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Entre Higia e Afrodite : o corpo feminino veiculado nas revistas de beleza e cuidados corporais

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Academic year: 2018

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DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA ASSOCIAÇÃO AMPLA UECE/UFC/UNIFOR

CAMILLA ARAUJO LOPES VIEIRA

ENTRE HIGIA E AFRODITE:

O CORPO FEMININO VEICULADO NAS REVISTAS DE BELEZA E CUIDADOS CORPORAIS

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CAMILLA ARAUJO LOPES VIEIRA

ENTRE HÍGIA E AFRODITE:

O CORPO FEMININO VEICULADO NAS REVISTAS DE BELEZA E CUIDADOS CORPORAIS.

Tese submetida ao curso de Doutorado em Saúde Coletiva Associação Ampla UECE/UFC/UNIFOR, como requisito para a obtenção do titulo de doutor em Saúde Coletiva.

Área de concentração: Políticas, Gestão e Avaliação em Saúde. Campo temático: Corpo, subjetividade e práticas alimentares; Orientadora: Maria Lúcia Magalhães Bosi

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CAMILLA ARAUJO LOPES VIEIRA

ENTRE HÍGIA E AFRODITE:

O CORPO FEMININO VEICULADO NAS REVISTAS DE BELEZA E CUIDADOS CORPORAIS.

Tese submetida à Banca de Avaliação e à Coordenação do Curso de Doutorado em Saúde Coletiva associação ampla UECE/UFC/UNIFOR, como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Saúde Coletiva.

Tese defendida em 26 de junho de 2013

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Profa. Dra. Maria Lúcia Magalhães Bosi (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará – UFC

__________________________________________________ Profa. Dra. Denise Silva do Nascimento

Universidade Federal do Ceará – UFC

__________________________________________________ Prof. Dr. Rosendo Freitas de Amorim

Universidade de Fortaleza – UNIFOR

__________________________________________________ Prof. Dr. Andrea Caprara

Universidade Estadual do Ceará – UECE

_________________________________________________ Prof. Dr. Jorge Alberto Bernstein Iriart

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências da Saúde

V714e Vieira, Camilla Araújo Lopes.

Entre Higia e Afrodite: o corpo feminino veiculado nas revistas de beleza e cuidados corporais. / Camilla Araújo Lopes Vieira. – 2013.

235 f. : il. color., enc. ; 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Ciências da Saúde, Faculdade

de Medicina, Departamento de Saúde Comunitária, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Doutorado em Saúde Coletiva, Fortaleza, 2013.

Área de Concentração: Política, Gestão e Avaliação em Saúde. Orientação: Profa. Dra. Maria Lúcia Magalhães Bosi.

1. Psicologia. 2. Imagem Corporal. 3. Medicalização. I. Título.

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AGRADECIMENTOS:

Agradeço ao meu companheiro e parceiro na vida, Luis Achilles;

À minha pequena grande dádiva de Isis;

À minha amiga, irmã, comadre e alma gêmea, Tallita;

Aos meus pais Socorro e Eliazar, irmãos Eliardo, Leonardo, Lauren, Caroline, e Klayton; minha sobrinha Laura; meus sogros Isabel e Achilles;

Aos amigos que compartilham as estradas dessa vida, com ricas interlocuções e que permitiram vislumbrar horizontes;

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A vida e o tempo

Acho que a vida anda passando a mão em mim a vida anda passando a mão em mim acho que a vida anda passando a vida anda passando acho que a vida anda a vida anda em mim acho que há vida em mim a vida em mim anda passando acho que a vida anda passando a mão em mim

e por falar em sexo quem anda me comendo é o tempo na verdade faz tempo mas eu escondia porque ele me pegava à força e por trás

um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo se você tem que me comer que seja com o meu consentimento e me olhando nos olhos

acho que ganhei o tempo de lá pra cá ele tem sido bom comigo dizem que ando até remoçando

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 10

1.1 Objetivos e relevância da pesquisa: porque trabalhar com essa temática? 13

2. CAPÍTULO I: PERSPECTIVAS DO CORPO FEMININO NO OCIDENTE 25

2.1 Os gregos, a beleza e as relações entre corpo e alma. 25

2.2O corpo na Idade Média: a teologia judaico-cristã e suas influências na construção do corpo feminino.

29

2.3 As concepções do corpo no Renascimento: da medicina popular ao saber cientifico. 34

2.3.1 O corpo feminino nesse contexto: algumas incursões. 36

2.3.2 Um pouco de Brasil em tudo isso. 39

2.4 o estatuto do sujeito no século das Luzes: as construções cartesianas para a compreensão do corpo.

42

3. CAPÍTULO II:REFLEXÕES SOBRE O CORPO E SEU ESTATUTO NA CONTEMPORANEIDADE

46

3.1 Husserl, o corpo, a carne a consciência da imagem. 46

3.2 Merleau-Ponty e o resgate do corpo com a concepção de corporeidade. 49 3.3 Psicanálise: demarcando algumas contribuições sobre o corpo em Freud e Lacan. 53

3.4 Foucault: corpo, cuidado de si, poder e dietética. 60

4. CAPÍTULO III: O CORPO MULTIFACETADO: ESTUDOS SOBRE O CORPO E SEUS DESDOBRAMENTOS

70

4.1 Do corpo à palavra, do real ao simbólico, do biológico ao social: versões do corpo. 70 4.2 Um corpo para ser visto: algumas questões sobre o corpo, a imagem e o olhar. 81 4.3Apontamentos sobre as teorias feministas: sexo, gênero e performance. 89 5. CAPÍTULO IV: CONFECCIONANDO O CORPO NA ENGRENAGEM ENTRE

SAÚDE E MÍDIA

96

5.1. Discurso biomédico: de que corpo se trata? 96

5.2 O papel da mídia na construção do corpo ideal. 101

5.3 Problematizando o corpo no contexto da Saúde Coletiva. 116

6. CAPITULO V: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A IDEOLOGIA E A MEDICALIZAÇÃO DA VIDA.

128

6.1 6.1 Aspectos da ideologia: articulando a compreensão do corpo nas revistas de beleza e boa forma.

128

6.2 Saúde como necessidade: medicalizando a vida e os corpos. 130 1. 7. CAPÍTULO VI: QUESTÕES TEORICO-METODOLÓGICAS

ENVOLVIDAS E O LOCUS DA PESQUISA

136

2. 8. CAPÍTULO VII: A CONFECÇÃO DO CORPO NAS REVISTAS: TECENDO OS

FIOS DESSA COMPLEXA MALHA 142

8.1 Justificando o caminho de análise. 142

8.2 As capas das revistas: Hígia e Afrodite conciliadas em Hebe. 144 8.2.1. A identificação como estratégia de sedução: leitoras são famosas. 144

8.2.2. Corpos sem marcas: corpos reais? 147

8.2.3. O império do empenho: o incessante trabalho das aparências. 151 8.2.4. Em nome da saúde: o alimento funcional aliado do corpo da beldade. 156 8.2.5. O corpo esculpido: exercícios físicos como técnica de confecção da imagem. 160 8.2.6. Um especialista pra chamar de seu: a voz dos profissionais da boa forma. 166

8.3. Deixando sempre o corpo em forma. 175

8.3.1. Corpo em movimento. 176

8.3.2. Giro na academia. 180

8.3.3. Treino orientado. 185

8.4. Magra e saudável. 187

8.4.1. Vida leve: com um cardápio baixa caloria, emagrecendo com saúde. 188

(9)

8.4.3. Conte calorias. 194

8.5. Boa forma: uma questão de beleza. 196

8.5.1. Corpo e pele: a perfeição com respaldo profissional. 197

8.5.2 Maquiagem: mascarando as imperfeições. 199

8.6. Dieta e nutrição. 200

8.7. Eu consegui! 203

3. 9. REFERÊNCIAS: 210

4. 10. BIBLIOGRAFIA 220

5. ANEXO 1 235

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(11)

