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78 A importância da oralidade na difusão do cristianismo primitivo: uma análise segundo o

livro Ato dos Apóstolos e as Epístolas paulinas

Débora Faccin*1

Resumo: Mesmo com a introdução da escrita no século VII a.C na Grécia, a tradição oral continuou sendo um dos principais instrumentos de manutenção da cultura politeísta. Assim como a oralidade foi essencial para que os poemas épicos tomassem parte da formação do imaginário religioso grego, ela também foi pilar da construção e da disseminação da tradição cristã na comunidade romana do século I que, em sua maioria, era iletrada. A pregação de Jesus e a continuidade do seu movimento após a sua morte se deram, predominantemente, de forma oral, inclusive depois da escrita dos Evangelhos, devido às características tanto de cunho íntimo quanto público que a oralidade permite. Desta forma, a pretensão desse trabalho é evidenciar a importância da transmissão oral da ideologia cristã nas comunidades romanas do primeiro século, bem como sua influência e utilização como instrumento do processo de cristianização das mesmas, através de uma análise contextualizada e crítica das passagens do livro do Ato dos Apóstolos e das Epístolas Paulinas no Novo Testamento.

Palavras-chave: Oralidade; Difusão do cristianismo; Novo Testamento; Ato dos Apóstolos, Epístolas Paulinas.

The Importance of Orality in the Diffusion of Primitive Christianity: an Analysis According to the Book The Act Of The Apostles And The Pauline Epistles

Abstract: Even with the introduction of writing in the 7th century BC in Greece, oral tradition continued to be one of the main instruments of maintenance of the polytheistic culture. Just as orality was essential for the epic poems to be part of the formation of the Greek religious imaginary, it was also the pillar of the construction and dissemination of the Christian tradition in the Roman community of the first century, which was mostly illiterate. The preaching of Jesus and the continuity of his movement after his death occurred predominantly orally, even after the writing of the Gospels, due of the intimate and public characteristics that orality allows. In this way, the pretension of this study is to highlight the importance of the oral transmission of the Christian ideology in the Roman communities of the first century, as well as its influence and use as instrument of the process of Christianization of the same ones, through a contextualized and critical analysis of the passages of the book The Acts of the Apostles and the Pauline Epistles in the New Testament.

Keywords: Orality; Diffusion of Christianity; New Testament; Act of the Apostles, Pauline Epistles.

*Graduanda na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), bolsista PIBID e membro do Grupo de Estudos sobre o Mundo Antigo Mediterrânico da UFSM - GEMAM/UFSM. Trabalho sob a orientação da Profa. Dra. Semíramis Corsi Silva (UFSM). E-mail: de.faccin@hotmail.com

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79 INTRODUÇÃO

Para os gregos, o sagrado estava presente de forma intrínseca no cotidiano, como uma ordem coletiva. Ele regia a pólis e todos os elementos que fundamentavam as relações entre seus membros. Grande parte dessa construção cultural se deu pela oralidade que foi estrutural na manutenção dos valores sociais, mesmo após a disseminação da escrita por volta do século VII a.C. Na cultura helênica se destaca, dentro da oralidade, a poesia épica. (SANTOS, 2010)

Os poemas cantados ocupavam lugar ímpar na vida social da Grécia. Acompanhados ou não de instrumentos, eram cantados por aedos ou rapsodos em locais públicos como banquetes, concursos, jogos ou festas. Mantinham uma memória para aquela sociedade, promovendo a conservação e a comunicação do saber, bem como dos relatos míticos sobre suas divindades, fundamentando uma cultura comum, um imaginário religioso. Sandra Ferreira dos Santos (2010) pontua a transmissão oral como um fator importante na formação e manutenção das tradições religiosas gregas e cristãs2. Observar ambas as tradições de forma comparativa é

um método interessante de abordagem, já que, como lembra John Dominic Crossan (2004), o cristianismo se desenvolve a partir de fortes influências judaicas e helenísticas. No entanto, como aponta Santos (2010), há também diferenças cruciais, como as distintas relações com o divino. O caráter dogmático e revelador, com um Deus “formal e todo poderoso” (SANTOS, 2010. p. 261) característico do cristianismo, contrapõe ao politeísmo grego, onde “o culto não precisa de outra justificativa além de sua própria existência” (SANTOS, 2010. p. 244) e os deuses são íntimos aos homens.

