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A teoria do marco temporal da ocupação indígena no julgamento do caso raposa serra do sol e suas implicações para os povos indígenas do Brasil

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

JULIAN TRÉVIA MIRANDA

A TEORIA DO MARCO TEMPORAL DA OCUPAÇÃO INDÍGENA NO

JULGAMENTO DO CASO RAPOSA SERRA DO SOL E SUAS IMPLICAÇÕES

PARA OS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL

FORTALEZA

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JULIAN TRÉVIA MIRANDA

A TEORIA DO MARCO TEMPORAL DA OCUPAÇÃO INDÍGENA NO

JULGAMENTO DO CASO RAPOSA SERRA DO SOL E SUAS IMPLICAÇÕES

PARA OS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL

Trabalho de Conclusão de Curso submetido à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Constitucional. Orientador: Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa.

FORTALEZA

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JULIAN TRÉVIA MIRANDA

A TEORIA DO MARCO TEMPORAL DA OCUPAÇÃO INDÍGENA NO

JULGAMENTO DO CASO RAPOSA SERRA DO SOL E SUAS IMPLICAÇÕES

PARA OS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL

Trabalho de Conclusão de Curso submetido à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito em conformidade com os atos normativos do MEC e do Regulamento de Monografia Jurídica aprovado pelo Conselho Departamental da Faculdade de Direito da UFC. Área de concentração: Direito Constitucional.

Aprovada em: ____/____/______.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa (Orientador)

Universidade Federal do Ceará - UFC

_________________________________________________ Homero Bezerra Ribeiro

Mestrando em Direito na Universidade Federal do Ceará - UFC

_________________________________________________ Rodrigo Barbosa Teles de Carvalho

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Temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza. Temos o direito a sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. As pessoas querem ser iguais, mas querem respeitadas suas diferenças.

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AGRADECIMENTOS

À toda minha família, pelo amor e cuidado: à minha mãe, fonte inesgotável de carinho e atenção; ao meu pai, por toda confiança e apoio; e às minhas irmãs, que acalentam o desgaste de nossas rotinas com o convívio afetuoso e com as brincadeiras e risos.

À minha namorada, tanto por seu companheirismo e amor quanto por seus conselhos e orientações, inclusive para este trabalho.

Aos meus amigos da Faculdade de Direito, em especial aos amigos Thiago Cardoso, Mariana Holanda e Rodrigo De Luqui.

Aos camaradas do Drink Team.

Aos amigos Paulo Eduardo e Sofia Frota, pelas várias conversas e debates que tivemos, em especial sobre a questão indígena.

Ao Centro de Assessoria Jurídica Universitária (CAJU), projeto de extensão da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, em especial, agradeço aos membros do Grupo de Trabalho sobre Questão Indígena (GTI), pela convivência e aprendizagem.

À Luciana Nóbrega, pelos ensinamentos e por todo o material disponibilizado para essa pesquisa.

À Priscylla Joca, que, ao longo de sua passagem pelo Mestrado em Direito da UFC, incentivou esta pesquisa e tantas outras.

Ao Professor Gustavo Raposo, por me acompanhar na elaboração desta monografia e pela orientação nas atividades de extensão no CAJU.

Aos colegas Homero Ribeiro e Rodrigo Barbosa, que prontamente se disponibilizaram a participar do exame deste trabalho.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias CF – Constituição Federal

CIMI – Conselho Indigenista Missionário

CNA - Confederação Nacional da Agricultura e da Pecuária no Brasil FUNAI – Fundação Nacional do Índio

INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais RSS – Raposa Serra do Sol

SPI – Serviço de Proteção ao Índio

SPILTN – Serviço de Proteção ao Índio e de Localização dos Trabalhadores Nacionais STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça TI – Terra Indígena

TI RSS – Terra Indígena Raposa Serra do Sol TRF – Tribunal Regional Federal

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RESUMO

O julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol perante Supremo Tribunal Federal gerou grande repercussão não só pelo resultado imediato da decisão – a declaração da regularidade da demarcação em forma contínua –, mas também pela utilização da teoria do marco temporal da ocupação indígena como novo parâmetro a nortear a interpretação e a aplicação dos direitos territoriais dos índios. No entanto, disparidades entre as discussões do colegiado do STF e a redação do acórdão final, bem como as poucas informações na doutrina e na jurisprudência pátrias, tornam imprescindível o aprofundamento do estudo e da análise da denominada teoria do marco temporal da ocupação indígena. Desta forma, o presente trabalho buscará, por meio de pesquisa bibliográfica e documental, estudar a teoria buscando evidenciar sua finalidade, suas origens e suas implicações para os direitos territoriais dos povos indígenas do Brasil, Além disso, buscar-se-á cotejar o modo como tal teoria foi elaborada e discutida pelo colegiado do Supremo e o modo como foi cristalizada no acórdão do julgamento.

Palavras-chave: terras tradicionalmente ocupadas, direitos originários, marco temporal

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ABSTRACT

The trial of the ‘Raposa Serra do Sol’ in the Brazilian Supreme Court created a great impact not only the immediate result of the decision - the statement of the regularity of demarcation in a continuous manner - but also by using the theory of the timeframe of the Indian occupation as new parameter to guide the interpretation and application of the territorial rights of the Indians. However, disparities between the collegial discussions and the writing of the final decision, as well as the limited information in the doctrine and jurisprudence homelands, necessitates a deeper study and analysis of so-called theory of the timeframe of the Indian occupation. Thus, this paper aims to study the theory attempt to clarify its purpose, its origins and its implications for the territorial rights of indigenous peoples in Brazil, as well as comparing how such a theory was elaborated and discussed by the Supreme collegial and that crystallized in writing the final decision of the trial.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 11

2 HISTÓRICO DO REGIME JURÍDICO DAS TERRAS INDÍGENAS NO DIREITO POSITIVO ... 14

2.1 A América pré-colombiana e o Brasil pré-cabralino ... 14

2.2 A legislação do período colonial: origem do instituto do indigenato ... 16

2.3 O Império, a Carta Imperial de 1824 e a política indigenista ... 21

2.4 A Lei de Terras de 1850: entre a omissão e a legitimação à terras indígenas ... 23

2.5 A Constituição de 1891 e a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI)... 27

2.6 As constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969: a questão indígena constitucionalizada ... 31

3 OS DIREITOS INDÍGENAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E SUA APLICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO NO CASO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL ... 36

3. 1 Os direitos dos índios na Constituição Federal de 1988 ... 36

3.2 O caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol ... 42

3.2.1 Histórico da ocupação tradicional da Terra Indígena Raposa Serra do Sol ... 43

3.2.2 O(s) processo(s) administrativo(s) de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol ... 50

3.2.3 O julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol perante o Supremo Tribunal Federal: a Petição n° 3.388/RR ... 58

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4.1 Os votos dos ministros do STF e a discussão sobre o marco temporal da

ocupação indígena no julgamento da Petição n° 3.388/RR ... 65

4.1.1 Origens doutrinária e jurisprudencial da teoria do marco temporal da ocupação

indígena ... 71

4.2 Efeitos práticos da teoria do marco temporal da ocupação indígena na

concretização das demarcações de terras indígenas ... 74

4.3 Novas formas de aquisição de terras para os povos indígenas ... 77

4.4 O posicionamento final do Supremo Tribunal Federal na Petição n° 3.388/RR:

a ressalva às terras objeto de renitente esbulho por não índios ... 83

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1 INTRODUÇÃO

O julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TI RSS), perante o Supremo Tribunal Federal (STF), ganhou grande repercussão no cenário nacional, mas não só pelos efeitos da decisão em relação ao relevante caso que estava sendo apreciado.

