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A autorreforma da Ditadura Militar- a reiteração da autocracia burguesa

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A AUTORREFORMA DA DITADURA MILITAR – A REITERAÇÃO DA AUTOCRACIA BURGUESA Lívia Cotrim (In memoriam)1

Resumo

Há 30 anos, com a eleição indireta de um presidente civil, encerrava-se no Brasil a ditadura implantada em 1964, sem terem sido superadas as matrizes socioeconômicas que a sustentaram. Os momentos finais dessa transição, concomitantes à mundialização do capital, marcaram o encerramento do processo particular de objetivação do capitalismo industrial brasileiro – a via colonial –, sem romper com sua subordinação ao capital externo e sem solucionar o desafio de integrar econômica e politicamente a massa da população trabalhadora. Como resultado, apesar de terem sido afastadas as componentes mais truculentas do período ditatorial, o estado brasileiro preservou seu característico caráter autocrático, como o forte aparato repressivo e o tratamento policialesco dos movimentos sociais.

Palavras-chave: Ditadura militar. Bonapartismo. Autocracia burguesa institucionalizada.

A AUTOREFORMA DE LA DICTADURA MILITAR – LA REAFIRMACIÓN DE LA AUTOCRACIA BURGUESA

Resumen

Desde hace 30 años, con la elección indirecta de un presidente civil, se finalizaba en Brasil la dictadura implantada en 1964, sin que las matrices sociales y económicas que la sustentaron hayan superadas. Los momentos finales de esa transición, concomitantes a la mundialización del capital, marcaron el cierre del proceso particular de objetivación del capitalismo industrial brasileño – la vía colonial –, sin romper con su subordinación al capital externo y sin solucionar el desafío de integrar económica y políticamente el conjunto de la populación trabajadora. Como resultado, a pesar de alejados los componentes más truculentos del período dictatorial, el Estado brasileño preservó su peculiar carácter autocrático, como el fuerte aparato represivo y el tratamiento policialesco de los movimientos sociales.

Palabras claves: Dictadura Militar. Bonapartismo. Autocracia burguesa institucionalizada.

1 Lívia Cristina de Aguiar Cotrim. Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo; mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas; graduada em Ciências Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Professora do Centro Universitário Fundação Santo André. Atua nas áreas de Antropologia, Política, Sociologia, principalmente nos seguintes temas: individualidade, política, estética, humanismo e marxismo. (Texto informado pela autora). Disponível em:

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Os debates suscitados pelos 50 anos do golpe militar de 1964 evidenciaram a ampla difusão de uma interpretação que, com ou sem consciência disso, associa-se a outras mais antigas no desejo de “apagar com esponja de conceitos vesgos a complexa e contraditória realidade de cerca de duas décadas”2, as que transcorreram entre 1945 e 1964 e, com elas, o

sentido do próprio golpe militar.

Trata-se da interpretação que, assumindo, com mais ou menos nuances, a propaganda e justificativas propaladas pelos executores e sustentáculos do golpe militar, busca atribuir às esquerdas intenções antidemocráticas e golpistas, das quais o presidente João Goulart compartilharia ou, ao menos, não teria sabido sustar ou delas se diferenciar.

Guardadas as devidas proporções, essa interpretação do golpe militar, sob a égide do conceito de autoritarismo, atende a uma função social semelhante à que serviu e serve o conceito de totalitarismo3: identificando direita e esquerda no golpismo e no desamor à

democracia que supostamente inspiraria ambas, remove do horizonte teórico e político o eixo central das lutas de classes travadas no pré-64: o combate contra um tipo de desenvolvimento nacional francamente oposto ao progresso social.

Tal interpretação permite, assim, opor-se ao golpe militar e à ditadura implantada por seu intermédio sem obrigar a questionar o fundamento socioeconômico e a classe que os sustentou.

As interpretações mais antigas remetem aos ramos teóricos que compõem a analítica paulista, entre os quais se destacam a teoria do autoritarismo (conceito com o qual se pretendia dar conta das características centrais do estado ditatorial) e a da crítica do populismo (com a qual se pretendia dar conta das principais questões postas entre os anos 1945-1964, bem como do processo que levou ao golpe de 1964)4. A ambas associam-se as teorias da dependência e do

2 Chasin, J. “As Máquinas Param, Germina a Democracia”, in A Miséria Brasileira – 1964-1994: do golpe militar

à crise social. Santo André: Ad Hominem, 2000, p. 81.

3 Em meados do século XX, a elaboração do conceito de totalitarismo permitiu aos pensadores liberal-democratas

contrapor-se tanto ao comunismo como ao nazismo, ambos identificados como formas do totalitarismo, de sorte que, além de vincular o primeiro ao segundo, o uso desse conceito solucionou a dupla necessidade de combater a barbárie nazista sem pôr em xeque a sociedade (capitalista) e a classe (burguesa) que constituíram seu fundamento. Ao contrário, permitiu associar capitalismo e democracia, de um lado, e, de outro, a negação da democracia no interior do capitalismo e pela classe que nele domina à negação do próprio capitalismo. De sorte que contraposição ao capitalismo é identificada com a defesa de formas políticas totalitárias, ou ao menos autoritárias, conceito derivado daquela matriz.

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marginalismo, teorias e conceitos que se ressentem, sob várias formas, de politicismo5. Com tais “conceitos vesgos” se pretendia “suprimir, ou pelo menos expurgar, os tempos de 45 a 64”6.

Ao lado da crítica a tais conceituações e às respectivas análises da realidade brasileira (em que é preciso destacar o pioneirismo de J. Chasin) e dos esforços de inúmeros pesquisadores por desvelar esse período de nossa história e a ditadura que o interrompeu, desenvolveram-se outras concepções que buscam dissociar o golpe e a ditadura do processo de objetivação do capitalismo e da luta de classes, seja atribuindo autonomia, e, portanto responsabilidade exclusiva pelo golpe e pela ditadura, às Forças Armadas, seja diluindo tal responsabilidade por toda a “sociedade brasileira”. É esta que vem recentemente alcançando maior difusão.

Em artigo escrito há dez anos, por ocasião dos 40 anos do golpe militar, Caio Navarro de Toledo já identificava “alguns acadêmicos [que] defenderam teses de caráter revisionista sobre os acontecimentos de abril. /.../ Na visão destes acadêmicos, na conjuntura de 1964, todos os agentes relevantes do processo político estavam comprometidos com o golpismo: militares, setores da direita, das esquerdas e Goulart – por ‘não morrerem de amor pela democracia’ – estavam prontos para desfechar um golpe de Estado”7.

Em artigo recente, Melo denuncia o mesmo problema: “Sob o argumento falacioso segundo o qual conectar o processo político à dinâmica econômica seria o mesmo que ‘economicismo’, uma leitura ‘politicista’ veio propor como explicação para o golpe e a ditadura um suposto ‘déficit democrático’ na sociedade brasileira, de acordo com o qual, nos idos dos anos sessenta, tanto a direita quanto a esquerda seriam igualmente ‘golpistas’”8.

Essa linha de análise já se apresentava na obra de Argelina C. Figueiredo, publicada em 1993, na qual pode ser identificada a mesma dissociação entre política e ordem socioeconômica

5 Ver a respeito: Chasin, J. “A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda”, in A Miséria Brasileira – 1964-1994: do

golpe militar à crise social. Santo André: Ad Hominem, 2000, especialmente pp. 241 a 254; Chasin, J. “Sobre o conceito de totalitarismo”, in Ensaios Ad Hominem 1 – Tomo III: Política. Santo André: Ad Hominem, 2001; Barbosa Filho, R. Populismo – Uma Revisão Crítica. Tese de doutoramento, Univ. Fed. de Juiz de Fora, mimeo; Ferreira, J. (org.). O Populismo e sua História: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; Cotrim, L. “A crítica do populismo – elementos para uma problematização”, in Revista PucViva, São Paulo, vol.2, n.8, 2000; Rago Filho, A “Sob este signo vencerás: a estrutura ideológica da autocracia burguesa bonapartista”, in Cadernos AEL, v. 8, n. 14/15, 2001; Cotrim, Ivan. O Capitalismo Dependente em Fernando Henrique Cardoso. Dissertação de Mestrado, Unicamp, 2000.

