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A infância como arqueologia do futuro

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Academic year: 2021

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A infância como arqueologia do

futuro

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Resumo

Neste artigo se destaca a relevância do processo democrático para a realização dos direitos da criança apresentando a teoria da política como projeto no qual a democracia como auto-organização da resposta pública às necessidades de seus portadores, é boa para as crianças. Por outro lado, as crianças são boas para a democracia, pois o Estado como um ente mestiço, de cidadania plural pode acolher a diversidade e buscar construir uma aliança onde se possa encontrar uma nova maneira de interpretar ou administrar conflitos e refundar as instituições públicas com uma nova mensagem da esperança.

Palavras-chave:

democracia- direitos da criança-aliança

Resumen

Este artículo pone de relieve la importancia del proceso democrático para la realización de los derechos de los niños donde se presenta la teoría de la política como un proyecto en el que la democracia como la auto-organización de la respuesta pública a las necesidades de las poblaciones, es buena para los niños. Por otro lado, los niños son buenos para la democracia, una vez que el Estado como una entidad mestiza, de ciudadanía plural puede aceptar la diversidad y tratar de construir una alianza donde el mismo pueda encontrar una nueva manera de interpretar y manejar los conflictos y restablecer las instituciones públicas con un nuevo mensaje de esperanza.

Palabras clave: democracia, derechos del niño-alianza

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Palestras proferidas no Seminário Internacional "O direito e as crianças. Balanço e perspectivas das reformas legislativas", realizado em Buenos Aires entre os dias 21 e 24 de março de 1995 e organizado pelo Escritório de Cooperação da Embaixada da Itália, a Fundação Pibes Unidos e o Curso de Especialização em Problemáticas Infanto-Juvenis do Centro de Estudos Avançados da Universidade de Buenos Aires. Os materiais do seminário que integram estas palestras foram publicados com o mesmo título, com Maria del Carmen Bianchi como editora, em Buenos Aires no mesmo ano.

Prof. Alessandro Baratta1

1 Jurista e sociólogo italiano,

falecido em maio de 2002,

autor de inúmeras

publicações de referência na área da sociologia do Direito , em particular com uma

contribuição para a

sociocriminologia , o direito penal e o conceito de desvio.

Bara

tt

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Abstract

This article highlights the importance of the democratic process for the realization of children's rights by presenting the theory of politics as a project in which democracy as self-organization of the public response to the needs of its population, it is good for children. On the other hand, children are good for democracy, for the state as a hybrid entity, of plural citizenship can embrace diversity and seek to build an alliance where one can find a new way to interpret or manage conflict and reestablish public institutions with a new message of hope.

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Ao longo destes dias, pude constatar a enorme importância do processo democrático para a realização dos direitos da criança. Uma política baseada na participação da sociedade civil, não na tecnocracia, e orientada para a realização da democracia constitui um elemento essencial do processo de satisfação das necessidades e direitos da criança. Tudo isso tem uma expressão emblemática nas palavras do recentemente falecido diretor executivo do UNICEF, o Sr. James P. Grant: “A democracia é boa para as crianças”.

A democracia pressupõe um conceito de política que é oposto ao da tecnocracia. O conceito de política que prevalece nos dias atuais se refere à administração da estrutura econômica e social existente: a política como administração. Nesse caso, a dinâmica política está subordinada à estática das relações de produção e poder existentes por meio do uso do direito e da constituição formal no interesse, acima de tudo, da conservação da constituição material. Nessa função administrativa e estática, os sujeitos da política são os políticos, não os cidadãos. São eles, e não os cidadãos, que ocupam a esfera pública, reunindo na sua pessoa a representação formal dos cidadãos e da sociedade civil e material da elite do poder legal, ou até mesmo ilegal, do qual fazem parte em muitos casos. Esse conceito de política evoca o conceito da tecnocracia. Na verdade, pode-se contrapor ao conceito corrente de política como administração das relações de propriedade e poder na sociedade, um conceito alternativo de política como projeto de sociedade, como fez Pietro Barcelona, na Itália, em algumas das suas últimas obras. Nesse conceito de política como projeto, não se enfatiza tanto a estrutura econômica e jurídica da sociedade como forma formata, usando uma expressão latina, mas da sociedade como forma formans, retomando a metáfora de Castoriadis, autor grego que trabalha na França e enfatiza esse momento originário, criativo da sociedade como forma formans e não como reprodução do existente. Em ambos os casos, a sociedade poderia ser definida como o conjunto dos portadores de necessidades reais. É conveniente esclarecer que utilizo o termo “reais” para me referir a necessidades no contexto de uma teoria histórico-dinâmica das necessidades que poderiam ser satisfeitas em uma sociedade, de acordo com o grau de desenvolvimento da sua capacidade de produção material e ideal, necessidades que, não sendo satisfeitas, revelam a injustiça das relações sociais. Trata-se, na verdade, de um claro evidente de violência estrutural. Na comunidade mundial, a forma de organização das relações sociais que reproduz a política como administradora do Planeta Terra caracteriza-se pela dissonância entre as opções produtivas e distributivas e as necessidades. Ela se caracteriza pela destruição da riqueza produzida, ou até pela baixa natural na produção em decorrência de assimetrias ou injustiças na distribuição dos recursos materiais e intelectuais. O conceito tecnocrático da política corresponde à estratégia de conservação dessas relações sociais no interior das nações e na comunidade internacional. Por outro lado, na concepção dinâmica da política como projeto, as relações sociais e as estruturas econômicas existentes sempre passam por redefinições, revisões; são sempre vistas como contingentes, ou seja, reais, mas não necessárias. Ao mesmo

