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Como entendemos a Democracia?

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REPATS, Brasília, V.6, nº 1, p 160-174, Jan-Jun, 2019

Como Entendemos a Democracia?

How Do We Understand Democracy?

Ricardo Rodrigues Freire

*

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir a capacidade

discricionária do Poder Executivo brasileiro para interpretar o conceito de Democracia. Com base na análise qualitativa das falas de atores políticos, do aparato legal e das referenciais teóricas que envolvem o conceito de democracia, o texto debate e referenda a existência de diferentes tipos de democracia no campo teorético. Todavia, no campo das práxis, são apresentados parâmetros que condicionam aquele que exerce o mandato de Presidente da República Federativa do Brasil a exercê-lo de forma própria, definida por marcos claros e explícitos que embasam a democracia nacional. Dessa forma, em que pese a diversidade de modelos de democracia na literatura, os quais permitem a construção de uma infinidade de conceitos, a sociedade brasileira, por meio de seu arcabouço jurídico, definiu o seu próprio entendimento sobre o Estado Democrático de Direito e, com isso, não deu margens ao Presidente da

Recebido em: 05/05/2019 Aceito em: 24/05/2019

* Graduado Bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras, Resende-RJ, no

ano de 1982. Como Oficial do Exército atingiu o posto de Coronel da Arma de Infantaria e, no decorrer da carreira, no contexto da Lei de Ensino do Exército, concluiu o Mestrado em Aplicações Militares, na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, Rio de Janeiro-RJ (1993), e o Doutorado em Ciências Militares, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro-RJ (1997). Nas Escolas Superior de Guerra e de Guerra Naval, ambas localizadas no Rio de Janeiro-RJ, concluiu o Curso de Logística e Mobilização Nacional (2002) e o Doutorado em Política e Estratégia Marítimas (2008). Pós-graduado em Visão discursiva da Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001); licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro-RJ (2006); e, nessa mesma Universidade, concluiu o Curso de Docência do Ensino Superior (2007). Realizou o MBA em Gestão Internacional no Instituto COPPEAD da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008). Na Fundação Getúlio Vargas, Brasília-DF, concluiu curso específico, sob orientação do Ministério da Justiça (in company ), sobre a Segurança e a Gestão de Grandes Eventos (2013). Exerceu diversas funções no sistema de Ensino Militar, com destaque para a de Instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras, Resende-RJ (1986-1987), do Centro de Instrução de Guerra na Selva, Manaus-AM (1989-1991), das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Chefe de Seção de Ensino / 2005-2007) e Superior de Guerra (Membro do Corpo Permanente / 2009-2010, tendo retornado em 2013), ambas localizadas no Rio de Janeiro-RJ. Atualmente, atua como Assessor do Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra, é Coordenador Acadêmico junto à Associação de Colégios de Defesa Ibero-Americanos (ACDIA) e ao Centro de Estudos Estratégicos de Defesa da UNASUL. Também, frequenta o Laboratório de Estudos de Políticas de Defesa e Segurança Pública (LEPDESP), uma iniciativa conjunta do Instituto de Estudos

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República para conjecturar quanto ao modelo de democracia de sua preferência para o exercício do mandato.

Palavras-chave: Democracia; Estado Democrático de Direito; Discricionariedade Executiva.

ABSTRACT: This article aims to discuss the discretionary capacity of the

Brazilian Executive Power to interpret the concept of Democracy. Based on the qualitative analysis of the speeches of political actors, the legal apparatus and the theoretical references that involve the concept of democracy, the text debates and endorses the existence of different types of democracy in the theoretical field. However, in the field of praxis, parameters are presented that condition those who exercise the mandate of President of the Federative Republic of Brazil to exercise it in their own way, defined by clear and explicit frameworks that underlie national democracy. Thus, despite the diversity of models of democracy in the literature, which allow the construction of a multitude of concepts, Brazilian society, through its legal framework, defined its own understanding of the Democratic Rule of Law and, As a result, it did not give the President of the Republic any room for conjecture as to the democracy model of his choice for the exercise of his mandate.

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Ao término do pleito eleitoral para escolha do Presidente da República Federativa do Brasil, no mês de outubro de 2018, após uma acirrada disputa no segundo turno do certame entre os candidatos Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), e Fenando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT), o candidato derrotado, Fernando Haddad, proferiu um discurso afirmando o seguinte: “Mas nós seguimos. Seguimos de cabeça erguida, com determinação, seguimos com coragem, pra levar nossa mensagem aos rincões do país [...] De que a soberania nacional e a democracia como nós a entendemos é um valor que está acima de todos nós” (NASCIMENTO, 2018, grifo nosso).