6 Chasin, J.“As Máquinas Param, Germina a Democracia”, in A Miséria Brasileira – 1964-1994: do golpe militar

à crise social. Santo André: Ad Hominem, 2000, p. 81.

7 Toledo, C. N. “1964: Golpismo e Democracia. As Falácias do Revisionismo”. In Crítica Marxista, nº 19, 2004,

p. 34.

8 Melo, D. B. “O golpe de 64 como uma ação de classe”, in Revista Memória, Justiça e Verdade. Rio de Janeiro,

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presente nos conceitos de totalitarismo e autoritarismo. Contrapondo-se a R. Dreifuss9, a autora defende que o golpe ocorreu graças à radicalização promovida pela incapacidade ou indisposição tanto de Goulart quanto das esquerdas de aproveitar as supostas oportunidades de uma saída conciliadora para a crise política10.

Marco Antonio Villa, adotando a visão de que o Brasil se ressentiria da falta de cultura democrática, considera que todas as forças políticas, incluindo Jango, eram golpistas, embora não apresente qualquer prova desse suposto golpismo11.

A mesma concepção orienta a análise da importante obra de Elio Gaspari, na qual, reiterando o suposto desprezo pela democracia por parte de todas as forças políticas, afirma que “Havia dois golpes em marcha. O de Jango viria amparado no ‘dispositivo militar’ e nas bases sindicais, que cairiam sobre o Congresso, obrigando-o a aprovar um pacote de reformas e a mudança das regras do jogo da sucessão presidencial. /.../ Se o golpe de Jango se destinava a mantê-lo no poder, o outro destinava-se a pô-lo para fora. A árvore do regime estava caindo, tratava-se de empurrá-la para a direita ou para a esquerda”12.

Tal como Villa, também Gaspari apoia a suposição do golpismo de Jango nas mesmas justificativas que os envolvidos na preparação e execução do golpe de 64 apresentaram para sua própria ação: a “carta de um coronel golpista, o livro pró-golpe de Glauco Carneiro e um memorando do embaixador estadunidense Lincoln Gordon”13.

Além desses, também pesquisadores que se reivindicam à esquerda assumem essa concepção.

É o caso de Jorge Ferreira, que, contrapondo-se tanto a Dreifuss quanto a Moniz Bandeira, entende que, no pré-64, foi a radicalização promovida pela esquerda que assustou a direita e a levou também a radicalizar-se. A atuação de Leonel Brizola sintetizaria essa postura da esquerda: “Se ele era radical, sectário, intolerante, fazia pregações revolucionárias e defendia a ruptura institucional, era porque as esquerdas eram igualmente radicais, sectárias, intolerantes,

9 Dreifuss, R. A. 1964 – A Conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.

10 Figueiredo, A C. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964. São Paulo:

Paz e Terra, 1993.

11 Em sua biografia de João Goulart (Villa, M. A. Jango, um perfil (1945-1964). São Paulo: Globo, 2004), o autor

aduz somente as afirmações feitas pelo coronel Jarbas Passarinho, em um artigo, e pelo embaixador norte-americano Lincoln Gordon, em um memorando, de que João Goulart estaria preparando um golpe.

12 Gaspari, E. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 51. 13 Melo, D. B., op. cit.

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pregavam a revolução e defendiam a ruptura institucional”. Entre as duas radicalizações, a maioria da população não tomava posição, apenas assistia14.

Daniel Aarão Reis perfila a mesma visão que responsabiliza pelo golpe militar a radicalização promovida pela esquerda. Em texto publicado em 2012, afirma que os civis e a “sociedade brasileira” apoiaram o golpe e a ditadura, bem como que o termo ditadura militar teria sido escolhido pela “sociedade brasileira” para se auto-absolver15.

Além da responsabilização da esquerda, designar o golpe de 64 e a ditadura a que deu origem como “civil-militar” tende a obscurecer, quando não distorcer, o seu sentido.

Mais do que a presença de “civis”, isto é, não militares, na preparação e execução do golpe e sustentação da ditadura, já havia sido claramente identificado e exposto o vínculo entre esta e a burguesia, por pesquisadores de diferentes extrações teóricas16. Analisando

detalhadamente esse vínculo, René Dreifuss, em 1964 – A Conquista do Estado17, propõe a designação “civil-militar” visando ressaltar a participação ativa das frações monopolistas da burguesia brasileira, vinculadas ao capital externo, na preparação do golpe (por meio de organizações como IPES, IBAD, ESG, Febraban, Fiesp etc.) e em sua sustentação. Assim, ainda que a expressão seja ambígua e tenda a obscurecer o caráter específico do estado brasileiro, no sentido utilizado por Dreifuss o termo “civil” remetia, portanto, ao empresariado.

Mais recentemente, entretanto, a expressão golpe ou ditadura “civil-militar” vem sendo utilizada em sentido distinto, que, ao invés de ressaltar seu vínculo com a burguesia, particularmente a monopolista, nacional e estrangeira, encobre esse elo, diluindo a responsabilidade por toda a “sociedade civil” – entendida não como esfera da produção e reprodução material da vida, cuja anatomia “deve ser buscada na economia política” (Marx), o que obrigaria a remeter às classes de que se constitui, mas como conjunto de organizações.

O argumento segundo o qual a “sociedade civil”, ou, pior ainda, a “sociedade brasileira” seria cúmplice do “autoritarismo” supõe a existência de um “autoritarismo” difuso na “sociedade brasileira”, de sorte que ditaduras ou estados “autoritários” expressariam valores

14 Ferreira, J., apud Melo, D. B. “Considerações sobre o revisionismo: notas de pesquisa sobre as tendências atuais

da historiografia brasileira”, p. 11, disponível em http://www.uff.br/iacr/ArtigosPDF/79T.pdf.

15 Reis, D. A. “O sol sem peneira”, in Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, agosto de 2012.

Disponível em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-sol-sem-peneira. Ver também, do mesmo autor, Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

16 Entre os quais, por exemplo, Moniz Bandeira, L. A. O Governo João Goulart. As lutas sociais no Brasil.

1961-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983; e Chasin, J. A Miséria Brasileira – 1964-1994: do golpe militar à crise social. Santo André: Ad Hominem, 2000.

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não democráticos difundidos e assumidos por toda a sociedade, desconsiderada a clivagem de classes, ou supondo tais valores supra-classistas.

Com essa diluição indevida de responsabilidades restam excluídas da análise as classes sociais e as correspondentes relações de dominação e subordinação, bem como o matrizamento do estado e da política em geral pelas relações materiais de produção e reprodução.

Se é verdade que “a história brasileira é 'rica' em ditaduras e 'milagres'. Pobre efetivamente de soluções econômicas de resolução nacional e carente de verdadeira tradição democrática”18, a análise da ditadura instaurada pelo golpe militar de 1964 não pode prescindir

desse processo histórico, que remete à forma particular da objetivação do capitalismo e das classes sociais que o constituem19, especialmente à particularidade da burguesia brasileira, e ao

reconhecimento de que o laço entre ditaduras e “milagres”20 não é casual, arbitrário ou carente

de direção; ao contrário, também nesse caso as formas políticas são determinadas pelo ordenamento socioeconômico.

Em torno deste travavam-se as lutas de classes do período anterior ao golpe de 1964, vale dizer, em torno do modo de produção e reprodução da vida – o que, como e para quem produzir, isto é, em torno das decisões acerca de “quem vive e come, material e espiritualmente, e de que maneira21. Estavam em jogo diferentes alternativas de evolução nacional, com ou sem progresso social, isto é, incluindo ou excluindo a classe trabalhadora. Tratava-se, pois, de decisões que a afetavam e interessavam diretamente.