No julgamento da Petição n° 3.388/RR1, além da declaração da regularidade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, outros dois aspectos se tornaram objeto de candentes discussões. O primeiro diz respeito a uma técnica de decisão utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da qual os principais fundamentos da decisão são deslocados para a parte dispositiva do acórdão e, o mais relevante, são revestidos de efeitos erga omnes, e não inter partes, o que se esperaria dos efeitos de uma ação que discute um fato individualizado2. O segundo aspecto relevante do julgado concerne à adoção da teoria do marco temporal da ocupação indígena como norte a ser observado na demarcação de terras indígenas.

Esta nominada teoria do marco temporal da ocupação indígena conformará o cerne do presente estudo, tanto em decorrência da polêmica que gerou sua adoção quanto pelas substanciais implicações que acarreta às demarcações de terras indígenas no Brasil.

Para se ter ideia da relevância da questão, apontam alguns estudos que a aplicação da teoria do marco temporal da ocupação indígena, sem qualquer ressalva ou exceção, restringiria de 13% a 0,5% do território nacional a extensão das terras indígenas a serem demarcadas no Brasil.

No entanto, a própria adoção desta teoria pelo Supremo Tribunal Federal deve ser analisada e ponderada, uma vez que houve certo desencontro entre as discussões travadas no plenário e a redação do acórdão do julgamento. Desta forma, em

1 Como se verá no Capítulo 3, a Petição n° 3.388/RR consiste em uma ação popular. No Supremo Tribunal Federal, por inexistência de protocolo específico para as ações populares, a Petição n° 3.388/RR foi autuada como na categoria genérica de Petição.

2

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que pese não discutida pelo Plenário da Corte, constou do acórdão redigido pelo Ministro Carlos Britto a ressalva de que a posse nativa não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho perpetrado por parte de não índios.

Neste sentido, deve ser ponderado se, de fato, houve a adoção da teoria do marco temporal da ocupação indígena pelo STF, bem como impõe-se o estudo das reais implicações deste precedente, haja vista que, conjugada com a mencionada ressalva, a teoria em alusão parece ser notável instrumento para proteção dos direitos indígenas, mas com a concomitante afirmação de outros importantes valores constantes da Carta de 1988.

Objetivando a realização de tal análise, far-se-á o seguinte percurso.

Em um primeiro momento (Cap. 2 Histórico do Regime Jurídico das Terras Indígenas no Direito Positivo), será estudada a história do processo de desconsideração das territorialidades das sociedades pré-colombinas pelas potências europeias e o lento processo de reconquista de direitos territoriais por tais sociedades. Buscando descrever o delineamento que tal história teve no direito positivo da Coroa Portuguesa, do Império e da República, será explicitado como os direitos territoriais indígenas foram sendo positivados, interpretados e efetivados da Colônia até Constituição Federal de 1988.

No segundo momento do trabalho (Cap. 3 Os Direitos Indígenas na Constituição Federal de 1988 e sua interpretação e aplicação no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol), será analisada mais detalhadamente a atual sistemática constitucional relativa aos índios e, em seguida, mostrada a aplicação desta sistemática no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Será, então, analisada a história dos povos que habitam tal território e a história de seu processo de demarcação, administrativo e judicial. O estudo do caso da Terra Indígena RSS cumprirá um duplo papel: (i) serão melhor entendidos os direitos indígena diante da análise de sua aplicação; e (ii) será melhor contextualizado o caso no qual o STF utilizou a teoria do fato indígena, podendo ser explicitados motivos, implicações e conjunturas.

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No último momento (Cap. 4 A Teoria do Marco Temporal da Ocupação Indígena ou Teoria do Fato Indígena), será o centro da discussão a questão do fato indígena, realizando-se os seguintes passos:

Em um primeiro tópico será relatada a construção da teoria nos votos dos Ministros Carlos Ayres Britro, relator da ação, e do Ministro Menezes Direito, autor de voto-vista, pois ambos foram os condutores das discussões no julgamento e, principalmente, da discussão acerca da teoria que se pretende, aqui, discutir. Ao fim deste tópico também será analisado um julgado da década de 60, no qual a Suprema Corte brasileira já adota a teoria do marco temporal da ocupação, mas com notória finalidade de proteção dos direitos territoriais indígenas.

Em um segundo tópico, serão analisados os efeitos práticos da utilização do marco temporal da ocupação indígena, estudando os casos das comunidades índias que se mantem nos mesmos território de 1988, daquelas que perderam os territórios que ocupavam em 1988 e, por fim, daquelas que em 1988 não ocupavam um território indígena que no passado era por elas ocupado.

Em seguida, realizar-se-á breve discussão acerca da conclusão de que a adoção da teoria do fato indígena veda a realização de novas demarcações e de ampliações de demarcações de terras indígenas com base no artigo 231 da Constituição. Diante disto, serão abordadas outras possibilidades, além daquela que se baseia no instituto do indigenato, para a aquisição de terras para os povos indígenas.

Por fim, no último tópico será analisada a interpretação da teoria do marco temporal conjugada à ressalva, constante do acórdão final, quanto às terras que em 1988 eram objeto de renitente esbulho por parte de não índios.

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2 HISTÓRICO DO REGIME JURÍDICO DAS TERRAS INDÍGENAS NO

DIREITO POSITIVO

Uma compreensão mais apurada do atual regramento dos direitos territoriais3 indígenas demanda, além do estudo do tratamento dado pela Constituição Federal de 1988 e pelos diplomas legislativos vigentes, o estudo da construção histórica destes direitos, bem como de como se constituiu o atual estado de violação dos direitos dos índios às suas terras.

Desta forma, o presente capítulo terá por escopo fazer um resgate histórico do regime jurídico das terras indígenas em cada fase da história do Brasil, bem como contextualizar tais regulamentações jurídicas, inclusive demonstrando como a legislação ou o seu desrespeito originou a situação atual de fragilidade das minorias indígenas e desrespeito de suas territorialidades.

O capítulo findará com a apresentação da Constituição Federal de 1988, cujo teor será explorado no capítulo seguinte, em cotejo com a apresentação do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o qual servirá de exemplo para possibilitar a visualização de como a história do Brasil e de sua invasão pelos povos de além-mar afetou as comunidades indígenas.

2.1 A América pré-colombiana e o Brasil pré-cabralino

Pouco se sabe, ainda hoje, sobre o período que antecede a chegada dos europeus ao continente que atualmente se denomina de América. Várias foram as tentativas envidadas para se estimar numericamente a população pré-colombiana e muitas foram as teorias criadas para se explicar a origem destes povos, mas a conclusões totalmente seguras não se chegou.

Em específico quanto ao território que hoje constitui o Brasil, também não há dados incontroversos. Porém, apesar da ausência de certezas no que toca a tal período, não é imprudente afirmar-se que “o que é hoje o Brasil indígena são fragmentos de um tecido social cuja trama, muito mais complexa e abrangente, cobria

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provavelmente o território como um todo”4, afirmação que pode ser estendida a todo o continente americano.

As estimativas populacionais, apesar de dissonantes, referem-se sempre a números na casa dos milhões, variando, para a América, de 8,4 a 112,55 milhões de habitantes e, especificamente para as terras baixas da América do Sul, de 1 a 8,5 milhões de habitantes. Gozam de maior credibilidade atualmente os estudos que apontam para as maiores densidades populacionais, tendendo, pois, para a casa dos 8,5 milhões de nativos na América do Sul5.