A assertiva realçada acima se torna digna de destaque, posto que, passado tanto tempo desde que a humanidade concebeu o conceito de Democracia como forma de exercício do poder nos Estados Nacionais, ela ainda parece acalentar discussões sobre o seu real significado.

Diante dessa celeuma apontada pelo Professor e Filósofo Fernando Haddad, uma vez que afirma “entender a Democracia” de forma peculiar, indicando ao leitor que outras pessoas, mormente políticos, a veem sobre outro prisma, qual seja, um mesmo conceito é decodificado de forma distinta por atores de um mesmo país.

Assim sendo, os presentes escritos têm como objetivo perscrutar o conceito de Democracia segundo o pensamento de alguns autores renomados no contexto da Teoria Política e normas legais vigentes, de forma a esclarecer se o significado de um vocábulo tão usual no cotidiano das sociedades contemporâneas provoca, no Brasil, a dubiedade apontada por Haddad.

Revolvendo o passado, consta que na Grécia Antiga eram debatidos os prós e contras de três formas de governar e que “Enquanto Megabizo defende a aristocracia e Dario a monarquia, Otane toma a defesa do Governo Popular, que segundo o antigo uso grego chama de Isonomia, ou igualdade das leis, ou igualdade diante da lei (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1998, p. 320). Assim, é bem provável que do termo grego Isonomia tenha surgido a Democracia atualmente consagrada.

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Avançando no tempo, vê-se que a vigente Carta Magna brasileira, em seu Preâmbulo, define o Estado Democrático da seguinte forma:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e

individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o

desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,

promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (BRASIL, 1988, grifos nossos).

Prosseguindo na leitura da Constituição, vê-se logo no seu primeiro artigo que a República está conformada pela “união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”, sendo constituída em Estado Democrático de

Direito, o qual se fundamenta na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político. O referido artigo constitucional se encerra afirmando que

“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (Ibidem, grifos nossos).

Diante dos ditames do documento que alicerça a organização do Estado brasileiro, a definição de Democracia parece ser consideravelmente substantiva. Todavia, como cabe à ciência mover-se na direção de novas descobertas e revisões de conceitos, sempre na busca do inédito e do estado da arte, analisar outras ideias sobre o tema em questão e avaliar se o conceito de Democracia adotado pelo Estado brasileiro é realmente digno de interpretação ambígua parece ser conveniente e oportuno.

Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. V), logo na Introdução de sua obra, são categóricos em afirmar que

A linguagem política é notoriamente ambígua. A maior parte dos termos usados no discurso político tem significados diversos. Esta variedade depende, tanto do fato de muitos termos terem passado por longa série de mutações históricas — alguns termos fundamentais, tais como "democracia", "aristocracia", "déspota" e "política", foram-nos legados por escritores gregos —, como da circunstância de não existir

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até hoje uma ciência política tão rigorosa que tenha conseguido determinar e impor, de modo unívoco e universalmente aceito, o significado dos termos habitualmente mais utilizados.

Segundo os ditos autores, a afirmação do Professor Haddad se justificaria, a priori. Contudo, o desenrolar do texto de Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 319), o conceito de Democracia é analisado segundo três postulados teóricos: (i) Clássico Aristotélico; (ii) Medieval Romano; e (iii) Moderno, também chamado de Teoria de Maquiavel.

Passando ao primeiro postulado, se levada em consideração a aplicabilidade da proposição aristotélica nos dias de hoje, visualizam-se algumas complicações. Primeiramente, conforme consta em Aristóteles (2000, p. 143), o Estado é “uma comunidade estabelecida com uma boa finalidade, uma vez que

todos sempre agem de modo a obter o que acham bom” (grifo nosso). Mais do

que isso, o Estado almeja o “bem nas maiores proporções e excelência possíveis”. Tal definição contrasta com os preceitos do Direito Internacional hodierno. Pela normativa da Convenção Pan-Americana sobre Direitos e Deveres dos Estados, acordada em 1933, em Montevidéu (Uruguai), o Estado é pessoa jurídica internacional que deve possuir os seguintes requisitos: (i) povoação permanente; (ii) território determinado; (iii) governo; e (iv) capacidade de se relacionar com outros Estados (AQUINO, 2010). Este mesmo autor faz alusão ao pensamento do distinguido jurista nacional Celso Renato Duvivier de Albuquerque Mello para concluir que “há uma tendência do Estado Direito Internacional ser o Estado das Nações Unidas”.