Este eixo do combate (presente ao menos desde a década de 1930) decorre da forma particular pela qual se objetivou o capitalismo industrial brasileiro, a via colonial, que pode ser sumariamente caracterizada como um processo de industrialização hiper-retardatário, sem ruptura revolucionária22, em que o novo (a industrialização) concilia com o velho (uma estrutura

18 Chasin, J. “Conquistar a Democracia pela Base”, in A Miséria Brasileira – 1964-1994: do golpe militar à crise

social. Santo André: Ad Hominem, 2000, p. 60.

19 É preciso ter em mente que as formas concretas – particulares – de existência da malha objetiva das relações

sociais constituem a mediação real entre os atos e relações singulares, de que essa malha é tecida, e os traços comuns a um conjunto de modos de ser específicos – isto é, o universal.

20 Os “ciclos” econômicos que marcaram tanto as atividades mais estritamente agroexportadoras quanto a

acumulação industrial são outros tantos “milagres econômicos”, capazes de propiciar, durante períodos mais ou menos curtos, uma larga acumulação (cuja maior parte é de apropriação e realização externa), esgotando-se em seguida e sendo substituídos, mais ou menos rapidamente, por outro “milagre” (ou ciclo). Para exemplificar, basta remeter aos ciclos ou “milagres” da cana-de-açúcar, da mineração, do café, entre outros. De sorte que o “milagre econômico” de 1968-1973 e sua crise não são novidade na história brasileira, mas reiteram uma forma de ser que, gestada no período colonial, evidencia suas características à luz da configuração mais complexa e desenvolvida.

21 Chasin, J. “A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda”. In A Miséria Brasileira – 1964-1994: do golpe militar

à crise social. Op. cit., p. 221.

22 “Por si só esta característica da história brasileira é responsável por traços fundamentais do modo de ser e de se

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agrária latifundiária posta desde o início sob a égide do capital externo)23 e, por decorrência, conservando e se apoiando na superexploração da força de trabalho e na subordinação ao capital externo que está em sua origem (a burguesia industrial, tal como a agrária, nasce e se desenvolve submetida aos interesses do capital externo, pela mediação de sua subordinação à agro exportação)24. A burguesia constituída nesse quadro não cumpre sequer suas tarefas econômicas: completar o capitalismo industrial de modo a, nos limites inerentes a esse modo de produção, integrar economicamente a classe trabalhadora; em outras palavras, impulsionar um desenvolvimento econômico com progresso social. Ao contrário, aqui a industrialização, apoiada na superexploração da força de trabalho, se efetiva em oposição ao progresso social. Incapaz de completar suas tarefas econômicas é tanto mais incapaz de cumprir as tarefas políticas, isto é, organizar seu domínio sob forma democrática, mesmo com todas as limitações da democracia liberal. A exclusão econômica dos trabalhadores é a matriz de sua exclusão política. Assim, tanto quanto os “milagres”, também se reiteram as ditaduras, desde as formas políticas vigentes nos períodos colonial e imperial, assentadas sobre o trabalho escravo, até o

e lingüística constituída na subsunção formal ao capital, através de uma sociedade escravista. Herança, por conseqüência, de uma forma desagregada, sem dimensão de sociabilidade nacional, identidade econômica ou cultural, a não ser a ficção da autonomia política”. Chasin, J. “A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda”, in A Miséria Brasileira. 1964-1994: do golpe militar à crise social, op.cit., p. 220.

23 Ambos, pois, expressão da regência do capital, frações distintas da mesma classe, a burguesia; e, no entanto,

apoiados em lógicas de acumulação distintas, de sorte que a estrutura agroexportadora obstaculiza a industrialização. Ver, a esse respeito. Oliveira, F. A Economia da Dependência Imperfeita. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

24 A aproximação da forma particular de objetivação do capitalismo brasileiro tem por parâmetro os contornos,

traçados por Marx, da “miséria alemã”, mostrando que o caráter lento e tardio da constituição do capitalismo extrapola em muito a referência cronológica, gestando uma forma de ser específica que afeta todas as relações e categorias societárias. Lentidão determinada pela ausência de processos revolucionários de transição, substituídos pela conciliação entre atraso e progresso sociais, entre o modo de produção capitalista, que forceja por se desenvolver e impor, e modos de produção arcaicos, cuja sobrevivência, assim possibilitada, emperra e restringe o desenvolvimento do primeiro. De sorte que “a emersão do novo paga alto tributo ao historicamente velho”, alterando de modo substancial diversos aspectos da organização social, desde o ordenamento econômico, passando pelo caráter, perspectivas e limites da classe que está na ponta daquele processo de transição – a burguesia -, e atingindo as formas de exercício do poder político. Chasin toma o caso alemão como “referencial exemplar” para a apreensão da particularidade brasileira, não só pela indicação das diferenças que o atraso no desenvolvimento capitalista gera em relação aos casos clássicos, mas sim por evidenciar que o percurso da análise concreta é o de extrair do próprio objeto as determinações que o configuram. Posto desta maneira o problema, fica consignada uma crítica à subsunção do caso brasileiro aos contornos da miséria alemã, ou via prussiana, procedimento que a toma como modelo, “contorno formal aplicável a ocorrências empíricas”, e reedita, assim, o estiolamento dos universais. Os lineamentos da particularidade brasileira se evidenciam na inserção do país na acumulação primitiva de capital europeia, na condição de empresa mercantil colonial. Esta é a origem histórica e o sentido da grande propriedade agrária brasileira, forma que o processo de industrialização defrontará pela via da conciliação pelo alto, denegando os caminhos revolucionários e conservando, assim, um pilar fundamental da subordinação ao capital metropolitano. A industrialização brasileira só se afirmará no período das guerras imperialistas do século XX, e sem romper a subordinação ao imperialismo. De maneira que também no Brasil está presente a conciliação entre novo e velho, mas com “um velho que não é, nem se põe como o mesmo”, assim como a industrialização também não se põe do mesmo modo que na Alemanha, configurando-se o verdadeiro capitalismo brasileiro como híper-tardio e subordinado. Ver Chasin, J. A Miséria Brasileira. 1964-1994: do golpe militar à crise social, op.

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período republicano, cuja maior parte decorreu sob formas políticas ditatoriais, explícitas ou mal-veladas.

Mas o capitalismo é um modo de produção expansivo e mundialmente articulado, no qual dominação e subordinação não se limitam às relações de classe internas a cada país, manifestando-se também no plano internacional, sob a forma do desenvolvimento desigual e combinado das unidades nacionais que o compõem. Nesse quadro, o inacabamento da burguesia e do capitalismo brasileiros (como de outros países na América Latina) é insuperável; é impossível “completar” tanto uma quanto outro: é impossível à burguesia e ao capitalismo se tornarem economicamente autônomos e politicamente democráticos. O capital atrófico brasileiro não é apenas incompleto, mas incompletável. Esse modo particular de objetivação do capitalismo colocou a classe trabalhadora diante de problemas e tarefas também peculiares. As reivindicações apresentadas e as lutas travadas pelos trabalhadores urbanos e rurais punham objetivamente no horizonte essas tarefas: não a superação do capitalismo, mas sim a superação ou inflexão da via colonial de objetivação do capitalismo, ao prospectivar um tipo de industrialização voltado para as necessidades da maioria da população e apoiada nas indústrias de base e de bens de consumo não duráveis; a ruptura da subordinação ao imperialismo (pela remodelação das relações com o capital externo), a reforma agrária (pela alteração da forma da propriedade da terra, das relações de trabalho e dos objetivos da produção) e as demais propostas que compunham as “reformas de base”: administrativa, bancária, tributária, cambial, eleitoral, urbana e educacional. Cada uma de per si e o conjunto delas tendentes a democratizar as relações socioeconômicas e políticas, vale dizer, a ampliar o acesso à riqueza material e espiritual pela modificação do modo de sua produção e da posição nele ocupada pelas distintas classes sociais25.