A comparação entre ambas, dessa forma, se justifica pelo uso e pela funcionalidade da oralidade na construção dessas tradições (e, mais tarde, na sua perpetuação pela escrita dos Evangelhos e da Ilíada e Odisséia), com suas morais e ensinamentos sobre costumes e modos de vida. Assim como na transmissão da cultura helênica há séculos de poesia oral, para o

cristianismo, contar com o recurso oral foi fundamental. Com a grande incidência de iletrados, a recitação e até mesmo a leitura em voz alta possibilitaram a difusão de um conhecimento público e da transmissão da fé e da religiosidade na Antiguidade, mesmo sendo este um período de

2 É mais adequado, devido a uma questão conceitual, tratar de religiosidade grega, não religião. Santos (2010)

argumenta que na língua grega nem sequer existe uma palavra cujo campo semântico seja equivalente ao termo “religião”.

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80 transição da cultura oral para a escrita3. Paul Zumthor (1993, p.75) destaca que “todo discurso

é ação, física e psiquicamente efetiva”. Neste sentido, pretendemos discutir o papel da oralidade e seus reflexos no processo de cristianização da camada camponesa e, mais tarde com Paulo, da população urbana, levando em conta um contexto de alto índice de desigualdade social e analfabetismo e a ascensão de uma tradição messiânica escatológica e acentuadamente anti-imperialista.

Capitulo I – O papel da oralidade na escrita dos Evangelhos

Estudos demonstram que a relação de Jesus com seus seguidores era essencialmente oral. Como lembra Pedro Lima Vasconcellos (2003), a figura de Jesus está associada diretamente com a palavra falada, não a escrita. Mesmo seus seguidores possuíam hábitos orais e o contato com a cultura letrada era muito tênue.Na Galileia da Antiguidade as relações eram predominantemente orais mesmo por pessoas letradas e, quando havia escrita, a mesma estava a serviço da comunicação oral ou então restrita à elite. As primeiras comunidades cristãs foram estruturadas e organizadas segundo os ditos orais de Jesus. Grande parte da população era iletrada e as parábolas foram essenciais para o entendimento e transmissão de morais e valores entre os seguidores. Segundo Leandro Seawright Alonso (2012, p.31), há uma “ritualização da oralidade própria aos cristãos, com base na Palavra, na documentação viva, na memória coletiva, na subjetividade, na conotação, nos mitos, e, sobretudo, na disciplinaridade da história oral autônoma”. O que não é consenso entre os pesquisadores são o papel e o nível de influência da oralidade na escrita dos Evangelhos. O objetivo aqui não é buscar uma resposta ou mesmo analisar esse fator, mas discorrer sobre as opiniões de alguns pesquisadores a fim de que não ocorra uma lacuna temporal e a discussão a respeito da oralidade no seguimento do movimento cristão se torne inteligível.

O primeiro ponto de discordância se dá em relação à influência do Evangelho Q4 que seria usado como fonte primeira para redigir os Evangelhos. Lair Amaro Faria (2009) traça um panorama abordando as pesquisas de autores como Bailey, Gerhardsson, Culley, Kepler e

3 Essa transição não quer dizer, necessariamente, um predomínio, já que a cultura oral seguiu como veículo chave

da evangelização na cultura cristã.

4 Segundo Kloppenborg, a Fonte Q é um “documento constituído em grande parte por sentenças de Jesus, com

uma extensão de pelo menos 225 versículos, representando o material comum entre Mateus e Lucas [...] e fortes semelhanças ao Evangelho de Tomé”. O Evangelho ou Fonte Q foi admitida pelo Jesus Seminar na tradição de 1900. (SCHIAVO, 2009)

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81 Horsley e, a partir de uma análise crítica dos mesmos, faz uma história comparada entre o Evangelho Q e o Evangelho de Marcos como performances orais. A exemplo dessa série de pressupostos, o autor cita Gerhardsson e Bultman. Enquanto o primeiro frisa a memorização, o segundo afirma que não há características de oralidade dentro do Evangelho ou ainda, que pode ser estudado como uma coletânea de peças independentes, segundo Schmidt. Como conclusão, Faria lista algumas suposições e, entre elas, que os seguidores de Jesus e disseminadores de suas palavras o faziam de forma oral, já que eram em sua maioria iletrados. Assim, para a conservação desses ditos, estabeleceram-se formas padronizadas de narrativas e enquanto duraram as campanhas não houveram registros escritos de suas pregações, assim, de modo que quando surgiram as escritas, já havia narrativas completas e não textos em pedaços. O material sinótico teria sido produzido por situações típicas, vivenciais da comunidade, não meramente por indivíduos. Além disso, se houvessem anotações das pregações, é bem provável que os Evangelhos teriam assumido caráter distinto.