Outra controvérsia está na noção do significado de “todos” para Aristóteles. A sociedade de sua época era constituída por cidadãos e escravos. Consta em sua obra que o trato indistinto de mulheres e escravos caracterizava os povos bárbaros (ARISTÓTELES, 2000, p. 144).

Um terceiro ponto de desalinho da visão de Aristóteles à Democracia de hoje pode ser apontado na sua descrição das Leis. Em que pese o desprezo à monarquia, há uma forte tendência oligárquica em prejuízo à democracia, posto que somente os mais abonados tinham o poder de eleger magistrados (Ibidem, p. 184).

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Assim sendo, em que pese a forte influência de Aristóteles na tradição do pensamento político ocidental, conceituar a Democracia pela ótica aristotélica não aparenta configurar boa prática.

Por sua vez, claro está que no constructo aristotélico há vários tipos de democracia, conforme descrito em Aristóteles (1985). Tal corrente de pensamento confere à afirmação do Professor Haddad consistente base teórica. Passando à ótica Medieval Romana, é fato que os juristas do medievo se valeram do Digesto, Código do Direito Civil Romano implantado pelo Imperador Justiniano, nos idos do século V (MARTINS, 2012). Surgem nestes tempos as primeiras ideias de que o poder exercido pelos soberanos decorria originariamente do povo, por mais que a prática corrompesse tal princípio (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1998, p. 321).

Vem desta mesma época o pensamento do “Contrato Social”. Um notável pensador político de viés contratualista deste período foi o britânico Thomas Hobbes (1588-1679). A sua noção de Democracia consiste no governo sob a forma de “assembleia de todos os que se uniram”1 , segundo consta em Hobbes

(1983, p. 114). Além disso, o mesmo autor, ao tratar da liberdade dos súditos, cita o preceito de Aristóteles de que “Na democracia deve supor-se a liberdade; porque é geralmente reconhecido que ninguém é livre em qualquer outra forma de governo” (Ibidem, p. 132).

Se retomado o pensamento de Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 322) sobre autores alinhados ao Contrato Social, tal como Hobbes, ver-se-á que “A teoria do Contratualismo entra de pleno direito na tradição do pensamento democrático moderno e torna-se um dos momentos decisivos para a fundação da teoria moderna da democracia”.

Isto posto, é possível afirmar que os pressupostos teóricos do medievo sobre a Democracia são mais palatáveis nos dias de hoje do que os aristotélicos. Todavia, como será visto adiante, os ideais do contrato social hobbesiano ganharão maior substância no terceiro e último postulado: o Moderno.

1 Hobbes (1983, p. 114) distingue a Democracia da Monarquia (poder concentrado nas mãos de uma só

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Indo, então, para este terceiro postulado teórico – que tem na inspiração de Maquiavel a bipartição dos Estados em Repúblicas e Principados – nota-se que os Principados caracterizam as Monarquias, regimes antagônicos à Democracia. Todavia, as Repúblicas, na ótica maquiaveliana, não correspondem obrigatoriamente ao modelo democrático sublimado no tempo presente, posto que se considerava a existência de Repúblicas Oligárquicas (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1998, p. 322).

Caminhando no cronograma da história, em meio ao conturbado período da Revolução Francesa, Sieyès (1748-1836) surge como um pensador jurídico que buscou organizar a legislação do Estado francês, de sorte que os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade defendidos pelos revolucionários pudessem ser postos em prática. Na verdade, após a ruptura institucional com a monarquia na França, o país entrou num processo de convulsão social e, paradoxalmente, praticamente todos os direitos civis almejados pela Revolução passaram a ser rotineiramente violados. Assim, esse autor baseia sua visão democrática na ideia de que a liberdade propalada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 26 de agosto de 1789 – documento básico da Revolução Francesa – só existiria verdadeiramente se o cidadão encontrasse na lei a total proteção dos seus legítimos direitos políticos. Portanto, em sua ótica, não bastava tão somente a propalada salvaguarda dos direitos civis. Isso significa dizer que o Estado Democrático é constituído por cidadãos livres, sendo que sua liberdade não deveria ser expressa somente por sua privacidade e individualidade, mas primordialmente pela oportunidade de participar diretamente dos rumos da política nacional, elegendo e sendo eleito (SIEYÈS, 2001, p. xxi-xxxi).

