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INTERPRETAÇÃO DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL À LUZ DAS INCONSTITUCIONALIDADES PRESENTES NA NEGATIVA DE DESMEMBRAMENTO DA AÇÃO PENAL Nº 470MG

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Academic year: 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP Programa de Pós-Graduação Mestrado Direito

Gabriela Shizue Soares de Araujo

INTERPRETAÇÃO DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL À LUZ DAS

INCONSTITUCIONALIDADES PRESENTES NA NEGATIVA DE DESMEMBRAMENTO DA AÇÃO PENAL Nº 470/MG

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Gabriela Shizue Soares de Araujo

INTERPRETAÇÃO DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL À LUZ DAS

INCONSTITUCIONALIDADES PRESENTES NA NEGATIVA DE DESMEMBRAMENTO DA AÇÃO PENAL Nº 470/MG

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional sob a orientação do Prof. Dr. Vidal Serrano Nunes Júnior.

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Banca Examinadora

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Agradecimentos

Este trabalho é fruto, principalmente, da influência que meus pais tiveram e continuam tendo sobre a minha formação, e, por isso, em agradecimento, quero dedica-lo em primeiro lugar ao meu pai, Attilio, que me ensinou que não há maior riqueza que o conhecimento e a cultura, e à minha mãe, Maria, que me ensinou que não se deve jamais temer dizer a verdade.

De modo especial, agradeço ao carinho do meu marido, Emidio, grande responsável pelo meu equilíbrio, paz e força durante a execução deste projeto. Agradeço ainda a todos os professores com quem tive a oportunidade de me aperfeiçoar nesta casa, em especial à Professora Maria Garcia, minha fonte inaugural nos estudos de Direito Constitucional, desde a graduação, e ao Professor Vidal Serrano Nunes Júnior, meu orientador, pela atenção e oportunidade.

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RESUMO

Esta dissertação busca demonstrar a fragilidade a que se expõem os direitos fundamentais do homem, ao se permitir que pressões da opinião pública, movidas por interesses políticos e pessoais, levem nossa mais elevada Corte a olvidar os princípios vetores e as diretrizes hermenêuticas constitucionais na interpretação e aplicação da Constituição Federal ao caso concreto. Procuramos a melhor interpretação da excepcional competência originária por prerrogativa de função do Supremo Tribunal Federal para julgar infrações penais, fazendo um paralelo com a condução do tema no julgamento peculiar da Ação Penal n° 470/MG. Demonstramos que os cidadãos comuns não titulares de prerrogativas de função devem ter preservado seu direito ao juiz natural, ao devido processo legal, e principalmente ao duplo grau de jurisdição. Ao final, concluímos que o duplo grau de jurisdição é um direito fundamental que não pode ser negado nem mesmo aos titulares de prerrogativa de função e ressaltamos as inconstitucionalidades latentes quanto à negativa desse direito no julgamento da Ação Penal nº 470/MG. Vasta literatura foi pesquisada, manifestações de respeitáveis mestres e doutores, opiniões de segmentos variados da sociedade, amealhados à convicção pessoal da autora.

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ABSTRACT

This dissertation seeks to demonstrate the fragility of human rights, when our highest court forgets the principles and guidelines vectors in constitutional interpretation and hermeneutics application of the Constitution, under pressure of public opinion. We seek the best interpretation of the Supreme Court’s exceptional original jurisdiction by prerogative function, making a parallel with the peculiar judgment of the Criminal Action Nº 470/MG. We demonstrate that ordinary citizens that do not hold function´s privileges should have preserved their right to natural justice, due process, and especially the double jurisdiction. At the end, we conclude that the double degree of jurisdiction is a fundamental right that can not be denied even to holders of prerogative function and we highlight the unconstitutionality regarding the latent negative of that right in the trial of Criminal Case Nº 470/MG. Wide literature was searched, manifestations of respected masters and doctors, reviews of various segments of society, slowly gathered the personal conviction of the author.

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SUMÁRIO

Introdução... 1

1. Competência Originária do Supremo Tribunal Federal por Prerrogativa de Função à Luz dos Princípios Constitucionais... 9

1.1. Constituição e Poder Constituinte no Brasil... 10

1.2. Direitos e Garantias Fundamentais... 15

1.2.1. Classificação dos Direitos Fundamentais... 18

1.3. Liberdade da Pessoa Física... 20

1.4. Devido Processo Legal: Ampla Defesa e Contraditório... 27

1.5. Juiz Natural... 37

1.6. Duplo Grau de Jurisdição... 44

1.7. Princípio da Igualdade... 56

1.8. Importância do Princípio na Resolução de Conflitos entre Normas... 61

2. Noções de Hermenêutica Constitucional... 65

2.1. Os Princípios Constitucionais Instrumentais... 70

2.1.1. Princípio da Supremacia da Constituição... 71

2.1.2. Princípio da Unidade da Constituição... 73

2.1.3. Princípio do Efeito Integrador ou Critério de Eficácia Integradora... 77

2.1.4. Princípios da Concordância Prática, Harmonização ou Cedência Recíproca... 78

2.1.5. Princípio da Conformidade Funcional... 80

2.1.6. Força Normativa da Constituição e Princípio da Ótima Concretização da Norma... 82

2.1.6.1. Princípio da Máxima Eficiência... 84

2.1.7. Princípio da Interpretação Conforme a Constituição... 85

2.1.8. Princípio da Proporcionalidade... 86

2.2. Métodos de Interpretação Constitucional... 90

2.2.1. Método Hermenêutico-Concretizador... 93

3. O Supremo Tribunal Federal Como maior Intérprete da Constituição... 97

3.1. Separação de Poderes e Poder Judiciário... 97

3.2. Controle de Constitucionalidade... 106

3.3. O Papel do Intérprete da Constituição... 110

4. Inconstitucionalidade do Alargamento da Competência Originária do Supremo Tribunal Federal para Processar e Julgar Infrações Penais... 120

4.1. Legislação e Jurisprudência Precedente Aplicável... 120

4.2. Excepcionalidade na Negativa de Desmembramento da Ação Penal nº 470/MG... 123

4.3. Julgamento de Exceção... 128

4.4. Interpretação Constitucional da Competência Originária por Prerrogativa de Função do Supremo Tribunal Federal... 132

5. A Competência Originária por Prerrogativa de Função Perante o Duplo Grau de Jurisdição... 136

5.1. A Hierarquia Constitucional dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e o Duplo Grau de Jurisdição... 139

5.2. Incorporação do Duplo Grau de Jurisdição nos Processos de Competência Originária do Supremo Tribunal Federal... 146

6. Conclusão... 150

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INTRODUÇÃO

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal e seus respeitáveis ministros se submeteram a um espetáculo jamais visto: em pleno ano eleitoral, o julgamento de uma única ação, a Ação Penal nº 470/MG, ganhou todos os holofotes da imprensa e foi acompanhado em tempo real pela maioria das emissoras de rádio e televisão, sendo objeto de comentários, encartes e matérias especiais também na mídia escrita.

