Tribunal da Relação de Lisboa Processo nº 0068332
Relator: LOUREIRO DA FONSECA Sessão: 29 Abril 1993
Número: RL199304290068332 Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
CESSÃO DE EXPLORAÇÃO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL
NULIDADE REQUISITOS
Sumário
I - A Lei exige que o contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial seja celebrado por escritura pública.
II - O que caracteriza este contrato não é a cedência da fruição do imóvel, nem a do gozo do mobiliário ou do recheio que nele se encontre, mas a cedência temporária do estabelecimento, como um todo, como uma universalidade, como uma unidade económica mais ou menos complexa.
III - Baseando-se o pedido do autor num contrato válido, sendo o contrato nulo por falta da forma exigida, a causa de pedir contrato de cessão de exploração válido - é insubsistente, conduzindo à improcedência do pedido.
Texto Integral
Acordam na Relação de Lisboa:
A Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa propôs acção declarativa da condenação contra Selbe - Sociedade de Empreendimentos de Livrarias e Bares Escolares, Lda, alegando em síntese que em 29-11-84
celebrou com a Ré um contrato intitulado de "contrato de concessão de
exploração do Bar-Cantina da Faculdade de Direito de Lisboa", nos termos do qual a Ré se obrigou a pagar-lhe a retribuição mensal de 158000 escudos no período compreendido entre 29.11.87 a 29.11.88, e de 160500 escudos desde então, excepto nos meses de Agosto e Setembro de 1989, em que a retribuição era de 73000 escudos.
Porém, não pagou as retribuições mensais vencidas após Outubro de 1988.
Em face deste comportamento da Ré, a autora, conforme cláusula do contrato, rescindiu-o uniteralmente com efeitos a partir de 25.5.89, mediante
comunicação feita á ré.
Ficando esta, igualmente nos termos contratuais, obrigada a pagar á autora as prestações que se vencessem até ao fim do mês de Outubro de 1989.
Conclui, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 1865664 escudos acrescida de juros de mora vincendos á taxa de 15% sobre 1728500 escudos desde a propositura da acção.
Contestou a ré, alegando em síntese que não pagou as retribuições vencidas após Outubro de 1988 porque a autora não lhe assegurou a fruição completa do respectivo Bar-Cantina, já que autorizou, contra sua vontade, a abertura de um novo bar nas suas instalações, o qual tem por objecto a prestação de
serviços semelhantes aos prestados pela ré, causando-lhe sérios prejuízos.
Ora, a celebração deste contrato entre a autora e a ré teve como pressuposto para ambas, que o Bar-Cantina seria o único estabelecimento a funcionar nas instalações da autora, e foi neste contexto que a ré calculou os riscos da sua exploração.
Desta forma a autora, ao autorizar a abertura do novo bar, violou o contrato celebrado com a ré visto que propiciou a perda de clientela desta, que é um dos elementos do estabelecimento comercial.
Ao cessar o pagamento das retribuições mensais, a ré usou da faculdade
prevista no art. 428 do CC, de reagir contra o incumprimento da autora com o seu próprio incumprimento, sendo inválida a declaração da rescisão do
contrato feita pela autora.
Conclui pela improcedência da acção.
Respondeu a autora, pronunciando-se pela improcedência da excepção do não cumprimento do contrato, já que esta tem carácter transitório, funcionando como meio de pressionar a outra parte a cumprir, e os factos invocados configuram uma hipótese da resolução ou de modificação do contrato por alteração superveniente das circunstâncias.
Acrescenta que o contrato não foi celebrado no pressuposto alegado pela ré de que o Bar-Cantina seria o único estabelecimento a funcionar nas instalações da autora.
Proferido seneador da tabela onde se remeteu para a sentença o
conhecimento da excepção deduzida pela ré, e organizada a especificação e questionário, o processo seguiu os termos normais, realizando-se o
julgamento.
Foi lavrada a sentença que julgou a acção procedente, condenando a ré no pedido.
Apelou a ré.