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tempo, o direito e a constituição formal podem também ser objeto de um uso orientado não somente à conservação da realidade social ou da constituição material, mas também à modificação dessa realidade, da constituição material, obviamente dentro do limite do possível significado das formulações normativas das nossas constituições, leis e convenções internacionais. A aplicação da legalidade nacional e internacional nesse sentido decididamente democrático da política seria a revolução social. Atualmente, a revolução social por uma sociedade melhor está, paradoxalmente, colocada a cargo da luta pela legalidade. Muito frequentemente, a conservação subverte essa legalidade. Na concepção de política como projeto, não apenas os políticos são os sujeitos da política, e sim todos os cidadãos são considerados sujeitos políticos. Veremos, abaixo, como e por que essa cidadania deve ser estendida às crianças.

A sociedade, o conjunto dos portadores de necessidades reais, é a forma formans. Esse é o princípio constituinte de uma organização de relações sociais adequada ao projeto de satisfação de necessidades concebidas de uma maneira humana. Por outro lado, é na esfera pública que se exercita a subjetividade política em potencial de todos os cidadãos por meio da constante abertura de novos espaços públicos. Nesse sentido, gostaria de lembrar-lhes de uma definição simples de democracia, que já mencionei outras vezes. Refiro-me à democracia entendida como auto-organização da resposta pública às necessidades reais de seus portadores. Volto a enfatizar a importância fundamental da aplicação desse conceito de democracia e de participação da sociedade civil na gestão da coisa pública para a afirmação, realização e implementação dos direitos da criança. Podemos agora dar um passo a mais na discussão, que seria o dado em uma obra muito lúcida de Antonio Carlos Gomes da Costa, na qual ele especula em torno da possibilidade da infância não apenas como finalidade de um processo político baseado no consenso, mas como base e alimento do consenso. Quero citar aqui outra frase de Antonio Carlos Gomes da Costa para vermos como se passa da afirmação de que a democracia é boa para as crianças para a de que as crianças são boas para a democracia, segundo a bela expressão de Emilio García Méndez. Antonio Carlos Gomes da Costa escreve: “A gravidade da situação da infância na América Latina acabou colaborando para a criação e o desenvolvimento, ao longo da década de 1980, de um movimento social amplo e profundo em torno da promoção da defesa de seus direitos”. Um movimento amplo, porque excedeu o movimento popular tradicional ao envolver setores da classe média da população e até alguns segmentos mais conscientes e sensíveis das elites políticas e econômicas. Ele é profundo pela sua capilaridade na trama social, por alcançar e envolver grupos sociais mais distantes dos centros de poder. Essa capacidade das crianças de não apenas desfrutar do processo democrático, mas de ser a ocasião, o próprio alimento do processo democrático, que se estende também a todos os direitos humanos e não apenas aos das crianças, é um aspecto que merece a maior atenção.