Tudo isso foi resultado de anos de uma pressão frenética e de um pré-julgamento político condenatório dos réus da referida ação penal, provocados por alguns setores conservadores, inclusive da mídia, contrários ao Partido dos Trabalhadores, cujo programa é de cunho socialista e que há dez anos vinha sendo legitimamente eleito pelo povo para comandar o governo federal.

Tamanha foi a pressão que os setores da imprensa preferenciais da classe média fizeram sobre nossa Corte Suprema, que os ministros mais aguerridos em sua sanha condenatória foram instantaneamente transformados em heróis e capas de revista, enquanto que aqueles estritamente técnicos ou que votaram pela absolvição eram, se não ignorados, criticados como se estivessem sendo parciais ou coniventes com a suposta corrupção ocorrida.

O jornalista Paulo Moreira Leite, em livro publicado com a reunião de todas as matérias que escreveu para o blog que mantinha no sítio eletrônico de uma revista semanal durante o julgamento da Ação Penal nº 470/MG, nos dá um retrato bem fiel da comoção causada pela mídia durante o julgamento:

―Com 53 sessões e quatro meses de duração, a Ação Penal 470 levou a um dos julgamentos mais longos da história do Supremo Tribunal Federal. Foi o mais midiático desde a invenção da TV no Brasil, e possivelmente no mundo, superando mesmo o caso de O. J. Simpson, celebridade da TV americana acusada de assassinar a própria mulher. Três vezes por semana, sempre a partir das duas da tarde, suas sessões eram transmitidas, ao vivo e na íntegra, pela TV Justiça, do Poder Judiciário, e pela Globo News.

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no fim de semana, nas capas das revistas semanais. Joaquim Barbosa, relator do caso, tornou-se personagem conhecido nas ruas. Máscaras de seu roso foram lançadas para o carnaval de 2013. (...)

A maioria dos meios de comunicação cobriu o julgamento com tom de celebração e cobrança. Quase todos consideravam que a culpa dos réus já fora demonstrada pela CPI dos Correios e pelas investigações posteriores. A versão dos acusados, que sempre se declararam inocentes, raramente foi levada em consideração1‖.

A Ação Penal 470 também ganhou um apelido pejorativo da imprensa conservadora, já que foi oriunda de denúncias irresponsáveis feitas por um desafeto político do dirigente petista José Dirceu, à época Ministro da Casa Civil, que sequer foram provadas no corpo da ação: a suposta existência de um pagamento de “Mensalão” (sic) para compra de votos de parlamentares da base aliada do governo petista de Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato na presidência da República (2003-2006)2.

A influência que a cobertura e a superexposição desse julgamento causaram em cada um dos ilustres ministros de nossa Suprema Corte não pode ser medida em termos subjetivos, porém, em termos objetivos, a condenação da maioria dos réus da Ação Penal 4703 reveste-se, além de inconstitucionalidades, também de alterações na jurisprudência consolidada anterior.

1 LEITE, Paulo Moreira. A outra história do mensalão: as contradições de um julgamento político. São Paulo: Geração Editorial, 2013. p. 12.

2

―Em 2012, nunca apareceu prova de que um único entre os 380 parlamentares da sempre instável base governista tivesse mudado de lado em troca de dinheiro. O próprio Roberto Jefferson, que denunciou o mensalão, fez afirmações ambíguas e contraditórias longe dos holofotes. Falando à

Polícia Federal, chegou a usar a expressão ‗criação mental‘ para referir-se ao mensalão. Mas nem Jefferson admitiu que foi subornado. Talvez fosse só orientação de advogado. Talvez Jefferson não considerasse que estava recebendo propina quando negociava apoio político.

Em 1997, surgiu a confissão gravada de um deputado, dizendo que embolsara R$ 200 mil para apoiar a reforma constitucional que autorizou Fernando Henrique Cardoso a disputar um segundo mandato. Mas o fato foi considerado tão pouco relevante, que o Procurador-Geral da República da época mandou arquivar a denúncia sem qualquer investigação.

Durante sete anos de investigação, não se encontrou nada semelhante no esquema Delúbio Soares

Marcos Valério‖. (LEITE, Paulo Moreira. A outra história do mensalão: as contradições de um julgamento político. São Paulo: Geração Editorial, 2013. p. 25.)

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Terá sido esse um julgamento de exceção? Ou toda a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal será alterada a partir de então, para aplicar uma “Teoria do Domínio do Fato” distorcida, condenar com base em indícios e presunções, deixando a sociedade brasileira numa constante insegurança jurídica?

Só o tempo poderá nos dar uma resposta. Mas algumas inconstitucionalidades presentes no julgamento da Ação Penal 470 são gritantemente identificáveis, como a negativa do desmembramento da ação para que os réus não detentores de prerrogativas de função pudessem ser julgados em primeira instância, o que acabou resultando na supressão dos seus direitos fundamentais do juiz natural, da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição, entre outros.

É apenas sobre esses aspectos eminentemente constitucionais, e mais detidamente de hermenêutica constitucional, que pretendemos nos debruçar no presente trabalho, não sendo objeto de nosso estudo o direito penal ou o direito processual penal e, portanto, não nos caberá a análise do objeto principal da Ação Penal nº 470/MG.

O nosso foco de estudo serão as questões de ordem apresentadas tanto na fase de inquérito4 (Inquérito 2245, autuado em 26/07/2005) como durante a tramitação da Ação Penal 4705, para que processo fosse desmembrado de modo que os acusados que não gozassem de prerrogativa de função pudessem ser julgados pelo seu juiz natural, em primeiro grau. Pelas breves linhas até aqui escritas nem é preciso dizer que as questões de ordem foram rejeitadas pela Corte Suprema, que acabou por chamar para si o julgamento de todos os acusados, a maioria deles não detentores de prerrogativas de função.

4 Em 26 de julho de 2005, o Inquérito 2245 é autuado no STF após ser remetido pela Justiça Federal de Minas Gerais em razão da presença de investigados que gozam de foro por prerrogativa de função. Os autos chegaram ao STF como PET 3469, em 20 de julho de 2005.

