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A proteção das crianças (soldado) em conflitos armados à luz do direito internacional: quais desafios?

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

DEPARTAMENTO DE DIREITO PRIVADO

CINTIA CAMPOS DA SILVA

A PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS (SOLDADO) EM CONFLITOS ARMADOS À LUZ DO DIREITO INTERNACIONAL: QUAIS DESAFIOS?

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CINTIA CAMPOS DA SILVA

A PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS (SOLDADO) EM CONFLITOS ARMADOS À LUZ DO DIREITO INTERNACIONAL: QUAIS DESAFIOS?

Monografia apresentada ao Departamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial à obtenção do grau de bacharel em Direito.

Área de concentração: Direito Internacional

Orientadora: Profa. Dra. Tarin Cristino Frota Mont´Alverne

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CINTIA CAMPOS DA SILVA

A PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS (SOLDADO) EM CONFLITOS ARMADOS À LUZ DO DIREITO INTERNACIONAL: QUAIS DESAFIOS?

Monografia apresentada ao Departamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial à obtenção do grau de bacharel em Direito.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________ Profª. Drª. Tarin Cristino Frota Mont´Alverne (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Profª. Drª. Theresa Rachel Couto Correia

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Mestranda Silvana Paula Martins de Melo

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Ao meu pai e amigo, Marcel, por sempre guiar meus caminhos e apoiar meus sonhos.

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RESUMO

O presente trabalho pretende examinar os diversos desafios que se opõem à prote-ção das crianças-soldado pela comunidade internacional, bem como apresentar so-luções e estratégias a serem implementadas com o objetivo de promover a reinte-gração dessas crianças à sociedade, após suas saídas das forças e grupos arma-dos. O estudo foi desenvolvido com base em pesquisa bibliográfica, incluindo-se, no material de apoio, livros, artigos, monografias, dissertações de mestrado, teses de doutorado e consultas a sítios eletrônicos e relatórios de organizações internacio-nais. No primeiro capítulo, faz-se uma análise da definição do termo “criança -soldado”, da forma como as mesmas ingressam nas forças e grupos armados, de como se dá sua permanência nos mesmos e quais são as causas e consequências do envolvimento direto e indireto das crianças nos combates. No segundo, optou-se por estudar a forma como as normas de diferentes ramos do Direito Internacional se aplicam à matéria. Destinou-se ao terceiro capítulo a discussão acerca da possibili-dade de responsabilização penal da criança-soldado. O quarto capítulo trata dos de-safios e soluções que se impõe aos processos de reintegração das crianças desmo-bilizadas à sociedade. Os assuntos tratados, nesta monografia, foram escolhidos com base nas suas importâncias para a compreensão e estruturação do tema, que apresenta variadas peculiaridades e grandes implicações práticas em contextos de conflitos armados.

Palavras-chave: Crianças-soldado. Conflitos Armados. Proteção. Responsabilidade Penal. Reintegração à Sociedade.

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ABSTRACT

The present work seeks to examine the many challenges facing the protection of child-soldiers by the international community, as well as to present solutions and strategies to be implemented with the aim of promoting the reintegration of these children into society after their exit from armed forces and groups. The study was de-veloped based on bibliographical research, including books, articles, monographs, master's dissertations, doctoral theses and electronic consultations of international organizations. In the first chapter, an analysis is made of the definition of the term "child-soldier", of how they enter in armed forces and groups, of how is their stay in them and of wich are the causes and the consequences of direct and indirect in-volvement of children in the conflict. In the second one, it was decided to study how the norms of different branches of international law apply to the matter. The third chapter addresses a discussion on the possibility of criminal responsibility of the child-soldier. The fourth chapter deals with the challenges and solutions applied to the reintegration processes of demobilized children into society. The mentioned is-sues in this monograph, were chosen based on their importance for the understand-ing and structurunderstand-ing of the theme, which presents various peculiarities and great prac-tical implications in the context of armed conflicts.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 10

2 O RECRUTAMENTO E O USO DE CRIANÇAS EM SITUAÇÕES DE CONFLITO: QUAIS DESAFIOS? ... 12

2.1 Definição de criança-soldado e o seu papel dentro dos grupos armados ... 13

2.2 A vulnerabilidade das crianças envolvidas com conflitos armados ... 15

2.3 Dentro dos grupos armados: meios de incorporação e motivos para a permanência ... 18

2.3.1 Causas e consequências do recrutamento ... 20

2.3.2 Causas para a permanência das crianças nos grupos armados e a experiência no interior deles ... 23

2.4 A vulnerabilidade das garotas-soldado nas situações de conflitos armados ... 25

3 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA CRIANÇA-SOLDADO: DIREITO INTERNACIONAL FRAGMENTADO? ... 29

3.1 Proteção das crianças-soldado segundo o Direito Internacional Humanitário ... 30

3.2 Proteção do Direito Internacional dos Direitos Humanos ... 32

3.3 Contribuição do Direito Internacional do Trabalho ... 35

3.4 Direito Internacional Penal e a criminalização do recrutamento e do uso de crianças-soldado ... 36

4 RESPONSABILIDADE PENAL DA CRIANÇA SOLDADO ... 40

4.1 Divergência quanto à idade mínima de responsabilização penal ... 41

4.2 A responsabilização penal de crianças nas cortes internacionais ... 42

5 REINTEGRAÇÃO DA CRIANÇA DESMOBILIZADA NA SOCIEDADE ... 45

5.1 Desafios quanto à implementação de programas de reabilitação ... 47

5.2 Desafios específicos à reabilitação de garotas-soldado ... 49

5.3. Soluções e estratégias para os programas de reinserção das ex-crianças-soldado na sociedade ... 50

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1 INTRODUÇÃO

A utilização de crianças como soldados em conflitos armados internacionais e internos é uma prática antiga, mas que continua como uma das tendências mais alarmantes nas guerras da atualidade.

Ao redor do mundo, milhares de meninas e meninos participam direta ou indiretamente em forças armadas governamentais, grupos armados de oposição, milícias e grupos paramilitares, desempenhando os mais variados papéis, como combatentes, trabalhadores domésticos, carregadores, médicos, cozinheiros, escravos sexuais e espiões.

Independentemente do modo de recrutamento e dos papéis desempenhados nos grupos armados, as crianças-soldado são vítimas da guerra e, principalmente, dos adultos que as criam e perpetuam.

A participação de crianças em conflitos armados provoca sérias consequências de longo prazo para o seu bem-estar físico e emocional, principalmente quando elas encontram-se inseridas nos ambientes dos grupos armados. Estas crianças estão comumente sujeitas a abusos, à morte e à violência sexual e muitas são forçadas a perpetrar essas atrocidades. A reintegração destas crianças na vida civil é um processo complexo que requer o comprometimento de toda a comunidade internacional.

O presente trabalho surgiu com o objetivo de investigar as experiências vivenciadas pelas crianças-soldados em situações de conflitos e como esse fenômeno é enxergado pelo direito internacional, levando em consideração um enfoque contextualizado das diversas nuances que envolvem esses sujeitos e buscando um entendimento axiomático sobre essa complexa problemática, inclusive lançando comentários sobre o tópico da responsabilidade penal desses indivíduos.

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Na primeira, discute-se a definição do termo “criança-soldado” que será utilizada no decorrer da exposição, visto que esta conceituação não invoca consenso dentre os pesquisadores do tema. Ademais, procura-se entender como e porque crianças se tornam soldados e como essa experiência as afeta nos diversos aspectos de suas vidas, reservando atenção especial para a situação das meninas recrutadas por grupos e forças armadas em situações de conflitos.

Na segunda parte, expõe-se a aplicação de diferentes documentos jurídicos relativos aos diversos ramos do Direito Internacional ao tema das crianças-soldado, de forma a abordar quais os êxitos e as falhas de cada legislação específica referente à matéria em estudo.