No entanto, há um discurso ainda mais profundo em torno dessa instrumentalidade da ocasião da criança para alimentar o consenso e o processo democrático no qual eu gostaria de me deter adiante. Toda a ética

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moderna e a própria ideia da democracia, como procurei apresentar concisamente, baseiam-se no conceito do sujeito como portador de necessidades: uma ética das necessidades. O conceito do pacto social, que deu origem ao Estado moderno, implica a aceitação dos portadores das necessidades de, por um lado, pôr fim às violências impostas por formas desumanas de satisfazê-las e, por outro, efetivar uma forma pacífica de satisfazê-las. A primeira dessas necessidades é a de sobreviver. Nesse sentido, pensando na ideia do pacto social, na teoria de Hobbes, confirmaremos que temos estado assistindo, ao longo de muitas décadas, a um processo de desvendamento. O desvendamento de uma contradição fundamental que afeta a modernidade e o Estado moderno na sua própria constituição. Refiro-me a um discurso que começa com Nietzsche e passa por Benjamin e Sartre até Girard, Derrida e, na Itália, Eligio Resta. Esses autores indicaram uma contradição, um defeito congênito da modernidade. Indicaram o tipo e grau da relação entre a violência e o direito. Essa contradição consistia, essencialmente, na ocultação da violência por parte do direito e, ao mesmo tempo, na reação mimética, reprodutiva, que o direito tem em relação à violência. Pensemos sobre o direito penal.

No pensamento da modernidade, o direito e o Estado destinavam-se ao controle e à superação da violência. No entanto, no direito e no Estado a violência continua a ser imanente e a se reproduzir. É justamente a ocultação da violência que, como diz Girard, produz o equívoco, a ambivalência fundamental da modernidade. Eligio Resta desenvolveu essa tese em uma obra recente recorrendo à metáfora platônica do pharmakon, que no grego clássico significa tanto remédio como veneno. Assim, o Estado moderno e o seu direito se legitimaram como remédio contra a violência, mas esse remédio, por sua vez, permitiu a perpetuação do veneno, ou seja, permitiu que a violência fosse mantida como o verdadeiro tecido conectivo da sociedade, sem conseguir neutralizá-la ou, pelo menos, monopolizá-la na forma da violência legal, já que a violência maior continua sendo a ilegal. Como se sabe, a teoria e o projeto que constituíram a base da fundação do Estado e do direito moderno (direito positivo) basearam-se em um princípio universal de legitimação. Trata-se de um princípio solidamente ancorado no conceito da verdade e do sujeito humano que é próprio da modernidade. Esse princípio de legitimação são as necessidades humanas, a saber, os impulsos de garantir, estender e reproduzir a existência.

O instrumento de fundação do Estado e do direito moderno foi o modelo do pacto social, entendido como experimento da razão e não como um fato histórico, ou seja, como um modelo racional concebido para garantir a realização desses impulsos, dessas necessidades. Uma realização supostamente impossível em um estado de natureza, sem Estado e sem direito positivo. No entanto, devemos reconhecer que tanto no modelo como na realização histórica, o contrato social teve um efeito bem diferente do seu projetado impacto universal, estendido a todos os sujeitos humanos considerados iguais na sua cidadania em potencial. Ele foi, acima de tudo, um pactum ad excudendum, um pacto excludente, um pacto entre uma minoria de iguais, que excluiu da cidadania todos os que eram diferentes. Um pacto de proprietários, brancos, homens e adultos para excluir e dominar

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indivíduos de outras etnias, mulheres, pessoas em situação de pobreza e, acima de tudo, “crianças”.

Historiadores do direito como Pietro Custo e outros destacaram esse caráter seletivo do pacto social e da cidadania que dele surgem, que constitui uma visão restrita da cidadania. É singular que até os dias atuais, na escola e na academia, a representação tradicional da teoria do contrato social desconsidere constantemente esse caráter seletivo e marginalizante do projeto político da modernidade. Essa desconsideração causa estranheza particularmente na América Latina, onde por séculos a cidadania foi um privilégio dos colonizadores e a subjetividade jurídica foi negada aos grupos étnicos originais por serem originários, por serem supostamente incapazes, por serem vistos como “crianças” ou selvagens. Toda a teoria do direito e do Estado moderno surge com essa distinção fundamental (embora implícita) entre, por um lado, os homens adultos (o modelo foi o do proprietário, branco e macho) e, por outro, os animais, as mulheres e as crianças.