Santos (2010) afirma que os Evangelhos não foram escritos sem antes terem passado por um complexo período oral, onde houve uma seleção natural de relatos, uma metamorfose na imagem de Jesus e na concepção de suas histórias, algumas provenientes de uma imaginação popular e não necessariamente de uma memória recebida. Essa cultura de oralidade, tanto individual como coletiva, influenciou o rumo das comunidades cristãs.

A gênese desse processo de redação e composição dos manuscritos cristãos, em geral, e dos evangelhos intra e extracanônicos, em particular, é alvo de diferentes hipóteses explicativas. Difícil é negar, porém, que os materiais pré-evangélicos circularam, por algum momento, como tradições orais constituídas a partir das memórias fragmentadas de diferentes testemunhas oculares (FARIA, 2009, p.13).

Dentro da oralidade, há uma série de vieses e serem considerados para, por fim, analisar sua influência definitiva na escrita dos Evangelhos. As conclusões e considerações a esse respeito, portanto, estão longe de ser homogêneas entre os pesquisadores.

Capítulo II - Um debate acerca da conceituação: O papel da tradição oral, da memória e das oralidades

Quando Crossan (2004) discute a oralidade no contexto do cristianismo primitivo, ele destaca uma distinção entre tradição oral e transmissão oral:

A tradição oral, na qual a tradição é recebida oralmente e transmitida oralmente (com freqüência por analfabetos) dentro da disciplina da execução criativa é um mundo diferente da tradição escrita transmitida oralmente dentro da disciplina da memorização exata (CROSSAN, 2004, p.91).

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82 Assim, o autor define como tradição oral o que é passado sem o auxílio da escrita ou de uma fórmula pronta apta para a repetição, pois “a memória é criativamente reprodutiva em vez de precisamente recordativa” e “a oralidade é estrutural em vez de sintática” (CROSSAN, 2004, p.94). Walter Ong (1987) caracteriza as comunidades orais como homeostáticas e, estas, guardam as memórias que lhes são pertinentes de forma atual. Nesse sentido, é necessário definir as particularidades da estrutura oral e do que compete à memória. Zumthor (1993) separa a oralidade em três tipos: a oralidade primária e imediata, que não possui nenhum contato com a escritura; a oralidade mista, que sofre certa influencia externa; e a oralidade que coexiste com a escritura e vai sofrendo um esgotamento da voz, sendo substituída pela escrita. Já Ong (1987) trabalha com o conceito de culturas verbomotoras, que se referem às comunidades que podem ter acesso à escrita, mas que continuam orais em sua estrutura e se utilizam predominantemente dela para a interação, como as antigas culturas aramaicas e hebraicas.

Dentro da estrutura oral nos deparamos com uma gama de possibilidades que permitem a transmissão do conteúdo proposto. Crossan (2004, p. 111) aborda o desempenho da tradição a partir de três elementos estruturais: “Histórias gerais ou narrativas totais”, “temas” e por último as “formulae” que compreenderiam frases estereotipadas. Já Zumthor (1993) fala em “produção”, “comunicação”, “recepção”, “conservação” e “repetição” dentro da estrutura da obra poética. O autor vai além dessa perspectiva e afirma também que “toda palavra não é só Palavra”. Há a “palavra ordinária”, que é banal e superficial e a “palavra força”, que é versátil e rica no sentido de sua fixação, que possui uma ação e geralmente é proferida por pregadores, chefes ou homens considerados santos em locais privilegiados e públicos. Ele destaca que os ensinamentos e os rituais das religiões populares se transmitiam da boca ao ouvido, e a verdade se ligava ao poder vocal dos que sabiam e perpetuavam-se por seus discursos, com retalhos do evangelho sabidos de cor, lembranças de histórias santas, fábulas, receitas dentre outros. Há uma profundidade em que se inscreviam no psíquico individual e coletivo os valores próprios e o significado dessa voz.Ong (1987) ressalta que, para as comunidades predominantemente orais, as palavras possuem poder (também em um sentido mágico) e, por isso, todo som, essencialmente o da enunciação que tem origem de um organismo vivo, é dinâmico (No princípio era o Verbo – Jo 1: 1). Como exemplo, o autor cita a passagem do Velho Testamento em que Adão dá nome aos animais e às coisas e desta forma as mesmas adquirem um sentido, um poder. No Novo Testamento também podemos confirmar essa dinâmica: “Eu lhe ordeno em nome de Jesus Cristo: saia dessa mulher! E o espírito saiu no mesmo instante” (At, 16: 8) e

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83 ainda “Pois se você confessa com a sua boca que Jesus é o Senhor [...], você será salvo” (Rm, 10: 9).