Tratava-se de reformas compatíveis com o capitalismo, mas não com o tipo de capitalismo que se consolidava no país, cuja industrialização subordinada ao imperialismo centrava-se em bens de consumo duráveis, voltada a uma parcela reduzida do mercado interno, conciliada com uma estrutura agrária latifundiária voltada para exportação, ambas apoiadas sobre a superexploração da força de trabalho, isto é, sobre remuneração dos trabalhadores abaixo do patamar considerado historicamente mínimo, e mesmo abaixo dos níveis de subsistência. Estrutura econômica completada por um estado que permanece autocrático desde os primórdios da república, oscilando entre suas duas variantes básicas: bonapartismo

25 A respeito das “reformas de base”, ver Silva, A. V. O Projeto Nacionalista de João Goulart: Análise dos

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(momentos de ditadura explícita) e autocracia institucionalizada (momentos de relativa ampliação de direitos políticos, sem ruptura com o núcleo autocrático do estado), ambos expressando praticamente o politicismo da burguesia brasileira.

Mantida a superexploração da força de trabalho como esteio do capitalismo industrial que ia se consolidando, isto é, mantida a exclusão socioeconômica, permanece interditada a inclusão política, vale dizer, é vedado o acesso a meios de luta prática e ideológica a uma classe que os usará de imediato precisamente para exigir a supressão do rebaixamento salarial, conquista possível apenas, nas condições descritas, com a alteração do ordenamento econômico. Embora não ultrapasse os marcos do modo de produção capitalista, uma transformação dessa ordem só pode ter como sujeito histórico a classe trabalhadora, já que a burguesia brasileira se constituiu como classe genética e estruturalmente subordinada, antidemocrática, avessa a transformações, e mais ainda a transformações revolucionárias.

Essa estreiteza econômica de uma burguesia incapaz de lutar por sua própria soberania é o solo em que descansa sua estreiteza política, sua incapacidade de dominar sob forma democrática, estreiteza que a reduz ao exercício autocrático do poder político, manifesto na ferocidade com que a ordem é mantida.

No pré-64 estava posto no horizonte o desmantelamento, pela ação da classe trabalhadora, dos esteios mais perversos do capitalismo existente, abrindo espaço para a inclusão econômica (pela reordenação da produção industrial e agrária) e política (suprimindo o caráter autocrático do estado). Desenhava-se, pois, no horizonte a possibilidade de subverter a via colonial, em favor de um desenvolvimento econômico com progresso social, isto é, em favor da melhoria das condições gerais de vida da classe trabalhadora, conquistadas por sua própria luta, e da ampliação dos espaços para a continuidade de sua organização e mobilização. A esquerda brasileira, entretanto, posta diante do inacabamento da burguesia e do capitalismo26, que determina também uma incompletude da classe trabalhadora (esta, sim,

26 Enquanto os trabalhadores dos países de via clássica começam a enfrentar as respectivas burguesias quando

estas completam suas tarefas econômicas e políticas, no Brasil a esquerda nasce diante do inacabamento de classe da burguesia e do capitalismo. Nos termos de Chasin: “A crítica prática e teórica dos trabalhadores, aqui, não principiou por onde os proprietários haviam concluído. Estes não só não haviam terminado, como não podiam terminar nunca. E a esquerda bracejou no abismo do inacabamento do capital, convertida em empreiteira de uma obra por finalizar. Obra que, sob a mesma planta, jamais poderia ser sua.N o mínimo e em outros termos, a esquerda principia, neste caso, aquém dos limites da crítica da burguesia clássica, e toma os parâmetros abandonados desta, como se fossem os supostos de itinerário e de projeto da burguesia de extração colonial, dos quais nem esta, nem ela própria poderiam pretensamente escapar. A esquerda brasileira nasce, portanto, submersa no limbo, entre o inacabamento de classe do capital e o imperativo meramente abstrato de dar início ao processo de integralização categorial dos trabalhadores. Alma morta sem batismo, não atina para a natureza específica do solo em que pisa, nem para a peculiaridade de postura e encargo que este chão dela demanda e a ela confere”. Chasin, J. “A Esquerda e a Nova República”, in A Miséria Brasileira. 1964-1984: Do golpe militar à crise social. Op. cit., p. 159.

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superável), não atina para a especificidade do capitalismo brasileiro, tendendo a pôr no horizonte a tarefa de completar economicamente o capital, pela consecução de um capitalismo nacional autônomo. Submete-se, assim, “aos nexos mortos do que fora a lógica do capital concluso”, “à lógica extinta do ideário liberal”27.

Incompreensão certamente contribuiu para desorientar o movimento operário e facilitar a mobilização da direita, da classe burguesa – isto é, latifundiários, o empresariado urbano nacional e estrangeiro, seus representantes políticos e porta-vozes jornalísticos e teóricos, incluindo toda a grande imprensa, e as forças armadas etc., contra aquele panorama mais generoso. Contra ele, a direita nacional e estrangeira, em particular norte-americana, agita o fantasma do comunismo, e o faz não somente por reconhecer que a supressão do capital é o horizonte da classe trabalhadora, reconhecimento tornado agudo pela recente revolução cubana e o acirramento da guerra fria; mas também porque, para sua rombuda sensibilidade antidemocrática e contra-revolucionária, uma transformação como a que se desenhava ultrapassava os limites da forma particular de capitalismo na qual essa burguesia existe. Assim, “para além da ameaça real da transformação de nossa formação social numa sociedade comunista na década de 60, o que vicejava, concretamente, de forma assombrosa, para os conservadores, era a movimentação massiva articulada em torno de uma plataforma nacional e popular. Temiam uma sociedade democrática regida pelos sindicatos, uma república popular e democrática”28. Sinal, mais uma vez, de sua estreiteza econômica e política, determinante da

ferocidade com que reage àquelas possibilidades.

O golpe de 64 foi desencadeado contra a classe trabalhadora, contra a esquerda, para manter uma dada estrutura econômica, ameaçada pelas lutas de classes e pelas “reformas de base”29, e barrou uma possibilidade real de inflexão da via colonial.

27 Chasin, J. Ib., pp. 159-160.

28 Rago Filho, A. “Sob Este Signo Vencerás! A Estrutura Ideológica da Autocracia Burguesa Bonapartista”. In

Cadernos AEL, v.8, n.14/15, 2001, p. 166.

29 É fundamental insistir na atuação do governo norte-americano na luta contra os movimentos populares e contra

Goulart, na preparação e execução do golpe de 64. Como mostra Moniz Bandeira, os golpes de estado que ocorreram na América Latina a partir da vitória da revolução cubana, em 1960, tiveram todos a presença da CIA. “No Brasil, desde que os comandantes das Forças Armadas não conseguiram impedir que o vice-presidente João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), assumisse o governo, em agosto de 1961, em virtude da renúncia do presidente Jânio Quadros, a CIA começou a dar assistência aos diversos setores da oposição que conspiravam para derrubá-lo. Em 1962, a CIA gastou entre US$ 12 milhões e US$ 20 milhões financiando a campanha eleitoral de deputados de direita, através de organizações que seus agentes criaram, como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e a Ação Democrática Parlamentar. /.../ Os militares brasileiros, decerto, não teriam desfechado o golpe se não contassem com a cobertura dos Estados Unidos”. Moniz Bandeira, L. A. “A Civic Action e o golpe militar de 1964”, in O Estado de São Paulo, 29.03.2014. Disponível em:

http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,a-civic-action-e-o-golpe-militar-de-1964,1146732,0.htm. Ver também, do mesmo autor:O Governo João Goulart. As lutas sociais no Brasil. 1961-1964, op. cit.; Brasil-Estados

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O golpe militar institui, novamente, uma ditadura bonapartista30. Expressão armada da autocracia, o bonapartismo se configura como forma de estado burguês em que a burguesia renuncia ao exercício direto do poder político (isto é, ao exercício conjunto do poder por todas as frações de sua classe na esfera em que isso é possível, o parlamento), em favor de um terceiro (nesse caso, as forças armadas), renúncia que implica excluir do exercício do poder seus próprios representantes políticos, cercear seus antigos porta-vozes jornalísticos e teóricos, etc.31 O bonapartismo é a forma assumida pelo estado burguês quando a burguesia vê ameaçada a ordem do capital, portanto sua própria existência, pela classe trabalhadora. A renúncia ao exercício do poder político sob forma parlamentar é o modo possível de garantir a continuidade de sua dominação, e por isso mesmo, sendo esse poder exercido em seu favor, é amplamente apoiado por ela política, ideológica, financeiramente etc.