Também, é nesse período que Benjamin Constant (1767-1830) aparece com destaque, na defesa de uma definição inovadora da liberdade política dos cidadãos. Das obras de Constant (1819 e 2005) são extraídas novas reflexões sobre a liberdade que decorre da Democracia. Segundo este autor, o poder do cidadão experimentado no passado, decidindo em praça pública sobre a paz e a guerra, dentre outros temas, não passava de mera ilusão, uma vez que os indivíduos daquela época eram despojados de seus direitos individuais – não

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podiam nem mesmo optar por uma crença religiosa, ou sobre mínimos aspectos de sua vida privada.

Outra visão importante deste mesmo período vem de Alexis de Tocqueville (1805-1859). Em Tocqueville (2005), ao descortinarem-se os costumes e o sistema político instaurado nos Estados Unidos da América, o autor expõe uma série de críticas à Democracia levada a cabo naquele novel país, bem como os seus receios quanto à estabilidade política e ao possível poder despótico conferido aos magistrados.

Das suas reflexões sobre a formação da Federação estadunidense, Tocqueville identifica que “o germe da aristocracia” não havia contaminado a formação do pensamento político daqueles que conformaram a independência da então colônia britânica. Por essa razão, “o estado social americano é eminentemente democrático” e o sentimento de igualdade entre os cidadãos é seu marco significativo. Todavia, embora não seja o alvo das críticas do autor, cumpre aqui considerar a repulsa de parte do tecido social dos Estados Unidos da América à população negra, a qual se manteve institucionalizada até a segunda metade do século XX, contrapondo-se ao que se espera da Democracia.

Outro ponto digno de destaque, que bem claro está nos escritos desse autor, é a ideia que enaltece, sobremaneira, o sistema estadunidense e que muito caracteriza a Democracia dos dias de hoje, qual seja: “Em geral, a democracia dá pouco aos governantes e muito aos governados”. O contrário do que se vê nas aristocracias, onde o dinheiro do Estado é aproveitado, sobretudo, pelos mais abastados (TOCQUEVILLE, 2005, p. 250). Portanto, pode-se dizer que essa característica do modelo democrático estadunidense torna o sistema social e político mais justo e, de forma geral, confere maior igualdade aos cidadãos.

Dando um salto para o pensamento democrático do século XX, destaca-se o austríaco Jodestaca-seph Alois Schumpeter (1833-1950). Já influenciado pela bipolaridade da Guerra Fria, o autor debate a possibilidade de coexistência da Democracia no contexto dos regimes capitalistas e socialistas. Dessa forma, favorece o ponto de vista do fato precipitante deste trabalho, enumerando a

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existência de diferentes tipos de Democracia (clássica, burguesa, capitalista, industrial, socialista e outras) no curso de seus escritos.

A análise de Schumpeter sobre a filosofia da democracia do século XVIII2

a resume como “arranjo institucional para se chegar a certas decisões políticas que realizam o bem comum, cabendo ao próprio povo decidir, através da eleição de indivíduos que se reúnem para cumprir-lhe a vontade” (SCHUMPETER, 1961, cap. 21, I). Dessa maneira, traduz o “bem comum”, como “farol orientador da política” (Ibidem).

Uma das grandes questões de Schumpeter está na satisfação dos interesses individuais e do povo. Tal dilema configura, em sua visão, um dos sérios problemas para a prática da Democracia na atualidade (SCHUMPETER, 1961, cap. 21, II).

Todavia, este autor é de certa forma prescritivo quanto ao êxito da prática da Democracia nos Estados no século XX. Segundo Schumpeter (1961, cap. 23, I), há quatro condições básicas para que o sistema democrático prospere nestes tempos, quais sejam: (i) existência de recursos humanos íntegros e preparados para ocuparem os cargos políticos; (ii) proximidade das ações e decisões políticas dos anseios populares – repulsa à criação dos chamados “monstrengos legislativos”3; (iii) disponibilidade de estrutura burocrática especializada e capaz

de oferecer à população serviços básicos de boa qualidade; e (iv) a existência de mecanismos de “autocontrole democrático”.