A terceira parte foca na possibilidade e nos desafios relativos à responsabilização penal da criança que comete crimes de guerra e crimes contra a humanidade no decorrer de seu envolvimento com as forças e grupos armados, evidenciando a discussão acerca da inexistência de concordância internacional acerca do estabelecimento de uma idade mínima para a aplicação da responsabilidade criminal.

Por fim, antes da conclusão da pesquisa, acreditou-se ser importante avaliar os desafios e estratégias concernentes à desmobilização e reintegração da criança na sociedade civil.

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2 O RECRUTAMENTO E O USO DE CRIANÇAS EM SITUAÇÕES DE CONFLITO: QUAIS DESAFIOS?

Entre as décadas de 1980 e 1990, estima-se que dois milhões de crianças foram mortas em conflitos armados. O triplo desse total foi gravemente ferido ou incapacitado permanentemente. Um número incontável de crianças foi obrigado a testemunhar ou integrar atos de extrema violência.

Essa é a estatística apresentada por Graça Machel em 1996 (2016, on line), uma especialista do Secretariado Geral das Nações Unidas e ex-ministra da Educação de Moçambique, no Relatório sobre o Impacto dos Conflitos Armados em Crianças, documento de sua autoria responsável por evidenciar, pela primeira vez, a questão das crianças-soldado no cenário internacional de forma objetiva, demonstrando a relevância do assunto e fundamentando as discussões futuras sobre o mesmo.

Desde a publicação deste estudo até os dias de hoje a situação das crianças envolvidas com conflitos armados ao redor do mundo apenas se agravou. Unicef (2016d, on line) estima que, no ano de 2007, cerca de 250.000 crianças se encontravam ativas em conflitos no mundo. Muitas outras sequer figuram nas estatísticas, e uma das dificuldades de estabelecer a real quantidade de crianças recrutadas por grupos armados é que as forças e os grupos armados não reconhecem a utilização de crianças-soldados.

A organização não governamental Human Rights Watch (2012), que documenta o recrutamento e o uso de crianças como soldados em todo o mundo, estima que crianças estão lutando em pelo menos 14 países: Afeganistão, Myanmar, República Centro-Africana, Chade, Colômbia, Índia, República Democrática do Congo, Iraque, Filipinas, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Tailândia e Iêmen.

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2.1 Definição de criança-soldado e o seu papel dentro dos grupos armados

Avanços recentes nos estudos acerca das crianças-soldado proporcionam um entendimento mais contextualizado do fenômeno, pois as ideias tradicionais de uma criança-soldado universal deram lugar a uma visão mais diversa e fluida da categoria. Os conceitos ocidentais de infância estão sendo discutidos, permitindo o desenvolvimento de uma compreensão mais rica sobre como a cultura e as relações sociais moldam os diversos papéis e definições existentes de criança (WESSELLS, 2006).

No entanto, ainda existem inúmeros desafios que impactam na construção de uma definição precisa do termo criança-soldado. Primeiramente, faz-se necessário conceituar a infância, instituto cuja noção é estabelecida sob um viés cultural e varia conforme as sociedades.

O conceito ocidental de criança, consagrado na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 (CDC) define como criança uma pessoa com idade inferior aos 18 anos. Contudo, o uso de critérios objetivos para determinar o início da vida adulta, como a idade, pode não levar em consideração valores culturais determinantes para muitas sociedades específicas, principalmente as não ocidentais, como, por exemplo, comunidades de áreas rurais da África Subsaariana, onde os costumes e tradições permanecem fortes, que possuem cerimônias de iniciação ou ritos de passagem que marcam a transformação do indivíduo de criança para adulto, os quais muitas vezes não se baseiam em uma idade específica ou mesmo requisitam uma idade diferente da estipulada pela lei internacional, qual seja, 18 anos (FREELAND, 2008)

Há inclusive sociedades, onde o status de guerreiro é culturalmente aceito como um atributo positivo, em que a transformação da criança para a fase adulta será alcançada através da participação em guerra ou combate, de forma que o próprio ato de guerra faz com que a pessoa que o pratica não seja mais vista como uma criança por sua comunidade (FREELAND, 2008).

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proteção aos direitos humanos e considerado um jovem adulto pela população de uma vila na região rural da África.

Outro desafio à delimitação de uma definição precisa advém da ampla variedade de papéis que uma criança pode desempenhar dentro dos grupos armados aos quais a mesma pode pertencer no contexto dos conflitos. Apesar de várias crianças envolvidas em conflitos armados encaixarem-se na imagem invocada pelo termo “soldado”, qual seja de um combatente armado e uniformizado, que responde a um comandante e se organiza em unidades militares, outras crianças são recrutadas por grupos armados para servir como cozinheiros ou carregadores.

Dentro dos grupos armados, crianças executam os mais diversos papéis, sendo apenas um deles a luta armada. Muitos realizam tarefas que contribuem indiretamente com o conflito em si, servindo, por exemplo, como carregadores, cozinheiros, espiões, trabalhadores domésticos, guardas, recrutadores ou até mesmo médicos e escravos sexuais (COALITION, 2016a, on line).

As funções desempenhadas por crianças em grupos armados podem variar significativamente conforme a idade e o sexo da mesma, e a enorme diversidade de ocupações que podem ser exercidas faz com que seja irresponsável igualar o termo “criança-soldado” com crianças combatentes.

Logo, a fim de evitar restringir o objeto de estudo prematuramente, faz-se necessária a adoção de uma definição relativamente ampla, que foca nos maus-tratos de crianças associados a grupos armados no contexto da violência política.

A organização não governamental (ONG) International Coalition to Stop the Use of Children as Soldiers (2016) define a criança-soldado como

“qualquer pessoa menor de 18 anos de idade que é membro ou relacionado

a forças armadas governamentais ou qualquer outra força ou grupo armado regular ou irregular, independentemente da existência de conflito armado. Elas podem realizar uma série de tarefas, incluindo participação no combate, funções logísticas e de suporte, e serviços domésticos e sexuais.”

Os dois protocolos facultativos para a Quarta Convenção de Genebra oferecem uma definição de criança-soldado ao condenar o uso de qualquer criança com idade inferior aos 15 anos como soldado. No entanto, as faltas de adesão e de aplicabilidade desses protocolos conferem a essa determinação de idade uma legitimidade limitada (TOCK, 2004).

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“qualquer pessoa menor de 18 anos de idade parte de qualquer espécie de

grupo armado ou força armada regular ou irregular, em qualquer outra situação que não seja unicamente a de membro da família. Não se refere unicamente, no entanto, apenas às crianças que portam armas, mas também inclui cozinheiros, carregadores, mensageiros, e àquelas que acompanham tais grupos, abrangendo meninas recrutadas para exploração sexual e casamento forçado”.

Pode-se concluir que segundo essa visão, o termo “criança-soldado” compreende uma categoria ampla e diversa, o qual não implica no envolvimento direto da criança com o combate nem que a mesma participou voluntariamente no conflito, coadunando com a ideia defendida nesse trabalho de que as crianças são apenas vítimas dos adultos que perpetuam práticas nocivas como o recrutamento e utilização de crianças nas guerras que eles mesmos começaram (WESSELLS, 2006).

2.2 A vulnerabilidade das crianças envolvidas com conflitos armados

Milhões de crianças são afetadas por conflitos armados no mundo, não apenas como vítimas indiretas, mas como alvos específicos de ataques contra civis e de genocídios calculados. Há também crianças que sofrem com outras consequências nocivas da guerra, como violência sexual, fome e doenças. Há ainda milhares que são exploradas nesses conflitos como combatentes (MACHEL, 2016, on line).

A dificuldade em estimar a quantidade exata de crianças recrutadas para lutar em conflitos também se deve ao fato de que elas muitas vezes preferem esconder sua associação anterior com as forças ou grupos armados para evitar o estigma de ex-combatente.