Nas alegações de recurso, formula as seguintes conclusões:
1- O contrato celebrado em 29.11.1984 entre a apelante e a apelada, denominado de "Contrato de cessão de exploração do Bar-Cantina da
Faculdade de Direito de Lisboa", reveste a natureza do contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial, também conhecido por contrato de locação de estabelecimento comercial, previsto no art. 1085 do C. Civil.
2- O mesmo contrato não foi celebrado por escritura pública, nem consta de documento com força superior a esta.
3- Assim sendo, carece da forma legalmente prescrita na alínea K) do art. 89 do Código Notariado.
4- Pelo que, nos termos do art. 364 do CC., não se encontra provado nos presentes autos.
5- E, nos termos do art. 220 do CC., é nulo.
6- Caso se entenda que o mesmo contrato não é de cessão de exploração de estabelecimento comercial, só lhe poderá ser atribuida a natureza do contrato de arrendamento comercial.
7- Natureza essa que, da forma alguma, pela apelante foi confirmada.
8- Continuando tal contrato, agora nos termos da alínea b) do n. 1 do art. 1029 do CC., a não revestir a forma legalmente prescrita.
9- Permanecendo nos termos do art. 364 do CC., não provado.
10- E sendo, nos termos do art. 220 do CC., nulo.
11- Ainda no pressuposto de que o contrato em causa
é de arrendamento comercial, a sua cláusula 9, relativa á actualização anual das retribuições mensais, estipulando actualizaçães anuais da ordem dos 20%, violará claramente qualquer das portarias publicadas de acordo com o art. 2 do dec-lei n. 436/83, os quais têm natureza imperativa.
12- Assim sendo, tal cláusula estará, só por si, nos termos do art. 294 do CC., ferida de nulidade.
13- Na presente acção o pedido tem como causa de pedir o referido contrato celebrado entre a apelante e a apelada, em 29.11.1984.
14- Designadamente, quanto ao seu valor, fundamenta-se na cláusula 9 do mesmo contrato.
15- E é com base no mesmo contrato que a sentença recorrida julga procedente esse pedido.
Houve contra-alegações.
Tudo visto, cumpre decidir.
Estão provados os seguintes factos decorrentes da especificação e das respostas dadas ao questionário:
I- Especificação:
A- A Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa e a R. Selbe -
Sociedade da Empreendimentos de Livrarias e Bares Escolares, Lda, celebraram entre si um contrato denominado "Contrato de concessão da
exploração do Bar - Cantina da Faculdade de Direito de Lisboa", cuja fotocópia constitui fls. 6 a 15, aqui dado como inteiramente reproduzido para todos os efeitos.
B- Tal contrato foi celebrado em 29.11.84.
C- A R. não pagou as retribuições vencidas mensal e sucessivamente após Outubro de 1988.
D- Em 19.4.89, mediante carta registada com aviso de recepção, a A.
comunicou á R. a rescisão unilateral do contrato a partir do trigésimo dia posterior á recepção pela R. dessa comunicação.
E- A R. recebeu essa comunicação em 24.4.89.
F- Desde um dos primeiros cinco dias úteis do mês de Outubro de 1988 a A.
autorizou a abertura de um novo bar, dentro das suas instalações, o qual se tem mantido em funcionamento até hoje numa sala situada no edíficio onde está também instalado o "Bar - Cantina da Faculdade de Direito de Lisboa" e contígua a este.
G- A exploração do novo bar é feita por uma entidade estranha á Ré.
H- O novo bar tem por objecto, na área de bar e cafetaria, um tipo de serviço similar ao prestado pela R. no "Bar - cantina".
I- A R. enviou á A. as cartas cujas fotocópias constituem fls. 27 e 28, 29 e 31, aqui dadas por integralmente reproduzidas.
J- A R. enviou á A. a carta cuja fotocópia constitui fls. 33 e 34, aqui dada por integralmente reproduzida.
L- A R. enviou á A. a carta cuja fotocópia constitui fls. 36, aqui dada por integralmente reproduzida.
II- Respostas ao questionário:
A instalação do referido novo bar, e relativamente ao serviço de bar e cafetaria prestado pela R., originou uma perda por parte desta de mais de metade da sua tradicional clientela no "Bar-Cantina" resposta ao quesito 5.
A questão fundamental suscitada no recurso da ré é a da qualificação do contrato celebrado entre a autora e a ré.