A violência imanente no direito e no Estado da modernidade é um elemento constitutivo da fundação do Estado e do direito moderno; não é um erro de discurso decorrente do arbítrio pessoal. Apresentarei agora uma hipótese no simples intuito de que seja eventualmente discutida. Essa mesma contradição entre a universalidade em potencial e a seletividade efetiva da cidadania, essa ambivalência constante do direito como pharmakon, pode ter sido a que pouco a pouco minou as próprias raízes do pensamento da modernidade. O descumprimento das promessas da modernidade, que foram tão elevadas em função da violência imanente no direito, minou a confiança iluminista na verdade, na subjetividade humana, no progresso, e gerou a crise da qual o chamado pensamento pós-moderno é a expressão atual. Se a crise é tão profunda pelo fato de sua causa ter sido congênita no surgimento da modernidade, para sair dela talvez seja necessário rever a própria linguagem e o aparato conceitual sobre os quais foram fundados o Estado e o direito modernos. Essa proposta é como uma provocação, uma provocação positiva, obviamente.

Em vez de adotarmos a perspectiva dos atores (partes) do contrato, falaremos das vítimas, dos excluídos do contrato. Em lugar do homem como centro, dominador da natureza e mito da modernidade, falaremos do policentrismo da natureza e do respeito à natureza por parte do homem. Em lugar do outro como estranho, falaremos de nós como estrangeiros de nós mesmos. Em lugar do contrato, falaremos da aliança.

Uma palavra própria dos teólogos: aliança. Pode ser importante mencionar, e estou começando a refletir sobre isso, que vocês estão entre os primeiros com quem compartilho esta nova missão: a da aliança. Pode ser importante reconstruir, na sua dimensão mundana, esse conceito fundamental da tradição judaico-cristã na nossa busca por uma saída para a crise da modernidade e pela refundação do Estado e do direito em novas bases. Não se trata de reproduzir fielmente o modelo da aliança com Deus, que une os homens em um povo capaz do pecado e da redenção. Trata-se, em primeiro lugar, de se alimentar o projeto de uma aliança entre todas as vítimas, os excluídos do contrato, e também entre todos os homens que desejam viver

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em um mundo melhor. Em segundo lugar, trata-se de uma aliança dos homens com a natureza. Esse caminho parece nos levar para muito longe do nosso tema, mas, como verão, entraremos muito rapidamente no eixo dos problemas que nos interessam. Estamos entrando um pouco no terreno da utopia, mas não podemos abrir mão dela, porque isso seria o mesmo que dizer que esta realidade é a melhor possível, o que não é verdade. O Estado que resultaria da nova fundação mantém as conquistas e as potencialidades emancipatórias do Estado de direito, mas vai além do estado dos direitos. No curso das lutas pelo Estado de direito, que sempre foram lutas a partir das camadas inferiores da população, abriram-se novos espaços para os direitos das vítimas e dos excluídos, para outras etnias que não a branca, para as mulheres, as crianças, os afetados pela pobreza e os socialmente excluídos. Contudo, o Estado de direito só reconheceu, dessa maneira, a existência de uma cidadania diferente da abstrata e formalmente igual para todos os “cidadãos do Estado”. Ele aceitou uma autonomia limitada de todas essas distintas nacionalidades, das quais os indivíduos participam na sua existência concreta como membros de uma etnia, de um gênero, de uma faixa etária, de uma camada social, de uma comunidade local, etc. No entanto, essas nacionalidades, cujos direitos foram reconhecidos, não são, paradoxalmente, constitutivas do Estado moderno.

Só agora estamos na pré-história de um novo Estado, cujo modelo tento desenvolver nessa grande utopia. O projeto de aliança exige que se dê um passo adiante, que se estabeleça um Estado mais rico, alimentado por todas as distintas cidadanias das quais os indivíduos fazem parte em virtude das experiências, dos projetos, das visões de mundo pelas quais as diferentes nacionalidades se expressam: o Estado mestiço, um Estado que eu gostaria de chamar de Estado da cidadania plural, no qual não há mais estrangeiros, vítimas e excluídos. Esse Estado da diversidade, esse Estado mestiço, também é construído com operações intelectuais que ultrapassam o horizonte dos direitos das diversas cidadanias e permitem que sejam valorizadas as expectativas correspondentes a cada uma delas por uma nova maneira de interpretar ou administrar conflitos. Esse projeto talvez possa levar ao surgimento de uma nova civilização, superior à civilização do direito. Uma civilização na qual o potencial imanente da violência, ou seja, da repressão de necessidades, não permaneça oculto e seja revelado e articulado para permitir, com base nessa revelação, a realização de formas não violentas de superação da violência. A aliança entre vítimas e excluídos, entre todos os homens e entre os homens e a natureza é um grande gesto pacífico com o qual a subjetividade humana procura afastar-se da catástrofe originada pela aliança secular entre o direito e a violência. Convém esclarecer que, nessa perspectiva, não está em discussão, de forma alguma, a nossa luta pela afirmação dos direitos de todos os excluídos, das mulheres, das etnias, das pessoas afetadas pela pobreza e, no caso do nosso encontro, das crianças. Devemos, no entanto, dar um passo a mais. Nesse sentido, a frase de Emilio García Méndez de que “as crianças são boas para a democracia” se enche de um significado que vai ainda além da interpretação de Antonio Carlos mencionada anteriormente. “As crianças são boas para a democracia”. Até este ponto, apresentamos três teorias. Em primeiro lugar, a teoria da