No caso brasileiro, a já mencionada estreiteza genética e histórica da burguesia determina sua visceral aversão a uma prospectiva de transformação configurada pela plataforma nacional e popular, que, embora se mantendo no interior da lógica do capital, ameaça em seus alicerces a modernização subordinada e excludente. Autocrático mesmo em “tempos de paz”, o estado brasileiro assume a forma bonapartista – a ditadura explícita – em “tempos de guerra”, quando a luta de classes assume contornos mais agudos32.

Examinando a especificidade do bonapartismo brasileiro com relação ao bonapartismo clássico, uma vez que não se trata de aplicar um modelo ou fazer uma “colagem histórica”, mas sim de “compreender a lógica específica de um objeto específico”, Rago identifica que “O

Unidos: a rivalidade emergente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989; Brizola e o Trabalhismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

30 Assim denominada por referência ao presidente e depois imperador francês Luís Napoleão Bonaparte II, que

instaurou pela inaugurou essa forma política por meio de um golpe de estado apoiado pelas forças armadas, em 1851. Ver a respeito Marx, K. O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2009, e A Guerra Civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011.

31 Assim, políticos como, por exemplo, Carlos Lacerda, que conspiraram para o golpe e o apoiaram, viram-se em

seguida, para sua surpresa, também excluídos, e eventualmente perseguidos e cerceados. Jornais como O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, foram postos também sob censura, embora em 1964 tenham aderido ao golpe militar e divulgado a versão justificatória de que Goulart pretendia dar um golpe para se manter no poder, que seu governo abrira espaço para a “infiltração comunista”, etc. Como disse Francisco de Oliveira: “A velha UDN desde o início já sabia de seu destino, e logo começou a chamar os militares para lhe darem o poder que os votos lhe negavam. Começou mesmo com o BeloAntonio Eduardo Gomes e terminou com o Corcunda do Nosso Drama, chamado também de Castelo Branco, que por Ato Institucional cassou a existência da própria UDN e dos outros partidos políticos. Brincar com fogo queima, menino, dizia minha saudosa mãe há décadas”. Oliveira, F. “A Prisioneira”, postado em 18/04/2011 em http://blogdaboitempo.com.br/2011/04/18/a-prisioneira-coluna-do-francisco-de-oliveira/

32 Chasin, J. “Hasta Cuando? A propósito das eleições de novembro”, in A Miséria Brasileira. 1964-1994: do

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bonapartismo brasileiro, em sua objetivação histórica, se transforma, assim, numa espécie de gestor do capital atrófico subordinado ao imperialismo”33.

Sob o estado bonapartista, que garante a ordem vigente e a submissão dos trabalhadores assumindo e realizando a tarefa suja da repressão – prisões, tortura, assassinatos, desaparecimentos, intervenção nos sindicatos, fechamento de partidos, censura à imprensa, vigilância, proibição de manifestações etc. etc. – foi preservada, aprofundada e ampliada a ordem socioeconômica, e tomadas as medidas que prepararam um novo ciclo de acumulação de capital. Pela concentração do capital (bancário, industrial, agrário), arrocho salarial, aproveitamento dos capitais externos disponíveis, garantindo-lhes condições amplamente vantajosas, foi reiterada e ampliada a industrialização capitaneada pela indústria de bens de consumo duráveis, majoritariamente de propriedade do capital monopolista estrangeiro (secundado pelo capital monopolista nacional privado e estatal), voltada para reduzida parcela do mercado interno e apoiada no “esforço exportador” para sustentar a necessária importação de bens de capital e a remessa de lucros. Essa foi a base do ciclo de acumulação, de curtíssima duração (1968-1973), que a impudência ditatorial denominou de “milagre econômico”. Enquanto este perdurou, o empresariado nacional e internacional, coadjuvado por setores da classe média também beneficiados, apoiou e sustentou integralmente a ditadura militar.

Ainda que tenha sido “milagroso” para o capital monopolista nacional e estrangeiro, aquele ciclo de acumulação foi desde sua origem um fracasso em relação aos problemas econômico-sociais que afetam os trabalhadores. A forma retardatária, subordinada e conciliada com o historicamente velho do evolver da industrialização brasileira conserva, devidamente modernizada, sua face mais perversa: a miserabilização das amplas massas trabalhadoras não resulta de uma “lacuna” distributivista, mas é a base e sustentáculo da própria forma de desenvolvimento – o que era produzido não se voltava para elas, e sua inserção social se fazia pelo critério do arrocho salarial.

A crise econômica iniciada em 1974, com que se encerra esse ciclo de acumulação34, resultante das mesmas bases que garantiram seu curto “sucesso” e impondo como “solução” o

33 Rago Filho, A. “Sob Este Signo Vencerás! A Estrutura Ideológica da Autocracia Burguesa Bonapartista”, op.

cit., p. 167.

34 Sintoma da crise foi o crescimento da inflação, ao qual Delfin Netto, então ministro da Fazenda, sob o governo

Médici, respondeu falsificando o índice e, assim, espoliando ainda mais os trabalhadores. Evidenciando seu politicismo, as oposições sequer tocaram no assunto, nem no momento em que a falsificação ocorreu, nem quando foi publicamente denunciada pelo Banco Mundial, nem quando o movimento sindical exigiu a reposição da porcentagem de reajuste salarial de que fora esbulhado. Ver a respeito Chasin, J. “Conquistar a democracia pela base”, in A Miséria Brasileira. 1964-1984 – Do golpe militar à crise social. Op. cit., pp. 59-77.

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desaquecimento econômico, trinca o bloco antes aparentemente monolítico de sustentação da ditadura. As fendas se instauram nas linhas da disputa sobre a quem caberiam os ônus da crise, quais seriam os termos de sua resolução e do novo período de acumulação. Diante disso, o próprio governo ditatorial desencadeia o processo da chamada “abertura política”, que deveria “abrir” principalmente para que as várias frações e setores da burguesia envolvidos na crise pudessem debater e disputar os termos da resolução e de um novo período de acumulação35. Dada a impossibilidade de fazê-lo sem abrir, ao menos formalmente, para toda a população, isto é, também para os trabalhadores, tratou-se de acentuar outra característica da burguesia brasileira, agora empregada conscientemente como tática política: o politicismo, isto é, a redução de todos os problemas a questões de ordem política ou, mesmo, político-institucional, excluindo do debate justamente a esfera na qual deitam raízes o golpe, a ditadura e o processo de “abertura”: a esfera da produção e reprodução da vida, a economia. Seccionada dela, a política é autonomizada, abrindo caminho para reduzir a democratização à mudança institucional, cuja efetivação prescinde de transformações econômicas.

Autonomizando o plano político, hipertrofiando artificialmente sua importância, o politicismo de fato o esvazia de seu significado próprio, formaliza-o, resultando em obstáculo para a transformação da própria política, do próprio estado36.

Ao lado da autocracia, o politicismo, também determinado pela atrofia histórico-estrutural da burguesia e do capital de via colonial, “integra, pelo nível do político, sua incompletude geral de classe”, atuando “como freio e protetor”37 de sua estreiteza econômica.