Outro desafio a ser enfrentado é a falta de registro de nascimento destas crianças. Segundo dados da Unicef (2016c, on line), em 2012 apenas cerca de 60% de todos os bebês nascidos no mundo foram registrados e 230 milhões de crianças menores de 5 anos de idade não estão registradas, o que significa que uma em cada três crianças menores de 5 anos não tem registro de nascimento e, portanto, está invisível aos olhos do Estado, ficando ainda mais vulneráveis ao recrutamento e à violência.

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sexual no contexto de forças e grupos armados, principalmente as meninas. Crianças que são abusadas sexualmente possuem um enorme risco de contrair doenças sexualmente transmissíveis, como HIV e AIDS. Meninas ainda estão sujeitas à ameaça de gravidezes indesejadas, que além de serem naturalmente prejudiciais para meninas fisicamente imaturas, podem ser mais perigosas para àquelas que muitas vezes estão desnutridas e vivendo em condições insalubres (WESSELLS, 2006).

Além das vulnerabilidades físicas às quais crianças envolvidas em conflitos estão submetidas, os seus desenvolvimentos social e psicológico estão frequentemente ameaçados pelos diversos atos de violência e brutalidade aos quais encontram-se rotineiramente expostas.

Conflitos armados sempre vitimizaram civis, mas o padrão e as características das guerras contemporâneas aumentaram o risco para não combatentes, especialmente para as crianças, de forma que, nas últimas décadas, a proporção de vítimas civis de conflitos armados aumentou drasticamente de cinco para 90 por cento. Ademais, a distinção entre civis e combatentes tende a ficar ainda mais tênue quando a guerra é travada entre diferentes povos de uma mesma nação ou entre comunidades vizinhas (MACHEL, 2016, on line).

Muitas crianças-soldados são tomadas de seus lares enquanto ainda muito novas e servem durante um longo período de tempo em um grupo armado, de forma que perdem a noção de família e de identidade fora desse grupo em que passaram a crescer privadas das oportunidades que uma criança não combatente pode ter, como uma relação familiar saudável, experiências normais de desenvolvimento e maturação e até educação básica (LOREY, 2016, on line).

Segundo Graça Machel (2016, on line), os vestígios do colonialismo e as crises econômicas, políticas e sociais duradouras enfrentadas pelos países subdesenvolvidos contribuíram enormemente para a desintegração da ordem pública nos mesmos. Nações que já se encontram cindidas internamente, são submetidas às pressões de uma economia global marginalizante e do crescimento econômico atrelado ao aumento das desigualdades sociais.

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em guerras civis as quais se arrastam por longos períodos de tempo, sujeitando sucessivas gerações à luta pela sobrevivência (MACHEL, 2016, on line). Cada vez mais, as crianças se tornam alvos e, até mesmo, perpetradores de violência e atrocidades.

O relatório de 2004 da ONG internacional Coalition to Stop the Use of Child Soldiers declara que crianças podem ser encontradas lutando em quase todos os conflitos de grande porte, tanto em forças do governo como nas de oposição. Dentre esta grande diversidade de grupos armados, alguns contam com uma orientação política, como grupos paramilitares apoiados pelos governos e milícias; há ainda grupos de oposição ao governo, grupos compostos por minorias étnicas, religiosas e outras, e facções ou clãs que lutam contra o governo e entre si para defender territórios ou recursos (COALITION, 2016a, on line).

Às crianças são geralmente designadas as tarefas mais perigosas como espionagem, busca por minas terrestres e a posição de linha de frente no combate, fator que, somado aos fatos de que é mais provável que uma criança se exponha a riscos não calculados e de que elas são fisicamente mais suscetíveis a ferimentos, provoca a taxa de mortalidade mais alta se comparada aos adultos que se encontram na mesma situação (LOREY, 2016, on line).

Além de lesões provocadas pela guerra estas crianças podem enfrentar um grande número de problemas de saúde, como subnutrição, falta de higiene e cuidados médicos e violência física e psicológica, devido às condições precárias em que vivem enquanto associadas a grupos armados. Em alguns destes grupos é comum o uso forçado de drogas como cocaína, anfetaminas e estimulantes a fim de dessensibilizar as crianças-soldado à violência e melhorar suas capacidades de combate, acarretando um dano duradouro à saúde das mesmas, que apresentam dificuldades em superar a dependência química.

Como parte do processo de doutrinação aos ideais do grupo recrutador, os jovens soldados são brutalizados e até mesmo encorajados ou forçados a agredir ou matar adversários e até mesmo amigos, membros de sua comunidade e familiares. Essas práticas, além de servirem ao propósito de construir um vínculo entre a criança e os outros membros do grupo armado, também erodem os seus desejos de escapar do grupo armado e retornar à sua família e comunidade, de quem se sentem alienados.

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agentes passivos estão sendo substituídas por uma visão destas crianças como indivíduos ativos que participam na construção de suas identidades sociais e na atuação e discurso políticos (WESSELLS, 2006). Ademais, concepções distorcidas de gênero e preconceitos sociais estão sendo gradualmente corrigidos, abrindo espaço para superar a acepção do termo “criança-soldado” como equivalente a “menino-soldado”, evidenciando a situação das meninas envolvidas com conflitos armados e propiciando a discussão dos desafios relativos ao desenvolvimento de estratégias de reintegração apropriadas para ambos os gêneros.

2.3 Dentro dos grupos armados: meios de incorporação e motivos para a permanência

As crianças se tornam soldados de muitas maneiras e por muitas razões diferentes, e essa diversidade nem sempre se reflete na literatura sobre crianças-soldado. Mesmo dentro de uma única zona de conflito ou país, o recrutamento das crianças pode variar muito de acordo com o contexto, pois enquanto uma criança pode juntar-se a um grupo armado na esperança de ganhar dinheiro, outra pode juntar-se devido a uma mistura de desejos de segurança, de família e de vingança.

Segundo Michael Wessells (2006), apesar de a divisão das formas de recrutamento entre voluntário e forçado fornecer uma base para refletir sobre essa diversidade, é muito simplista pensar em termos maniqueístas, visto que a realidade da vida das crianças em zonas de guerra desfoca as fronteiras entre escolha e coerção.

Muitas crianças se juntam a grupos armados a fim de obter proteção e subsistência, ou mesmo motivados por vingança após testemunharem a morte de seus familiares e amigos nas mãos de grupos de forças armadas do governo. Muitas vezes, mesmo quando uma criança não parece desesperada e escolhe juntar-se a um grupo armado pelo dinheiro, esta escolha pode refletir a falta de opções disponíveis na vida civil. Essas decisões são tomadas em momentos de desespero, não podendo ser consideradas como livres escolhas e, assim, a complexidade de tais situações desafia categorias puras.

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permanecer com os mesmos (WESSELLS, 2006).

Logo a distinção que é comumente feita nos trabalhos sobre o assunto entre alistamento e recrutamento compulsório está sendo aos poucos superada pela noção de que mesmo que uma criança adira voluntariamente a um grupo armado, ela o faz por pressão de formas ocultas de coerção.

Dito isto, pode-se afirmar que crianças-soldado são recrutadas de maneiras muito distintas. Algumas são pressionadas, outras são presas ou sequestradas e outras são obrigadas a se unir a grupos armados para defender suas famílias. Os acampamentos para refugiados e pessoas deslocadas internamente são locais favorecidos para raptos de crianças porque eles contêm um grande número de crianças e pouca ou nenhuma presença policial ou outros meios para interromper sequestros.

Embora raptos de crianças tenham sido conduzidos com frequência por grupos armados de oposição, os governos também recrutam raptando crianças de forma organizada e sistemática, como é o caso da Angola e de Mianmar (WESSELLS, 2006).