Indo mais além, argumenta que:

A ideologia da democracia, da maneira refletida na doutrina clássica, repousa num esquema racionalista da ação humana e dos valores da vida. [...] historicamente, a democracia moderna cresceu passo a

passo com o capitalismo e foi dele consequência [...] a democracia,

no sentido da nossa teoria de liderança competitiva, presidiu ao processo de transformações políticas e institucionais, através do qual a burguesia modificou e, do seu próprio ponto-de-vista racionalizou, a estrutura social e política que precedeu à sua ascensão: o método democrático foi a arma política dessa reconstrução. [...] A democracia

2 Filosofia contida no terceiro dos pressupostos teóricos definidos em Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998)

e norteadores deste trabalho.

3 É interessante apontar que no Brasil, nos idos da década de 1960, esses “monstrengos legislativos”

próprios do distanciamento político dos anseios populares foram chamados ironicamente de FEBEAPÁ – O Festival de Besteira que Assola o País (PONTE PRETA, 2015).

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moderna, todavia, é produto do sistema capitalista

(SCHUMPETER, 1961, cap. 23, III, grifos nossos).

Assim sendo, o autor destaca que “não se pode esperar que a democracia funcione satisfatoriamente a menos que a vasta maioria do povo, em todas as classes, esteja resolvida a observar as regras do jogo democrático” (Ibidem, grifo nosso).

Os destaques acima enlaçam o pensamento schumpeteriano ao de Bobbio (2017), coincidentemente utilizando o mesmo jargão “regras do jogo”. Ou seja, a Democracia dos dias atuais é dependente do cumprimento de regras bem definidas. Uma vez que elas sejam desrespeitadas pelos “jogadores”, o sistema deixa de funcionar.

Outro autor contemporâneo de Schumpeter é o jurista e filósofo político alemão Carl Schmitt (1888-1985). Para Schmitt (2009, p. xvii, apud HABERMAS), no seio das bases normativas da Democracia, há que se distingui-la do conceito de Liberalismo. Democrática, segundo Schmitt, “é a condição de participação com igualdade de oportunidades de todos em um processo de legitimação guiado pela via da discussão pública” (Ibidem, p. xviii).

Klein (2009, p. 139-140), por sua vez, complementa a visão schmittiana asseverando que este autor valoriza o conceito de identidade do povo como “princípio político-formal fundamental da Democracia”. Assim sendo, a Democracia como forma política, se materializa na “unidade de um povo” para a “unificação política de um Estado”. Acrescenta, ainda, que na visão de Schmitt só existem dois princípios políticos autênticos: “a identidade e a representação”. Em resumo, Schmitt apresenta uma visão mais restritiva da Democracia, concebendo-a para um determinado grupo homogêneo (“povo”) e não para a universalidade (“humanidade”).

Enfim, muitos autores contemporâneos mais poderiam ser inseridos em tal debate. Por exemplo, o Cientista Político estadunidense Robert Alan Dahl, que ao cunhar a ideia de “poliarquia”, analisou a Democracia sobre as óticas “madisoniana” (com seus mecanismos de freio do poder), “populista” (baseada na soberania da maior parte da população” e a “poliárquica”. Nesta última, as

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condições da ordem democrática não seriam extraídas das normas legais, mas do anseio da sociedade decorrente da liberdade de expressão do voto, da prevalência das decisões mais votadas, do controle das decisões por parte dos eleitores, dentre outra características (DAHL, 1989).

Outro expoente a citar seria o Sociólogo francês Raymond Aron, em seu debate entre a Democracia e o Totalitarismo, no qual assegura que o paradigma dominante da Democracia é o comprometimento e o respeito à legalidade

(ARON, 2017). Todavia, a prática da busca de mais autores impediria que estes

escritos fossem concluídos e uma conclusão obtida.

Contudo, além dos estudiosos nomeados, vê-se a necessidade de passar para um viés bastante recente e de ampla aceitação entre os Estados: a visão da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a Democracia. Trata-se de um conceito tão caro para esse organismo internacional que há mais de três décadas, a cada ano, a Assembleia-Geral publica uma resolução referente à Democracia. Esse tema vem dominando as agendas das conferências e cúpulas realizadas pela ONU e consta dos objetivos de desenvolvimento para o presente milênio (ONU, 2010).

A ONU entende o conceito de Democracia como: “um valor universal, que surge da vontade, livremente expressa pelos povos, de definir o seu próprio sistema político, econômico, social e cultural e que se baseia na plena participação em todos os aspectos da sua vida” (ONU, 2010).

Sobre o assunto, ressalta-se que a legislação brasileira acolheu o pensamento da ONU sobre a Democracia na década de 1990, quando se deu a

promulgação do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos4, firmado na

Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 (BRASIL, 1992).