O continente americano já era, pois, bastante habitado, quando aqui aportaram as embarcações europeias e implantou-se o projeto colonial. Como observa Melatti:

Os europeus que começaram a se instalar na América a partir do final do século XV não encontraram um continente vazio. Fazia milhares de anos que estava inteiramente ocupado por uma população que se apresentava distribuída por inúmeras sociedades, organizadas das mais diferentes maneiras, fossem pequenos grupos de caçadores e coletores, aldeias agrícolas autônomas ou politicamente articuladas, ou, ainda, estados sustentados por técnicas de plantio intensivo. Estavam instaladas e adaptadas aos ambientes mais variados, como florestas e savanas tropicais, regiões semi-áridas, florestas e campos temperados, planícies e montanhas. Suas línguas eram numerosas. Orientavam sua existência conforme as mais deferentes maneiras de conceber o homem e o universo6.

Tais dados fazem cair por terra toda uma História eurocêntrica que denomina o início do etnocídio cometido contra os povos indígenas como a descoberta

do Novo Mundo, e o voraz esbulho de suas terras como colonização ou ocupação.

Manuela Carneiro da Cunha, neste sentido, aduz que:

Se a população aborígene tinha, realmente, a densidade que hoje se lhe atribui, esvai-se a imagem tradicional (aparentemente consolidada no século XIX), de um continente pouco habitado a ser ocupado pelos Europeus. Como já foi dito com força por Jennings (1975), a América não foi descoberta, foi invadida7.

Na prática, o encontro com a civilização europeia significou para os indígenas a total desconsideração de suas territorialidades e domínios, até porque, antes mesmo da chegada dos europeus, as terras do continente já haviam sido repartidas,

4 CUNHA, Manuela Carneiro. Introdução a uma história indígena. In: CUNHA, Manuela Carneiro (Org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/Fapesp, 1992. 2ª Ed., 2009, p, 12.

5 Ibid, 1992, p.14.

6 MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. 8ª Ed. São Paulo: Editora da USP, 2007. p. 17. 7

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consoante os termos do Tratado de Tordesilhas, entre Espanha e Portugal8, sem qualquer menção a um eventual ocupante.

Em que pese Portugal ter avocado varias teorias para legitimar o seu domínio sobre as terras que hoje constituem o Brasil, é sabido que elas não prevaleceram nos amplos debates travados na Europa. Em verdade, restaram consolidadas as doutrinas que defendiam a plena soberania original das nações indígenas, refutando-se as teses sobre o poder temporal do papa sobre os infiéis e sobre o direito de descoberta. A refutação ao direito de descoberta, inclusive, ocorreu porque, na época mesmo, se sustentou que tais terras não haviam sido descobertas, umas vez que as populações indígenas aqui já viviam. Como bem notou Frei Francisco de Vitória, referindo-se, no entanto, às pretensões espanholas sobre o continente, “por si mesmo (o direito descoberta) não justifica a posse (espanhola) desses bárbaros mais do que se eles nos houvessem descoberto a nós”9.

Desta forma, a Coroa portuguesa, valendo-se de títulos e teorias sem respaldo no direito internacional de então, entronou-se como detentora de direito sobre todo o território brasileiro, visualizando-o apenas como fonte de novas riquezas para si e desconsiderando a existência prévia de centenas de povos que ocupavam estas terras segundo suas próprias formas socioculturais10.

Adiante, passa-se, então, a descrever o regime jurídico imposto pela Coroa portuguesa para regular os direitos que, de uma ou outra forma, teve de reconhecer aos índios, destacando-se os direitos relativos a seus territórios.

2.2 A legislação do período colonial: origem do instituto do indigenato

É no período colonial que a doutrina e jurisprudência tradicionais reputam gestado o instituto do indigenato, o qual seria o fundamento maior do reconhecimento dos direitos territoriais indígenas até os dias atuais.

8 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. 1ª ed. Curitiba: Juruá, 2009, p. 44.

9

VITÓRIA, Francisco de. Relecciones. De indis. Barcelona, p. 176. Apud CUNHA, Manuela Carneiro da. Os índios e seus direitos. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.56.

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Pela magnitude do massacre dos índios e da expropriação de suas terras, poder-se-ia achar que houve uma completa desconsideração do direito positivo da Colônia pelos direitos dos índios, o que, em verdade, não ocorreu. Com efeito, foram constantes as normas que consagravam a soberania indígena e seus direitos territoriais.

Neste sentido, pondera Manuela Carneiro da Cunha:

Nas leis portuguesas para o Brasil, a soberania indígena e o direito dos índios aos territórios que ocupam é frequentemente reconhecida: trata-se, como se sabe, de um reconhecimento de jure que mil estratagemas tentam contornar na prática; mas tal reconhecimento legal mostra pelo menos a consciência e a má-consciência da Coroa acerca dos direitos indígenas11.

A legislação do período colonial tocante aos indígenas é referida como

contraditória, oscilante e hipócrita, o que, como salienta Beatriz Perrone Moisés,

advém do erro em considerar em um único bloco as populações indígenas a que deviam ser aplicadas as normas da Coroa:

Havia, no Brasil indígena, índios aldeados e aliados dos portugueses, e índios inimigos espalhados pelos ‘sertões’. À diferença irredutível entre ‘índios amigos’ e ‘gentio bravo’ corresponde um corte na legislação e política indigenista que, encaradas sob esse prisma, já não aparecem como uma linha tortuosa crivada de contradições, e sim duas, com oscilações menos fundamentais. Nesse sentido, pode-se seguir uma linha de política indigenista que se aplica aos índios aldeados e aliados e uma outra, relativa aos inimigos, cujos princípios se mantêm ao longo da colonização12.

Uns dos primeiros e mais importantes documentos legislativos que reconheceram direitos aos índios foram as Cartas Régias de 30 de julho de 1609 e de 10 de setembro de 1611, promulgadas por Filipe III. Estabeleceu esta última que:

[...] os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer molestia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando elles livremente o quizerem fazer [...]13.

Deflui de tal preceito o inequívoco reconhecimento dos direitos dos índios às terras que ocupavam, inobstante a prática colonial se realizasse de forma contrária. Tal norma reconhece o direito territorial dos índios e determina o seu respeito, seja nas

11 CUNHA, Manuela Carneiro da. Os índios e seus direitos. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 58.

12 PERRONE-MOISÉS, Béatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, op. cit., 1992, p. 117.

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terras originárias (“Serra”), seja nas povoações/aldeias14. A importância disto é enorme, haja vista a grande quantidade de povos indígenas que foram aldeados e que ainda hoje ocupam as terras dos extintos aldeamentos.

Mais enfático ainda e propagado na doutrina e na jurisprudência dos tribunais pátrios até os dias de hoje é o Alvará de 1° de abril de 168015, que é frequentemente referido como a sede primária do instituto do indigenato na legislação luso-brasileira. Confira-se:

[...] E para os ditos Gentios, que assim decerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de

suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer molestia. E o Governador com parecer dos ditos

religiosos assinará ao descerem do Sertão, lugares convenientes para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejão dadas em sesmarias e pessoas particulares, porque

na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero se entenda ser reservado o prejuizo, e direito dos índios, primários e naturais senhores delas [...]. (Grifos não constantes

do original)

Cumpre frisar, primeiramente, que o Alvará 1° de abril de 1680 consagra o reconhecimento da soberania dos índios, a qual alcança magnitude tamanha que obsta até mesmo à cobrança de foro ou tributos pela Coroa portuguesa. Em segundo, destaque-se que o aludido Alvará consagra a reserva do direito territorial dos índios, mesmo quando este conflite com as sesmarias concedidas pela Coroa, o que mais tarde será concebido como a primeira positivação do instituto do indigenato na história dos direitos dos índios no Brasil. Por fim, note-se que o aludido Alvará é a primeira norma a caracterizar os indígenas como primários e naturais senhores das terras do continente, o que será frequentemente repetido ao longo da legislação e doutrina pátrias.