Outras crianças são induzidas a aderir “voluntariamente” a grupos armados, levadas a alistar-se pelos mais diversos motivos, são ao mesmo tempo vítimas e atores em um cenário que os levam a envolver-se diretamente com os conflitos armados nos quais encontram-se imersos. É o que afirma Michael Wessells (2006, p.32):

As crianças como este menino não são vítimas passivas, mas agentes ativos que decidem que são mais propensos a ter um futuro positivo buscando seu destino com um grupo armado do que vivendo as vidas que suas famílias biológicas e sociedades esculpiram para eles. Este exemplo, que contradiz as visões infantilizadas das crianças, ilustra também a natureza progressiva do recrutamento de crianças. Muitas vezes, a decisão das crianças de se unir não vem em um momento de epifania, mas por meio de um lento acréscimo de decisões menores e um aumento gradual do envolvimento com membros de um grupo armado.

A destruição da infraestrutura em muitas nações devastadas pela guerra remove as instituições sociais que de outra forma poderiam ter representado uma alternativa a estas possíveis futuras crianças-soldado. O deslocamento e a destruição de laços familiares e outras redes sociais também tornam muitas crianças suscetíveis às ideologias e estratégias que são usadas para atraí-las ao serviço militar (TOCK, 2004).

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política deixa uma impressão indelével em crianças que, devido à sua idade, já não têm liberdade de escolha e capacidade para determinar os seus melhores interesses.

Em última análise, a decisão de recrutar crianças é feita por comandantes adultos, e são eles que têm de ser responsabilizados por seus atos, visto que o alistamento de crianças a grupos armados sempre acaba sendo uma tentativa desesperada de sobreviver (ONU, 2016, on line).

2.3.1 Causas e consequências do recrutamento

Como pertinentemente aponta Michael Wessells (2006, p. 23), “As zonas de guerra incorporam a verdade do famoso ditado de Mahatma Gandhi de que a pobreza é a pior forma de violência.” A pobreza, que muitas vezes contribui para a guerra, se intensifica durante esta e, juntamente à destruição da infraestrutura dos países em conflito e à redução da renda familiar, têm um efeito devastador sobre as crianças e famílias em zonas de guerra. Muitas vezes, essas crianças crescem em abrigos inadequados, vivendo em famílias muito pobres para obter alimentação adequada ou atendimento médico.

Para algumas crianças a entrada nos grupos armados significa a garantia de uma refeição por dia, que é muito mais do que elas teriam em casa, sendo um dos motivos pelos quais alguns pais ofertam seus filhos aos movimentos armados com a esperança de que eles serão alimentados e alojados (ONU, 2016). Por outro lado, muitas vezes as crianças vêem o alistamento como uma maneira de sustentar sua família. Pode acontecer que os salários da criança sejam pagos à família, ou que hajam outros incentivos, como alimentos ou a provisão de remédios (COALITION, 2016a, on line).

Conveniência, baixo custo e impunidade são fatores significativos na decisão de grupos armados de recrutar crianças. Os comandantes de campo geralmente testemunham que buscam engajar crianças porque não conseguem repor as fatalidades em suas tropas alistando adultos. Ademais, em zonas de guerra há um suprimento abundante de crianças, que tipicamente compõem metade ou mais da população (WESSELLS, 2006).

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armados, pois estas são mais fáceis de sequestrar, subjugar e manipular do que adultos, além da possibilidade de estas serem intimidadas e "moldadas" facilmente.

Crianças são particularmente vulneráveis a influências externas, podendo ser doutrinadas aos ideais do grupo recrutador e ensinadas às técnicas de combate sem dificuldades, bem como podem aprender habilidades e tarefas rapidamente e podem ser rápidos e ágeis em um campo de batalha. Todos esses fatores somados ao fato de que crianças são mais dispostas a correr riscos que adultos, as tornam soldados eficientes e até mesmo desejáveis. Podem ainda ser convencidas mais facilmente a desempenhar tarefas mais perigosas, mesmo que através de intimidação ou da utilização forçada de drogas ou álcool (FREELAND, 2008).

As crianças são também vistas como mais leais e menos ameaçadoras para a liderança de adultos, assim como são tipicamente mão-de-obra mais barata, dispensável e de fácil substituição, que exige menos alimentos e pouco ou nenhum pagamento. Além disso, o uso de crianças-soldados ainda pode apresentar um dilema moral aos inimigos, visto que muitos soldados adultos hesitam em matar crianças e até mesmo deixam de atuar ao se depararem com elas em situações de combate (LOREY, 2001).

Em culturas específicas, a participação em atividades militares é glorificada e as crianças são ensinadas a reverenciar líderes militares. Sistemas de valores que endossam a imagem de guerreiro como um sinal de masculinidade podem ajudar a atrair jovens para as forças e grupos armados.

Outrossim, há algumas crianças se juntam às forças armadas ou a grupos armados porque acreditam na causa pela qual estão lutando, seja pela guerra santa, pela liberdade religiosa, pela liberdade étnica ou pela justiça política ou social (ACTION, 2016, on line).

As crianças "voluntárias" frequentemente identificaram abusos governamentais como sua motivação para se unir a grupos armados não estatais, alistando-se depois de verem familiares e amigos torturados ou mortos por membros das forças armadas. Outros ainda foram alistados em países onde a falta de um sistema de registro de nascimento em funcionamento tornou impossível verificar a idade dos recrutas e garantir a proteção dos menores de 18 anos do serviço militar ativo (COALITION, 2016a, on line).

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armadas, a lei que estabelece essa idade mínima não é necessariamente uma salvaguarda. Em muitos países, o registro de nascimento é incompleto ou inexistente e as crianças não sabem suas próprias idades. Recrutadores só podem adivinhar a idade dos jovens alistados com base no desenvolvimento físico dos mesmos, o que os permitem determinar a idade dos recrutas como adequada a fim de apresentar uma aparência de conformidade com as leis nacionais (MACHEL, 2016, on line).

A proliferação de armas de pequeno calibre leves e efetivas também representa um fator favorável ao recrutamento de crianças. O termo "armas de pequeno porte" refere-se a várias espécies de armas, como machados, armas de fogo de pequeno calibre e minas terrestres. Elas são populares tanto entre as forças governamentais quanto entre os grupos armados não governamentais e civis, e podem ser transportados até mesmo por crianças menores de 10 anos de idade.

Essas pequenas armas são letais e fáceis de esconder, transportar e usar com pouco treinamento e o comércio das mesmas é largamente desregulado, além de que os poucos embargos que são impostos muitas vezes não são respeitados (PETERS, 2005). A proliferação de armas leves e de pequeno calibre alimenta os conflitos violentos e cria terreno fértil para graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário.

As feridas físicas e emocionais adquiridas pelas crianças envolvidas em conflitos podem estender-se até suas vidas adultas. Guerras que duram mais de décadas afetam gerações, que sofrem com a desesperança quanto ao futuro e a culpa pelos atos cometidos ainda na infância. Síndrome de estresse pós-traumático, agressividade e ansiedade são sintomas comuns em ex-crianças-soldado (WESSELLS, 2006).

Os efeitos sociais e psicológicos da guerra podem criar a necessidade de as crianças ex-combatentes se juntarem a um grupo, especialmente um como um exército, que promete proporcionar relativa segurança, disciplina e estabilidade, um senso de poder e aceitação por pares e figuras de autoridade (TIEFENBRUN, 2007) o que aumenta consideravelmente o risco de re-recrutamento.

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construtivo em suas sociedades (UNICEF, 2016e, on line).

Quando uma guerra chega ao fim, a prioridade é permitir que todas as crianças associadas a grupos armados, independentemente dos seus papéis, sejam reinseridas na sociedade civil, e por isso surge a necessidade de conhecer o problema e investir esforços na prevenção e reabilitação das crianças ex-combatentes.