RESUMO

Nosso estudo buscou explorar e compreender as articulações entre os discursos midiático e médico estético acerca das construções corporais em revistas de beleza feminina. Interrogamos as formas como tais elaborações se constroem e são tomadas/adotadas como verdades e referencias para modos de viver e cuidar do corpo. Trabalhamos com as revistas Boa Forma e Corpo a Corpo nas várias matérias sobre saúde, beleza e nutrição, nas edições de agosto de 2011 a julho de 2012, no total de vinte e quatro fascículos. Lançamos mão da análise critica de discurso visando desnaturalizar construções sobre saúde, beleza e juventude, apontando a complexidade de uma engrenagem que se movimenta produzindo o corpo magro como peça central de sustentação da mídia e do discurso médico estético. Foi possível visualizar um maquinário sorrateiro de poder/saber que se solidifica lubrificado em suas partes pelo desejo dos (corpos) consumidores. O corpo confeccionado, difundido como trabalhado, consumidor de alimentos leves, de produtos e de serviços que o deixam mais e mais sintético, plastificado, higiênico, sem sinais ou marcas do tempo é, sobretudo, aquele que não cessa de incitar disciplina, controle, prática de exercícios e muitos procedimentos com tecnologias. Assim, é entre os modos de viver a “saúde”, de produção de uma estética da identificação, pela via do consumo, que corpos magros como ideal, se justificam. Concluímos que os cuidados com o corpo e o discurso da saúde em nome da qualidade de vida são propagados e anunciados pelas revistas para as mulheres comuns consumidoras, com impacto em processos de subjetivação pela produção de objetos de desejo, de consumo e de identificações com imagens perfeitas, indicadoras de felicidade e perfeição corporal. São ainda construídos modos de existir e se relacionar que engendram e reforçam modelos pautados em corpos sem marcas, autorizando a confecção constante da produção de beleza e saúde baseadas na juventude.

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ABSTRACT

This article seeks to explore and understand the media and the medical aesthetic approaches over the beauty segment found in women’s beauty magazines. It investigates how such considerations are elaborated and the way the public accept them, taking/adopting them as truth and as reference. It’s been used articles on the subjects health, beauty and nutrition of twenty four editions of the magazines “ Boa Forma” and “Corpo a Corponas” from August 2011 to July 2012. In order to achieve this goal a critical discourse analysis was undertaken aiming denaturalize constructions on health, beauty and youth, showing the complexity of an engine where the key is the production of a thin body to support the media and medical aesthetic speeches. Through this analysis was possible to observe the disguised machinery of power/knowledge that gets stronger working oiled by the consumer’s (body) desires. The idea of the body as built, the propagated idea of a body that worked out, of a body that eats only light food and that consumes goods and services that will make it be more and more synthetic , plastic, hygienic. A body without wrinkles to show time’s passing. Above all a body keeps inciting discipline and control, begging to work out and the use of technological procedures. Thus it’s among the “healthy” ways of life and amid production of an identification aesthetic through consumption that thin bodies as an ideal are justified. The conclusion is that what’s done to take care of the body and the health propaganda made in name of quality of life are announced by women’s magazines to the common consumers have impact on them in a subjective way making them want those things and identifying perfect images relating them to happiness and body perfection. In addition, there are elaborations of ways of behave and of relating to others that reinforce models based on bodies without wrinkles legitimating the constant confection of beauty and health production based on youth.

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1. INTRODUÇÃO

A magreza é mais nua, mais indecente que a gordura. (Baudelaire)

Escrever não é uma tarefa fácil, mas ao tomarmos a caneta em punho ou tocar com os dedos as teclas do computador, deixamos a morte um pouco para traz, conforme declarou Ligia Fagundes Teles em ocasião quando fora homenageada explicando que a escrita é sempre uma maneira de permanecer na vida e também de produzir sobre o mundo. Certamente a escrita poética e a cientifica têm lá suas diferenças, mas se encontram nas batidas do coração de quem escreve.

O desafio de um trabalho de doutorado põe muitas questões em relevo: será que vou conseguir? Será que é isso que eu estou dizendo eu ainda sustento? Para que serve esse desafio, às vezes tão árduo como um doutoramento? Quantas vidas em mim estou pondo à prova para permanecer nessa empreitada? Nada fácil responder a essas questões. Na verdade, elas não têm respostas, mas, certamente, são essenciais no momento de elaboração textual, que não deixa de ser de fragilidades, provação pessoal, desgaste, desmontagem das nossas mais íntimas convicções, das nossas certezas científicas. Construir novos caminhos pode nos levar a alguns atalhos, abismos, mas também à oportunidade de mirar outros horizontes, desejosamente mais amplos.

Objetivamente, fazer doutorado tem sido meta para a maioria dos que seguem caminhos da docência. Diante dos desafios, seja através das estradas trilhadas – inclusive de forma literal, de Sobral para cá, com acesso complicado pelas estradas desgastadas –, nas longas noites em claro pela busca do silêncio aliado da escrita, mesmo depois de uma exaustiva rotina de trabalho, tudo caminha para que cumpramos os prazos e os objetivos de ser um doutor.

Em estágio probatório com professora universitária e sem auxilio financeiro, vou me apegando ao que de fato importa e que tenho: desejo de investigar o mundo, de descobrir as coisas, de reinventar a vida, de ser contrariada e surpreendida com as descobertas.

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Escrever uma tese é um empreendimento onde cabe ocupar e assumir uma proposição intelectual. É verdade que as ideias se renovam, mudam e tendem a seguir novos rumos e novas apostas, mas nossa intenção é percorrer um caminho reflexivo, crítico, interpretando porque as coisas são dadas e postas de tal forma que se tornam verdadeiras para o público em geral, leigo ou não. Manteremos o nosso teor reflexivo, permeado de questionamentos e posições que não nos deixa isentos de afetividade.

De modo especifico, tenho me apaixonado por essa ficção que é o corpo e vou escarafunchando suas entranhas na busca de algum sinal que me oriente a compreender como tem sido confeccionado hoje o corpo por meio dos (imperativos) estilos de vida saudável, em nome da manutenção da vida e da juventude. Todo o respaldo está nas descobertas da medicina e, em especial, da medicina estética, dedicada aos cuidados corporais, fazendo entronizar nos sujeitos um modo de vida correto, bom, justo, pronto para ser seguido.

Trabalhar com a temática corpo, tão ampla e complexa, implica, aqui, traçar certas linhas no sentido de apontar algumas facetas do corpo como cenário onde se desdobram relações de poder, modos de linguagem e expressões sobre uma época. Buscamos tracejar a relevância do nosso objeto não sem antes reconhecer e apontar dois aspectos: se, por um lado, há uma multiplicidade de sentidos que aborda a temática do corpo, uma infinidade de trabalhos, livros e autores a serem convidados ao debate; por outro, há o risco de cair em lugar comum, de dizer o que já foi dito, o óbvio, sem nenhuma originalidade, resultando em algo que não se caracterize como uma tese, em sentido estrito.

O desafio não para aí, tendo em vista nos arriscarmos num campo novo e arenoso que congrega Saúde Coletiva, Ciências Sociais, Psicologia e Comunicação, sem domínio seguro de todos eles, alguns, inclusive, desconhecidos até bem pouco tempo, ainda estranhos de vez em quando. Com formação em Psicologia, ousadamente, pretendemos, aqui, deixar dialogar saberes diversos que, ao mesmo tempo em que confundem, nos lançam no deserto com todo o sol, ardor e frio: intensidades.

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vasto seria, ao mesmo tempo, a oportunidade de tentar traçar um diálogo e utilizar as diversas ferramentas de trabalho para o amadurecimento intelectual e vivencial. Foi assim que ficaram, retornando as indagações sobre o estudo do corpo, as relações de poder entre medicina e produção de verdades, uma engrenagem que se desdobra nas relações cotidianas, na micropolítica, nos modos de subjetivação, enfim, nas relações sociais.

Os anos se passavam e na medida em que eu ia lendo, me apropriando, preparando o meu projeto de doutorado, discutindo em minhas aulas, dialogando com os colegas, escrevendo, também ia me desapropriando de algumas posições: os estudos sobre o corpo não poderiam mais me limitar a estudar apenas um campo teórico. Percebendo a insuficiência de apenas um campo para problematizar as questões que se apresentavam, caminhei em outros solos férteis para construir com os interlocutores descobertos ao longo do percurso – os muitos autores e autoras que encontrei. Assim, passou a ser possível seguir a empreitada em direção ao meu processo pesquisa, avolumando e aprofundando os estudos sobre o corpo.