Impossibilitado de dominar sob forma democrática, oscilando entre a “truculência de classe manifesta” (a ditadura bonapartista, expressão armada do politicismo) e a “imposição de classe velada ou semi-velada” (a autocracia institucionalizada, expressão jurídica do politicismo), a

35 São disso testemunho diversos pronunciamentos feitos pelo empresariado no início do governo Geisel,

configurando uma campanha contra o estatismo, vale dizer, contra o II PND (elaborado como resposta da ditadura à crise econômica), e os realizados em 1977, também referentes ao “desaquecimento” da economia, e igualmente voltados contra a intervenção do estado. Reiteram, assim, sua tradicional posição economicamente liberal, mas não politicamente democrática, em pleno acordo com os interesses imperialistas. Ver a respeito Chasin, J. “Conquistar a democracia pela base”, op. cit.

36 “O politicismo, entre outras coisas, fenômeno antípoda da politização, desmancha o complexo de

especificidades, de que se faz e refaz permanentemente o todo social, e dilui cada uma das ‘partes’ (diversas do político) em pseudopolítica. /.../ Em outros termos, convertendo a totalidade estruturada e ordenada do real - complexo repleto de mediações - num bloco de matéria homogênea, além da falsificação intelectual praticada, o politicismo configura para a prática um objeto irreal, pois este resulta de bárbara amputação do ente concreto, que sofre a perda de suas dimensões sociais, ideológicas e especialmente de suas relações e fundamentos econômicos.” Chasin, J. “Hasta Cuando? A propósito das eleições de novembro”, op. cit., pp 123-124.

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burguesia brasileira é politicista e se vale taticamente do politicismo a fim de escamotear o debate e a contraposição a seus próprios fundamentos socioeconômicos.

O processo de “abertura” iniciado com a crise do “milagre econômico” assume os contornos de uma auto-reforma da ditadura, de uma transição pelo alto, tendo por ponto de partida o bonapartismo e por ponto de chegada a institucionalização da autocracia, deixando intocada a estrutura econômica e o caráter autocrático do estado que dela emerge.

Por mais que possa indignar, não pode espantar que a burguesia e seus representantes e porta-vozes militares e civis assumam tais posições. Mas espanta – e causa indignação tanto maior – que as oposições as tenham também assumido, abandonando o desvendamento das bases sociais do estado brasileiro, que apontam para outro sujeito histórico do processo de democratização – os trabalhadores, ao invés da burguesia – e, portanto, para outro conteúdo, consubstanciado na integração dos trabalhadores em todos os planos, incluindo as franquias político-institucionais, mas sem as autonomizar ou limitar-se a elas. Dissociando a política da economia e das demais esferas da vida social, o politicismo, parecendo realçar a luta política, a empobrece e esvazia, a desvia de seu objeto e a vota à derrota.

A subordinação ideológica a essa concepção de raiz liberal impede que a pergunta elementar acerca das condições de possibilidade da democracia sequer seja formulada, reduzindo-as explícita ou implicitamente à vontade ou, no máximo, às correlações de forças na própria esfera política. Ideologicamente subordinadas, as oposições estabelecem como objetivo primeiro democratizar as instituições, e só depois tratar de resolver os problemas econômicos. Estes, reduzidos ao mesmo isolamento, não são tomados como matéria relativa ao ordenamento da produção (como, para que e para quem produzir), mas sim restringidos à questão da distribuição de renda. Em outras palavras, a miséria que assola a classe trabalhadora brasileira teria por origem não de um modo particular de produção e reprodução, mas uma má distribuição de renda. Contra a reconhecida concentração desta, tratar-se-ia de incluir uma política de redistribuição da renda. Assim, lastreada no princípio liberal de que “a economia pertence à intangível esfera do privado /.../ enquanto a política vai, formalmente estufada, para o terreno da “coisa” pública”38, a separação entre as esferas do “político” e do “econômico” traz consigo

a disjunção, no âmbito da economia, entre produção e distribuição, reduplicando a intangibilidade da produção e remetendo a distribuição à esfera da política.

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Durante o processo da transição “lenta, gradual e segura”, apresentaram-se várias oportunidades de romper com esse caminho e retomar o elo com a história interrompida pelo golpe, recuperando, de acordo com as novas condições internas e externas, a perspectiva de uma transformação que fosse além da institucionalização da autocracia, ferindo sua base econômica e seu núcleo político. Entre essas oportunidades, destacam-se a retomada do movimento sindical na região do ABC paulista entre o final da década de 1970 e início de 1980, o movimento pelas Diretas-Já, e as eleições presidenciais de 1989.

Com as greves desencadeadas pelos metalúrgicos do ABC em fins da década de 1970, emergia novamente a classe trabalhadora, o sujeito histórico capaz de pôr no horizonte a democracia. Reivindicando ajustes salariais, as greves puseram objetivamente em questão a ordem econômica da ditadura ao confrontar um de seus pilares centrais, o arrocho salarial. Movidos pela premência da fome, tornada mais aguda pela crise econômica, apoiando-se na longa resistência e preparação dos anos anteriores e aproveitando as brechas abertas pelas dissensões internas à ditadura, os trabalhadores ameaçaram subverter a agenda da transição pelo alto, recusando o politicismo. Concretizar essa recusa, ampliar-se de movimento sindical a movimento operário, supunha visualizar os passos concretos que permitiriam vincular a solução das carências mais prementes ao percurso em direção à emancipação humana (e não à civilização do capital e ao aperfeiçoamento do estado); especificamente, supunha compreender que derrotar o arrocho salarial exigia a elaboração de um programa econômico alternativo àquele em que se assentava a ditadura, combatendo, assim, sua estrutura política ao atacá-la em suas raízes socioeconômicas.

Entretanto, essa ameaça à auto-reforma – claramente percebida como tal pelo governo ditatorial39 – não se consuma; em poucos anos, o movimento sindical se retrai, e não só por suas debilidades próprias, nem pelas medidas repressivas tomadas contra ele, mas pela assimilação pelo operariado de concepções vesgas, manifestadas já nas greves de 1980, e por sua maior liderança, já cindida em Lula, líder sindical, e Luís Inácio da Silva, militante partidário, depositário de traços problemáticos que tenderam a se acentuar daí em diante, entre os quais cabe destacar essa assimilação de “uma certa maneira de ver e contar a história brasileira”40,

que desemboca na desconsideração da experiência das lutas sindicais e operárias anteriores a 1978, especialmente as do pré-64, o desconhecimento de que a classe trabalhadora necessita de

39 Como demonstrou a reação do governo Figueiredo, recém-empossado, às greves de 1979, em plena “abertura

política”: repressão policial-militar, intervenção no sindicado dos metalúrgicos, prisões.

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independência ideológica, além de independência sindical e política, e a subordinação ao politicismo.

Os descaminhos das teses e propostas político-partidárias, inferiores às potencialidades do movimento de massas que ressurgia, serão as principais responsáveis pelo rápido descenso desse movimento que surgira tão pujante e abrira tantas possibilidades. O refluxo do movimento sindical se consolida a partir de 1982, juntamente, e não por acaso, com a ascensão do PT. Este, na condição de “esquerda não marxista”, mostra-se incapaz, como os demais partidos posicionados à esquerda, de vincular a questão democrática à questão nacional, ou de apreender a determinação da organização da produção sobre a estrutura política, assimilando o politicismo41. A retração do movimento sindical, arrastado pelo PT, redundou na perda da maior

das oportunidades surgidas desde 1964 para subverter os caminhos do desenvolvimento capitalista no Brasil pondo em seu centro o progresso social.

Perdida essa oportunidade, o trânsito pelo alto do bonapartismo para uma autocracia institucionalizada pôde se efetivar no ritmo determinado pela própria ditadura, desde a lei de anistia, que anistiou os torturadores igualando vítimas e algozes, passando pela politicização das eleições diretas para o governo estadual em 1982; pela derrota da campanha pelas Diretas-Já em 1984; a eleição indireta de Tancredo Neves, sua morte às vésperas da posse e o estabelecimento da “Nova República” sob a égide de Sarney e do Plano Cruzado; pela elaboração da nova constituição por um congresso não exclusivamente constituinte.