2.3.2 Causas para a permanência das crianças nos grupos armados e a experiência no interior deles

A entrada de uma criança num grupo armado marca uma profunda transição em sua vida. Separados dos pais e do apoio da família e dos amigos, os jovens recrutas entram em um mundo governado por regras militares rigorosas, disciplina dura, dificuldades múltiplas e exposição frequente a mortes (WESSELLS, 2006). As muitas dificuldades incluem privações de liberdade, marchas extenuantes, trabalho pesado, escassez de alimentos e água e problemas de saúde.

Para sobreviver, as crianças-soldado muitas vezes têm de se submeter a regras de grupo e aceitar a sua nova situação, conduzindo a si mesmas em mudanças internas a fim de adaptar-se à sua atual conjuntura. Ao fazê-lo, elas podem cometer atos que sua moral e valores teriam proibido na vida civil.

Alheias às suas vidas anteriores, elas aprendem a colocar seu passado para trás e se reconstruir no contexto do grupo armado. A maioria das crianças ficará condicionada à violência e à morte, experimentando como cotidiano o que a maioria das pessoas consideraria anormal.

Muitas aprendem a abraçar códigos militares de honra, esculpir novas identidades como guerreiras, podendo tornar-se, até mesmo, relutantes em deixar o grupo armado (WESSELLS, 2006). Aquelas que se juntaram voluntariamente a um grupo armado podem passar a enxergar o grupo como sua nova família e encontrar significado nas atividades do grupo. Até mesmo crianças que experimentaram um recrutamento compulsório podem aprender a ver o grupo armado como sua fonte de proteção e sobrevivência.

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Muitas crianças, particularmente as que sofreram recrutamento compulsório, resistem ativamente à plena ressocialização, evitando a identidade dos soldados e procurando oportunidades de escapar dos grupos armados.

Em especial crianças submetidas a recrutamentos compulsórios, apresentam comprometimento reduzido com a luta do grupo a que agora pertencem e, por isso, são sujeitadas a diversas técnicas que as condicionam a permanecer no grupo e a obedecer as ordens de seus comandantes (RIVA, 2012).

O processo de ressocialização assume diferentes formas, dependendo do contexto e do modo de entrada no grupo armado. Temendo a fuga de recrutas sequestrados, os grupos armados podem usar o terror e a brutalidade como modalidades de controle social. Para os recrutas que se alistaram para defender uma causa, o processo de ressocialização pode basear-se mais na propaganda política (TOCK, 2004).

A chamada socialização positiva ocorre quando o processo inclui recompensas materiais, como dinheiro, drogas e álcool, e não materiais, como promoção hierárquica dentro do grupo, acompanhada de atribuição de mais responsabilidades e prestígio. A doutrinação da criança conforme os ideais do grupo também constitui uma forma de socialização, visto que a mesma passa a acreditar na luta contra um inimigo comum ou pelo bem de sua comunidade, religião, nação ou etnia (RIVA, 2012).

Cabe ressaltar que a ressocialização não é apenas algo imposto à criança, mas um processo de influência recíproca entre a criança e o grupo. As crianças são agentes políticos, e suas vidas dentro de um grupo armado desperta sua consciência política, por isso as mesmas podem, em muitas ocasiões, apresentar-se ativamente nos seus próprios processos de ressocialização e nos de seus colegas combatentes (WESSELLS, 2006).

Os já mencionados processos de ressocialização podem abranger as mais variadas técnicas brutais como treinamentos e batismos de fogo, configurando o que se conhece por socialização negativa. O termo "treinamento" é, muitas vezes, um eufemismo para um regime de brutalidade e manipulação psicológica, que intenciona permitir ao grupo alcançar altos níveis de dominância e controle sobre as crianças, ao invés de objetivar o desenvolvimento das habilidades militares ou de sobrevivência das mesmas (FREELAND, 2008).

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iniciação em um grupo armado. O batismo de fogo possui a finalidade de romper o laço das crianças com suas famílias e comunidades. Esta tática consiste em forçar as crianças a matar parentes ou outras pessoas que conhecem enquanto os membros de suas famílias e da comunidade assistem e possui um potente efeito psicológico (WESSELLS, 2006). Tais crianças percebem que suas comunidades, e possivelmente suas próprias famílias, agora podem vê-los como assassinos e podem atacá-los se tentarem voltar para casa. Alguns grupos armados usam essa técnica como uma estratégia para reduzir as chances de as crianças-soldados tentarem escapar.

A aplicação de punições brutais também serve ao propósito de educar a criança aos meios de funcionamento de um grupo armado, e evitar a deserção, a indisciplina e até mesmo a delação das atividades dos grupos a agentes externos ao mesmo. Frequentemente são utilizadas punições tão severas como pena de morte para forçar a obediência da criança ao grupo, como por exemplo, em caso de fuga da criança-soldado. Outro método utilizado é a ingestão forçada de sangue, sendo esta uma maneira poderosa de endurecer as emoções dos recrutas à vista de sangue, tornando-os menos resistentes ao cometimento de assassinato (WESSELLS, 2006).

Crianças forçadas a cometer tais atos podem reagir de várias maneiras, dependendo de seu temperamento e resiliência. Inicialmente, a maioria das crianças experimenta uma mistura de repulsa, culpa e autodesprezo. Essas reações normais refletem a força da moral das crianças, que diante da magnitude de suas ações, tendem a racionalizar suas ações dizendo a si mesmas que foram obrigadas a praticar atos brutais a fim de não serem elas próprias mortas ou brutalizadas. Tais racionalizações, que neste caso são corretas, tranquilizam as crianças de que elas não se tornaram pessoas más e aliviam sua culpa potencialmente avassaladora (WESSELLS, 2006). Conclui-se que o desejo de sobreviver é a principal razão pela qual os soldados obedecem aos comandantes.

2.4 A vulnerabilidade das garotas-soldado nas situações de conflitos armados

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recebe a devida atenção nas discussões internacionais sobre a problemática das crianças-soldados. Esse pensamento foi externado por Afua Twum-Danso (2003, p.33):

As discussões internacionais, os acordos de paz, os relatórios, os estudos e os programas de desmobilização e reabilitação utilizam o termo genérico "crianças-soldado" para descrever as crianças envolvidas em conflitos armados e, em seguida, centrar-se principalmente nos meninos como combatentes. As meninas são em grande parte esquecidas, ignoradas ou dispensadas. Se tiverem sorte, elas serão reconhecidas em um apêndice, ou um parágrafo conclusivo nos recessos mais profundos de um relatório ou livro.

Segundo a Unicef (2016a, on line), se for considerada a definição ampla de criança, que é a utilizada no presente trabalho, encontram-se associadas a grupos armados cerca de 120.000 meninas em todo o mundo, o que corresponde a 40% de todas as crianças-soldados que são estimadas existir.

Embora existam diversas semelhanças entre as experiências dos meninos e meninas no contexto de grupos armados, as crianças-soldado também apresentam características distintivas de gênero. Garotas-soldado são especialmente vulneráveis em situações de conflitos armados, visto que o militarismo intensifica o sexismo através da violência extrema perpetrada por meninos e homens contra mulheres e meninas (STEVENS, 2014).

Logo, além de todos os perigos aos quais os meninos estão expostos ao desempenharem o papel de combatentes, as meninas ainda estão mais vulneráveis à violência e exploração sexual, casamento e gravidez forçados, bem como se encontram mais expostas ao risco de contrair doenças sexualmente transmissíveis (DSTs).

Mulheres e crianças são mais vulneráveis à violência sexual durante o conflito. As adolescentes estão particularmente em risco devido ao seu tamanho, vulnerabilidade e suposição de que elas têm menos chance de possuir DSTs, HIV ou AIDS (MACHEL, 2016, on line). As recrutas são frequentemente forçadas a se tornar escravas sexuais e esposas para líderes militares e rebeldes, estando sujeitas a violações sistemáticas que lhes provocam terríveis consequências físicas.