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Interessante é que processos semelhantes, mas envolvendo acusados de outros partidos políticos, foram desmembrados: o “mensalão mineiro tucano” foi desmembrado, o mensalão do DEM foi desmembrado, e até o processo do ex-senador Demóstenes Torres foi desmembrado, para o que o ex-ex-senador fosse julgado em primeiro grau. O “mensalão petista”, porém, não foi desmembrado.

Sobre essa desigualdade escandalosa de tratamento conferida pelo Supremo Tribunal Federal a acusados ligados a diversas vertentes políticas, no entanto, a maior parte da imprensa se calou. Ignora o que a maioria da comunidade jurídica já sentiu: a total insegurança que a politização e a falta de freios da Corte Suprema pode gerar nos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros e em nosso próprio sistema jurisdicional. Se hoje foram eles, amanhã seremos nós.

No decorrer dos próximos capítulos pretendemos demonstrar o quanto a imparcialidade e a obediência aos princípios e diretrizes constitucionais e hermenêuticos são importantes para um julgamento justo, sendo o papel principal do intérprete e aplicador do direito, em primeiro lugar, fazer prevalecer o texto constitucional. O limite de sua atuação é sempre o texto da lei. Sem esses limites à atuação do juiz-intérprete, o Poder Judiciário se transforma num poder sem freios e uma ameaça à segurança jurídica de seus jurisdicionados.

Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes faz um alerta sobre o populismo penal midiático praticado pelos juízes, que acaba oprimindo o acusado, completamente tolhido de seus direitos de defesa e de um processo justo, para satisfazer a pressão da mídia:

―Na medida em que as instituições oficiais foram se fragilizando, a mídia foi ganhando mais força e, com isso, exercendo seu poder de pressão, especialmente sobre os operadores jurídicos, com destaque para os juízes, dificultando, assim, a análise isenta e imparcial de cada caso, consoante os ditames da justiça.

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vitimizador (opressor) e vitimizado (oprimido) ao mesmo tempo. É opressor diante do acusado que não vê reconhecidos seus direitos e isso ocorre porque se encontra oprimido pela pressão midiática.

Muitos juízes estão sendo estigmatizados pelo populismo penal midiático e isso coloca em risco, cada vez mais, a garantia da justiça imparcial e independente. O risco sério é a célebre frase ―Há juízes em Berlim‖ (que glorifica a função da magistratura de tutela dos direitos e garantias das pessoas frente aos poderes constituídos) transformar-se num vazio infinito com a consequente regressão da sociedade para a era selvagem da lei do mais forte, onde ganha não a justiça, sim, quem tem maior poder de pressão‖6.

Destarte, apesar de ser um tanto quanto inusitada a utilização de um caso concreto como ponto de partida para uma dissertação de mestrado, acreditamos que, dada a relevância e excepcionalidade do julgamento da Ação Penal 470, e dos diversos institutos constitucionais seja expressa ou implicitamente ali colocados em jogo, essa metodologia é a mais adequada para se chegar ao objetivo final de nossa pesquisa: demonstrar as falhas do foro por prerrogativa de função à luz do devido processo legal e da Constituição de 1988, bem como indicar qual seria, a nosso ver, a melhor interpretação do artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” de nossa Carta Magna.

Todos os capítulos do presente trabalho, portanto, foram construídos tendo em vista o instituto da competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar infrações penais e a melhor interpretação que se pode extrair da letra da Constituição para aplica-la aos casos concretos, em especial a melhor interpretação que se poderia ter dado às questões de ordem suscitadas no julgamento da Ação Penal nº 470/MG.

Assim, antes de passar aos próximos capítulos, importante se faz que o leitor, em primeiro lugar, conheça o peculiar instituto da competência originária por prerrogativa de função, expressamente estabelecida pelo artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c”, da Constituição Federal de 1988, in verbis:

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―Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente: (...)

b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;

c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;7(...)‖.

A competência por prerrogativa de foro ou de função está taxativamente prevista nos dispositivos acima transcritos e deve ser atribuída não em razão da pessoa, mas sim em razão do cargo ou função por ela exercida no momento da instauração do processo penal. É o que explica José Frederico Marques:

―Não se trata de privilégio de foro, porque a competência, no caso, não se estabelece por ‗amor aos indivíduos‘, e sim em razão do ‗caráter, cargos ou funções que eles exercem‘, como ensinava J.A.Pimenta Bueno. Ela está baseada na ‗utilidade pública e no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência do Tribunal Superior‘ – como o disse, em 1874, o Supremo Tribunal de Justiça (Paula Pessoa, Código de Processo Criminal, p. 195, nota 1905), o que, sob outra forma, repetiu, mais tarde, o insigne Costa Manso, ao reclamar essa competência originária para os secretários de Estado8‖.

Note-se que a competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar infrações penais comuns é vista como uma proteção à função exercida pela autoridade, que pode ser um deputado, um senador ou um presidente da República, por exemplo, todos figuras políticas e portanto sempre polêmicas, que, enquanto titulares dessas funções, necessitariam de um mínimo de sossego para continuar desempenhando-as normalmente. A Corte Suprema, em tese, seria mais imparcial no julgamento e não sucumbiria a pressões políticas ou da opinião pública. No caso da Ação Penal nº 470/MG, porém, parece-nos que o efeito foi exatamente o contrário. Nunca se viu um tribunal tão influenciado e tão disposto a interagir com a mídia como se comportou o Supremo Tribunal Federal nesse caso específico.

7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 05/06/2013.

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Fernando da Costa Tourinho, no mesmo sentido, esclarece que a competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar infrações penais se dá em atenção a certas funções ou cargos de relevância para o Estado, que merecem uma proteção especial que só pode ser dada pelos tribunais, em tese mais isentos de pressões externas do que um juízo singular:

―[...] há determinados pessoas, independente de condições de fortuna, posição social, raça ou credo, que exercem, no cenário jurídico político da nossa terra, funções relevantes e, em atenção a essas funções, gozam elas de foro especial, isto é, não são processadas e julgadas, como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos Tribunais‖9.