O tema de interesse vem se configurando desde nossos estudos de graduação, quando realizamos pesquisa e projeto de extensão sobre as formas de adietamento em sujeitos com anorexia e bulimia, ou seja, investigávamos como se posicionavam em seus desejos e lançavam a comida como um objeto que dizia sobre as relações estabelecidas. Em seguida, no trabalho de mestrado, trabalhamos com o tema anorexia

tendo como referencial teórico a psicopatologia psicanalítica (VIEIRA, 2005).

Agora, nos lançamos em outra empreitada: explorar e compreender as articulações entre os discursos midiático e científico-estético acerca das construções corporais em revistas de beleza feminina, interrogando as formas como tais elaborações se constroem e são tomadas/adotadas como verdades ou referencias para modos de viver e cuidar do corpo, desvelando, ainda, os interesses subjacentes a essa articulação, bem como os ganhos advindos dessa cumplicidade para ambos os campos de produção de verdade. Esses ganhos estão tanto nos planos objetivos quanto subjetivos. Nessa perspectiva, o olhar crítico não pode ser subtraído da interpretação.

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pela lógica social, política, econômica, ideológica1 e estética definidas. Tomamos a ciência então como discurso hegemônico de forte apelo à saúde, mas que carrega em seu arcabouço o discurso dessa mesma saúde vinculada a um modelo (estético, portanto) de corpo a ser construído. Entendemos ainda que os meios de divulgação se lançam para propagar essas imagens ideais, fruto de muito investimento simbólico, afetivo e financeiro.

Dentre as inúmeras possibilidades de abarcar tal problema, nos delimitaremos aos dispositivos de mídia impressa especializada em beleza corporal feminina e que, supomos, alimentam por seu discurso e imagens, o ideal de corpo magro, chapado, sarado, bonito, famoso, vinculado à idéia de realização e felicidade.

1.1 Os objetivos e relevância da pesquisa: por que trabalhar com essa temática?

Tendo em vista o objeto acima delineado, interrogamos: Oque é um corpo? Qual o limite entre o ‘meu’ corpo e o do ‘outro’? Como um corpo se constitui? O sujeito é um corpo ou o corpo é um sujeito? Quais as montagens sociais para a construção de corpo? Como a ciência engendra corpos? O que é um corpo belo? O que é um corpo saudável? Ou ainda: porque um determinado tipo de corpo vem se configurando como o modelo de desejo, de investimento e de busca por um grande número de sujeitos de determinada categoria social? Que mecanismos sociais e de poder o mantém vivo e evidente?

A busca pelo corpo magro, modelo de beleza, juventude e saúde tem sido cada vez mais intensiva. O corpo é tema corriqueiro e os interesses cada vez mais se voltam para as preocupações em atingir um ideal proposto por saberes tomados como verdadeiros. O corpo rechonchudo, outrora indicativo de beleza e fertilidade feminina, hoje dá espaço para olhares de estranhamento e gera, muitas vezes, constrangimentos. Seja em provadores nas lojas de departamentos, nas poltronas dos ônibus, em aeronaves, salas de cinema, teatro, as medidas estão mais e mais reduzidas, sem contar que as roupas têm modelagens cada vez menores. Apenas em lojas especializadas é

1Numa perspectiva critica, ideologia é tomada como conjunto de concepções, ideias e práticas naturalizadas e que tendem à estabilidade, legitimação e reprodução. Chauí (2007) explica que ideologia é

um corpo sistemático de representações e de normas que nos ‘ensinam’ a viver e conhecer. Em futuras

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possível encontrar roupas para gordos, transformando o que seria uma preocupação com o consumidor em sutis e não menos ferozes mecanismos de exclusão.

O público em geral tem sido invadido por discursos que alimentam o padrão de beleza na atualidade voltado para o corpo esbelto. As imagens das atrizes e modelos nas praias, de biquíni, nas idas à academia, publicadas em programas de televisão ou nas revistas; as sambistas nas escolas de carnaval, se preparando o ano todo para desfilar; os atletas em competições esportivas; tudo se volta para o olhar atento sobre o corpo. A música pode ser cantarolada agora assim: Com que corpo eu vou? pois assume um lugar de vestimenta, podendo ser costurado e arrumado para as próximas exibições.

Os mais variados produtos de beleza e serviços especializados que exploram a preparação do corpo para a conquista da beleza esbelta, enxuta, estão expostos em informativos estaduais, federais e municipais voltados para a preocupação com a saúde da população, academias de ginástica, lojas de shopping, farmácias, padarias, feiras de produtos naturais, livros de receitas, revistas, jornais, consultórios médicos, de nutricionistas, educadores físicos, enfim, os discursos públicos e privados agregam a vasta rede de práticas e modelos “corretos” de viver a serem seguidos. É neste contexto, marcado por essa proliferação de possibilidades, que buscamos compreender a construção do corpo saudável, magro e jovem veiculado pelas revistas de beleza femininas, especialmente as aqui selecionadas, conforme exposto adiante.

Debruçar-nos-emos sobre seções das revistas na abordagem dos temas de beleza, saúde e boa forma, problematizando como os conteúdos transmitidos carregam e veiculam informações do campo da ciência especializada acessível ao público. Buscaremos compreender criticamente o material transmitido pela publicidade recheado de informações técnicas com opiniões e a sugestões de profissionais competentes convidados a respaldar as matérias. Buscaremos evidenciar que modelos corporais são forjados pelas revistas em suas publicações. Certamente que outros discursos corroboram para a construção dos modelos de beleza atuais, mas nos limitaremos a recortar o viés medico-estético veiculado na mídia impressa em seu poder de construção da beleza e da juventude ligadas à magreza, desempenhando papel de destaque na pedagogia e no controle corporal.

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nome) da saúde, ratificadas pelos dispositivos técnico-científicos2 engendrados nas publicações midiáticas impressas sobre cuidados corporais femininos.

Quando falamos de certo tipo de corpo, sabemos que diversos outros modelos podem ser referência em outros espaços. Não acreditamos ingenuamente que possamos generalizar a imagem do corpo esbelto e definido como uma busca universal. Contudo, percebemos a força de verdade que os discursos científicos (ou em nome da ciência) assumiram, sua propagação pela publicidade e o caráter de verdade que passam a ter, repercutindo no receptor ou no leitor, público alvo desses produtos. Cultivar o corpo através de estilos de vida considerados corretos implica a formação de modos de subjetividade pautados em concessão/proibição de certas práticas. É virtuoso aquele que atinge os ideais propostos com muita disciplina e renuncia aos pecados da gula; é moralmente indecente aquele que se deixa levar pelas tentações, que assume publicamente a preguiça, a falta de zelo para consigo, restando viver com os riscos das comorbidades advindas da obesidade. Basta olhar e tudo já se revela pela superfície corporal, pois não há mais como desvincular o valor da imagem ao atributo moral. A feitura do corpo liga-se à construção dos sujeitos atuais e suas aparências; a estética é balizadora dos valores individuais e sociais.

É preciso levar em consideração que corpo, saúde e beleza constituem temáticas complexas que solicitam considerar as múltiplas dimensões biológica, antropológica, psicológica, sociológica, histórica, médica, política, dentre outras, para que se chegue a um recorte mais amplo e de problematização da realidade na qual estão inseridas e se fazem questões de interesse e investigação. Como tema transversal, o corpo é um objeto que permite a produção interdisciplinar ao mesmo tempo em que se torna pouco provável seu esgotamento nos trabalhos e nas pesquisas.

Entendemos que estamos diante de um desafio de pesquisa, quando abordamos o corpo e a discussão sobre modelos corporais desejados em uma época histórica. O tema certamente atravessa os campos da estética, da saúde e da subjetividade, caros à Saúde Coletiva, mas ainda muito restritos e escassos. É prevalente em saúde coletiva o peso das produções sobre avaliação em saúde, epidemiologia, na ainda clara valorização às pesquisas quantitativas. Dizemos isso também pelo que vimos percebendo durante as aulas do programa de doutorado, refletindo sobre as conversas pelos corredores, nas

2 Denominamos aqui dispositivos técnico-científicos os saberes em torno da saúde, especialmente a

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salas de aula, ao falar sobre o nosso projeto. Percebemos no olhar dos colegas uma mistura de fascínio, admiração, estranhamento e indagação. Devemos considerar que os saberes em saúde coletiva vêm se configurando com heterogeneidade e tornando-se tanto mais ricos quanto mais os objetos são variados e certamente que temas como corpo, saúde e subjetividade têm essa intenção e esse efeito.