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algumas meninas concordaram em relacionamentos sexuais em troca de benefícios como alimentos, melhores condições de vida e acesso ao transporte (SAVE, 2016, on line). Muitas meninas também se juntam a grupos armados para escapar do abuso doméstico e da exploração por familiares (DANSO, 2003).

Diversas garotas são levadas a se juntarem a grupos armados para escapar de situações familiares difíceis. Embora muitos meninos também se encontrem em situações similares, as meninas enfrentam riscos específicos nas suas famílias, como opressão e violência em razão do gênero e casamentos forçados, o que as levam a buscar independência através do alistamento militar.

A forma como as meninas encaram seus papéis e a elas mesmas no contexto de um grupo armado depende, principalmente, do nível de respeito que elas recebem dentro desses grupos. Embora possa parecer incomum pensar em grupos armados como ambientes em que o respeito seja uma realidade no relacionamento entre seus membros, a verdade é que mulheres são tratadas com mais respeito em alguns grupos armados do que receberiam de outra forma numa sociedade patriarcal.

Numerosos grupos guerrilheiros e grupos armados de oposição possuem um caráter revolucionário e vêem a igualdade das mulheres como parte integrante de sua luta. Em Moçambique, o grupo de oposição FRELIMO tinha uma ideologia revolucionária que ensinava às mulheres a libertarem-se de todas as formas de opressão, seja por classe, por gênero ou pelo imperialismo. Nas Filipinas, meninas em grupos armados de oposição receberam educação política que as ajudaram a entender e apreciar seus papéis na luta armada e a encontrar significado em tarefas de mobilização política (WESSELLS, 2006).

Essa realidade contrasta com a visão mito popular das meninas-soldados como vítimas passivas. Tanto quanto meninos-soldados, as garotas-soldados não devem ser compreendidas nem como inertes frente à violência, nem como vítimas de uma lavagem cerebral, mas como agentes ativos na busca e criação de significado para suas vidas em circunstâncias difíceis, tais quais as de conflitos armados.

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3 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA CRIANÇA-SOLDADO: DIREITO INTERNACIONAL FRAGMENTADO?

Não existe uma única fonte para o direito internacional da criança, tal matéria encontra-se espalhada em tratados específicos e gerais tanto a nível mundial como regional, em normas do direito internacional humanitário, no direito internacional consuetudinário e na legislação dos Estados.

Como aponta Gabriela Riva (2012), o uso e o recrutamento de crianças-soldados é um assunto tratado por quatro áreas do direito que estão relacionadas entre si. São elas o Direito Internacional Humanitário, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Internacional do Trabalho e o Direito Internacional Penal. Essa dispersão do tratamento da matéria em diversos ramos e regras especializados e relativamente autônomos do Direito Internacional reflete a tendência da fragmentação da comunidade internacional, especificamente no que diz respeito à seara jurídica (KOSKENNIEMI, 2006).

O fenômeno da fragmentação jurídica, que contrapõe-se à ideia de um Direito Internacional unificado e homogêneo, reflete a influência que o processo de globalização exerce na dinamicidade das relações jurídicas internacionais e a necessidade de produzir, interpretar e de adjudicar normas aptas a tutelar relações internacionais de elevadas complexidade e delineamento técnico (AFONSO, 2009).

Primeiramente faz-se importante diferenciar os ramos do Direito Internacional Humanitário do Direito Internacional dos Direitos Humanos a fim de evitar a frequente confusão que se estabelece entre essas subdivisões do Direito Internacional Público que se encontram estreitamente interligados.

Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (2016b, on line):

O Direito Internacional Humanitário é um conjunto de normas que, procura limitar os efeitos de conflitos armados. Protege as pessoas que não participam ou que deixaram de participar nas hostilidades, e restringe os meios e métodos de combate. O Direito Internacional Humanitário (« DIH » ) é também designado por «Direito da Guerra » e por « Direito dos Conflitos Armados».

Logo, entende-se o Direito Internacional Humanitário como uma subdivisão do Direito Internacional Público destinada a regular as práticas de guerra e a limitar o sofrimento humano que delas advém (RIVA, 2012).

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garantir o exercício dos direitos da pessoa humana (PIOVESAN, 2013) e estabelece as obrigações dos governos de agirem de determinadas maneiras ou de se absterem de certos atos, a fim de promover e proteger os direitos humanos e as liberdades de grupos ou indivíduos tanto em tempos de paz como de guerra. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 2016).

Os direitos humanos incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre muitos outros. Todos merecem estes direitos, sem discriminação, visto que os direitos humanos são inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, gênero, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição.

Diante da distinção apresentada, resta claro que “merece destaque o tratamento dado pelo Direito Internacional Humanitário ao recrutamento e utilização de crianças-soldado, uma vez que esses fenômenos ocorrem de forma mais acentuada em tempos de guerra.” (RIVA, 2012).

Apesar da proeminência do Direito Humanitário no tratamento da presente problemática, todos os ramos do Direito Internacional Público mencionados anteriormente apresentam uma grande pertinência para a compreensão do assunto em estudo, de forma que um número impressionante e sem precedentes de instrumentos internacionais de diversos âmbitos de aplicação está em vigor para apoiar os esforços para impedir o uso de crianças-soldados, testemunhando o consenso global emergente sobre esta prática prejudicial.

3.1 Proteção das crianças-soldado segundo o Direito Internacional Humanitário

As leis humanitárias internacionais protegem as crianças de três maneiras. Em primeiro lugar, reconhecem a necessidade de proteção especial devido ao fato de que as crianças são pessoas de vulnerabilidade particular em situações de conflitos armados. Em segundo lugar, questionam o uso de crianças em operações militares e, em terceiro, ressaltam a imaturidade das crianças que cometerem delitos durante os conflitos armados (TIEFENBRUN, 2007).

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2016ª, on line) e seus dois protocolos adicionais de 1977.

Antes de 1977, o Direito Internacional Humanitário não tratava diretamente da questão das crianças que participavam em conflitos armados, visto que as quatro Convenções de Genebra de 1949 protegem apenas as crianças civis em situação de guerra.

Os dois Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra foram os dois primeiros documentos a tratar da participação de crianças em conflitos (RIVA, 2012) e objetivam proporcionar a mesma proteção especial e tratamento preferencial durante a guerra.

O Protocolo Adicional relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais de 1977 (I Protocolo Adicional) obriga os Estados a impedir que crianças menores de 15 anos participem diretamente nos conflitos armados internacionais, estabelecendo que todas as medidas possíveis sejam tomadas a fim de evitar recrutamento destas. Exige também que os Estados, em caso de incorporação de pessoas entre 15 e 18 anos, priorizem a utilização dos mais velhos (TIEFENBRUN, 2007).

O Protocolo Adicional às Convenções de Genebra relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Não Internacionais (II Protocolo Adicional) confirma todas as proibições presentes no I Protocolo Adicional, vetando especificamente a participação direta e indireta de crianças com menos de 15 anos em conflitos não internacionais que ocorram no território de um Estado Parte.

Críticas feitas aos instrumentos legais apresentados dizem respeito à utilização do termo “medidas possíveis” para referir-se às atitudes que devem ser tomadas pelos Estados na busca pela implementação das regras trazidas pelos mesmos. Esta expressão abre espaço para subjetivismos e para a possibilidade destes Estados tentarem eximir-se das responsabilidades impostas através da alegação de que foi feito o possível, apesar de que as medidas não tenham sido suficientes para erradicar o problema (RIVA, 2012).

Mais um ponto presente nas normas do Direito Humanitário que se encontra superado pelas negociações atuais é a proibição do recrutamento apenas para as crianças menores de 15 anos. Documentos jurídicos internacionais posteriores tendem a estabelecer o limite de 18 anos para o recrutamento.