Pode-se observar que há uma concordância entre estes autores quando explicitam a importância do caráter sócio-cultural da transmissão oral e como esta prática se insere no cotidiano, público e privado, das pessoas dessas comunidades.

Zumthor (1993) afirma que tanto a liturgia quanto a pregação têm por objeto de transmissão um saber privilegiado, e que isso é indispensável para a conservação do que ele chama de “pacto social” e também para a realização individual e coletiva dentro dessa comunidade. Dentro do ambiente familiar, a transmissão desses saberes se daria a caráter de voz e gesto. Para o autor, ainda há outros saberes que seriam menos dignificados, mas que têm uma importância para determinar o funcionamento desse grupo, e isso estaria intrínseco no cotidiano através de técnicas e procedimentos. No cristianismo popular, por exemplo, vemos um contato particularizado com o divino, um “diálogo feito de palavra e de ouvido”. Neste ponto, difere da oralidade do paganismo, onde esse contato não é de salvação individual, mas de caráter comunitário. Mesmo assim, essas comunidades orais, como explica Ong (1987), formam estruturas de personalidade mais exteriorizadas e comunitárias em relação às “escolarizadas”, ou seja, a comunicação oral une essas pessoas em grupos, a sociedade é um reflexo dessa estrutura e vice-versa. A palavra oral, diferente da escrita, existe dentro de um contexto mais profundo que está diretamente ligado às “modificações de uma situação existencial” e, por isso, com a atividade corporal. Qualquer gesto dentro de uma articulação verbal oral é representativo de algum poder ou significado.

Com relação à memória, Crossan (2004) afirma: “A memória é tanto ou mais reconstrução criativa do que recordação exata e, infelizmente, muitas vezes é impossível dizer onde termina uma e começa a outra”. Podemos lembrar alguns fatos e esquecer-se de outros, ou confundir os detalhes. Memórias são construções complexas que dependem de uma série de fatores e, por isso, não devem ser encaradas com um senso comum. O autor dá alguns exemplos, como quando uma história fictícia se transforma em fato, ou um não fato se transforma em fato, pois nossas lembranças se dão por processos reconstrutivos e muitas vezes o que recordamos e o que criamos ou associamos se misturam e formam a situação. Há métodos como a mnemônica ou o estabelecimento de pontos fixos que, dentro da narrativa oral, auxiliam a memorização e a transmissão desses ditos.

Fernando Catroga (2001), afirma que a memória individual é formada pela coexistência de várias outras memórias que se encontram em permanente construção e, justamente por serem

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84 seletivas e subjetivas, estão passíveis a mudanças. As recordações estão sempre sujeitas a uma sobredeterminação social, a memória pública e a privada interagem e se formam simultaneamente, “cada eu só ganha consciência de si em comunicação com os outros” (CATROGA, 2001, p. 16). À vista disto, o autor ilustra Ricoeur, “recordar é um ato de alteridade”.

“Mas, para uma tradição oral, não há uniformidade, há só multiformidade oral. Há múltiplos modos, igualmente válidos, de dizer e redizer essa frase. Uma única matriz ou estrutura central nos dá a multiformidade de execução” (CROSSAN, 2004. p. 128). Aqui Crossan explica sobre a matriz, também uma forma de memorização, que consistiria em encontrar alguns pontos principais de uma história e, a partir deles, poder recontá-la. Quando ele cita a uniformidade, refere-se à cultura escrita e, sobre esse aspecto, cabe a seguinte reflexão: Podemos hierarquizar a importância da cultura oral ou da escrita? Crossan afirma que essa dicotomia é prejudicial, porque por mais que haja cultura oral sem alfabetização, a alfabetização não se sustenta sem a cultura oral. Zumthor (1993) cita a autoridade do verbum diante da

scriptura apesar de recordar que, mais tarde, a Igreja oficial vai tomar o monopólio da escritura.