O paradoxal de ter ocorrido o reconhecimento da soberania indígena no período colonial é que pululavam, então, discussões sobre a escravização dos índios,

14

A legislação colonial, ao tratar das terras indígenas, constantemente refere-se a aldeias e a descimentos. Os descimentos são deslocamentos, desde o “Sertão” ou “Serra”, de povos inteiros para novos territórios: as aldeias. A política de aldeamento visava prioritariamente, pelo menos em sua justificação, à catequização e à civilização dos índios, os quais somente poderiam ser aldeados, segundo os textos legais, voluntariamente; as aldeias, no entanto, também consubstanciavam grande serventia para o projeto colonial, uma vez que tornavam disponível considerável quantidade de mão de obra, para atender os interesses dos colonos e da Coroa, e constituíam pontos estratégicos de defesa do território. Contudo, os indígenas, em tese, deveriam conservar sua liberdade e ser senhores das terras das aldeias como o eram no “sertão”, inclusive porque sem tais direitos eles não consentiriam com o seu aldeamento. (Beatriz Perrone-Moisés. Índios livres e índios escravos – Os princípios da legislação indigenista no período colonial (Séculos XVI a XVIII). In CUNHA, op. cit., 1992, 2ª ed., p.118 et seq.).

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sendo que uma das formas possíveis de viabilizar esta escravização, conforme as teorias jurídicas que prevaleciam, era a guerra justa16. Ocorre, porém, que a guerra tem como pressuposto a presença de nações soberanas; destarte, fazia-se necessário o reconhecimento da soberania das nações indígenas como forma de buscar alguma legitimação para sua escravização17, sob pena de pôr em risco os objetivos de tornar produtiva a empresa colonial e fazer pagar-se tal investimento.

Neste ponto, observa-se bem a duplicidade dos regimes jurídicos: aos índios amigos e aliados era reconhecida a soberania e os direitos territoriais, enquanto ao “gentio bravo” era possível a declaração de guerra justa, sendo seus membros subjugados, escravizados e despojados de suas terras.

Em 1718, a Coroa Portuguesa renovou os termos do Alvará de 1680, ao declarar explicitamente que os índios “são livres, e izentos de minha jurisdição, que os não pode obrigar a sahirem das suas terras, para tomarem um modo de vida de que elles se não agradarão (...)”18.

O reconhecimento formal de soberania aos povos indígenas tinha dois objetivos báscos. Primeiro, tornava-se possível a declaração de guerra justa como meio para arregimentar escravos e espoliar terras, o que foi utilizado mesmo diante da inexistência de qualquer hostilidade da parte dos índios19. A guerra justa constituiu, verdadeiramente, o maior artifício para legitimação dos interesses dos cobiçosos pelas terras e pelos ‘braços’ dos índios. Em segundo, a soberania indígena era garantia de domínio sobre vários espaços disputados por Portugal com outras potências europeias. Inclusive, em 1750 o Tratado de Madrid20, firmado entre Portugal e Espanha para estabelecer os limites de domínio destes nas Américas, tinha por base o princípio da posse de fato, que tornou imprescindível a instrumentalização dos povos indígenas para a garantia e legitimação de territórios.

16 Neste sentido, declarou a Carta Régia de 09 de abril de 1655 que seriam escravos os prisioneiros tomados em guerra defensiva, sendo estas definidas como ‘(...) a que fizer qualquer cabeça ou comunidade, por que tem cabeça e soberania para vir fazer e cometer guerra ao Estado, por que faltando esta qualidade a quem faz guerra, ainda que seja feita com ajuntamento de pessoas, os que se tomarem não serão captivos (...)’.

17 CUNHA, op. cit., 1987, p. 59. 18

PORTUGAL. Carta Régia de 1718. Disponível em: http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/index.php. Acesso de: 02 de abril de 2012.

19 "Para justificar esse que é considerado pela Coroa como último recurso, os colonizadores tem de provar a inimizado dos povos a quem pretendem mover guerra. Para tanto, descrevem longamente a ‘fereza’, a ‘crueldade’ e ‘barbaridade’ dos contrários, que nada nem ninguém pode trazer à razão ou a civilização”. Cf. PERRONE-MOISÉS, op. cit., p. 125.

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A situação dos índios na Colônia, diante das brechas da legislação ou da omissão do Estado em fiscalizar o seu cumprimento, chegou a tal ponto que levou o Papa Bento XIV a elaborar o Breve “Immensa Pastorum Principis” de 1741, dirigida aos arcebispos e bispos do Brasil, proibindo a escravização dos índios, o despojamento de seus bens e propriedades e a sua expulsão das terras que ocupam, sob pena de excomunhão da Igreja21.

Posteriormente, uma lei de 03 de maio de 175722, chamada de Diretório dos Índios, editada por Dom José I, por meio de seu Ministro Marquês de Pombal, determinou a extinção dos aldeamentos administrados pelos missionários nos Estados de Grão-Pará e Maranhão e sua elevação à condição de vilas ou aldeias, passando a ser administradas por um diretor. Tal determinação inseria-se em um amplo processo de laicização do Estado português23. Além disso, determinava também a Lei de 1757 a manutenção dos “[...] índios no inteiro domínio e pacífica posse das terras [...] para gozarem delas per si e todos seus herdeiros”. Ressalte-se que essa lei ratifica o Alvará de 1º de abril 1680, inclusive transcrevendo-o. Em 175824, outro alvará estendeu as medidas constantes do Diretório dos Índios para todos os Estados do Brasil, o que vai perdurar até 1798.

Salta aos olhos, no que toca ao período colonial brasileiro, o grande número de documentos legislativos que reconhecem a soberania das nações indígenas e os seus direitos às terras que ocupam e aos seus bens, em total descompasso com a prática da Colônia. Sobre este ponto, cumpre transcrever as palavras registradas por Dom Jozé I, em uma Lei de 06 de junho de 1755:

Contra os abusos ignominiosos de que resulta grande interesse à massa geral dos indivíduos não são as leis coercitivas mais do que solenes protestos À face da humanidade ou um apelo à posteridade, para salvar os representantes das nações da ignomínia que pesa sobre as provas; é por isso que tais leis se multiplicam de espaço em espaço como novos protestos, que vão morrer nas mudas praias da indiferença25.

21 CUNHA, op. cit., 1987, p. 62. 22

PORTUGAL. Diretório de 03 de maio de 1757. Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão. Disponível em: http://www.nacaomestica.org/diretorio_dos_indios.htm. Acesso em: 02 de abril de 2012. 23 OLIVEIRA; FREIRE. op. cit., p.70.

24 PORTUGAL. Alvará de 17 de agosto de 1758. Disponível em: http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=105&id_obra=73&pagina=849. Acesso em: 02 de abril de 2012.

(21)

Embora não tivessem eficácia, a elaboração de tais leis está a apontar que a soberania dos indígenas e os seus direitos territoriais constituíam dados que nem mesmo os interesses contrários, da Coroa portuguesa e dos colonos, podiam ignorar ou silenciar, principalmente em face das teorias que já vicejavam no direito internacional da época.