Para contextualizar e argumentar acerca da relevância da nossa pesquisa, resgatamos, na área da saúde coletiva e campos de compartilhamento do nosso trabalho, pesquisas e publicações que tocassem nos temas corpo, saúde e mídia. Um leque importante de referencias foi encontrado na literatura cientifica mediante uso dos principais descritores. Elegemos a Biblioteca Virtual em Saúde – BIREME e a Biblioteca Eletrônica de Ciências – Scielo, pela facilidade em trabalhar com esse recurso digital, bem como pela importância dessas bases na atualidade. O tratamento do material levou em conta a proximidade e a possibilidade de diálogo com os estudos.

Essas pesquisas tocam nosso objeto, se aproximam do nosso objetivo, sempre oportunizando o delineamento do que pretendemos pesquisar, fazendo borda aos nossos interrogatórios, exclamações e reticências sobre o corpo. Em outras palavras, havia algo ainda a ser dito, posto que não encontramos qualquer trabalho que tratasse do que aqui nos propomos.

Como num giro copernicano, como diria Kant, há o movimento de exceção e singularidade desta proposta de trabalho. Invertendo a direção de sentido e não mais apenas reafirmando a importância da medicina, de suas descobertas, de suas elaborações e produções e de sua centralidade - tal como fora dito sobre a terra, outrora centro do universo -, agora nos lançamos a questionar o saber cientifico, descentrando-o, portanto. O saber cientifico de que falamos é particularmente àquele que veste a roupagem de medicina dos cuidados dispensados à beleza, nutrição e saúde, propagador do enfático discurso sobre o crédito de “ser saudável” e de incorporar “medidas profiláticas” tanto alimentares, de consumo de produtos e também de estilos de comportamento, modos de conduzir-se a si mesmo.

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redução de estomago ou pelo esforço físico e alimentação modificada, recebe os parabéns pelo empreendimento e ainda passa a ser visto como pessoa corajosa, que luta pelos ideais e que persevera. O corpo é o cenário onde a subjetividade, a relação do sujeito com os outros por meio do seu corpo, de como é visto e se vê, produz fortes efeitos.

Num país como o Brasil, onde ainda muitas pessoas morrem de fome, de desnutrição e de descaso pela falta de assistência e de garantia dos direitos humanos essenciais, como não tornar banal a discussão que traçamos? Por que não tratar da obesidade, por exemplo, outro tema onde índices alarmantes igualmente evidenciam problemas alimentares de interesse coletivo? Por que não tratar, então, da anorexia, um comportamento alimentar que parece vir crescendo e ter relação com a busca pelo corpo perfeito?

A resposta a estas questões reside no fato de que explorar e tentar compreender os modelos corporais hegemônicos implica refletir criticamente sobre o jogo discursivo da própria medicina – no caso, a medicina estética, voltada para a saúde, beleza e juventude – como o saber que exerce poder de massa e alimenta modelos corporais ideais largamente difundidos com o auxilio da mídia, num exercício sub-reptício de alimentar padrões, normatizando as condutas e apagando os sujeitos em suas especificidades. Trata-se, portanto, de um tema que tangencia dimensões estratégicas para a saúde coletiva.

Há cada vez menos espaço para os diferentes, para os inadaptáveis, os feios, os gordos, estranhos, preguiçosos, fora de moda, fora da lei do “politicamente saudável”. A eles, restam olhares estranhos de desdém e reprovação, num misto de recusa e piedade. Assim, num contexto mais amplo que o das patologias clinicamente pontuadas – corpo desnutrido, obeso, anoréxico, bulímico, vigoréxico – o espaço de aceitação do corpo hoje tem se limitado ao modelo restrito, alimentado de produtos suplementares, pílulas, malhado nas academias e definido pelo discurso estético.

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possível (quase) conquistar o modelo da capa de revista, ele próprio, via de regra, uma ficção.

Nesse jogo, o público consumidor absorve esses modos de vida vendidos nas bancas de revista de todo o país e mundo afora, muitas vezes sem sequer refletir de onde tudo isso vem. Criticamente, essa avalanche de receitas de saúde convertidas em estilos, leva cada vez mais à exclusão da diferença, como apontamos. Se o modelo deve ser seguido em larga escala, copiado pelo desejo de ser igual, a propagação do modelo produz uma intolerância cega, traduzida no desvio moral de ser gordo, feio e velho. Reconhecer que existe uma engrenagem medico-estética e midiática em consonância e retroalimentadas, fabricando o produto ‘corpo’ magro/saudável/belo, e que essa mesma engrenagem possui dupla função de difundir conceitos e inscrever estilos de normalização, é considerar que os discursos são fabricados, que produzem efeitos na vida cotidiana e geram consequências no plano subjetivo, dos afetos e das demandas. Trata-se, portanto, de uma tese que se engaja em um projeto voltado a evidenciar tais engrenagens, o que, na atualidade, parece-nos urgente no que se refere a muitos dos objetivos que circulam no campo da saúde coletiva.

Tais engrenagens, por vezes, escapam ao olhar no senso comum. Assim, é próprio do mundo contemporâneo a busca pelo corpo considerado saudável, belo, ideal – este último ligado aos qualitativos de saúde e beleza, tensionado entre os determinantes clínicos num ponto ideal entre a magreza e a condição de sobrepeso. Passam pelo crivo escópico coletivo, sendo avaliados pelo olhar dos muitos outros ao mesmo tempo em que pela vistoria médico-estética especializada, que acaba por determinar com fórmulas, instrumentos de medição e muitos números, qual a medida ideal em função da saúde, sempre no discurso que privilegia a busca pelo corpo saudável.

A questão do risco é um ponto essencial para tal apropriação e determinação do comportamento dos sujeitos contemporâneos em suas relações com seus corpos. Neste sentido, ser gordo, não fazer exercícios, fumar, beber, não consumir produtos saudáveis, todos são comportamentos inadequados, geradores de riscos. “O risco se presta com muita propriedade à nossa época em sua ênfase em virtualidade, desejo/necessidade de predição e aceleração e em sua forte ligação com a ideia de culpa. É como se a noção de risco tivesse sido feita sob medida”. (CASTIEL, 2010, p.91).

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delineando um estilo muito próprio, com nossos próprios traços, afinal, o ato – aqui de escrever – não é uma ação solta, é uma implicação do sujeito com seu desejo mais genuíno.

A definição do titulo do trabalho indica que tomamos as publicações das revistas na busca de recuperar um modelo de mulher em feitura, implicando ai num jeito de se portar, de mostrar o corpo, de apresentar beleza, boa forma e zelo. Ele precisa se revelar nas formas enxutas, inclusive prescindindo do verbo, tendo em vista que a imagem muitas vezes excede. Estamos considerando que a mídia propaga esses modelos, ao mesmo tempo em que estes são sustentados por um saber autorizado socialmente – ainda que não seja verdadeiro ou comprovado – que tem efeitos de verdade e é tomado como tal pelos leitores. Assim, graça e vigor, saúde e juventude se apresentam convertidos no corpo exposto nas capas. Uma mistura de Hígia e Afrodite.

Afrodite é a deusa da beleza, do amor e da sensualidade, uma das doze divindades olímpicas. Com suas formas arredondadas, certamente alude à imagem cada vez mais distante do que hoje se tem como ideal de beleza. Rechonchuda e com saliências abdominais que revelam contornos generosos, o símbolo da feminilidade e da fertilidade, mesmo nos dias atuais, não deixa de ser a referência maior para enfatizar a beleza. Consideremos Afrodite repaginada, usuária das tecnologias mais recentes de cuidados corporais e que sofre as influências da revolução sexual, descolando-se da reprodutora e identificando-se com a mulher que consome os mais modernos produtos de beleza.

Hígia é a imagem que alude à saúde, limpeza e sanidade na mitologia grega. Como tal, mais do que responsável pela cura, a deusa grega suscita o interesse constante pelos corpos, no plano da prevenção e da boa saúde, dos cuidados que se prestam indefinidamente. Elaboramos, portanto, em torno das divindades gregas, a recente imagem hibrida que explicita tanto beleza – através do corpo trabalhado nas academias de ginástica, magro, definido –, quanto juventude, – através do consumo de uma parafernália de intervenções médicas –, e ainda reflete saúde e da vitalidade. Um só corpo que condensa Hígia e Afrodite, vida e beleza.