Nessa mesma esteira, Julio Fabbrini Mirabete esclarece que a competência por prerrogativa de função, ou ratione personae, visa proteger determinadas funções públicas de eventuais pressões externas infensas ao poder político de que se revestem, o que é atingível pelo princípio da maior independência dos tribunais:

―(...) a competência também pode ser determinada pela prerrogativa de função. Trata-se de competência ratione personae (em razão da pessoa), ditada pela função da pessoa, bem como a dignidade do cargo exercido e não do indivíduo que a merece. Há pessoas que exercem cargos e funções de especial relevância para o Estado, devendo ser julgadas por órgãos superiores da justiça, como medida de utilidade pública. A competência, nesse caso, é fundada no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência dos tribunais10‖.

A competência por prerrogativa de função, portanto, é ditada em razão do cargo exercido e não em razão da pessoa que o exerce. Tanto é assim que, mesmo que a acusação se refira a crime praticado no exercício da função, caso a pessoa não mais a exerça na instauração do processo penal, a competência do Supremo Tribunal Federal se exaure e o processo será remetido ao juiz de primeiro grau. Os processos de ex-parlamentares, ex-autoridades, regra geral, são remetidos à primeira instância.

9 TOURINHO, Fernando da Costa Filho. Código de Processo Penal Comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1.

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É que se trata de uma competência excepcional e, portanto, deve ser interpretada restritivamente, de forma que apenas devem permanecer em julgamento perante o Supremo Tribunal Federal os denunciados que gozam de prerrogativa de função, não sendo possível nem a aplicação dos institutos de conexão ou continência a corréus que nunca foram titulares de qualquer prerrogativa de função, nem a permanência de ex-detentores dessas prerrogativas sob o julgamento originário da Corte Suprema.

Qualquer pesquisa rápida na jurisprudência disponível no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal já revela como são reiteradas e majoritárias as decisões pelo desmembramento doa processos, para se manter sob a égide da Corte Suprema apenas os detentores de prerrogativas de função, remetendo-se os demais ao seu juiz natural em primeiro grau.

Isso ocorre porque a competência por prerrogativa de função é uma exceção expressa a direitos fundamentais essenciais ao devido processo legal, dentre os quais destacamos o juiz natural e o duplo grau de jurisdição. Quem é julgado originariamente pelo Supremo Tribunal Federal fica impossibilitado de recorrer a uma instância superior, ou seja, é julgado em instância única.

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CAPÍTULO 1 COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

No presente capítulo pretendemos situar o papel dos princípios constitucionais, notadamente as garantias fundamentais, no contexto da Constituição Federal de 1988, de modo a deixar clara a importância e força normativa que tais garantias devem ter na concretização do direito pelo intérprete constitucional.

Sendo assim, o artigo 102 da Constituição Federal, norma-disposição que trata da competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar, não pode se furtar ao cumprimento dos princípios constitucionais que passaremos a abordar mais adiante.

Conforme estudaremos melhor no capítulo que trata da Hermenêutica Constitucional, embora todas as normas do texto constitucional possuam o mesmo nível hierárquico, ainda assim é possível identificar, entre elas, algumas com maior carga valorativa, que acabam se espraiando sobre todas as outras. Essas são as chamadas normas-princípio, que abrigam um alto grau de abstração e generalidade, bem como um conteúdo axiológico muito mais acentuado que o das demais normas constitucionais, as normas-disposições, o que faz com que as normas-princípio funcionem como diretrizes, vetores, normas-guia de toda a Constituição.

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Luís Roberto Barroso11 classifica os princípios constitucionais em três ordens, dentre as quais nos interessam os princípios gerais, que englobam, por exemplo, o princípio da liberdade e todos os princípios dele decorrentes, expressos no artigo 5º da Constituição Federal, ou seja, são os direitos e garantias fundamentais, que servem como vetores de todo o sistema jurídico brasileiro.

1.1. Constituição e Poder Constituinte no Brasil

A fim de que se obtenha um desenvolvimento gradativo do estudo proposto, necessária se faz a análise de alguns conceitos constitucionais básicos, a começar pela resposta à seguinte pergunta: o que é Constituição?

O fato é que essa é uma pergunta difícil de se responder, uma vez que o termo Constituição presta-se a mais de um sentido, de acordo com o ângulo pelo qual é estudado, havendo diversas definições corretas, porém distintas.

Celso Ribeiro Bastos, no entanto, entende que a Constituição possui um núcleo ou um centro que é comum a todos os conceitos, apesar de todas as diferenças existentes entre eles. Em seus dizeres, “num sentido muito amplo,

Constituição significa a maneira de ser de qualquer coisa, sua particular estrutura12”.

José Afonso da Silva13, também conhecedor da multiplicidade de sentidos que podem ser dados à palavra constituição, observa que:

A constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas

11 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 147-50.

12 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. p. 42

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garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado”.

Como já dito, há diversos ângulos sob os quais pode ser vislumbrado o conceito de Constituição. Sob o ângulo material, por exemplo, Ferdinand Lassale observa a necessidade de a Constituição ser o reflexo das forças sociais que estruturam o poder:

―Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social (...)14‖.

Entretanto, dentre todas as conceituações de Constituição, a mais relevante para o presente estudo e também para o direito brasileiro é aquela calcada no direito formal, pois é na Constituição formal que se evidencia de forma mais clara a superioridade das normas constitucionais sobre as normas infraconstitucionais.

Constituição, em sentido formal, é o conjunto de normas jurídicas que se distinguem das normas não constitucionais em razão de serem produzidas por um processo legislativo mais árduo e mais solene, instituindo a maneira pela qual as coisas devem ser.

Nos dizeres de Celso Bastos15:

―(...) a Constituição formal não procura apanhar a realidade do comportamento da sociedade, como a material, mas leva em conta tão somente a existência de um texto aprovado pela força soberana do Estado e que lhe confere a estrutura e define os direitos fundamentais dos cidadãos‖.

Em consequência dessa submissão a um processo legislativo mais dificultoso para ser formada, a Constituição passa a ser a Lei Fundamental do país

14 LASSALE, Ferdinand. Que é uma Constituição? 2ª ed. São Paulo: Kairós Livraria Editora, 1985. p. 61.

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e, beneficiada de um regime jurídico diferente, ocupa uma posição de superioridade e, até melhor, supremacia sobre as demais normas do ordenamento jurídico.

Nossa Teoria Geral do Direito segue a linha kelseniana no entendimento de que a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, mas sim uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas, em que uma norma é produzida de acordo com outra norma, que por sua vez busca seu fundamento de validade em outra norma superior, e assim por diante.

Em nosso caso, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ocupa o topo da hierarquia de normas escalonadas a que Kelsen se refere.