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em situações de conflitos, em especial quanto à diferenciação entre civis e combatentes. O I Protocolo Adicional estabelece como civis todos aqueles que não são membros de grupos armados, e que, portanto, não participam diretamente das hostilidades.

Desta forma, antes do recrutamento, as crianças gozam de todas as proteções oferecidas aos civis pelas normas do Direito Humanitário e, após a incorporação aos grupos armados, a criança fica sujeita às regras aplicadas aos combatentes segundo as Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais.

A verdadeira dificuldade reside na situação em que estas crianças sejam recrutadas por grupos armados que desrespeitem as normas estabelecidas pelas Convenções de Genebra relativas à regulamentação dos grupos armados.

Neste caso, as crianças perdem tanto os direitos destinados à população civil como os estabelecidos em favor dos combatentes regulares, em especial a proteção concedida aos prisioneiros de guerra, o que as deixa em uma conjuntura ainda maior de vulnerabilidade.

3.2 Proteção do Direito Internacional dos Direitos Humanos

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CDC) é o principal instrumento para a proteção das crianças e para a promoção dos seus direitos. Tendo sido assinada por todos os países membros da Organização das Nações Unidas e ratificado por quase todos eles, com exceção dos Estados Unidos e da Somália, tornando-se, desta forma, o tratado internacional de direitos humanos mais amplamente ratificado na história (UNICEF, 2016b, on line).

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recuperação e reintegração; o artigo 40, referindo-se ao tratamento no sistema de justiça juvenil; e o artigo 20, que aborda a proteção das crianças sem família (ONU, 1989).

O artigo 38 trata especialmente do recrutamento e uso de crianças para fins militares, estipulando a obrigação dos Estados respeitarem e assegurarem a aplicação das normas do Direito Humanitário às crianças, confirmando que nenhuma criança com menos de 15 anos de idade pode participar diretamente nas hostilidades ou ser recrutada para as forças armadas (PETERS, 2005).

Os Estados são também obrigados a assegurar que as crianças vítimas de conflitos armados, tortura, negligência, maus tratos ou exploração recebam tratamento adequado para a sua recuperação e reintegração social. São proibidas a tortura, o tratamento cruel, a pena de morte, a prisão perpétua, a detenção ilegal e a privação de liberdade em todos os momentos e sob todas as circunstâncias (ONU, 1989).

A CDC confirma os princípios do tratamento apropriado das crianças prisioneiras de guerra, incluindo o direito à separação dos adultos detidos, o direito de ter contato com a família e acesso a assistência legal e de qualquer outra natureza. Os direitos humanos das crianças suspeitas de terem cometido infrações devem ser sempre respeitados e os menores de 18 anos têm o direito de se beneficiar de todos os aspectos do devido processo legal, incluindo assistência jurídica e de outra natureza na preparação e apresentação do seu caso. Como princípio, os procedimentos judiciais e o encarceramento devem ser evitados, sempre que for possível e apropriado (PETERS, 2005).

O Estado é obrigado a proporcionar uma proteção especial às crianças privadas do seu ambiente familiar e assegurar que todos os cuidados apropriados estejam disponíveis. Esta é uma medida preventiva importante, uma vez que as crianças desacompanhadas são mais vulneráveis ao recrutamento forçado ou voluntário (COHN, 2004).

Em 2000, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o Protocolo Facultativo sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados (Protocolo Facultativo de 2000), que eleva a idade mínima para o recrutamento obrigatório de 15 para 18 anos.

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pessoas com menos de 18 anos têm direito a proteção especial, além de que devem assegurar garantias relativas à prova da idade a fim de que o jovem possa alistar-se voluntariamente, bem como prova de consentimento parental ou outro consentimento legal, de forma a comprovar a natureza verdadeiramente voluntária do compromisso e compreensão clara por menores de 18 anos das funções envolvidas no serviço militar. Após a ratificação, cada parte é obrigada a declarar a idade mínima em que o recrutamento voluntário em suas forças armadas nacionais é permitido (PETERS, 2005).

Os atores não estatais são explicitamente proibidos de recrutar qualquer pessoa com menos de 18 anos ou envolvê-las em hostilidades. O Protocolo Facultativo de 2000 enfatiza em seu preâmbulo que recrutar ou alistar crianças com menos de 15 anos, ou usá-las ativamente nas hostilidades, tanto em conflitos armados internacionais como não internacionais, configura crime de guerra segundo o Estatuto de Roma, que rege o Tribunal Penal Internacional (ONU, 2000).

Paralelamente à atuação da Organização das Nações Unidas, a antiga Organização da Unidade Africana, atualmente União Africana, buscou implementar medidas visando a proteção de crianças nas situações de conflitos armados (RIVA, 2012).

Esta organização adotou, em 1990, a Carta Africana sobre o Direito e Bem-Estar da Criança. Este documento entrou em vigor em 29 de novembro de 1999 e é o único instrumento regional no mundo que aborda diretamente a questão das crianças soldados, contando hoje com a adesão da maioria dos Estados membros (FREELAND, 2008).

A Carta Africana está de acordo com a CDC, na medida em que define criança como todos aqueles que não atingiram os 18 anos de idade, além de especificar em seu artigo 22.2, que os Estados partes devem tomar todas as medidas necessárias para assegurar que nenhuma criança participe diretamente nas hostilidades. A utilização do termo “todas as medidas necessárias” intenciona reduzir o espaço para o surgimento de subjetividade na aplicação desta norma, problema presente em outros documentos sobre a matéria onde consta a expressão “todas as medidas possíveis”, (RIVA, 2012).

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havendo abertura de exceções a essa regra.

Apesar de a Carta Africana sobre o Direito e Bem-Estar da Criança estabelecer padrões louváveis na abordagem da problemática em estudo, a trágica realidade é que estes altos parâmetros não estão sendo cumpridos por vários Estados africanos signatários do documento (FREELAND, 2008).

3.3 Contribuição do Direito Internacional do Trabalho

Outra abordagem importante ao tema das crianças-soldado é a elaborada pelo Direito Internacional do Trabalho, mas especificamente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A Convenção da OIT sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para a sua Eliminação de 1999 (C182), que entrou em vigor em novembro de 2000, condena o recrutamento forçado ou obrigatório de menores de 18 anos para uso em conflitos armados como uma das piores formas de trabalho infantil e como uma prática análoga à escravidão.

Este documento, que foi ratificado por 175 Estados, também considera como criança a pessoa menor de 18 anos e estabelece essa idade como a mínima para o recrutamento compulsório, seja por forças armadas ou grupos armados não governamentais, dentro ou fora do período de guerra (RIVA, 2012).

Uma das críticas elaboradas a este dispositivo legal é a proibição expressa apenas quanto ao recrutamento forçado, de forma que o recrutamento voluntário não foi abordado por este documento (RIVA, 2012).

A grande contribuição da C182 foi transformar a temática das crianças-soldados em uma preocupação para a OIT, e a implementação de ações de combate a esta violação aos direitos fundamentais das crianças em uma obrigação para esta organização (OIT, 2016).

Tendo em vista este objetivo, a OIT considera a C182 como uma de suas oito Convenções Fundamentais, o que, em termos práticos, implica a obrigação dos Estados partes na organização de enviar relatórios periódicos abordando sobre os progressos quanto a aplicação destas convenções (RIVA, 2012).

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2016).

3.4 Direito Internacional Penal e a criminalização do recrutamento e do uso de crianças-soldado

As normas do direito penal internacional incorporam um regime jurídico que define certos "crimes internacionais" e prevê a responsabilidade penal individual dos autores desses crimes. Um crime internacional difere do que pode ser considerado um crime "ordinário" nos termos do direito nacional, pois para que um crime atinja o status de um crime internacional, ele deve ser considerado uma afronta a todos os seres humanos, ou seja, literalmente um crime contra a humanidade (FREELAND, 2008).