Neste sentido, até mesmo D. João VI, considerado um dos mais anti-indígenas dos legisladores, reconheceu, implícita e explicitamente, os títulos dos índios sobre seus territórios e terras das aldeias26: primeiro, quando estabeleceu, por meio da Carta Régia de 02 de dezembro de 1808, que as terras conquistadas dos índios em guerras justas são devolutas, implicitamente reconheceu o direito anterior dos índios aos seus territórios e a continuidade da existência deste direito para os índios com quem não se guerreava; em segundo, reconhece explicitamente tal direito territorial dos indígenas quando afirma, por meio da Carta Régia de 26 de março de 1818, que as terras das aldeias são inalienáveis e nulas as concessões de sesmarias que pudessem ter sido feitas nessas terras, que não poderiam ser consideradas devolutas.

Passa-se, assim, o período colonial com um amplo reconhecimento dos direitos dos índios, mas um imenso desrespeito por tais normas, com origem, principalmente, nos interesses econômicos de colonos e da Coroa portuguesa. Cristaliza-se, no entanto, a noção de que os índios, primários e naturais senhores das

terras do continente, devem ter seu direito respeitado, seja nas suas terras originárias ou

nas terras das aldeias.

2.3 O Império, a Carta Imperial de 1824 e a política indigenista

O reconhecimento da soberania dos povos indígenas constituiu, no período colonial, a melhor forma de justificar a escravização dos índios, atendendo, assim, aos interesses mercantis da Coroa e dos colonos. Porém, quando o Brasil se torna independente de Portugal, esta soberania transmuda-se em obstáculo, pelo menos segundo a concepção política do século XIX. Dirigentes políticos do Brasil, influenciados por ideais provenientes da Revolução Francesa, concebiam que a um Estado deveria corresponder uma, e somente uma, nação. Desta forma, a pluralidade de nações no Brasil - as nações indígenas e a dos neobrasileiros - consistiria em um

26

(22)

obstáculo para a formação e consolidação deste novo Estado que se criava e se buscava consolidar, e isto se torna ainda mais claro quando se atenta para o fato de, no Brasil, o Estado preceder à Nação27.

Como bem pondera Carlos Frederico Marés de Souza Filho:

A cultura de Estado, e o direito que com ela foi gerado, encarnava a concepção burguesa clássica de que não há estamentos intermediários entre o cidadão e o Estado, acabando com as corporações, coletivos, grupos homogêneos, etc. É a cultura do individualismo e da vontade individual. O Estado, ele mesmo passou a ser concebido como um indivíduo, uma pessoa de natureza especial, mas singular, mesmo que encarnasse ou tentasse encarnar a vontade de todos.

Nesta concepção, não se podia conceber enclaves de grupos humanos com direitos próprios de coletividade, não reconhecidos nem integrados no sistema do Direito estatal. Os povos indígenas deveriam ser esquecidos, para dar lugar a cidadãos livres, sempre individuais, sempre com vontade individual, sempre pessoa. Sendo pessoa, o Estado ou o indivíduo indígena, seria titular de direitos e os teria garantidos. O índio, não seu grupo, sua comunidade, sua tribo, seu povo28.

Provavelmente em decorrência disto, a Carta outorgada de 1824 não fizesse qualquer menção aos povos indígenas, mesmo que, na Constituinte de 1823, tenha sido formada uma comissão - “Comissão de Colonisação e Cathechisação”29, para discutir sobre os povos indígenas e seu lugar no novo Estado.

A discussão em torno da política indigenista ocorreu de forma acalorada durante todo século XIX, figurando José Bonifácio de Andrada e Silva como um dos principais expoentes desse debate, inclusive enviando projetos para a Constituinte portuguesa de 1822 e para a Constituinte brasileira de 1823. No entanto, tais debates não lograram consensos que pudessem figurar na Carta Constitucional30.

Esta omissão da Constituição de 1824 se torna mais grave quando atenta-se que, desde o Ato Adicional de 1834, permitiu-se às Assembleias Provinciais legislarem, cumulativamente com o Governo Geral sobre matéria indígena. Para Manuela Carneiro da Cunha31, não é de se espantar que as Assembleias Provinciais, mais próximas do poder local, tenham legislado em detrimento dos interesses indígenas, seja extinguindo sumariamente aldeamentos, seja deslocando e concentrando grupos indígenas diversos, tudo com o escopo de apropriar-se de suas terras.

27

CUNHA, op. cit., 1987, p. 64. 28 SOUZA FILHO, op. cit. p. 62. 29 CUNHA, op. cit., 1987, p. 65. 30 Ibid., p. 64 et seq.

31

(23)

O certo é que, ao longo do período imperial, as leis elaboradas consubstanciam a essência do pensamento da época sobre a questão indígena: a necessidade de incorporação dos indígenas à comunhão nacional. Tal política, aliás, já se vislumbrava com o Diretório dos Índios32, de 1757, e vai perdurar ao longo de todo o Império, findando apenas sob a influência dos ideais inerentes à República, os quais se consubstanciaram na política do Estado brasileiro em relação aos povos e etnias indígenas, principalmente, na figura do Serviço de Proteção ao Índio, que teve sua criação em 1910.

Esta política estatal preordenada à incorporação dos índios à sociedade então nascente por métodos de aculturação é chamada de política assimilacionista ou integracionista, sendo efetivada, pelas mais variadas formas, desde a Colônia até o período Republicano.

Portanto, observa-se que a política oficial do Estado em relação aos índios no período imperial vai-se constituindo-se, muitas vezes, por meio de mera omissão aos índios e, assim, da construção e permissão de um processo de assimilação destas minorias. O processo de assimilação, assim, constituiu-se por meio do desrespeito aos territórios e aos costumes indígenas, obrigando os índios a transmudar-se em não índios e, somente assim, consoante o pensamento dominante então, em brasileiros.

Isto se verá, por exemplo, na política de terras instaurada com a Lei de 1850, a qual passa-se a analisar.

2.4 A Lei de Terras de 1850: entre a omissão e a legitimação à terras indígenas

Em 1850, promulgou-se uma lei imperial que se propunha a disciplinar o novo regime fundiário do Estado brasileiro, uma vez que, em 1822, uma Resolução do Príncipe Regente havia abolido o sistema de sesmarias33 que vigia até então. A Lei Imperial n° 601 de 18 de setembro de 1850, mais conhecida como de Lei de Terras34, buscava, por meio do instituto das terras devolutas, estabelecer o monopólio do Estado sobre as todas as terras do Império, excetuadas tão somente as adquiridas anteriormente por meios que a mesma lei estabelece como aptos a tanto. Assim, as terras até aquele

32

OLIVEIRA; FREIRE. op. cit., p. 69.

33 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 63

(24)

momento não legalmente adquiridas passaram ao domínio do Estado a título de devolutas, somente podendo ser adquiridas a partir de então por meio da compra. Seu texto prevê que:

Art. 1° Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra.

[...]

Art. 3º São terras devolutas:

§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal.

§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.

§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei.

§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.

Desta forma, excluindo-se as terras de uso público (§1°), as de domínio particular com fundamento em título legítimo (§2°), as concedidas em sesmarias (§3°) e as que, sem fundamento em título legal, forem legitimadas pela própria Lei de Terras (§4°), todas as demais seriam devolutas e só poderiam ser apropriadas dali em diante por meio de aquisição, consoante dispõe o art. 1°. Os povos indígenas, até então primários e naturais senhores de suas terras, não tiveram, portanto, suas territorialidades e seus domínios reconhecidos na expressa textualidade da Lei de Terras.