Em outras palavras, se imaginarmos que todas as normas componentes de um ordenamento jurídico encontram-se dispostas segundo uma hierarquia e formando uma espécie de pirâmide, a Constituição Federal ocupará o topo dessa pirâmide legal, sendo todas as demais normas não-constitucionais a ela subordinadas.

Desta feita, todas as normas que não forem constitucionais serão infraconstitucionais e, para garantir sua validade e eficácia, deverão obedecer aos preceitos constitucionais. Em caso de conflito entre normas infraconstitucionais e constitucionais, estas últimas sempre prevalecerão.

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Quando se diz que a Constituição advém de um processo legislativo mais dificultoso, está-se fazendo referência ao Poder Constituinte Originário, anterior à própria formação do direito.

Essa ideia de Poder Constituinte surgiu na época da Revolução Francesa, através de um pequeno panfleto escrito por Emmanuel Sieyès, denominado “Que é o terceiro Estado?”.

Sieyès desenvolveu uma teoria segundo a qual o Poder Constituinte é um poder de direito que não encontra limites em direito positivo anterior, mas se fundamenta apenas no direito natural, existente antes da nação e acima dela. Em outras palavras, Sieyès sustenta a tese jusnaturalista de que, além do direito positivo, há um direito superior decorrente da própria natureza humana, que precede a formação do Estado. Desse direito superior é que decorrerá a formação da Constituição e por isso ela também será soberana e inquestionável.

Carl Schmitt, porém, não acredita que a validade de uma Constituição se apoie na justiça de suas normas, como os seguidores de Sieyès, mas sim na decisão política que lhe dá existência, pois o Poder Constituinte, segundo esse grande pensador jurídico, “é a vontade política cuja força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência

política, determinando assim a existência da unidade política como um todo16”.

De qualquer forma, apesar de todas as teorias em torno do Poder Constituinte, uma coisa é certa: o Poder Constituinte é aquele que tem legitimidade para gerar uma constituição. E, no Brasil, atualmente, a titularidade desse poder pertence ao povo.

A doutrina distingue o Poder Constituinte em Originário e Derivado. O primeiro é aquele que inaugura uma nova ordem jurídica, revogando a Constituição

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anterior e os dispositivos infraconstitucionais anteriormente produzidos e incompatíveis com a nova Constituição. É desse poder que temos falado até agora. Já o Poder Constituinte Derivado é instituído na Constituição a fim de proceder à sua reforma, devendo, porém, obedecer a limites impostos pela própria Constituição.

A Constituição Federal de 1988 é rígida e, portanto, só poderá ser reformada pelo Poder Constituinte Derivado. Este, diferentemente do Poder Constituinte Originário, está instituído na própria Constituição, possuindo uma competência jurídica que se sujeita a limitações.

Essas limitações materiais à reforma da Constituição por via de emendas ou por via de interpretações demasiadamente ampliativas são o maior objeto de nosso estudo, principalmente quando tratamos de cláusulas pétreas.

Cláusulas pétreas são os dispositivos constitucionais impassíveis de reforma, dada a sua peculiar importância ao interesse nacional. O §4º do artigo 60 da nossa Lei Fundamental dispõe, in verbis:

―Art. 60 (...)

§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado;

II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes;

IV – os direitos e garantias individuais17

‖.

Por ora importa ressaltar que os incisos III e IV acima transcritos, que dispõem expressamente a impossibilidade de reforma de qualquer dispositivo constitucional que verse sobre a separação dos poderes e sobre os direitos e garantias individuais, será de grande importância no desenvolvimento de nosso estudo.

17 Constituição Federal de 1988, Acesso em 05/06/2013,

(22)

É importante verificar que as cláusulas pétreas são imutáveis porque são consideradas o que há de mais importante e essencial pela Constituição.

Destarte, se alguma lei infraconstitucional vier a conflitar com quaisquer dessas cláusulas pétreas, se fosse possível graduar a gravidade da inconstitucionalidade, essa lei seria a mais inconstitucional de todas, pois estaria ferindo princípios essenciais à sociedade, os mais privilegiados pelo poder soberano que criou originariamente nossa Carta Magna.

Além disso, na ponderação da aplicabilidade das normas sobre os casos concretos, os princípios contemplados como direitos e garantias fundamentais e como cláusulas pétreas pela Carta Magna de 1988 devem ser privilegiados.

É o que demonstraremos a seguir: princípios como o do juiz natural e do duplo grau de jurisdição não podem ser relativizados por motivos de praticidade para a administração judiciária, ou em prol de eventual celeridade processual, principalmente quando o bem jurídico em risco é a liberdade do homem, outra garantia constitucional protegida como cláusula pétrea, e todos eles direitos fundamentais de primeira geração.

1.2. Direitos e Garantias Fundamentais

(23)

Dessarte, a Revolução Francesa ganhou caráter universal e, conforme bem salienta o professor Dalmo de Abreu Dallari18, não restam dúvidas que a influência dessa revolução na vida constitucional (tanto no Ocidente como no Oriente) representou um considerável progresso na história da asseveração dos valores fundamentais da pessoa humana. No entanto, pondera Dallari, sendo ela um produto do século XVIII, por evidente que seja, seu cunho é nitidamente individualista, subordinando a vida social ao indivíduo e arrogando ao Estado a finalidade de preservação dos direitos individuais.

Na realidade, os direitos e garantias fundamentais têm origem no direito natural mais puro, anterior ao positivismo. Nos dizeres de Canotilho19:

―As concepções cristãs medievais, especialmente o direito natural tomista, ao distinguir entre lex divina, lex natura e lex positiva, abriram o caminho para a necessidade de submeter o direito positivo às normas jurídicas naturais, fundadas na própria natureza dos homens. Mas como era a consciência humana que possibilitava ao homem aquilatar da congruência do direito positivo com o direito divino, colocava-se sempre o problema do conhecimento das leis justas e das entidades que, para além da consciência individual, sujeita a erros, captavam a conformidade da lex positiva com a lex divina‖.

De acordo ainda com Canotilho, as expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais” são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente.

Os direitos do homem surgiriam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, atemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.

18 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 2ª ed. São Paulo, Editora Saraiva, 1998. p. 215

(24)

Portanto, adotando-se a visão de Canotilho, pode-se dizer que os direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição Federal são aqueles que, decorrentes também de um direito natural, foram escolhidos para serem realmente inseridos na ordem jurídica concreta, através da ação de um Poder Constituinte cujo titular é o povo brasileiro.