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o corpo e a alma. Percorremos alguns caminhos da configuração do corpo subjugado à alma pela teologia judaico-cristã para entender como o corpo feminino era tomado nesse contexto. Visitamos o Renascimento, com a problemática do corpo em sua tensão à medicina popular, indicando como as mulheres e seus corpos se faziam possíveis diante das condições próprias à época. Sentimo-nos tentadas, por curiosidade e também escasso material publicado, a saber como o Brasil vivenciava essa experiência de representar o corpo feminino e então apontamos um mínimo de dados e configurações que nos serviram de esclarecimento. Encerramos o capítulo com algumas construções cartesianas sobre o corpo, virada paradigmática com fortes consequências para a história do corpo dai por diante.

No segundo capitulo, tomando o estatuto da subjetividade, apontamos os principais referentes para as teorias no campo da Psicologia e áreas afins, inclusive a saúde. Resgatamos as contribuições de Husserl, pai da fenomenologia; recuperamos as ricas elaborações de Merleau-Ponty ao trazer para o cenário o valor do corpo; trouxemos também Freud e Lacan, expoentes da psicanálise para destacar o corpo como formador do eu e terreno de estranhamentos; finalmente, consideramos que as elaborações de Foucault, quando trata do poder e do cuidado de si, têm significativa relevância para nosso estudo do corpo.

No terceiro capitulo, dadas as inúmeras publicações sobre o tema, seus entrelaçamentos com diversos campos em nosso estado da arte, fomos conhecendo esse campo tão diverso, considerando seus desdobramentos. Partimos da problemática própria do corpo: seu (não) lugar de estabilidade, prestando-se às múltiplas referências biológicas, psicológicas e sociais. Da concretude à significação, o corpo foi sendo apontado e privilegiado no que nos interessa: sua complexidade. Discorremos sobre as disposições sociais nos espaços midiáticos como programas de televisão e a reeducação alimentar pela internet através de exemplos que fomos tomando durante nossa escrita. Trabalhamos também outra temática que se nos apresentou de forma insistente desde muito tempo: o deslocamento do sujeito do lugar de objeto para a posição subjetiva. Dos transtornos alimentares à visão critica do discurso médico que abole o sujeito da sua palavra. Ainda pontuamos aspectos que envolvem o olhar e a imagem para, finalmente, trazer a discussão no contexto das teorias feministas, que problematizam sexo, gênero e efeitos performáticos do corpo.

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discurso biomédico e de que corpo ele trata; resgatamos algumas elaborações sobre o papel da mídia na construção do corpo ideal e problematizamos o corpo também em nosso campo, a saúde coletiva.

No quinto capítulo, apresentamos algumas construções sobre ideologia no recorte a que nos propusemos através das revistas. Também problematizamos a medicalização da vida, nos desdobramentos do corpo mercadoria e nas discussões acerca da sociedade de consumo, do mercado e dos ideais corporais.

Passamos ao trabalho de analisar as revistas nas centenas de páginas publicadas, guiados pela análise de discurso para uma crítica da engrenagem mediático-medico-estética, recuperando as seções em suas montagens para a construção de certo modelo de corpo, de beleza, de saúde, de subjetividade.

Na nossa análise, fomos nos apropriando de denso material, tanto imagens quanto textos. As seções analisadas nos mostraram a imagem adensada de Hebe, a representante maior da juventude, numa convergência entre Hígia e Afrodite. Em outras palavras, o corpo veiculado e em desfile nas inúmeras páginas das revistas, foi sendo lapidado e confeccionado na interseção entre a juventude, a beleza e a saúde, muitas vezes na intencionada relação produzida e alimentada pela mídia, que na grande maioria das vezes lançava mão do discurso competente, do expert, do perito em assuntos sobre forma e cuidados corporais.

Evidenciamos as inúmeras passagens que enfatizam estratégias identitárias das personagens famosas da capa com a leitora, no jogo de sedução certeiro que envolve desejo de aquisição daquela imagem e de tudo o que vem com ela; recuperamos ainda o corpo/imagem veiculado na sua versão de papel, onde as marcas do tempo, os sinais distintivos que evidenciam o um a um são apagados em função da imagem ideal, perfeita; percebemos as matérias sobre as famosas – entre elas atrizes, apresentadoras de televisão, modelos – enfatizando a disciplina e a luta contra as tentações da carne como uma ascese, onde a recompensa do esforço se esboça na imagem cada vez mais perfeita, digna de admiração e exemplo a ser seguido. Verdadeira imagem espelho!

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Nas seções seguintes, na revista Corpo a Corpo, a evidencia do corpo em forma é enfatizada nas matérias sobre exercícios físicos dos mais variados, com treino orientado, sempre com a presenta do personal, dando o tom da veracidade e cientificidade dos movimentos certeiros para a lapidação do corpo. Matérias sobre alimentação apresentam cardápios com baixas calorias, receitas leves e magras, na contagem de calorias que garante a matemática fitness.

Nas seções trabalhadas em Boa Forma, o corpo e a pele são analisados minuciosamente pelas profissionais da ciência médico estética, com ênfase da prevenção dos sinais do foto envelhecimento, desdobramento de uma cútis saudável e com intervenção ajustada dos especialistas. Do dermatologista ao massoterapeuta, da drenagem linfática à luz modulada, tudo é selecionado para preservar a beleza “natural” e evidenciar o esforço cotidiano do cuidado e da disciplina. As maquiagens recebem respaldo das pesquisas mais avançadas e da tecnologia para se adequarem a cada idade da mulher. Quando o assunto é dieta e nutrição, os alimentos devem ser aliados das dietas, escolhidas menos por seus sabores, e mais pela funcionalidade. São os “antioxidantes”, os que contem “polifenóis”, os que eliminam os “radicais livres” que devem ser incluídos na dieta.

Na seção sobre as conquistas da leitora, ultima analisada em nosso trabalho, Eu Consegui!, a ressalva é para a vitória do esforço. Mulheres comuns são eleitas tendo como critério o esforço contra a balança. A saga é contada na matéria, que revela o esforço e a conquista do corpo magro, saudável, jovem. De obesas, sedentárias e com baixa autoestima, as mulheres passam ao estatus de vitoriosas, fortes e dignas de aplausos, dada a persistência com que se empenharam e chegaram “lá”, nesse lugar imaginário de sucesso e de produção de novos desejos, agenciados pela engrenagem discursiva da exaltação, onde o editorial enaltece os itens que vende: sucesso, juventude, saúde, boa forma e felicidade.

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2. CAPÍTULO I: ALGUMAS PERSPECTIVAS DA HISTÓRIA DO CORPO FEMININO NO OCIDENTE

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo. (Oswald de Andrade).

Neste capitulo, faremos um resgate no sentido de capturar alguns momentos da história do corpo no ocidente. Para tratarmos do corpo e das questões que envolvem a produção de verdade sobre suas configurações e embates no mundo atual, especialmente a tirania da magreza e dos contornos corporais mínimos e definidos, tal como determina o “discurso saudável” e o “saber sobre a beleza”, fez-se válido resgatar alguns aspectos da história. Certamente não se trata de descobrir a verdade antepassada do corpo, mas de traçar certo percurso particular que nos permitiu vislumbrar como o corpo, essa mais genuína metamorfose ambulante outrora fora compreendida, produzida e caracterizada, quais influencias sofreu e de que modo também foi influenciando as culturas e épocas.

Começaremos apontando algumas produções de verdade sobre o corpo no mundo grego, especialmente com os clássicos filósofos sem abrir mão, quando convier, de apontar certas produções outras, com menor ênfase e visibilidade, porém não menos importantes e influentes em outros tempos e por que não dizer, nos de hoje.