Todavia, a Lei n° 601 de 1850 tratou dos indígenas em seu art. 12. Confira-se:

Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessarias:

1º, para a colonisação dos indigenas; 2º, para a fundação de povoações,

abertura de estradas, e quaesquer outras servidões, e assento de estabelecimentos publicos: 3º, para a construção naval. (Grifo nosso)

Referido dispositivo consubstancia a continuidade da política de aldeamentos, levada a cabo pela Coroa Portuguesa desde a Colônia e agora endossada pelo Império35, mas com as adequações necessárias à nova fase. Desta forma, em que pese não reconhecer os direitos dos índios sobre suas terras originárias ou nos aldeamentos, obrigava o Império a promover a política de colonização dos indígenas, por meio da qual não são respeitadas as terras dos índios, mas simplesmente

(25)

manipuladas tais minorias com a finalidade de liberar terras para atividades econômicas e fixar os indígenas onde bem servissem como mão de obra.

Em 1854, a promulgação do Decreto n° 1.318 veio jogar novas luzes sobre o novo sistema fundiário inaugurado com a Lei de Terras. Nos seus artigos 72 a 7536, tratou da reserva de terras devolutas para a colonização e aldeamento de indígenas nos distritos onde existirem “hordas selvagens”, garantindo o usufruto exclusivo e a inalienabilidade desta de terras. Aos indígenas que já estavam aldeados, não era necessário reconhecer quaisquer direitos, uma vez que já estavam em processo de assimilação e fora de suas terras originárias.

A Lei Fundiária de 1850 e seu Regulamento preocupavam-se unicamente com a colonização e aldeamento de “hordas selvagens”, ignorando os direitos dos índios já aldeados e estabelecidos. Segundo João Mendes Jr., não era necessário “subordinar os índios aldeados, mesmo nos distritos onde houverem hordas selvagens, às formalidades da legitimação de sua posse”, pois “o fim da lei era o de reservar terras para os índios que se aldeassem”37-38. Continuando o autor a tratar sobre a duplicidade de tratamento entre índios aldeados e não-aldeados (“hordas selvagens”), na Lei de Terras e seu Regulamento, aduz:

Mas, nas demandas entre posseiros e índios aldeados, se tem pretendido exigir que estes exhibam os registros de suas posses. Parece-nos, entretanto, que outra é a solução jurídica: Desde que os índios já estavam aldeados com morada e cultura habitual, estas terras por eles ocupadas, si já não fossem deles, também não poderiam ser de posteriores posseiros, visto que estariam devolutas; em qualquer hypothese, suas terras lhes pertenciam em virtude do direito à reserva, fundado no Alvará de 1° de abril de 1680, que não foi revogado, direito este que jamais poderá ser confundido com uma posse sujeita à legitimação e registro.

36

Art. 72 Serão reservadas terras devolutas para colonização, e aldeamento de indígenas nos distritos, onde existirem hordas selvagens.

Art. 73 Os Inspetores e Agrimensores, tendo notícia da existência de tais hordas nas terras devolutas, que tiverem de medir, procurarão instruir-se de seu gênio e índole, do número provável de almas, que elas contêm, e da facilidade, ou dificuldade, que houver para o seu aldeamento; e de tudo informarão o Diretor-Geral das Terras Públicas, por intermédio dos Delegados, indicando o lugar mais azado para o estabelecimento do aldeamento, e os meios de o obter; bem como a extensão de terra para isso necessária. Art. 74 A vista de tais informações, o Diretor-Geral proporá ao Governo Imperial a reserva das terras necessárias para o aldeamento, e todas as providências para que este as obtenha.

Art. 75 As terras reservadas, para colonização de indígenas, e por eles distribuídas, são destinada ao seu usofruto; e não poderão ser alienadas, enquanto o Governo Imperial, por ato especial, não lhes conceder o pleno gozo delas, por assim o permitir o seu estado de civilização.

37

MENDES JR., João. Os indígenas do Brazil, seus direitos individuaes e políticos. Edição Fac-similar. São Paulo: Typ. Hennies Irmãos, 1912, p. 57.

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A interpretação supratranscrita apresenta-se muito consentânea com a história da regulação dos direitos dos índios no direito brasileiro, desde a Colônia. Primeiramente, observa-se que a posse dos índios aldeados (e, portanto, com morada e cultura habitual) seria legitimada pela Lei de Terras, conquanto não na forma de uma posse diferenciada indígena39. Assim, tendo os índios morada e cultura habitual em uma porção de terras, outros não poderiam cobiçá-la, uma vez que, se não fossem reconhecidas como direito de tais índios que as habitavam, estariam devolutas, pertencendo, portanto, ao Estado. Em segundo, os direitos territoriais dos índios têm por supedâneo o instituto do indigenato, consagrado, entre outros, no Alvará de 1° de abril de 1680. Destarte, um direito que é concebido como congenitamente e originariamente apropriado não pode ser submetido à legitimação pela lei - Lei de Terras. Aliás, o indigenato, por ter caráter de um direito de reserva, deve assim ser interpretado em relação à Lei de Terras: reservando as terras indígenas para a posse e usufruto dos indígenas, afastando-as, pois, de particulares ou mesmo da ação estatal.

Parece corroborar com tal entendimento o dispositivo do §1°, do art. 24, do Decreto que regulamenta a Lei de 1850:

Art. 24 Estão sujeitas à legitimação:

§ 1º As posses, que se acharem em poder do primeiro ocupante, não tendo outro título senão a sua ocupação.

João Mendes Jr. assim se manifesta acerca de tal dispositivo:

O art. 24 do Decr. n. 1318 de 30 de Janeiro de 1854, explicando o pensamento da Lei, claramente define, no seu §1.°, que, em relação ‘às posses que se acharem em poder de primeiro occupante’, estão sujeitas á legitimação aquellas ‘que não tem outro titulo senão a occupação’. Esse §1.° do art. 24 do cit. Decr. de 1854 reconhece, portanto, a existência de primeiro ocupante que tem titulo distincto da sua ocupação. E qual pôde ser esse

primeiro ocupante, com titulo distincto da sua ocupação, senão o indígena, aquelle que tem por titulo o indigenato, isto é, a posse aborígene?40. (Grifo nosso)

Tal dispositivo do Decreto n° 1.318 inequivocamente torna possível a interpretação de que o instituto do indigenato é respeitado mesmo diante da nova estrutura jurídica fundiária surgida com a Lei de 1850. Neste sentido, mais enfático ainda, continua o mesmo autor:

39 Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes: [...].

40

(27)

Só estão sujeitas à legitimação as posses que se acham em poder de occupante (Art. 3° da Lei de 18 de Setembro de 1850); ora, a occupação, como título de acquisição, só pode ter por objecto as cousas que nunca tiveram dono, ou que foram abandonadas por seu antigo dono. A occupação é uma apprehensio rei nullis ou rei derelictae [...] ; ora, as terras de índios, congenitamente apropriadas, não podem ser consideradas nem como res nullius nem como res derelictae; por outra, não se concebe que os índios tivessem adquirido, por simples occupação, aquilo que lhes é congenito e primario, de sorte que, relativamente aos índios estabelecidos, não há uma simples posse, há um título immediato de domínio; não há, portanto, posse a legitimar, há domínio a reconhecer e direito originário e preliminarmente reservado41. (Grifo nosso)

Portanto, segundo João Mendes Júnior, os direitos dos índios não poderiam ser afetados pela Lei de Terras. Apesar de não se fundarem em título legal, os direitos territoriais dos índios, primários e naturais senhores de suas terras, se funda no instituto

do indigenato, que importa em verdadeiro título originário de domínio e que reserva as

terras dos índios de afetação por direitos constituídos pelo Estado.