Hodiernamente nossa Carta Magna reconhece e assegura DIREITOS FUNDAMENTAIS explicitamente em seu artigo 5º. Os direitos fundamentais estão inseridos dentro daquilo que a soberania popular quis denominar de princípios constitucionais fundamentais, que são os princípios que guardam os valores fundamentais da nossa ordem jurídica.

É possível afirmar que sem os direitos fundamentais a Constituição nada mais seria do que um aglomerado de normas que somente teriam em comum o fato de estarem insertas num mesmo texto legal, pois, atualmente, o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais do homem encontram-se na base das Constituições modernas democráticas.

Assim, considerando-se que os direitos fundamentais originam-se do direito natural mais puro, que são essenciais à manutenção da ordem jurídica de um Estado, entre outros aspectos essenciais, devem ser eles duplamente protegidos e respeitados.

(25)

Os direitos fundamentais, porém, não se restringem apenas àqueles expressos no texto da Constituição, como bem esclarece José Afonso da Silva ao tratar do §2º20 do artigo 5º de nossa Carta Magna:

―Levaremos em conta também a circunstância de a Constituição mesma admitir outros direitos e garantias individuais não enumerados, quando, no §2º do art. 5º, declara que os direitos e garantias previstos neste artigo não excluem outros decorrentes dos princípios e do regime adotado pela Constituição e dos tratados internacionais em que a República Federativa

do Brasil seja parte21‖.

Destarte, os direitos fundamentais possuem natureza materialmente constitucional, mesmo que não estejam expressamente previstos no texto da Constituição, mas em tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte.

1.2.1. Classificação dos Direitos Fundamentais

A doutrina tradicional divide os direitos fundamentais em direitos de primeira, segunda e terceira gerações (ou dimensões).

Os direitos fundamentais de primeira geração concernem aos direitos civis e políticos do indivíduo, constituindo-se em uma proteção da esfera individual das pessoas (direito de ir e vir, de pensamento, de liberdade, de igualdade, de expressão, dentre outros) frente à opressão do Estado, que deve se quedar numa postura de não intervenção ou não violação desses direitos.

Herança do pensamento liberal do século XVIII, esses direitos surgiram como garantias negativas, de defesa da esfera privada dos indivíduos frente ao Estado.

20

―Art. 5º. § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte‖. (Constituição Federal de 1988,

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 05/05/2013) 21

(26)

Os direitos fundamentais de segunda geração são os socioeconômicos e culturais, pois contemplam a interação do indivíduo com o todo, isto é, o contato da esfera individual com a da comunidade.

Por fim, os direitos fundamentais de terceira geração são aqueles direitos de titularidade coletiva que se projetam tanto no plano interno do Estado como internacionalmente (direito à paz, direito ao meio-ambiente etc).

Alguns doutrinadores sustentam que nem todos os direitos fundamentais são cláusulas pétreas, existindo uma hierarquia entre eles. Entretanto, até mesmo os defensores dessa corrente são unânimes com relação à irretocabilidade dos direitos fundamentais de primeira geração, o que é referendado também pela jurisprudência dominante.

Ademais, muitos defendem que a nossa Constituição de 1988 tem uma tendência ideológica de proteção superconstitucional exclusiva desses direitos de primeira geração, que incluem direitos civis referentes à proteção da esfera privada contra a intervenção do Estado.

Oscar Vilhena Vieira, saindo das limitações dessa classificação, prefere compreender os direitos fundamentais enquanto expressão daquela esfera de proteção indispensável à realização da dignidade humana:

―Assim, aqueles direitos que possam ser moralmente reivindicados e racionalmente justificados, enquanto elementos essenciais à proteção da dignidade humana e que habilitem a democracia, como procedimento para a tomada de decisão entre seres racionais, iguais e livres, devem ser protegidos como superconstitucionais – estejam eles positivados por intermédio de normas constitucionais ou decorram dos princípios adotados pela Constituição ou, ainda, de tratados de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, o que é expressamente admitido pelo §2º do art. 5º da Constituição22‖.

(27)

Destarte, todos os direitos fundamentais que vamos tratar a seguir devem ser protegidos como superconstitucionais, desde a liberdade e a igualdade, até o direito ao duplo grau de jurisdição.

1.3. Liberdade da pessoa física

A liberdade é um direito fundamental do ser humano em todas as suas acepções, ou seja, tanto como liberdade interna (liberdade subjetiva, psicológica ou moral) como liberdade externa (liberdade objetiva ou liberdade de fazer, de atuar).

Se de um lado a liberdade externa, mais especificamente a liberdade da pessoa física (de locomoção e circulação) é a que realmente interessa aos propósitos do presente trabalho, importante se faz, em primeiro lugar, chegar a uma breve definição do princípio.

Voltaire tratava a liberdade como um poder, o poder de se fazer o que se quer:

―Ser verdadeiramente livre é poder. Quando posso fazer o que quero, eis minha liberdade; mas quero necessariamente aquilo que quero, pois de outro modo eu quereria sem razão, sem causa, o que é impossível. Minha liberdade consiste em andar quando quero andar, desde que não sofra de gota‖23

.

Kant, por sua vez, não conseguia dissociar a liberdade da ideia de igualdade. Ao tratar a liberdade como essência do homem, acreditava que ela só poderia ser plena se garantida de forma igualitária a todos e, dentro de um contexto de igualdade, as leis aplicadas sem distinções ou critérios arbitrários configurariam uma expressão de uma sociedade livre. É o que se extrai das palavras de Francisca Pamplona:

"Kant preocupa-se conscientemente, em conceber o modo de realizar a liberdade não apenas no plano exclusivamente individual, mas no convívio

(28)

humano, no contexto da sociedade humana. Para tanto, postulou que a liberdade pertencendo à essência do homem, deve existir em todos igualmente. Segundo esse filósofo, a liberdade só pode ser garantida na sociedade civil se a limitação imposta ao arbítrio de cada um pelo pacto social for igual para todos. De fato, a igualdade exige uma reciprocidade incondicionada no tratamento com o outro, explicitando, não me é lícito tratar alguém segundo certo princípio e, ao mesmo tempo, exigir que esse alguém me trate por princípio diverso. O homem não pode considerar-se como fim em si mesmo, e desconsiderar essa mesma condição em outrem, daí se conclui que as máximas de uma vontade devem ser também máximas de uma vontade universal, ou seja, as leis criadas para si mesmo, pela atuação de uma vontade individual devem coincidir com as leis criadas para a sociedade, pela atuação de uma vontade universal. Assim, o exercício da liberdade de cada um compatibilizar-se-ia com o da liberdade de todos os demais, segundo um princípio de igualdade, isso exatamente por ser o direito de liberdade, inato e igual para todo ser racional24

".