Em todos aqueles momentos, de modo mais ou menos incisivo, com maior ou menor amplitude, estava posta a questão central: a democracia havia de ser conquistada (não re-conquistada), com o reordenamento de todo o quadro sócio-econômico-político nacional (ainda que no interior do capitalismo), e o único sujeito histórico que nela tem interesse e dela precisa é a classe trabalhadora. Entretanto, em todos aqueles momentos, o politicismo manteve-se a tônica das organizações e/ou individualidades que se situavam na esquerda (algumas considerando-se de esquerda)42. Se a velha perspectiva da esquerda tradicional, especialmente

41 Nos termos de Chasin: “ao inverso do que se daria num rumo de esquerda, com seu desenvolvimento o PT

simplesmente politicizou a prática sindical, não extraiu da lógica do trabalho a política que supera a política, isto é, ficou nos limites do entendimento político, não se alçou à política norteada pela razão social”. Chasin, J. “A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda”, in A Miséria Brasileira. 1964-1984 – Do golpe militar à crise social. Op. cit., p. 258.

42 “Em suma, esquerda e direita designaram originariamente e ainda designam graus no interior do universo

político do capital, e, por outro lado, o que é sua acepção plena, historicamente desenvolvida, campos políticos de natureza diversa, compreendidos pela dinâmica excludente entre as lógicas do capital e do trabalho e suas respectivas formas societárias. O que distingue, por conseqüência, o campo da esquerda, figura organizada pela lógica humano-societária do trabalho, de posições na esquerda do leque político do capital”. Chasin, J. Ib., p. 229.

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do PCB, de completar economicamente o capitalismo (pelejando por um capitalismo nacional autônomo) havia perdido espaço, o vazio foi sendo ocupado pela perspectiva simétrica assumida pela “nova esquerda”, pela esquerda não-marxista, de completar politicamente o capitalismo, isto é, estabelecer um estado democrático, sem transformação de sua estrutura econômica.

Expressão maior da “nova esquerda”, naquelas ocasiões o PT cristaliza as debilidades expressas em seus momentos iniciais, de sorte que um partido nascido das demandas de um pujante movimento operário, ao invés de as atender, instrumentaliza-o para as finalidades muito mais mesquinhas de aperfeiçoamento político-institucional, substituindo a velha perspectiva pecebista de completar o capital no plano econômico pela de completá-lo no plano político, com a defesa do democratismo e a crítica ao “autoritarismo”.

Finalmente, em 1989, as primeiras eleições diretas para a presidência da república depois do golpe militar configuram o último passo da “transição democrática” e abrem outra possibilidade de inflexão da via colonial, embora mais frágil do que a apresentada dez anos antes, devido ao recuo do movimento sindical, ao avanço do processo de auto-reforma e à aceleração das mudanças internacionais. Também essa oportunidade, entretanto, foi perdida, e de novo não somente graças à atuação das forças conservadoras, mas por obra da subordinação da maioria dos partidos de oposição ao politicismo, com destaque para o PT; Leonel Brizola foi a solitária exceção, único dos candidatos a pautar sua campanha na necessidade de “quebrar as pernas do modelo econômico” e de entabular uma aliança eleitoral no primeiro turno.

Em íntima ligação com o politicismo presente nos quatro ramos constitutivos da analítica paulista, consolidava-se em 1989 a tematização da realidade brasileira (e latino-americana) pela contraposição entre o arcaico e o moderno43. A carência de modernização do país foi a tônica da campanha eleitoral da maioria dos candidatos, desconsiderando que, “pela

via colonial da objetivação do capitalismo o receptor tem de ser reproduzido sempre enquanto

receptor, ou seja, em nível hierárquico inferior da escala global de desenvolvimento”, reiterando “a condição de subalternidade do ‘arcaico’, para a qual todo estágio de ‘modernização’ alcançada é imediatamente reafirmação de sua incontemporaneidade”44. Ignorando essa

evidência, as propostas modernizadoras abdicavam da impossível autonomização do capital nacional, mas não da utopia de completá-lo por meio da plena integração ao capital

43 O “contraste abstrato e rombudo” entre arcaico e moderno, “verdadeira abstração irrazoável na acepção

marxiana”, marca “atualmente, no terceiro mundo, a dissociação entre realidade e pensamento”. “A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda”, op. cit., p. 213.

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internacional. Em plena conformidade com essa concepção, arcaico e moderno apresentam sentidos bem específicos: arcaico designa tudo o que restrinja as possibilidades de acumulação de capital pela via da integração subordinada, e moderno o que a favorece.

A candidatura de Collor de Mello, comparecendo como a representação máxima da “modernidade”, assumiu os contornos de uma “dupla demagogia: promessa de luta contra a corrupção e a miséria, capciosamente vinculadas, e pretensão de alavancar a retomada do crescimento, deixando para trás a ‘década perdida dos 80’. Em verdade, manipulação barata da boa fé dos desesperados, e radicalização da diretriz econômica do golpe de 64, reatualizada sob as vestimentas do neoliberalismo”45, e que contou com fartos recursos monetários e midiáticos.

Essa manipulação, que também já aparecera por ocasião da morte de Tancredo Neves, em torno da qual foi produzida uma comoção nacional por sua transmutação em mito e mártir, não exprime mera demagogia, nem é apanágio pessoal ou subjetivo. Exprime a incapacidade da burguesia brasileira e seu capital atrófico de se pôr como agente transformador. Barrada a possibilidade da transformação, a manipulação reduz a prática à imediaticidade, reduz mudança a rearranjo superficial, isto é, converte a transformação em seu contrário: a mudança que reafirma o mesmo. A inteligência da transformação caracterizou as burguesias que se constituíram pela via clássica, isto é, que protagonizaram processos revolucionários. Se há muito essas burguesias já descenderam para a inteligência da manipulação, a burguesia brasileira nunca teve outra.

Diante de Collor de Mello, expressão mais clara da continuidade econômica e política da via colonial e da ditadura, a esquerda compareceu na “condição objetivamente fantasmagórica de – campo ausente”, já que nenhum dos partidos e candidatos de oposição ultrapassou o limite da radicalidade burguesa. Entretanto, ainda assim existia a possibilidade de derrotar o candidato da ditadura e iniciar, com todas as dificuldades e limites, um rearranjo do ordenamento econômico pautado na integração das classes trabalhadoras. Possibilidade que exigia um programa econômico alternativo e uma aliança, entre as forças situadas na esquerda, no primeiro turno das eleições46.

45 Chasin, J. “A Resistência ao Neoliberalismo”, in A Miséria Brasileira. 1964-1984 – Do golpe militar à crise

social. Op. cit., p. 291.

46 Considerando que “Progresso social e combatividade sindical não são apenas confluentes, mas se articulam

como universalidade e particularidade”, Chasin mostra que “a afirmação do progresso social, como centro organizador da identidade nacional, francamente positiva em si, uma vez que contraria o eixo sobre o qual tem se processado até aqui o andamento do capital atrófico” – centro da posição brizolista – “ganharia em contorno e determinação, seria fortalecida e especificada, teria estaqueado seu núcleo estruturante pelas energias e urgências do movimento sindical. Por outro lado, igualmente benéfico, o vetor sindical pela sua ponta mais evoluída ganharia politicamente os lineamentos de um projeto nacional, do qual até aqui é órfão. Em outros termos, PT e PDT

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No entanto, Leonel Brizola foi o único dos candidatos na esquerda defendeu essa aglutinação, bem como pautou sua campanha na afirmação sempre reiterada e contundente da “necessidade de redefinir as relações econômicas externas do país, como também pelo imperativo de reordenar o aparato capitalista interno. Dito conjugadamente, Leonel Brizola ou sua plataforma presidencial concentram suas orientações, perspectivas ou princípios - na propositura da mudança da política econômica vigente, que, além de responsabilizada enquanto produtora da miserabilidade nacional, é denunciada em termos de crise terminal”47.