Os órgãos jurisdicionais penais internacionais recebem uma jurisdição específica sobre determinados crimes internacionais, de acordo com os termos de seus respectivos documentos constitutivos. A principal corte internacional criada para lidar com este tipo de crime é o Tribunal Penal Internacional (TPI), estabelecido pelo Estatuto de Roma, que entrou em vigor em 1º de julho de 2002 (RIVA, 2012).

A criação do TPI reflete o desejo da comunidade internacional de que os crimes mais graves que preocupam a humanidade como um todo não devem ficar impunes. O mandato do TPI é complementar ao dos Estados, o que significa que o Tribunal deve ser utilizado como o último recurso, após a impossibilidade de julgamento do indivíduo na esfera nacional (FREELAND, 2008).

O artigo 1 do Estatuto de Roma indica que o TPI tem competência para julgar os crimes listados em seu artigo 5º, que tenham sido cometidos após sua entrada em vigor, quais sejam os crimes genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão, sendo que este último ainda carece de definição.

O Estatuto de Roma (2002) define Crime Contra a Humanidade em seu artigo 7º como “qualquer dos seguintes atos cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático dirigido contra qualquer população civil, com conhecimento do ataque:” oferecendo a seguir uma lista com todos os atos a que se refere o artigo transcrito.

A definição de Crime de Guerra é trazida pelo artigo 8º do Estatuto (2002):

(38)

comissão em grande escala de tais crimes. 2. Para efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crimes de guerra": b) Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais, dentre o quadro estabelecido pelo direito internacional [...]

(xxvi) Recrutar ou alistar crianças menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou usá-las para participar ativamente de hostilidades.

e) Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados que não tenham caráter internacional, dentro do marco estabelecido pelo direito internacional [...]

vii) Recrutar ou alistar crianças menores de quinze anos em forças ou grupos armados ou usá-las para participar ativamente de hostilidades;

Segundo leciona Gabriela Riva (2012), a leitura dos dispositivos pode-se concluir que em caso de conflitos não internacionais, o Estatuto proíbe a utilização de crianças menores de 15 anos tanto pelas forças armadas como pelos grupos armados. No caso de conflitos internacionais o dispositivo que proíbe o recrutamento de crianças menciona apenas as forças armadas nacionais. Tal omissão parece proceder da assunção de que grupos armados não oficiais não tomam partes em conflitos armados internacionais, entendimento que comprovadamente não condiz com a realidade.

Nos termos do Estatuto de Roma, a escravização de crianças é um crime contra a humanidade, enquanto que o recrutamento e o uso de crianças-soldados em conflitos armados nacionais e internacionais é um crime de guerra (PETERS, 2005).

É importante ressaltar que o limite de idade adotado pelo Estatuto de Roma foi o de 15 anos, e tal fato é considerado por muitos como um retrocesso por não seguir a tendência adotada por outros documentos internacionais sobre o assunto, qual seja, o limite de 18 anos de idade (TOCK, 2004).

Faz-se necessário notar ainda que o Estatuto não fez diferença entre as diversas formas de recrutamento compulsório, bem como não diferenciou o recrutamento compulsório do voluntário, além de pouco importar para seus fins se a utilização de menores de 15 anos é uma prática permitida pelo ordenamento do Estado Parte (ACTION, 2016, on line).

O Estatuto de Roma foi o primeiro documento jurídico a criminalizar expressamente o recrutamento de crianças, sendo esta a sua mais importante inovação quanto ao tema da criança-soldado.

(39)

atrocidades cometidas em Serra Leoa durante a guerra civil que ocorreu neste país a partir de 30 de novembro de 1996 (RIVA, 2012).

O uso de crianças soldado era extremamente comum durante o conflito no país. Nos termos do Estatuto da Corte Especial para a Serra Leoa (2000), a Corte tem a competência para julgar pessoas que alegadamente tenham cometido um ou mais dos vários crimes contra a humanidade, outras violações graves do direito internacional humanitário, bem como determinadas infrações penais nos termos das leis nacionais da Serra Leoa (FREELAND, 2008). Refletindo os termos do Estatuto de Roma no contexto de conflitos armados de caráter não internacional, o artigo 4(c) do Estatuto da Corte Especial para a Serra Leoa (Estatuto de Serra Leoa, 2000) criminaliza o "recrutamento ou alistamento de crianças menores de 15 anos em forças ou grupos armados ou usá-los para participar ativamente de hostilidades". Podendo-se notar que, mais uma vez, o limite mínimo de idade foi estabelecido abaixo dos 18 anos.

Além disso, segundo leciona Steven Freeland (2008, p. 47):

A CESL tem jurisdição em relação às seguintes supostas violações da Lei de 1926 sobre a Prevenção da Crueldade contra Crianças da Serra Leoa: i. Abusar de uma menina com menos de 13 anos de idade, contrariamente à seção 6;

ii.Abusar de uma menina entre 13 e 14 anos de idade, contrariamente ao artigo 7;

iii. Abdução de uma menina para fins imorais, contrariamente à seção 12.137

Tais dispositivos evidenciam também uma preocupação com a temática das garotas envolvidas em conflitos armados, seja na posição de combatentes ou de civis.

As primeiras medidas importantes para estabelecer a responsabilidade penal individual das pessoas que utilizam crianças menores de 15 anos nas hostilidades já foram tomadas. Julgamentos destes crimes de guerra foram emitidos pelo Tribunal Penal Internacional contra membros de grupos armados da República Democrática do Congo e da Uganda (RIVA, 2012).

Outro importante marco para a justiça internacional foi fundado pela condenação em 2007, pelo Tribunal Especial para a Serra Leoa, de quatro pessoas sob acusações que incluíram o recrutamento e uso de crianças durante a guerra civil (COALITION, 2016b, on line).

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criminalizar atos que equivalem ao recrutamento e participação ativa de crianças em conflitos armados. Trata-se de um passo importante, embora as normas relativas ao limite mínimo de idade devam ser reavaliadas e melhoradas. Com a pressão contínua da sociedade civil e dos grupos de direitos humanos, é grande a esperança de que este será um objetivo realizável.

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4RESPONSABILIDADE PENAL DA CRIANÇA SOLDADO

Nos diversos trabalhos sobre o assunto das crianças-soldado, a questão da responsabilização penal dos recrutadores é sempre discutida, visto que meninos e meninas incorporados a grupos armados sofrem graves violações de seus direitos, portanto nada mais natural que a comunidade internacional busque a punição dos adultos que envolvem crianças em conflitos.

No entanto, um tópico que começou a ser discutido apenas recentemente, é o que se refere à responsabilidade penal das próprias crianças-soldado. Devido sua grande participação em conflitos, as crianças além de vítimas de violações acabam se tornando também perpetradoras de violência e crueldades.

Em vários conflitos recentes, como em Moçambique, na Libéria, na República Democrática do Congo e na Serra Leoa, as crianças-soldados foram responsáveis pelo cometimento de graves atrocidades, como, por exemplo, assassinatos, tortura, mutilações e estupros, tanto contra membros de grupos armados de oposição quanto contra a população civil (HAPPOLD, 2002).

Muitos acreditam que as crianças devem ser responsabilizadas por seus crimes, de forma a fazer justiça para suas vítimas, para muitos outros, parece ser difícil defender a responsabilidade penal de crianças que podem ser muito novas para serem consideradas capazes de cometer crimes, além de que, em muitas situações, agiram sob coação de adultos quando praticaram as violações (LEVEAU, 2013).

O fato é que, até agora, não houveram casos de crianças-soldado processadas por tribunais penais internacionais e isso se deve principalmente aos desafios que se apresentam quando surge a discussão legal sobre a questão da responsabilidade das crianças-soldados.

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