Montesquieu, numa análise mais política do conceito, definiu liberdade como o direito de se fazer tudo o que as leis permitem:

"Não há palavra que tenha recebido as mais diferentes significações e que, de tantas maneiras, tenha impressionado o espírito como a palavra liberdade. Uns tomaram-na pela facilidade em depor aquele a quem outorgaram um poder tirânico; outros, pela facilidade de eleger aquele a quem deveriam obedecer; outros pelo direito de se armar, e de exercer a violência; estes, pelo privilégio de só serem governados por um homem de sua nação, ou por suas próprias leis. Certo povo considerou, por muito tempo, como liberdade o hábito de usar barbas compridas".

(...)

―É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste nisso. Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar. Deve-se ter sempre em mente o que é independência e o que é liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros teriam tal poder25‖.

De modo um pouco diverso do preceituado por Montesquieu, segundo quem liberdade seria poder fazer tudo o que as leis permitissem, nossa Constituição de 1988 adotou a liberdade como um verdadeiro princípio: princípio de que todos têm a liberdade de fazer e de não fazer o que quiserem, desde que não existam leis em contrário. Esse princípio ligado à liberdade de fazer em geral consta do artigo 5º,

24 PAMPLONA, Francisca Edineusa. A Dignidade da Pessoa Humana na Ordem Constitucional Democrática. Dissertação apresentada na Universidade Federal do Ceará, ano 2002. p. 10-11

(29)

inciso II do texto constitucional: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei‖.

No mesmo sentido, o constitucionalista Luiz Pinto Ferreira definiu liberdade como ―o poder do indivíduo de exercer suas atividades física, moral, econômica e intelectual até o limite que o Estado autoriza, a fim de permitir o exercício da liberdade alheia. A liberdade de um finda quando começa a liberdade do outro‖26.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) contemplou a garantia de liberdade a todos, em seu artigo 7º, item 1:

"Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoal27".

Em verdade, a liberdade está intimamente ligada à finalidade de uma Constituição em um Estado Democrático de Direito. Segundo Jorge Miranda, o Estado constitucional é aquele que entrega à Constituição a salvaguarda da liberdade de seus cidadãos:

―A ideia de Constituição é de uma garantia e, ainda mais, de uma direção da garantia. Para o constitucionalismo, o fim está na proteção que se conquista em favor dos indivíduos, dos homens cidadãos, e a Constituição não passa de um meio para o atingir. O Estado constitucional é o que entrega à Constituição o prosseguir a salvaguarda da liberdade e dos direitos dos cidadãos, depositando as virtualidades de melhoramento na observância dos seus preceitos, por ela ser a primeira garantia desses direitos28

‖.

A Constituição Brasileira de 1988 tem a liberdade como um de seus principais objetivos, fazendo menção a ela desde o seu preâmbulo até o caput do artigo 5º e vários de seus incisos:

―Preâmbulo: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a

26 FERREIRA, Luiz Pinto.Manual de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p.70. 27

http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm, Acesso em 07/07/2013.

(30)

assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL‖.

―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

(...)

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...)

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

(...)

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

(...)

XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

(...)

XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

(...)

XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

(...)

XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

(...)

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

(...)

LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;

(...)

LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;

(...)

(31)

constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;29

‖.

A ampla proteção constitucional às liberdades individuais encontra-se também em outros artigos da nossa Carta Magna, como o artigo 206, inciso II, que trata da liberdade de aprender e ensinar ou o artigo 227, que trata do direito à liberdade da criança e do adolescente.

Tanto cuidado com o direito à liberdade, em nosso ordenamento jurídico ocorre porque, dentro da classificação dos direitos humanos de Lafer, o direito à liberdade é um direito de primeira geração, portanto, merecedor de uma proteção maior, conforme Bonavides esclarece:

―Os direitos de primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente‖30.

Para José Afonso da Silva, a liberdade é a expressão mais importante dos direitos individuais e valor que deve ser protegido pela democracia, como condição de sua própria existência:

―Assim, a democracia – governo do povo, pelo povo e para o povo – aponta para a realização dos direitos políticos, que apontam para a realização dos direitos econômicos e sociais, que garantem a realização dos direitos individuais, de que a liberdade é a expressão mais importante31

‖.

No direito positivo, a liberdade de fazer ou de atuar é a que ganha maior destaque, sendo possível destacar cinco formas dessa liberdade: liberdade da pessoa física, liberdade de pensamento, liberdade de expressão coletiva, liberdade de ação profissional e liberdade de conteúdo econômico e social.

29 Constituição Federal de 1988, Acesso em 05/06/2013,

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

30 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24.ed. SÃO PAULO: Malheiros, 2009, p. 517

(32)

A liberdade da pessoa física (liberdade de locomoção e de circulação), no rol de direitos fundamentais de primeira geração, ao lado do direito à vida, configura um dos direitos mais primitivos do homem, posto que decorrente de sua própria natureza:

―A liberdade da pessoa física (também impropriamente chamada liberdade individual, já que todas o são) constitui a primeira forma de liberdade que o homem teve que conquistar. Ela se opõe ao estado de escravidão e de prisão. A revolta de Espártaco tinha por objetivo da conquista dessa liberdade elementar do ser humano. A Guerra dos Palmares durante cem anos foi a mais expressiva batalha dos negros brasileiros contra o seu cativeiro.

Resta, porém, a outra forma de oposição à liberdade da pessoa física, que é a detenção, a prisão ou qualquer impedimento à locomoção da pessoa, inclusive a doença32

‖.

Não se pode restringir a liberdade de um homem a menos que seja estritamente necessário, posto que se trata de um direito fundamental natural e essencial desde os primórdios da sociedade. Eis porque se deve observar rigorosamente o cumprimento dos direitos fundamentais, sobretudo do devido processo legal e do duplo grau de jurisdição, em processos judiciais que envolverem potencial restrição à liberdade de um cidadão:

―As restrições impostas à liberdade pessoal devem ser somente as necessárias à manutenção do convívio pacífico e harmonioso dos indivíduos, preservando-a sempre que possível, mas apenas a ela como também e sobretudo todos os direitos inerentes à personalidade, pois o homem tem que ter preservada sua vocação natural para decidir sobre seus rumos e sobre si mesmo, afirmando-se na sociedade em que vive33

‖.