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política como projeto; em segundo, a da democracia como auto-organização da resposta pública às necessidades de seus portadores; e, em terceiro lugar, a teoria do Estado mestiço, ou seja, da cidadania plural. Com vimos, as duas primeiras teorias, as da política como projeto, explicam, em todo o seu significado, por que a democracia é boa para as crianças. A democracia, e não o uso da política como instrumento de administração do statu quo da economia ou a tecnocracia, estabelece, como revela a experiência dos últimos anos, condições nas quais se pode fazer valer os direitos da criança nos distintos países e na sociedade planetária. No entanto, a terceira teoria, a do Estado mestiço e da cidadania plural, explica a frase “as crianças são boas para a democracia” em todo o seu significado. Podemos acrescentar que elas são boas para a realização da política como projeto, ou seja, para um modelo democrático de política. Trata-se de resgatar e assumir a infância como cidadania. Não fui eu quem inventou essa bela metáfora: a das crianças como uma das pátrias que contribuem para a formação do Estado mestiço. A infância como cidadania representa um momento propulsor e uma fonte de verdade da qual se alimenta o projeto da aliança, a refundação do conjunto das instituições públicas de acordo com o modelo democrático que me permiti apresentar aqui. Esse pensamento também se aplica a outras pátrias excluídas ou simplesmente toleradas no pacto social que dá base ao Estado moderno, como a das mulheres, das minorias étnicas, de minorias que às vezes são maioria quantitativamente e das pessoas em situação de pobreza. O Estado mestiço é aquele que também se alimenta, e principalmente, dessa cidade das crianças, uma enorme metrópole que chega a corresponder à metade da humanidade. Não podemos perder a riqueza em potencial contida nesse processo de refundação do Estado: estão em jogo não apenas os direitos das crianças, mas também a existência da própria humanidade. Em que pese a riqueza em potencial da sua contribuição para a constituição de um Estado de cidadania plural, as crianças continuam sendo objeto e não sujeitos do direito e da política. No entanto, a mensagem da infância como cidadania pode converter-se no eixo de uma autêntica revolução cultural que pode ensejar a oportunidade de se transformar a sociedade em uma sociedade mais justa, mais humana, mais madura. Não estão em jogo apenas os direitos da criança. Minha tese é que a sociedade dos adultos, do adulto branco, proprietário, macho, representa, hoje, como o fez no passado, uma forma de repressão sistemática das necessidades das crianças e da sua capacidade e direito de serem ouvidas que assume a forma da autodestruição. A nossa sociedade de adultos brancos, machos e proprietários continua a se reprimir. Ou, em outras palavras, continua em um processo de autodestruição. Na nossa arrogância de adultos, não soubemos, até agora, criar uma sociedade madura. Estamos em plena imaturidade histórica. A arrogância em relação às crianças é tão injustificável quanto risível. Risível se não fossem tão trágicos os efeitos da nossa pretensão de reduzi-las à nossa semelhança. É efetivamente trágica a nossa incapacidade de respeitá-las e aprender com elas e perdemos muito por não sabermos aprender com as crianças.

Não é necessário nem dizer que vivemos em uma época de paradoxos e contradições. A crise da modernidade coincide com outra crise (introduzo

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aqui um conceito que está na moda, do qual não gosto e que tampouco me satisfaz: o conceito da governabilidade), a crise de governabilidade da cidade dos adultos. Nesse contexto, as crianças representam um tipo de cidade do sol que, diferentemente da longínqua utopia de Campanella, está tão próxima de nós que não conseguimos reconhecê-la. Sua luz nos cega. Quais são as vantagens da cidade da infância e quais oportunidades enseja para o projeto político de refundação democrática?