Ong (1987) argumenta, em sua obra, que a oralidade está destinada a produzir a escrita, mas também cita Saussure, que defende que a escrita é um complemento da fala oral e atua como transformadora da articulação. Nessa questão surge uma pertinente crítica à Havelock5 que considera a escrita como a grande transformadora da mentalidade e dos processos cognitivos. O autor argumenta que a alfabetização massificada no século V a.C foi responsável por um novo tipo de consciência, que seria capaz de processar os avanços lingüísticos. Como explica Evandro Luis Salvador (2014), Havelock considera que a oralidade não permitiria um pensamento mais complexo, já que o armazenamento desse conhecimento tinha como objetivo transmitir e preservar a cultura dessa sociedade ágrafa, não abrindo, desta forma, espaço para modificação ou revisão desse conteúdo, fazendo da abstração um domínio exclusivo da escrita. Havelock (1995) coloca a escrita como parte de um processo evolutivo cultural, enquanto a oralidade pertenceria ao natural e, assim, um não suplantaria o outro. Essa é uma discussão de muitos vieses, assim como a influência da oralidade na escrita dos Evangelhos, que abordaremos adiante.

5 Erick A. Havelock é um classicista, autor de “Prefácio a Platão”, onde escreveu grandes contribuições para o

entendimento da alfabetização grega e da cultura oral. Suas idéias, juntamente com Walter Ong, influenciaram e foram largamente difundidas no âmbito acadêmico.

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85 Portanto, dentro das culturas orais primárias ou verbomotoras, os instrumentos de memorização, com suas possibilidades e limitações, bem como o uso da oralidade – dinâmica, multiforme e homeostática – constituem instrumentos de poder e influência na vida psíquica, de transmissão de saberes privilegiados e até mesmo de coerção. Estes instrumentos carregam um significado social e também privado. Possuem influência na sociedade através da difusão dos valores, parábolas e na formação das culturas religiosas e identitárias, além da perpetuação da memória de suas figuras heroicas.

A identidade é um produto social, há uma necessidade de continuar a narrar, em hebraico Zachor, tu lembrar-te-ás. Há “predisposições que condicionam os indivíduos a selecionar o seu passado, processo psicológico em que as escolhas são sempre acompanhadas pelo que se olvida, pois, quer se queira quer não, escolher também é esquecer, silenciar, excluir” (CATROGA, 2001, p.26), existe uma “estreita relação entre memória, identificação, filiação e distinção” (CATROGA, 2001, p.28). Recordar também é um ato político, ideológico, que fornece um sentimento de pertença e de identidade.

Capitulo III – A palavra como poder e instrumento de evangelização no Livro do Ato dos Apóstolos e nas Epístolas de Paulo

“E como poderão acreditar, se não ouviram falar dele? E como poderão ouvir, se não houver quem o anuncie? ” (Rm, 10:14)

Ao longo do livro dos Atos dos Apóstolos, quando o movimento de Jesus de Nazaré é continuado por seus seguidores, há diversas ocasiões em que o sentido da palavra e da anunciação é invocado. Nas Cartas de Paulo às comunidades e seus líderes, observa-se um encorajamento no sentido de ensinar, evangelizar, repassar ao povo os ensinamentos e as mensagens e, a partir deles, espalhar a notícia de um determinado acontecimento, de um ato de fé.

É dia de Pentecostes, festa judaica comemorada cinquenta dias após a Páscoa, reunindo multidões de devotos de vários lugares. Nessa passagem do livro do Ato dos Apóstolos, os apóstolos são tocados pelo Espírito Santo e se tornam inteligíveis a um grande número de pessoas de diversas regiões, de línguas e costumes diferentes. “Todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem” (At, 2: 4). Mais adiante, em outra passagem deste mesmo livro, é relatada a irritação

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86 das autoridades diante da anunciação e ensinamento público de Pedro e João, com a seguinte finalização: “Todavia, muitos daqueles que tinham ouvido o discurso acreditaram” (At, 4: 4). Nestes relatos, se evidencia a representatividade que a palavra, em forma de anunciação, tem para essas comunidades, o que ratifica a explicação de Zumthor a respeito da palavra como detentora de poder e de verdade (Cristo é a “Palavra da verdade”). Há uma preocupação da parte das autoridades justamente por estarem cientes da ampla capacidade da palavra como meio de difundir ideias e promover insubordinação ou subversão política. A Boa Nova detinha um caráter anti-imperialista característico dos messianismos da época: “Chamaram os apóstolos, mandaram açoitá-los, proibiram que eles falassem em nome de Jesus” (At, 5: 40); “Todos eles vão contra a lei do Imperador, afirmando que existe outro rei chamado Jesus” (At, 17: 7).