2.1 Os gregos, a beleza e as relações entre corpo e alma

Buscando informações e produções sobre o corpo no mundo grego, especialmente o corpo feminino – considerando que a mulher não estava incluída no universo da cidadania –, muito pouco temos a ser tomado como construção consistente e que nos embase na compreensão do modo como o corpo era percebido e trabalhado. Certamente, Foucault é um autor que trouxe um panorama possível de ser visualizado quanto trata dos cuidados corporais, mas seu recorte histórico parte de Galeno, médico e filósofo romano de origem grega. Seu foco não era especificamente o corpo, mas quando interrogava sobre a morte, a imortalidade ou a reprodução, acabava por gerar saber e discutir também os usos do corpo, seus fluidos corporais, os desejos e prazeres.

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distintos de cada um deles. Abbagnano (1998) nos esclarece que a concepção mais difundida de corpo é a que o toma como instrumento e isso implica ser apreciado ou criticado por não responder ao que se espera dele. Assim, ora tomado como unidade, ora como parte; às vezes como túmulo da alma, outras como sua possibilidade de manifestação. O corpo percorre a história da Filosofia especialmente e do mundo ocidental de modo geral até chegar aos dias atuais ainda como tema corrente.

Os problemas filosóficos e metafísicos que surgem (ou seja, que tratam da origem do mundo, as preocupações sobre a geração das coisas, como nos constituímos) incluem também reflexões sobre a relação corpo-alma. Desde a aurora do pensamento ocidental, como considera Cardim (2009) “foram estabelecidas séries de separações e correlações entre alma e corpo” (p. 20).

Para os pré-socráticos as questões sobre oposição corpo e alma não existiam porque se tratava de ocuparem-se com a cosmologia. De acordo com as produções sobre a verdade do universo, ou seja, os saberes sobre a origem, o corpo está incluído e de forma tão bem integrada que não se pode tomá-lo separadamente. São exemplos a Ilíada

de Homero, no século VIII a.C. e, a tragédia de Sófocles, Antígona, no século IV, também a. C. Nos dois casos, trata-se de compreender o corpo integrado ao cosmo.

Na Ilíada, Achilles, depois que mata Heitor, insiste em não devolver o corpo aos seus para que possa ser velado e promete dá-lo como alimento às aves de rapina. Depois de muitos pedidos do rei é que Achilles então concede a liberação para as honras fúnebres. Em Antígona, os filhos de Édipo e Jocasta mataram um ao outro diante da disputa pelo trono do pai. O tio deles, irmão de Jocasta, assume Tebas e proíbe que um dos irmãos, Polinices, seja sepultado, dando apenas a Etéocles as devidas honras por entender que estava em defesa da cidade. É neste contexto que a irmã dos combatentes mortos entra em defesa pelo direito de seu irmão ser enterrado, assumindo que violará a lei do rei para garantir a lei dos costumes. Esses exemplos nos valem para a compreensão da inseparabilidade entre corpo e mundo, entre soma e cronos.

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quando de sua presença do mundo das essências. (SUASSUNA, 2002). A alma caminha para a elevação, que em último caso, trata-se do amor.

Os seres humanos, que a principio, eram machos e fêmeas ao mesmo tempo, como ele trata no Banquete, são separados e cada alma segue na busca da sua outra parte, perdida. Tão somente, os seres inferiores ficam felizes e satisfeitos com o corpo do outro, a forma mais rasa de amor, a física. O estágio superior da alma humana é a que considera a beleza corpórea como propicia à ruína e, por isso mesmo, pouco digna de estima.

Segundo Spinelli (2007), o corpo, para Platão, não é assim tão separado da alma como se costuma pensar em geral. Na verdade, o fato de a alma estar constantemente compelida a unir-se ao corpo, constrita por paixões e impulsos corporais, seja através da fome, desejo, dor, prazer, imprime nela certa solicitude em atendê-lo. Os afetos corporais são espontâneos, de tal modo, inquietantes. Daí as orientações de Platão aos seus discípulos voltarem-se para ascese das afecções, desde que isso não signifique esquecer ou negligenciar o corpo, eliminando a potencia humana natural de afetar-se com o mundo. Afinal, dor de dente ou fome impedem de filosofar. Neste sentido, quanto mais educada é a razão, menos dependente se torna das paixões.

No Fédon, Platão interpela Símias sobre o valor do corpo e ratifica a afirmação de que corpo e alma estão ligados e articulados ao apontar que prazeres e sofrimentos possuem certa espécie de crivo com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo, assim, com que a alma, feita matéria, passe a julgar a verdade das coisas conforme as indicações do corpo. Eco (2010) nos traz a referência do corpo para Platão como sendo aprisionamento da alma, como uma caverna escura. Só através da arte dialética, ou seja, da Filosofia, é que a visão intelectual supera a sensível e permite, então, que a superação aconteça.

Aristóteles, abandonando o idealismo platônico, passa a conceber que o mundo origina-se do caos e passa a ser regido pela Harmonia. Restando, contudo, vestígios dessa desordem, os homens lutam pelo equilíbrio e a ordem. Retirando do mundo ideal e trazendo a essência para os próprios dados das coisas, Aristóteles nos permite, por exemplo, compreender a Feiura (desordem, portanto) como elemento possível a estimular a beleza pela via da arte. O feio então é incluído no campo estético do pensamento sobre o mundo e as coisas, num fundamento realista.

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harmônica e o corpo é instrumento da alma. Opondo dentro e fora, Aristóteles subdivide o corpo em três planos: a composição básica, as partes semelhantes e, ainda, as partes diferentes. Os elementos primordiais compõem essa estrutura básica; os tecidos, sangue, órgãos e ossos são o que há de semelhante; as diferenças são marcadas através dos olhos, da proporção dos membros, cabelo, mãos, etc. É na forma de cada um e através do modo de agir que uma pessoa pode ser identificada. E o que é o corpo? O corpo é essa harmonia, dotado de alma, integrado e organizado, como forma e finalidade. Um cadáver, então, já não é mais um corpo, pois privado de alma.

Será tão absurdo conceber uma alma sem o corpo quanto um piloto sem navio: a alma só é alma pelo corpo que anima. O soma [o corpo], enquanto manifestação física do humano, atesta assim a obra da vida, e que a inteligência pertença à vida: é num corpo especificamente humano que a vida por se fazer inteligência capaz de presença a si e de reflexão. (SIMHA, 2009 p.34).

A alma certamente é o principio de mobilidade da vida, mas seria incapaz de dar conta da ordem e da orientação dessa mesma vida sem a sensibilidade. Desta feita, o mundo sensível se organiza com o juízo, e não funciona sem ele, mascando aí a relação de um com o outro, do corpo com a alma.

Ainda sobre as considerações aristotélicas, sua ética refere-se ao compromisso do homem com o bem supremo, que é a felicidade grega em ultima instância. Tal felicidade implica em uma vida a ser prolongada, potencializada. E por que falamos aqui disso? Porque a felicidade deve ser tal que não se realize “contra o corpo (e que, por isso mesmo, não dependa só do corpo)” (KELH, 2007, p. 367). Ser sujeito, ser feliz, equivale a ser cidadão e a cidadania grega é o comprometimento com a pólis, já que o bem do indivíduo está aí.

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Assim, do idealismo platônico ao realismo aristotélico, o corpo assume posições distintas que vão implicar na relação com o mundo e com os outros, alterando também as leituras e as compreensões. Certamente há muitas outras referencias e construções desse período histórico, mas nossa intenção é grifar as linhas que nos permitem evidenciar certa compreensão do corpo, possível de ser evidenciada como modelos predominantes no campo da Filosofia e que influenciam séculos até os dias atuais, com o pensamento platônico e aristotélico. Tomados tais referências para ilustrar certo recorte do corpo no período de prevalência do império romano ocidental, passemos as construções sobre ele na Idade Média.

2.2 O corpo na Idade Média: a teologia judaico-cristã e suas influências na construção do corpo feminino

O período medieval é um momento significativo da história ocidental, especialmente européia, retratado como tendo inicio com a queda do império romano. A Idade Média se caracteriza, especialmente, no plano religioso devido ao predomínio da Igreja com suas influências sobre os indivíduos no modo de viver e de se relacionar moral, política, econômica e eticamente. Também incluída aí está a forma como o corpo é tomado e retratado. O discurso predominante tende a considerar que o corpo foi esquecido ou desprezado, mas traremos perspectivas que possibilitarão compreender que essas concepções não deixaram de acontecer tensionadas por outros modos de conceber o corpo à época.

