BM Stela apressaram-se para não perder a cerimônia de inauguração da pista. O memorial, uma placa de granito preto, listava, em baixo relevo, os nomes dos cinco que lá haviam perecido. O nome oficial da pista ficou mesmo “pista dos cinco”.

As comemorações contaram com a presença do prefeito e de autoridades, além de membros da sociedade civil, de policiais e de bombeiros. Cabo PM Valentina e a Soldado BM Stela estavam num palco montado especialmente para a inauguração.

Houve discurso do prefeito, das autoridades policiais, de um representante civil dos cinco desaparecidos. No momento do corte da fita, queima de fogos de artifício para marcar a destinação desse equipamento ao uso público.

Uma pequena banda juvenil colocou-se na parte central da pista de skate, quase exatamente sobre onde fora colocada a circunferência de concreto, para apresentar algumas músicas festivas. Durante a apresentação, alguns jovens músicos, de repente, caíram, como que desmaiados. Cabo PM Valentina e a Soldado BM Stela olharam-se, atônitas. Certamente era reação ao calor do sol a pino. Ou não?

Na sequência, alguns skatistas, campeões nacionais, foram chamados a se exibir para a multidão crescente de jovens com seus skates que se acotovelavam por todas as partes. A cada nome chamado, muitos assobios, palmas e gritos de mito.

Dois dos skatistas mais experientes simplesmente se desequilibraram na única parte impossível para isso: o trecho reto da pista, na parte central, bem em cima da circunferência. Caíram e tiveram certa dificuldade para se reerguer. Retomaram suas manobras, mas evitaram aquele trecho central, mas quando não o conseguiam, caíam novamente. Com os demais, nenhum incidente. Cabo PM Valentina e a Soldado BM Stela, agora próximas uma da outra, olhavam para aquilo e tentavam entender o que se passava, embora tivessem suas suspeitas já formadas.

Ao final das apresentações e antes da pista ser oficialmente entregue ao público skatista, os presentes puderam caminhar pela pista para sentir, de perto, como era a sensação de estar numa grande pista de skate. Cabo PM Valentina puxou a Soldado BM Stela para irem até a pista.

Caminharam pelas bordas e nem a inclinação lhes causava algum mal-estar. Mas quando se aproximaram da parte central, ficaram mais apreensivas.

Ao pisar sobre onde sabiam estar a circunferência de concreto começaram a sentir tontura e, à

medida que avançavam em direção ao centro, a tontura aumentava até que se desequilibraram e

foram ao chão. Ficaram ali por alguns segundos e uma ajudou a outra a se reerguer. A sensação

era de energia violentamente drenada o que deve ter produzido o sintoma de tontura.

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Já não havia mais dúvidas sobre o que acabaram de experimentar ali. Logo ouviram um chamado pelo alto-falante de que todos deveriam deixar a pista, pois que, agora, ela seria invadida pelos seus legítimos donos, os skatistas presentes e impacientes.

Cabo PM Valentina e a Soldado BM Stela ficaram próximas à pedra, observando a movimentação. Diversos skatistas executavam suas manobras com perfeição, mesmo passando sobre a parte central. Alguns, porém, na parte central perdiam o equilíbrio e caiam. E se levantavam com dificuldade.

Olhando uma para a outra, tinham acabado de descobrir, juntas, sua próxima missão: investigar os dois skatistas campeões que se desequilibraram e caíram.

Fim!

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