Por força desse citado pacto internacional, o Brasil considera que Estado Democrático deve primar por diversos princípios, dentre os quais se destacam: (i) liberdade de expressão (art. 19); (ii) direito de reunião pacífica (art. 21); (iii)

4 Consta em ONU (2010) que o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos já foi ratificado por

mais de 85% dos Estados-Membros da organização, ensejando um consenso praticamente global sobre o conceito de Democracia.

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direito de livre associação (art. 22); (iv) direito de participação na vida política nacional, seja de forma direta ou por representantes livremente eleitos (art. 25); (v) direito de votar e ser eleito, em eleições periódicas, honestas, por sufrágio universal e por escrutínio secreto, assegurando a livre expressão da vontade dos eleitores (art. 25); (vi) igualdade de todos perante a lei e direito, sem discriminação, a igual proteção jurídica; e (vii) liberdade cultural e de crença (art. 27).

Para concluir o presente texto, retorna-se ao seu escopo principal, qual

seja, estudar o conceito de Democracia apregoado por uma série de estudiosos

da Teoria Política e normativas legais, de forma a esclarecer se o significado desse vocábulo, ainda nos dias de hoje, enseja a polêmica suscitada pelo Professor e candidato à Presidência do Brasil Fernando Haddad.

Diante da quantidade de ideias, diferentes postulados e distintos modelos de Democracia apresentados pelos estudiosos da Teoria Política aludidos no corpo deste trabalho, há de se concordar que há, em termos gerais e teoréticos, significativa razoabilidade na assertiva do Professor Haddad. Sua visão corresponde ao que Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. V) apontam como “ambiguidade da linguagem política”.

Contudo, em termos pragmáticos, nota-se a improcedência de suscitar a dubiedade conceitual no caso brasileiro.

Conforme exposto no decorrer desta análise, o Brasil, no Preâmbulo de sua Carta Magna e no seu primo artigo, define com extrema clareza o que vem a ser o Estado Democrático em seu território. Os parlamentares constituintes nacionais foram taxativos em afirmar que a Democracia brasileira se fundamenta no poder que emana do povo. Qual seja, se o “soberano”, em algum momento da História do Brasil, foi um monarca ou qualquer outro indivíduo, tal prática não se coaduna com o presente momento político nacional.

Mais do que isso, a Democracia brasileira se fundamenta sobre os pilares da liberdade, do bem-estar, da justiça, da igualdade, da fraternidade, todos estruturalmente fincados numa sociedade ordeira, pacífica (interna e externamente), plural, harmônica e livre de preconceitos de qualquer matiz.

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Clarividente está ao ator político brasileiro que suas ações devem ser pautadas pelo zelo no trato da soberania nacional, no respeito à cidadania e à dignidade do ser humano, no trabalho como instrumento de desenvolvimento social, na defesa da livre iniciativa e na pluralidade política.

Se tudo isso não bastasse para conceituar a Democracia brasileira, o país, como Estado-Membro da ONU desde a sua criação, promulgou em 1992 o documento em que esse organismo internacional descreve o rol de direitos civis e políticos que os Estados têm por obrigação garantir aos seus cidadãos.

Assim, não cabe ao ator político nacional questionar se a liberdade de expressão, ou se os direitos de reunir-se pacificamente, de livre associação, de plena participação na vida política nacional, de votar e ser eleito em pleitos periódicos e justos, de gozar de proteção jurídica total e em plenas condições de igualdade, de ampla liberdade cultural e de crença estariam ou não contidos no conceito de Democracia brasileira. Tratam-se, pois, essas garantias, por força de legislação vigente, de imperativos a serem perseguidos pelo cidadão investido de qualquer mandato em cargo público, em especial pelo Chefe do Poder Executivo.

Assim sendo, de posse do arcabouço legal que institui e regula o funcionamento da República Federativa do Brasil, entende-se que não é coerente a relativização do conceito de Democracia no país, posto que, apesar de existirem considerações teóricas pertinentes, os legisladores nacionais foram muito cautelosos em definir com acurada precisão o conceito de Democracia que

a sociedade brasileira entende como desejável e que almeja desfrutar.

Em resumo, o “Jogo da Democracia” no Brasil possui regramento claro, cabendo, portanto, aos “jogadores” segui-las, em vez de questioná-las no “transcorrer da partida”.

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Referências

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