Se os movimentos sociais apostaram não apenas no resgate dos direitos da criança, mas também, e acima de tudo, no resgate da sua mensagem como ideia orientadora de um processo geral de emancipação, as vantagens óbvias de uma nova cidade do homem seriam derivadas de uma prerrogativa fundamental da infância, na qual me deterei nesta conclusão.

A vantagem das crianças em relação aos adultos dos dias atuais reside, direta e indiretamente, na sua muito mais profunda colocação no tempo, principalmente no tempo cultural. É a vantagem resultante da memória histórica maior das crianças, da sua maior projeção no futuro. As crianças têm mais história e mais futuro que os adultos de hoje. Elas têm mais memória e imaginação que os adultos. Na esteira do pragmatismo cínico da razão instrumental, que reduz a nossa função à de reproduzir a atual estrutura econômico-política, nós, os adultos, além de termos perdido o futuro, ou seja, a capacidade da política como projeto, não temos um passado. A capacidade de antecipação do futuro implica a capacidade de se viver o possível como real e o real como contingente, ou seja, como possível, mas não necessário, algo que é como é, mas poderia ser diferente. Essa capacidade de projeção, de crítica da realidade, bem como a memória do passado – ou seja, a presença de nossas raízes culturais no imaginário coletivo – foi gravemente prejudicada pela degradação da comunidade social gerada pela comercialização selvagem dos meios de comunicação e informação de massa e pela funcionalidade do projeto conservador. A comunicação de massa nos projeta em uma realidade virtual que só produz a ilusão de se fugir da realidade. Mais efetivamente, ela a reproduz como necessidade, a legitima com o estabelecimento do bom senso que ocupa o lugar da imaginação. Cada vez mais, estamos perdendo contato com os mitos, os contos, os símbolos como fundamento da nossa inserção no tempo histórico da nossa identidade cultural. A cultura de massa abrangeu também o mítico, reduzindo-o à realidade virtual, secularizando-o e comercializando-o ccomercializando-omcomercializando-o qualquer comercializando-outra mercadcomercializando-oria. Quandcomercializando-o um mitcomercializando-o é transfcomercializando-ormadcomercializando-o em mercadoria, ele perde sua função de manter a continuidade do tempo histórico. A cultura de massa nos reduz a um presente arrancado pela raiz com o passado e sua projeção para o futuro. Quanto menores as crianças, maior a sua idade em relação à dos adultos. Nós, como adultos, temos quarenta, cinquenta, sessenta anos; já as crianças têm milênios, pois por meio dos contos, dos sonhos da imaginação, elas continuam sendo portadoras dos mitos, não como realidade virtual, mas como uma verdade da nossa identidade cultural.

Como adultos, reduzimos nossa capacidade de nos alimentar de sonhos até quase perdê-la. Nossa memória histórica e nossos sonhos e realidade foram radicalmente separados na esteira do pragmatismo da razão instrumental ao

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qual fomos condenados por um processo de alienação política e cultural. Uma criança não distingue o sonho da realidade. O imaginário é real — real e imaginário — para a criança. A cidade das crianças projeta-se, essencialmente, para o futuro. Seu princípio constitutivo é o da forma formans, não o da forma formata. As oportunidades de refundação democrática da nossa sociedade residem, em grande medida, na capacidade de introduzir esse princípio constituinte da infância como cidadania no processo de refundação. Não se trata, no entanto, de emancipar apenas as crianças. Trata-se, acima de tudo, de se modificar o pacto social na sua essência, resgatando, nós os adultos, por respeito à criança, nossa infância reprimida, nossa vinculação cortada com o tempo da cultura, nossa memória histórica, para podermos ser mais capazes de futuro. Para que o futuro se torne, na maior medida possível, mais real que o presente, do que às vezes se tem vontade de fugir, como na metáfora do anjo novus de Walter Benjamin. O eixo da política como projeto, o ato originário constituinte da democracia como organização dos portadores de necessidades reais é o grande ensinamento do utopismo concreto de Ernest Bloch, o princípio da esperança. A mensagem do resgate da cidadania da infância é, essencialmente, a mensagem da esperança. É importante que respeitemos as crianças, que atribuamos a elas prioridade absoluta no processo de refundação do Estado, do Estado mestiço, da cidadania plural. Vale a pena fazer dessa prioridade a frente maior da luta por um mundo sem violência, pela realização de uma maneira humana de satisfazer as necessidades de todos, por uma sociedade justa, pela democracia. Realizemos a aliança com as crianças. As crianças são boas para a democracia.

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