Todavia, a hermenêutica em questão não foi a que prevaleceu à época, representando a aplicação da Lei Fundiária de 1850 uma verdadeira redução das terras dos índios unicamente às aldeias42.

Por fim, apesar dos estratagemas jurídicos utilizados para restringir ou, como visto, praticamente solapar de vez os direitos territoriais indígenas, “tais procedimentos seriam mais tarde contestados com base na compreensão de que os índios eram os originais senhores de suas terras, não havendo necessidade de legitimar a posse, pois quem dá legitimidade é o ‘indigenato’– os nativos são ‘naturais senhores’ (Alvará de 1680) da terra”43.

Aliás, como se passa a ver adiante, o indigenato será concebido como não revogado ou mesmo expressamente reconhecido pelas Constituições elaboradas ao longo do Período Republicano brasileiro.

2.5 A Constituição de 1891 e a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI)

Inobstante a existência de propostas de caráter bastante avançado44 sendo apresentadas à Constituinte, entre outros pelo Apostolado Positivista, a Constituição de

41 MENDES JR., op. cit., p. 59. 42 OLIVEIRA; FREIRE, op. cit. p. 75. 43

Ibid., loc. cit.

44 O projeto de Constituição apresentado pelo Apostolado Positivista previa a pluralidade povos conformando o Estado e o reconhecimento de autonomia a eles. Veja-se o teor do dispositivo:

(28)

1891, assim como a Constituição outorgada de 1824, se furtou a dispor sobre a questão indígena, sequer fazendo qualquer referência aos índios em seu texto.

Contudo, um dispositivo, o art. 64 da aludida Constituição, que transfere para os Estados Federados o domínio sobre as terras devolutas, acabou por trazer graves e danosas consequências aos indígenas. É que, a partir de tal preceito legal, e fundando-se em compreensão de que as terras indígenas fundando-seriam devolutas, espraiou-fundando-se o entendimento de que também as terras indígenas estivessem sendo passadas ao domínio dos Estados.

Tal confusão, senão propositada, conveniente aos interesses dos poderes locais, operou-se por meio da controvérsia, já relatada, a respeito da incidência do regime jurídico das terras devolutas também quanto às terras indígenas, vez que se entenda estas como espécie daquelas. Não fosse por meio deste procedimento, a apropriação de terras indígenas era possível por meio do seu tratamento como aldeias extintas e, assim, passando-as ao domínio das Províncias e Estados e, por conseguinte, para o raio de manobra dos poderes locais45.

Neste ponto, esclarece José Maria de Paula:

[...] passando ao domínio privado dos Estados as terras devolutas que recebêra do governo imperial, é claro, que somente transferiu a esse domínio as terras que realmente eram devolutas; subsistindo em toda a sua plenitude os direitos legalmente adquiridos ou definidos sobre a propriedade territorial, nos regimes anteriores. A incorporação, por parte dos estados, ao seu domínio privado, como terras devolutas, das terras dos índios, que indiscriminadamente tinham recebido da União, ex-vi da Constituição Federal de 1891, constitui clamoroso esbulho do patrimônio indígena, sendo que deveriam tais estados, desde logo, definir a situação das terras dos índios, a fim de as extremarem daquelas que, como devolutas, lhes tinha sido cedidas pela União, ao invés de, sem nenhum exame, passarem, como fizeram, desde logo, a considera-las como suas e delas irem dispondo, mediante processos administrativos estabelecidos pelas respectivas legislações46.

Indiscutível que tal confusão deu ensejo a que os Estados realizassem a venda das supostas terras devolutas àqueles que tinham interesse na posse e nas riquezas federados, cujas autonomias são igualmente reconhecidas e respeitadas segundo as fórmulas convenientes a cada casa, a saber:

I – Os Estados Ocidentais Brasileiros sistematicamente confederados e que provém da fusão do elemento europeu com o elemento africano e o americano aborígene.

II – Os Estados Americanos Brasileiros empiricamente confederados, constituídos pelas ordas fetichistas esparsas pelo território de toda a República. A federação deles limita-se à manutenção das relações amistosas hoje reconhecidas como um dever entre nações distintas e simpáticas, por um lado; e, por outro lado, em garantir-lhes a proteção do Governo Federal contra qualquer violência, quer em suas pessoas, quer em seus territórios (Cf. CUNHA, op. cit., 1987, p. 71 et seq.).

45 Ato adicional de 1834 e Lei de 20 de outubro de 1887.

46 PAULA, J.M. de. Terras dos índios. Boletim n° 1 do SPI. Rio de Janeiro, 1944. Apud: CUNHA, op.

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das terras indígenas. Tanto é assim que o Decreto n° 736 de 1936 – Regulamento do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) incumbiu tal órgão, dentre outras atividades, de impedir que as terras habitadas pelos silvícolas fossem tratadas como devolutas47.

A criação do SPI, denominado até 1918 de Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), data de 1910, quando o Decreto n° 8.072 o criou no âmbito do Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio, motivado, em muito, pela pressão internacional contra a violação de direitos indígenas no Brasil. O fato de o serviço de assistência indigenista nascer atrelado a tal Ministério e, ainda, manter íntima simbiose com a Localização de Trabalhadores Nacionais muito diz a respeito do caráter de tal órgão, que não se modificou mesmo quando o setor responsável pela localização de trabalhadores nacionais foi deslocado para o Serviço de Povoamento do Solo. Segundo Oliveira e Freire:

O projeto do Serviço procurava afastar a Igreja Católica da catequese indígena, seguindo o preceito republicano de separação Igreja-Estado. Sua base era a ideia de que a condição de índio seria sempre transitória e que assim a política indigenista teria por finalidade transformar o índio em um trabalhador nacional. Para isso, seriam adotados métodos e técnicas educacionais que controlariam o processo, estabelecendo mecanismos de homogeneização e nacionalização dos povos indígenas48.

A criação do SPI significou, dentre outras coisas, o “início do projeto republicano de substituir a ‘catequese religiosa’ – como forma de incorporar os indígenas no ‘processo civilizatório’ e engajá-los nas estratégias de promoção do ‘progresso nacional’ – pela ‘proteção leiga do Estado’”49. Embora tendo sua fundação muito ligada à necessidade de reformulação das práticas do Estado em relação aos povos indígenas, adotando-se, a partir de então, os princípios positivistas (notadamente anticlericais) nesta atividade, “o modelo indigenista adotado retoma – como herdeiro – formas de administração colonial empregadas desde os tempos dos missionários jesuítas”50. Assim, os chamados postos indígenas, instalados nas terras indígenas sob a direção do SPI, constituíram-se, em muito, de métodos e práticas utilizados pelos aldeamentos missionários.

O Código Civil de 1916, concretizando o ideário indigenista da época, estabeleceu os indígenas como relativamente incapazes, passando então a serem

47 Art. 3°, a, Decreto n° 736 de 1936. 48

OLIVEIRA; FREIRE, op. cit. p. 113.

49 VERDUM, Ricardo. A cidadania multicultural e os limites dos indigenismo brasileiro. In: http://www.ciesas.edu.mx/proyectos/relaju/documentos/Verdum_Ricardo.pdf. Acessado em 01/04/2012, às 23h.

50

(30)

tutelados, pelo Estado brasileiro, na figura do SPI. A partir daí, “as terras ocupadas pelos indígenas, bem como o seu próprio ritmo de vida, as formas admitidas de sociabilidade, os mecanismo de representação política e as suas relações com os não-índios passam a ser administradas por funcionários estatais”51.