Se, como a ré pretende, tal contrato configura uma cessão de exploração de estabelecimento comercial (ou locação de estabelecimento comercial) o
mesmo é nulo por vício de forma pois não foi celebrado por escritura pública - CFR art. 89, alínea k) do Código do Notariado e 220 do Código Civil.
Esta questão da invalidade do contrato por falta de forma não foi suscitada nos articulados.
Porém, como é de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso pode e deve conhecer dela.
O negócio em causa foi reduzido a escrito e consta do documento de fls. 6 a 15 dos autos.
Nesse escrito as partes qualificaram-no de concessão de exploração do Bar- Cantina da Faculdade de Direito de Lisboa.
Porém o juiz não está sujeito ás alegações das partes no tocante á indagação, interpretação e aplicação das regras de direito - art. 664 do CPC., e assim é livre de modificar a qualificação jurídica que as partes deram aos factos - cfr.
acórdão da Relação do Porto de 10-2-87, CJ. ano XII, tom. 1, pag. 225.
E para determinar a espécie do negócio, o que fundamentalmente importa é o seu conteúdo e a interpretação das suas cláusulas.
Mas é evidente, como refere o Prof. Galvão Teles no seu parecer publicado na colectânea de Jurisprudência, ano de 1992, Tomo 1, pag. 56 que "a designação usada pelas partes, se não é absolutamente decisiva para apurar a sua
vontade e saber assim que o conteúdo negocial desejaram, é um elemento a tomar em conta nessa indagação interpretativa".
Ora, a cessão de exploração ou concessão de exploração do estabelecimento comercial, também conhecida por locação de estabelecimento comercial, é um negócio jurídico mediante o qual o titular do estabelecimento proporciona a outrém, temporáriamente e mediante retribuição, o gozo e fruição do
estabelecimento, considerado este como uma unidade jurídica e económica, isto é uma organização económico- -jurídico de todos os elementos que o integram, afectada á realização de uma determinada actividade mercantil ou industrial.
Duas condições, porém, terão que se verificar cumulativamente: o
estabelecimento deve manter a sua identidade e o cessionário deve continuar a exercer nele a mesma actividade - cfr art. 1085, n. 1 e 2 do CC.
Como refere o Prof. Antunes Varela (RLJ. ano 100, pag. 270), o que caracteriza este negócio "não é a cedência da fruição do imóvel, nem a do gozo do
mobiliário ou do recheio que nele se encontre, mas a cedência temporária do estabelecimento, como um todo, como uma universalidade, como uma unidade mais ou menos complexa".
Tal contrato que o próprio legislador teve o cuidado de esclarecer que não deve ser considerado de arrendamento - art. 1085, n. 1 do CC., não está sujeito ás regras próprias do arrendamento, nomeadamente as que limitam a liberdade contratual, como é o caso da prorrogação e renovação automática e obrigatória desse contrato nos termos do art. 1045, n. 1 do CC.
Porém, como refere Miguel Pupo Correia, in Direito Comercial, 2 edição revista, pag. 241, muitas vezes o modelo jurídico da cessão de exploração se utiliza com o fim de evitar a aplicação da regra que proibe a denúncia pelo senhorio, no fim do prazo, em caso de arrendamentos para fins comerciais.
Surgem desta forma dificuldades sobre a correcta qualificação do contrato.
E então, segundo o mesmo autor, será "adequado o critério proposto por Ferrer Correia ("Sobre a reforma da Legislação Comercial Portuguesa", "R O A", 1984, pgs. 32 e ss), no sentido de que haverá arrendamento se o titular do local se limitar a pôr á disposição do locatório o gozo e fruição da instalação, por esta não ter mais do que "a marca do seu destino", ou seja, uma
configuração física apta ao exercício da actividade mercantil visada; e já haverá cessão de exploração se o prédio já se encontrar "provido dos meios materiais indispensáveis á sua utilização como empresa", designadamente móveis, máquinas, utensílios que tornem viável, mediante a simples colocação de mercadorias, o arranque da exploração comercial".