Enquanto Collor defendia a boa parceria com o capital externo, Brizola exigia a reformulação dos vínculos com esse capital, em conformidade com o reordenamento do sistema de produção interno. Em contraste com essa clareza, o PSDB defendia a boa parceira, desde que houvesse a garantia de uma exploração “justa” para o país, e o PT expunha a versão verbalmente radicalizada da mesma posição, mantendo os braços abertos ao capital externo desde que se submetesse a algumas regras.

Em consonância com essa posição, o PT oferecia, como resolução dos dilemas da classe trabalhadora, a proposta de um capitalismo mais justo, isto é, uma proposta cujos eixos são a moralidade e o distributivismo, “de tal sorte que um é o substrato do outro e vice-versa; ambos, para a efetivação, pensados como filhotes políticos, ou seja, dispositivos institucionais que perfazem o corretivo das tendências cegas e perversas do capital em fluxo desabrido. Dito de outro modo, a boa política emenda os males naturais da mecânica produtiva do capital”48.

Recusando-se à aliança no primeiro turno das eleições, e não tendo sequer aludido à necessidade de um programa econômico alternativo, o PT se converteu no obstáculo principal para uma solução eleitoral na esquerda, que minimamente permitisse infligir uma derrota efetiva à autocracia burguesa.

Com a vitória de Collor49, tanto pela ação dos pilares da ditadura, da burguesia e seus representantes e porta-vozes políticos, ideológicos e teóricos, quanto pela ação das oposições, inclusive as que se situavam na esquerda, submetidas ao politicismo, a auto-reforma conseguiu

possuem em separado porções de força política e programática que não se equilibram por si, que só em conjunto perfazem uma figura sócio-politicamente estruturada, capaz de se impor como representante universal da sociedade brasileira. Isoladas uma da outra ficam expostas à impotência quando não à caricatura”. Chasin, J. Ib., pp. 237-238.

47 Chasin, J. Ib., p. 279. 48 Chasin, J. Ib., p. 264.

49 Vitória que “consubstanciará a continuidade civil do golpe de 64, legitimado pelo voto universal, ou seja,

efetivará o projeto econômico de 64 sob a aura do neoliberalismo, ao mesmo tempo que será a finalização da distensão anunciada por Geisel, encaminhada em alguns passos por Figueiredo e transada depois por Sarney, em suma, será a carne democrática da própria transição. De tal modo que o vazio de Collor é, em verdade, o conteúdo da auto-reforma da ditadura, a alma de 64 que encontrou sua forma charmosa”. Chasin, J. Ib., p. 227.

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chegar, apesar dos sobressaltos, exatamente onde pretendia, transitando do bonapartismo à autocracia institucionalizada, da truculência abertamente ditatorial à imposição de classe velada, mantendo intocada a estrutura econômica subordinada e a superexploração da força de trabalho50, e também o cerne do autocratismo burguês no plano político.

Encerrada a transição, permaneceram no poder as mesmas figuras que nele se mantinham há décadas e que sustentaram, na maior parte dos casos abertamente, a ditadura; os ditadores se auto-anistiaram dos crimes de lesa-humanidade com a lei da anistia que impede a punição dos torturadores e assassinos e os iguala aos torturados e assassinados; o aparato repressivo foi conservado, como se evidencia claramente na militarização da polícia, na violência cotidiana a que é submetida a classe trabalhadora, na permanência da tortura contra os criminosos comuns.

A própria Constituição de 1988, embora traga avanços em alguns aspectos, seguiu a tradição brasileira de remeter para a legislação ordinária a regulamentação de muitos dos direitos que garante, regulamentação que o Congresso não se apressou em estabelecer, mantendo ineficazes muitas dessas garantias. Foram mantidas praticamente intocadas determinadas disposições presentes na constituição ditatorial, por exemplo, no plano econômico, as relativas à propriedade de terras e dos meios de comunicação. Também não foi superada “a componente militar nas equações do poder, a não ser nos limites consentidos pela auto-reforma da ditadura, mesmo porque é intrínseco, às formações do tipo da brasileira, a incapacidade do capital de organizar por si só estatuto de seu ordenamento”51: muitas das

cláusulas constitucionais relativas às forças armadas, às polícias militares, ao sistema judiciário militar e à segurança pública também não sofreram modificações, de sorte que essa parte da Constituição “permaneceu praticamente idêntica à Constituição autoritária de 1967 e à sua emenda de 1969”52. Exemplo do poder conservado constitucionalmente pelos militares é o artigo 142, segundo o qual as forças armadas “destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”; isto é, os militares “têm o poder constitucional de garantir o funcionamento do Executivo, Legislativo e Judiciário, a lei e a ordem, quando deveria ser o inverso”. Como a Constituição não define o que é a “ordem” a ser conservada, embora use o termo em diversos artigos, resulta que cabe às

50 Apesar do fracasso de Collor em realizar os ajustes necessários para a “modernização” requerida pela nova etapa

de integração subordinada.

51 Chasin, J. Ib., p. 223.

52 Zaverucha, J. “Relações Civil-Militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988”. In Teles, E. e

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forças armadas decidir quando e por que a ordem foi violada. “Ou seja, as Forças Armadas são baluartes da lei e da ordem definidas por elas mesmas”, cabendo-lhes “o poder soberano e constitucional de suspender a validade do ordenamento jurídico, colocando-se legalmente fora da lei”53. A já mencionada militarização da polícia, realizada durante a ditadura, foi igualmente

mantida pela Constituição, inclusive sua condição de forças auxiliares do Exército54. E continua em vigor a Lei de Segurança Nacional promulgada em 198355. Além disso, a reedição do velho decreto-lei, sob a forma das medidas provisórias, manteve a concentração do poder nas mãos do executivo.

A finalização da transição pelo alto do bonapartismo à autocracia institucionalizada foi, pois, uma vitória das forças que engendraram, executaram e sustentaram o golpe militar e a própria transição, em que pese o afastamento da truculência mais direta.

As eleições de 1989, último passo dessa reconversão, foi também o passo final do processo de constituição do capitalismo brasileiro pela via colonial, induzido, mais uma vez, pelas alterações que se verificavam no plano internacional – a mundialização do capital.

A mundialização, com a derrocada definitiva das formações sociais pós-capitalistas (nas quais vigorava outra forma de capital, o capital coletivo/não social), a aceleração do desenvolvimento das forças produtivas e a quebra das barreiras nacionais à circulação do capital, integra muito mais estreitamente do que em qualquer momento anterior os espaços nacionais sob a égide do capital, de tal forma que a não integração se torna sinônimo de retrocesso e degradação humanos, inviabilizando qualquer encaminhamento de soluções no âmbito nacional.

Esse novo panorama internacional marca o encerramento de um período de seis décadas, ao longo do qual, com todas as vicissitudes, o capitalismo industrial brasileiro se objetivou, sem ter resolvido suas mazelas econômicas, sociais e políticas.

53 Ib., p. 48.

54 Conforme Zaverucha, os artigos 22-XXI e 144-IV § 6 estabelecem sobre as polícias um “duplo comando: federal

e estadual. Os governadores ficam com o ônus de pagar os salários, sem todavia, poderem decidir qual tipo de armamento deve ser comprado, como as tropas devem ser alinhadas ou onde devem ser construídos novos quartéis. Para tudo isso, precisam de consentimendo da Inspetoria Geral da Polícia Militar (IGPM), órgão vinculado ao Ministro do Exército. A IGPM foi criada durante o auge da repressão política, através do Decreto nº 61.245, de 28 de agosto de 1967”. Zaverucha, J., op. cit., pp. 52-53.

55 E, aliás, o governo recorreu a ela em 2013, quando das mobilizações de junho. A denominação dessas e de outras

leis e organizações, durante o período de transição, de “entulho autoritário” exprime o politicismo que orientou a lutas por sua eliminação, seja pela utilização do conceito de autoritarismo, originado e apoiado na autonomização e formalização da política, seja pela suposição de que se trata de restos de um regime “autoritário” supostamente desmantelado.

Referências

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