Se no texto constitucional não existirem salvaguardas positivas de proteção às liberdades individuais, de nada adiantará a simples previsão de proteção a essas liberdades:

―É que a liberdade da pessoa física, para ter efetividade, precisa de garantias contra a prisão, a detenção e a penalização arbitrárias, mediante mecanismos constitucionais denominados, em conjunto, direito de segurança. Essas regras de segurança pessoal exigem que as medidas tomadas contra os indivíduos

32 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 218-219.

(33)

sejam conformes com o direito, isto é, anterior e regularmente estabelecidas, vale dizer, atendam ao princípio da legalidade, ao devido processo legal34

‖.

O poder punitivo do Estado deve sempre se pautar pela intervenção mínima aos direitos fundamentais do cidadão, principalmente quando se trata de restringir sua liberdade, como explica Mariângela Gomes:

―(...) para que as possibilidades de intervenção estatal na esfera de liberdade dos indivíduos restem efetivamente limitadas, não basta a existência de limites apenas formais, mas impõe-se uma garantia material perante o risco de que a maioria parlamentar escolha criminalizar de forma antiliberal. E neste sentido, então, que o princípio da proporcionalidade assume especial papel de garantia, de caráter negativo, cumprindo a finalidade de frear a degeneração do poder punitivo, impedindo-o de expandir-se ilimitadamente35

‖.

Como se vê, a liberdade em acepção ampla e, mais especificamente, a liberdade da pessoa física, é um direito fundamental amplamente protegido tanto pelo nosso sistema constitucional como pelos demais Estados Democráticos de Direito desde o início da história da proteção dos direitos humanos no mundo. Em sendo assim, qualquer limitação a esse direito fundamental apenas será possível se houver expressa previsão legal e, mesmo assim, não poderá em hipótese alguma ser dissociada do devido processo legal com todas as cautelas possíveis.

É o que dispõe o artigo 5º da nossa Constituição, em seu inciso LIV: ―ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal36.

Nesse contexto, nitidamente injustificável qualquer interpretação ampliativa da competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar infrações penais, que, mesmo sendo excepcional e taxativa para algumas pessoas titulares de determinados cargos ou funções, ainda assim poderia ser questionada diante da supressão do devido processo legal, já que inviabiliza o duplo grau de jurisdição.

34 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 240.

35 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 74-75.

36 Constituição Federal de 1988, Acesso em 05/06/2013,

(34)

1.4. Devido Processo Legal: Ampla Defesa e Contraditório

O princípio do devido processo legal tem suas origens na Inglaterra da Baixa Idade Média, quando se viu registrado em um dos primeiros instrumentos históricos relevantes para a evolução do reconhecimento dos direitos humanos: a Magna Carta de 1215 (Magna Charta Libertatum).

Carlos Roberto Siqueira Castro sintetiza a inserção do devido processo legal na Magna Carta como suprema garantia das liberdades fundamentais do indivíduo e da coletividade em face do Poder Público, in verbis:

―Ao despontar na Idade Média, através da Magna Carta conquistada pelos barões feudais saxônicos junto ao rei JOÃO ―SEM TERRA‖, no limiar do Século XIII, e embora inicialmente concebido como simples limitações às ação reais, estava esse instituto fadado a tornar-se a suprema garantia das liberdades fundamentais do indivíduo e da coletividade em face do Poder Público. Aqueles revoltados de alta linhagem que, sob a liderança do arcebispo de Canterbury, Stephen Langton, conquistaram a aposição do selo real naquela autêntica declaração dos direitos da nobreza inglesa frente à Coroa, jamais poderiam cogitar que nesse dia 15 de junho do ano de 1215 se estava lançando aos olhos da história da civilização a sementeira de princípios imorredouros,

como o da ―conformidade com as leis‖, o do ―juiz natural‖,o da ―legalidade

tributária‖ e o instituto do habeas corpus37

‖. (grifos nossos)

Em uma época em que a monarquia regia até então soberana e sem limitações, a instituição de uma nova legislação prevendo que os homens não poderiam ser privados de seus bens e da sua liberdade sem que houvesse um processo regular e que nele fossem julgados pelos seus pares, foi uma grande vitória para os direitos humanos e um embrião do que viria a ser o princípio do devido processo legal, como se verifica no artigo 39 da Magna Carta abaixo traduzido:

―39 – Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou despojado, de algum modo, de sua condição; nem procederemos com força contra ele, ou mandaremos outros fazê-lo, a não ser mediante o legítimo julgamento de seus iguais e de acordo com a lei da terra‖.

(35)

O que se chamou de “lei da terra” na Magna Carta de 1215, veio a ser consagrado como “devido processo legal” (due process of law) no reinado de Eduardo III, através da lei inglesa de 135438.

No direito norte-americano, o princípio do devido processo legal vinha sendo contemplado nos Estados Americanos desde a Declaração dos Direitos da Virgínia, de 1776, antes mesmo da promulgação da Constituição Americana de 1787, e foi explicitamente contemplado na Quinta Emenda da Carta de Direitos norte-americana (Bill of Rights), como se verifica na tradução abaixo, com os nossos grifos:

Ninguém poderá ser detido para responder por crime capital, ou por outra razão infame, salvo por denúncia ou acusação perante um grande júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá ser sujeito, por duas vezes, pelo mesmo crime, e ter sua vida ou integridade corporal postas em perigo; nem poderá ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo, nem poderá ser privado da vida, liberdade, ou propriedade, sem devido processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização‖. (grifos nossos)

Em 1868 entrou em vigor a Décima Quarta Emenda, que passou a ser chamada de cláusula do devido processo legal, nos seguintes termos:

―Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos e do Estado-membro onde residam. Nenhum Estado-membro poderá fazer ou aplicar nenhuma lei tendente a abolir os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privá-los da vida, liberdade, ou propriedade, sem o devido processo

38

(36)

legal; nem poderá denegar a nenhuma pessoa sob sua jurisdição igual proteção das leis39

‖. (grifos nossos)

Nos tempos atuais, nos Estados Democráticos de Direito de todo o mundo, o princípio do devido processo legal é tratado como direito fundamental de todos, o que pode ser observado pela simples leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 194840:

―Artigo IX

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo X

Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Artigo XI

1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso‖.

(grifos nossos)

Também pela leitura do Artigo 8º da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, ou Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, ratificada pelo Brasil em 1992, é possível verificar a proteção ao devido processo legal em toda a sua extensão41:

―Artigo 8º - Garantias judiciais

1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração

39 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de direito penal norte-americano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 269.

40 http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm

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