Certamente há uma lacuna na história do corpo no período medieval, pois ela é quase sempre desencarnada, relegada ao mundo em preto e branco, obscuro e convencional das “trevas”. Quando retratado, o corpo que aparece é o dos autores da história, sejam reis, santos ou figuras lendárias. Com ênfase nos aspectos espirituais e superiores, elevados do mundo animalesco e pecador ao qual se valia o corpo, tais personagens reforçavam a visão que foi predominante por longos dez séculos. Resgataremos algumas construções que nos permitam ilustrar o uso do corpo durante alguns momentos dessa vasta época, ora destacando esses aspectos, ora apontando outras possibilidades de ilustração e de posição do mesmo corpo.

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com o corpo humano. Foi como homem e com um corpo que viveu e morrer, sofreu e amou, mas também na condição de corpo que deixou de sê-lo e perdeu para então ressuscitar. Assim, é dessa dupla construção, entre a imagem e semelhança de Deus e a condição de pecador e vulnerável, que se ergue o corpo na idade média.

O corpo feminino na Idade Média, quando retratado, costuma aparecer de dois modos predominantes: via do amor sagrado e doutrinal, enaltecido nos textos bíblicos, ressaltado pelo moralismo medieval que condenava o prazer não sem autorizar a celebração da beleza, visíveis pelo olhar do esposo; também surge através da imagem profanada pelas composições com franca sensualidade e onde a beleza feminina é enaltecida.

Já aludindo ao amor cortês, o traço do belo no corpo da mulher retratada a partir do século V nos interessa para destacar o aparecimento do ideal de beleza onde o desejo se amplifica pela interdição. Eco (2010) retrata um texto denominado

Sensualidade Medieval, no qual o amado luta e evidencia a dor de contemplação pela amada que o ignora, quando diz: “sofro amargamente e morro da ferida de que me vanglorio. Oh! Se ao menos quisesse curar-me com um beijo aquela que se compraz em transpassar-me o peito com suas doces flechas.” (p.158). Possuir o corpo e ter a dama quase nunca é fato, pois é no adiamento do desejo pela fantasia que um corpo de mulher e um jeito de ser, autorizado e forjado pelos homens, advêm.

A referida visão do corpo não segue exclusiva, pois que caminha de mãos dadas com outras formas de compreender e tomar o corpo. Saindo do lugar de pura e angelical, advinda do mundo pudico, a mulher assume outro lugar, o de impura, malvada e bruxa. Sujeito ao mundo das tentações e dos prazeres, o corpo feminino é uma ameaça à ordem social. A imagem da figura nociva e prejudicial perdurou por toda Idade Média, como grande instrumento do mal, da vaidade e do feitiço, em que a

igreja identificava, nas mulheres, uma das formas do mal sobre a terra. Tanto a literatura sacra, quanto a profana, descreviam-na como um superlativo de podridão. Quer na filosofia, quer na moral ou na ética do período, era considerada um receptáculo de pecados. Os mistérios da fisiologia feminina, ligados aos ciclos da lua, ao mesmo tempo que seduzia os homens, repugnava-os. (DEL PRIORE, 1999, p. 04).

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mentalidade coletiva que exprime uma profunda misoginia e um enorme desejo de normalizar a mulher” (p.15).

As práticas corporais, que incidem sobre a forma de viver e se relacionar, dizem como uma época, seja sutilmente ou não, impõe aos seus os usos do corpo. Incidir a lente sobre esses modos de corporeidades no período medievo é constatar a ideologia do Cristianismo, tornado religião de Estado e fortemente repressor, ao mesmo tempo em que cola à figura do homem sua imagem e semelhança ao divino.

De um lado o clero reprime as práticas corporais, de outro, as glorifica. De um lado, a Quaresma se abate sobre a vida cotidiana do homem medieval, de outro, o Carnaval se entrega a seus exageros. Sexualidade, trabalho, sonho, formas de vestir, guerra, gesto, riso... O corpo na Idade Média é uma fonte de debates, alguns dos quais ressurgem contemporaneamente. (TRUONG, 2011, p. 31).

Superfície que revela as profundas mudanças sociais através do que nos aponta o autor, temos, a uma só vez, a humanidade do corpo, com seu distanciamento do pecado original, sobretudo, através do corpo sacralizado e a eterna lembrança de que também o traço humano o aproxima de sua abominável condição, resistente à repressão. Ambiguidade que perpassa o discurso cristão sobre o corpo e suas imagens representadas, num duplo movimento de enaltecimento e menosprezo. Gélis (2008) considera que a visão do corpo no referido período é dupla e inconstante e que a Igreja nunca fora unânime ao falar dele, pois “à uma interpretação pessimista do mundo, à uma abordagem negativa do corpo,” advinda de Santo Agostinho, faz contraponto “uma apreciação mais moderada de um corpo que está em equilíbrio, imagem positiva.” (p.21).

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rejeição ao mundo sensível promove ascese. Uma série de hábitos passa a integrar a lista de regulações: sejam pela via da proibição ou da modéstia. Comer, vestir-se, beber, movimentar-se, tudo isso passa pelo crivo dos inquisitores para ser punido aos olhos do divino.

Desaparecem as termas, o esporte também, junto com os estádios, circos e ginásios, locais genuínos de expressão corporal, o teatro grego e romano, risos soltos e gesticulações são reprováveis e as máscaras e maquiagens, condenadas. Entre as práticas temos, por exemplo, a regulamentação da vida através do calendário alimentar compreendendo “abstinência de carne três vezes por semana, jejuns na quaresma, no advento”, nos períodos de inicio de cada estação do ano, “na vigília das festas e nas sextas-feiras” (TRUONG, 2011, p.38), e assim, por meio do controle dos gestos, o corpo é constantemente vigiado pela igreja, tanto no tempo, quanto no espaço.

Ao corpo feminino, misterioso e pecador, impõem-se proibições de toda ordem, merecendo, inclusive, um guia de condenação proposto, estudado e aplicado pelos juízes da Inquisição, o manual de caça às bruxas, Malleus Maleficarum.

A inferioridade e o perigo do corpo da mulher manifestam-se no tabu do sangue, posto que manter relações carnais com esposas durante o período menstrual poderia resultar no nascimento de crias leprosas. O próprio sexo é tomado como tabu e desvalorizado para qualquer fim que não seja o de procriação. Ora, o casamento cristão, invenção datada da Idade Média, surge como possibilidade de institucionalizar um espaço que dê conta da concupiscência. Além do mais, luxúria e gula figuram como os maiores pecados capitais, do mesmo modo que abstinência e contenção são virtudes a serem seguidas.

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Mal magnífico, prazer funesto, venenosa e traiçoeira, a mulher era acusada pelo outro sexo de ter introduzido sobre a terra o pecado, a infelicidade a morte. Pandora grega ou Eva judaica ela cometera o pecado original ao abrir a caixa que continha todos os males ou ao comer do fruto proibido. (DEL PRIORI, 1999, p.2).

O pecado original, a grande fonte de infortúnio do homem, registrado no Gênesis, indica infração de orgulho e um desafio do homem lançado contra Deus. Sua interpretação original não estava nem um pouco próxima da visão de pecado sexual, como foi propagada por tantos séculos desde então. Foi no período medieval que o pecado original, do homem desafiando o saber de Deus, foi revisitado e transformou-se em pecado sexual. Tal fato produziu uma torção no olhar sobre o corpo na história, com a total desvalorização e desprezo.

O pecado original, que expulsa Adão e Eva do Paraíso, é um pecado de curiosidade e de orgulho. É a vontade de saber que conduz o primeiro homem e a primeira mulher, tentados pelo demônio, a comer a maçã da árvore do conhecimento e a despossuir Deus, de algum modo, de um de seus atributos mais determinantes. A carne permanece fora dessa queda. (p.49)

Ora, tanto pela via da ressurreição da carne, quanto pela possibilidade da carne fazer-se verbo, ou ainda pela salvação através do corpo e do sangue de Cristo, temos a celebração do valor do corpo como possibilidade de resgate de Jesus ao homem, sendo absurdo suspeitar do corpo. A vida se assegura aos que bebem do sangue e comem da carne (pão e vinho) no ritual na Santa Ceia e é pela entronização do discurso moral da Igreja que acontece a reviravolta ideológica, tornada possível pelo pensamento medieval, predominantemente marcado pelo pensamento simbólico. A variação ideológica da interpretação original do pecado do conhecimento pela aquisição de parte do saber divino altera-se à nova compreensão do pecado sexual, impressora de marcas indeléveis ao corpo e ao sexo feminino.