Neste caso, analisando o conteúdo do contrato verifica-se que: a) A ora autora cedeu as instalações utilizadas pelo antigo concessionário, por contrato de concessão, para exploração do Bar - Cantina, existente na Faculdade de
Direito de Lisboa (art. 2). b) Os 2 signatários (gestores de negócios da ora ré) ficavam obrigados a assegurar um serviço de cafetaria, bar, pastelaria e
restaurante (art. 3). c) Em caso de rescisão nos termos prescritos no n. 2 do art. 20 do contrato, será assegurado aos
2 signatários uma indemnização correspondente ao valor do mobiliário e equipamento de hotelaria (art. 4, n. 3). d) No caso de rescisão ou não
renovação do contrato, a ora autora, comprometia-se a garantir que o novo concessionário assumisse as responsabilidades contratuais de trabalho
existentes na altura entre os 2 signatários e os seus trabalhadores em serviço no Bar - Cantina, de forma a assegurar os postos de trabalho existentes (art. 4, n. 5). e) Os 2 signatários ficam obrigados a realizar obras de remodelação das instalações, implicando no mínimo a renovação de todo o mobiliário
existentes, salvo os balcões frigoríficos (art. 13, n. 1). f) Todas as obras
previstas neste contrato e as que vierem a ser acordadas serão realizadas, por conta exclusiva dos 2 signatários, passando a constituir património da
A.A.F.D.L., contudo todo o mobiliário que vier a ser adquirido bem como todo o equipamento de hotelaria e o do trespasse são património dos 2 signatários (art. 13, n. 4). g) Os 2 signatários obrigam-se a fazer substituir até 31.12.85 todos os utensílios correntes, tais como pratos, copos, chávenas e talheres (art. 14). h) Os 2 signatários comprometem-se a adquirir pelo valor residual o equipamento instalado (com base em acordo em que são partes a nova
concessionária e o anterior), passando a constituir seu património (art. 15).
Da leitura destas cláusulas constata-se que as instalações do Bar - Cantina foram cedidas com equipamento necessário e adequado ao seu
funcionamento, nomeadamente utensílios correntes, mobiliário e balcões frigoríficos.
Por outro lado, tendo havido um anterior concessionário da exploração desse Bar, tal significa que o estabelecimento já existia anteriormente e, como cessou a antiga exploração dele, foi negociada nova exploração do Bar - Cantina com a ora ré.
Acresce que toda a economia do regulamento contratual aponta para uma regulação promenorizada dum estabelecimento comercial, nomeadamente quanto ás condições da prestação de serviços por ele proporcionado - cfr. arts.
11, 12, 16, 17, 18 e 19.
Uma apreciação global dos termos do contrato indicia que as partes
pretenderam a cedência á ré, não apenas do local onde o estabelecimento funciona, mas também do próprio estabelecimento como unidade económica.
Daqui resulta que a autora e a ré celebraram um contrato mediante o qual aquela cedeu a esta, temporariamente (art. 4, n. 1) e mediante retribuição mensal (arts. 5 e 9) a exploração do Bar-Cantina da Faculdade de Direito de Lisboa.
Trata-se, por conseguinte, de um contrato de concessão de exploração de estabelecimento comercial, o que confirma a qualificação jurídica que as partes lhe deram quando o celebraram.
Desta forma afastam-se as hipóteses, também apontadas pelas partes, de arrendamento comercial (cujo regime legal proteccionista é, aliás,
incompatível com algumas das cláusulas negociais, nomeadamente o art.
20, n. 2) e de contrato inominado ou atípico, dominado pela autonomia da vontade e não sujeito a qualquer formalismo.
Ora, tratando-se de um contrato de locação de estabelecimento comercial, o mesmo está sujeito a escritura pública e, como tal não sucedeu, a sua falta produz nulidade.
Como o pedido da autora se baseava num contrato válido, sendo o contrato nulo por falta de forma exígida, a causa de pedir - outorga de um contrato válido - é insubsistente, conduzindo á improcedência do pedido - cfr. acórdão do STJ de 28.10.75, BMJ. 251, pag159.
Pelo exposto, dando-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença, e absolve-se a ré do pedido.
Custas pela autora.
Lisboa 29-4-93 Luis Fonseca.