O SPI agia principalmente nas áreas de expansão da fronteira agrícola, atraindo e pacificando os indígenas, com a finalidade de fixá-los a uma determinada sorte de terras e garantir sua sobrevivência física. A outra face deste trabalho do SPI era a utilização dos índios, após o processo de civilização, para o aumento da produtividade agrícola do país, ao mesmo tempo em que as terras indígenas passariam a ser acessíveis ao Estado, e a particulares, sendo possível a exploração de suas riquezas e bens52.

No que tange especificamente à garantia das terras indígenas53 (um dos objetivos do Serviço), a atuação do SPI limitou-se a buscar, junto aos governos estaduais, a garantia de tais territórios, uma vez que, diante da omissão da Constituição de 1891, as terras indígenas foram tratadas como se devolutas fossem e, portanto, incorporadas ao domínio dos Estados54.

Contudo, tal atuação, muito em decorrência da própria forma como se visualizava os povos indígenas, não logrou grande êxito, sendo certo que, no geral, “o SPI reservou pequenas áreas que funcionavam mais como reserva de mão-de-obra do que favoreciam a reprodução sócio-cultural dos índios”55.

Posteriormente, o entendimento que a doutrina e a jurisprudência de tribunais pátrios irãoexpressar a respeito da Constituição de 1891 é que ela não revogou leis e demais atos anteriores que consagravam direitos dos índios sobre suas terras, uma vez que, em seu artigo 83, estabeleceu que continuariam “em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo regime no que explícita ou implicitamente não forem

51

OLIVEIRA; FREIRE. op. cit.,, p. 114. 52 Ibid, p. 113 et seq.

53 O Decreto 8.072, de 20 de junho de 2010, que instituía o SPI, prescrevia: “Art. 2º A assistencia de que trata o art. 1º terá por objecto: [...] 2º, garantir a efectividade da posse dos territorios occupados por indios e, conjunctamente, do que nelles se contiver, entrando em accôrdo com os governos locaes, sempre que fôr necessário”. Por sua vez, o Decreto n° 5.484 determinava, em seu art. 10, que “O Governo Federal promoverá a cessão gratuita para o dominio da União das terras devolutas pertencentes aos Estados, que se acharem occupadas pelos indios, bem como a das terras da extintas aldeias, que foram transferidas ás antigas Provincias pela lei de 20 de outubro de 1887”.

54 OLIVEIRA; FREIRE, op. cit. p. 119.

(31)

contrárias ao sistema do Governo firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados”56.

2.6 As constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969: a questão indígena

constitucionalizada

A primeira constituição a tratar expressamente sobre os direitos indígenas foi a Constituição Federal de 1934, na qual se consagrou a competência legislativa exclusiva da União para tratar sobre os direitos dos índios57 e se reconheceu o direito de tais minorias, inclusive tornando inalienáveis as terras por eles ocupadas. Veja-se a redação do dispositivo acerca dos direitos territoriais: Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.

Pontes de Miranda assim interpreta o dispositivo:

No art. 129, [...] respeita-se a posse do silvícola, posse a que ainda se exige a localização permanente. O juiz que conhecer de alguma questão de terras

deve aplicar o art. 129, desde que os pressupostos estejam provados pelo silvícola, ou conste dos autos, ainda que alguma das partes ou terceiro exiba título de domínio. Desde que há a posse e localização permanente, a terra é do nativo, porque assim o quis a Constituição, e qualquer

alienação de terras por parte de silvícolas ou em que se achem, permanentemente localizados e com posse, os silvícolas, é nula58. (Grifo nosso)

Posteriormente, a Constituição de 1937 consagrou, nos mesmos termos da Constituição anterior, o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, salvo pequenas alterações textuais, in verbis:

Art 154 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas.

56 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891.

57 Art. 5° - Compete privativamente à União: [...] XIX – Legislar sobre: [...] m) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional.

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Por sua vez, a Constituição de 1946, em seu artigo 216, positivou tanto a competência legislativa exclusiva sobre direito indígena59, quanto o reconhecimento aos direitos territoriais dos índios:

Art. 216 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.

Em que pesem as diferenças textuais, as primeiras constituições que positivam os direitos territoriais indígenas carregam uma evidente identidade normativa: trazem em seu bojo o reconhecimento das territorialidades indígenas, mas tão só das terras onde permanentemente se localizam, e o dever de respeito a elas.

Cumpre observar, contudo, que o reconhecimento de tais direitos pelos textos constitucionais não engendrou uma significativa mudança das históricas relações de opressão em que se encontravam as minorias indígenas, até mesmo porque tais mandamentos constitucionais, por si mesmos, não têm o condão de modificar situações tão complexas de opressão e violação de direitos. Era imprescindível, desta forma, que o reconhecimento constitucional agisse como propulsor da reformulação dos instrumentos de atuação do Estado, bem como do desenvolvimento de novas teorias e práticas que fossem aptas a reorientar as relações e práticas indigenistas.

Tal concretização dos comandos constitucionais relativos às terras indígenas não se efetivou, no entanto, em qualquer das Constituições anteriormente citadas. O Estado e seu aparato legal e institucional para a tutela das minorias indígenas continuou semelhante ao existente na Constituição de 1891, na qual os direitos indígenas foram ausentes. Destarte, a atuação do SPI como negociador de terras indígenas junto aos governos estaduais e municipais, que as apropriavam a título de devolutas, persistiu, até os anos 6060, como a principal, praticamente única61, concretização da política de proteção territorial das terras indígenas pelo Estado brasileiro.

A Constituição Federal de 1967 consagrou as conquistas alcançadas pelos povos indígenas no texto das Constituições anteriores e, ainda, avançou em alguns

59 Art 5º - Compete à União: [...] XV - legislar sobre: [...] r) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional.

60 ARAÚJO, Ana Valéria; et all. Povos indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. p. 27.

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pontos: estabeleceu as terras indígenas como propriedade da União62 e referiu-se expressamente ao usufruto exclusivo indígena em tais sortes de terra. Assim redigiu-se o dispositivo sobre os direitos territoriais indígenas:

Art 186 - É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.

Em 1969, uma emenda constitucional, de tamanha compleição que é reconhecida por grande parte da doutrina jurídica como uma nova constituição, manteve a competência legislativa exclusiva da União e as terras indígenas como bens desta. Inovou, no entanto, ao ampliar a proteção constitucional dos direitos territoriais indígenas. Veja-se a redação do texto constitucional acerca da matéria:

Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos têrmos que a lei federal determinar, a êles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de tôdas as utilidades nelas existentes.

§ 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas.

§ 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.

O dispositivo constitucional em questão instituiu uma proteção nunca antes vista no tocante aos direitos indígenas, mormente na norma de seu parágrafo primeiro, cujos termos contrariaram fortes interesses econômicos, afinal, por meio de tal norma, podia-se desconstituir a usurpação de territórios indígenas ocorrida ao longo dos séculos anteriores.

Na década de 60, além das modificações trazidas pelos novos textos constitucionais, destaca-se a extinção do SPI e a criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

A extinção do SPI está ligada a existência de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigava acusações de genocídio de índios, corrupção e ineficiência administrativa envolvendo um grande número de servidores desta agência indigenista. Como resultado dessa CPI, pode citar que mais de cem servidores do órgão foram punidos com demissão ou suspensão, incluindo-se em tal número ex-diretores da Agência.

Segundo Oliveira e Freire:

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Referências

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