Se o traço feminino retratado por Eva constitui a beleza tentadora e pecadora, num outro pólo temos outra personagem que revela redenção: Maria, mãe de Deus. Não tomada por seu corpo, mas a partir do rosto puro e santo, Maria torna-se objeto de admiração e fonte de inspiração. Espaço de luz e maternidade, essa personagem desvela a beleza sagrada e torna-se ícone a ser referendado.

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mulheres, credibilidade nenhuma. A história do corpo feminino tem se revelado história de dominação através de beleza pudica e virginal, nem um pouco apagada dos tempos atuais, caminhando em paralelo com outros modelos, mais ousados e não menos influenciados pelos padrões de beleza, acompanhados de um intenso trabalho de “domesticação” e controle.

2.3 Concepções de corpo no Renascimento: da medicina popular ao saber científico.

Atravessando a era medieval e chegando ao período definido como Renascimentos, temos acontecendo em paralelo tanto mudanças importantes quanto permanências no que se refere ao corpo e seus usos. Já sabendo que os olhares sobre o corpo se constroem pelas vivências e verdades instituídas a cada época, as influências dos discursos hegemônicos compartilham espaço com as sabedorias do povo, resistentes ao apagamento. Assim, também foi nesse período margeado entre os séculos XII e XVII, sem muito consenso ainda entre os historiadores, mas que registram o fim da Idade Media e inicio da Moderna. A expressão renascimento é muito utilizada para marcar o rompimento com as estruturas medievais nas Artes, na Ciência e na Filosofia, mas tem sido tomada também na compreensão das mudanças tanto nos aspectos econômicos, religiosos quanto políticos e sociais.

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Por um importante período, prevaleceu o modelo dos fluidos para explicar o comportamento do corpo quanto à doença e a saúde. Baseada nos humores estava a explicação da vida, tendo em vista que ela é algo que ‘corre’, se movimenta, flui e onde a menor ruptura ou ferimento no corpo atinge os líquidos. Com a ingestão de alimentos e bebidas que entram e saem do corpo, acontece a transformação em saliva, suor, excrementos, urina. Os exames, inclusive, eram feitos tomando para análise o liquido urinário.

A temperatura humana, na variação entre os corpos dos homens e o das mulheres, a cor da pele, a textura, o tônus muscular, alegria e tristeza, inchaço ou magreza, tudo era explicado pela combinação maior ou menor desses quatro elementos básicos. A saúde significava o equilíbrio das proporções e a doença advinha da saturação dos humores, da descompensação entre eles.

Se, por causa de um regime muito rico, por exemplo, o corpo fabricava muito sangue, seguiam-se “perturbações sanguíneas” – ou, segundo uma expressão moderna, a pressão sanguínea subia. Daí o excesso de calor ou a febre. Devia-se, consequentemente, sofre uma hemorragia, ter uma crise, um ataque de apoplexia ou uma crise cardíaca. Por outro lado, uma falta de sangue ou um sangue de má qualidade significavam uma perda de vitalidade enquanto que uma perda de sangue devida a ferimentos devia levar a um desmaio ou morte. Raciocínio idêntico, sem duvida, para os outros fluidos: uma bílis prolífica torna bilioso, sensíveis aos distúrbios digestivos, uma fleuma prolífica torna impotente e frio. (PORTER E VIGARELLO, 2008, p. 445).

Ao anêmico, carne e vinho para que se fortaleça, ao apoplético uma dieta com legumes e refresco para que acalme, resfrie e dilua. O processo de tratamento, então, implicava em fazer corresponder harmonia interna à externa. Não esqueçamos que em nossa época temos ainda essa compreensão do corpo muito presente na medicina popular e que é transmitida entre as famílias.

Paracelso foi um médico renascentista apontado como figura paradigmática e bastante controversa na historia da medicina de então, pois aliava os interesses místicos às buscas médicas, adquirindo conhecimento “junto às feiticeiras de sua época, com o que acrescenta novos medicamentos às matérias médicas correntes. Para ele, as quatro bases da medicina eram alquimia, astrologia, Deus e a natureza” (SAYD, 1998, p.40). Contudo, a medicina hipocrática na versão revisitada por diversas influências da época, especialmente por Galeno, foi a que prevaleceu por mais tempo.

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seu começo se dê misturado a ela e que nunca finde a presença dos dois na compreensão e aplicação das terapêuticas ao corpo. As contradições acontecendo ao mesmo tempo à época, indicam a forte influência da religião entranhada pela ordem divina para buscar explicações na natureza. Assim, apenas lentamente a ciência moderna vai sendo lapidada e o que ocorre é o gradativo valor de verdade que assume com utilização de métodos mais aceitos e propagados.

A já anunciada revolução científica se consolidava pelos métodos da observação, pelo sucesso da Mecânica, da Física e da Química. A anatomia humana começa a ser sistematizada por meio de dissecações e o olhar velado da proibição religiosa cede espaço à verificação minuciosa, dos detalhes de cada parte, onde a intrusão leva à instrução. Olhar é saber.

O estudo detalhado do corpo dá condições de romper com as compreensões anteriores e, de forma hegemônica, eleger a ciência moderna como espaço de certezas. O que era especulação é recusado e separam-se das “verdadeiras descobertas” os “erros populares”. Desse modo é que a mudança de cultura reorganiza o conhecimento.

Objeto central nesse contexto, o corpo é o lugar de onde partem todas as descobertas e para onde se dirigem todas as interrogações e olhares. Na sua desnaturalização ele vai ganhando desencanto e se libertando da ordem cósmica e sobrenatural. Agora imperam as leis da Física, das descobertas da hidráulica, conquistas da fisiologia e as localizações do corpo como máquina dão o tom do caminho e a chave das operações a serem realizadas daqui por diante.

2.3.1 O corpo feminino nesse contexto: algumas incursões

A emergência moderna do corpo liga-se a novos dispositivos, tendo em vista que a explicação é dada pelas leis das causas e efeitos, já que o mundo não se organiza mais segundo a velha ordem dos planetas e das matérias etéreas. Apenas as leis da mecânica atravessam as coisas e os objetos, com o corpo libertado da ordem cósmica.

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As mulheres passam a se preocupar com as partes do corpo desnudas, à mostra, externando a beleza física e ligando-a à higiene e ao zelo pessoal. A mulher renascentista, de acordo com Eco (2010), usa os embelezamentos disponíveis da cosmética e mantém-se atenta também aos cabelos, tingindo de cores claras e avermelhadas. Pescoços recebem arte pelas mãos dos ourives e revelam o ápice da beleza através da proporção e da harmonia. Tempos depois as maquiagens se somam à engenharia estética aos óleos, pós, lenços com unguentos, pomadas e essências. Porém, quando há velhice ou viuvez, a mulher recuaria aos adereços e incrementos de cor para a face.

As partes altas do corpo feminino serviam aos olhos alheios como sede da beleza e eram estimuladas à exposição, enquanto as partes de baixo, como pernas e pés, que não estavam à mostra deveriam ser escondidas (LOPES, 2008). Se de um lado o belo está ligado aos cuidados estéticos, à boa conduta e à aparência, a feiúra era relacionada ao desleixo e deselegância, indicando inferioridade e má conduta.

Aos poucos, o corpo volta-se para apreciação pública, nos espaços de circulação e exposição onde a beleza reluz. Na verdade, já se demarcavam os limites do corpo nos espaços privados e nos públicos, pois o íntimo e o social agora são duas esferas diferentes. No caso da maquiagem, era tolerada como encenação pública, no jogo das aparências e da exibição, mas no espaço doméstico não cabia, tendo em vista que este era o lugar da revelação, da intimidade.

No encontro público, a beleza se fez cotidiana com um trabalho sobre o olhar e a curiosidade, reconstruindo o espaço urbano e, nesse sentido, a beleza corporal passa a ser levada em consideração como atributo. A beleza ideal “inatingível” delegada ao feminino, como fonte de exibição e contemplação está agora sobre influência das conquistas cientificas.

Referências

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