Encontra-se com frequência frases como “e todos ouviram falar”, o ato de “dar testemunho” é a forma como, muitas vezes, os apóstolos e até mesmo Jesus se utilizaram para disseminar, com certa universalidade, suas palavras e os relatos de seus milagres: “Com efeito, todos os atenienses e os estrangeiros residentes passavam o tempo a contar ou a ouvir as últimas novidades” (At, 17: 21). Como vemos, o dom da eloquência, a capacidade de cada um para a comunicação oral e pública detinha grande importância e era carregada de valores. Em Atos 22:7, há uma passagem que cita o quanto Moisés era poderoso ao falar, ao contrário de Paulo, que durante suas cartas justificava “Ainda que eu não seja hábil no falar, eu o sou no saber” (2Co 10: 6); o capítulo 14 da Primeira Carta aos Coríntios, explica sobre o dom de falar em línguas como um contato pessoal com Deus, mas elucida a indispensabilidade de profetizar: “edifica, exorta, consola” (1Co 14: 3). Paulo contrapõe a cultura grega quando diz que não recorre à sabedoria da linguagem, nem busca a sabedoria como os gregos, pois a comunidade não era composta por grandes intelectuais ou poderosos e Deus havia escolhido o que todos tinham por vil ou desprezavam. Ele argumenta: “não me apresentei com o prestígio da oratória ou da sabedoria, para anunciar-lhes o mistério de Deus” (1Co, 2:1) e ainda: “minha palavra e minha pregação não tinham brilho nem artifícios para seduzir os ouvintes” (1Co,2:4), artifícios esses, muito presentes nos poemas épicos6. Segue a comparação: Os gregos buscam a sabedoria, os judeus pedem sinais, mas os cristãos devem se ater à anunciação, à Palavra. Ainda nessa epístola, Paulo aconselha a importância de transmitir a palavra, aprender e repassar o ensinamento quando os membros da comunidade estão reunidos.

6 “A linguagem era rica, estilizada e artificial, adaptando-se admiravelmente aos requisitos da composição oral.”

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87 Outra preocupação que notamos em Paulo, como na Segunda Carta aos Coríntios, na Carta aos Gálatas e na Carta aos Efésios, é separar os verdadeiros dos falsos profetas e, logo, notamos uma “hierarquização”. “Maldito aquele que anunciar a vocês um Evangelho diferente daquele que anunciamos” (Gl 1: 8) Assim, nem todos teriam o direito de memorizar e transmitir a Palavra, ou seja, esse conhecimento é restrito a privilegiados. Juliana B. Cavalcantti (2014) separa o movimento de pregação em dois grupos: os líderes itinerantes carismáticos e os comunitários. Os líderes itinerantes possuíam um movimento forte na Palestina, devido à vivência de mudanças religiosas e sociais e um sentimento antiimperialista. Deste movimento participavam mendigos, bandidos, profetas ou missionários. Já as lideranças comunitárias eram predominantes no Mediterrâneo e tinham um caráter autárquico, neste segundo grupo carismático Paulo estaria inserido. O autor explica que apesar do caráter autárquico, essas lideranças contavam com ajudas financeiras. Podemos observar um exemplo disso em Gl 6:6 quando Paulo escreve: “Aquele que recebe o ensinamento da palavra deve repartir todos os bens com o catequista”. No entanto, Paulo pregava a pobreza carismática e o sacrifício como um privilégio. Há uma demanda por uma reinterpretação das palavras de Jesus e uma tradição apostólica que define quem é autorizado ou não a lembrar e falar sobre ele. Por mais que as comunidades tenham seguido uma posição contrária ao poder romano, havia uma configuração hierárquica na sua estruturação e uma rivalidade entre as lideranças. Nesse sentido, estabeleceu-se a crítica dos historiadores e teólogos em relação ao chamado “Paulinismo”, já que os ensinamentos de Paulo são predominantes na Igreja Católica e, em alguns pontos, diferem significativamente daqueles encontrados nos Evangelhos.

Os escritos tidos como oficiais por estas lideranças comunitárias justificavam a sua autoridade e discursos levantados. Aqueles que não se enquadravam nesta linha oficial, eram tidos como ‘falsos profetas’, não detentores da verdade, entre outras alegorias (CAVALCANTTI, 2014. p. 07).

Nesta perspectiva, defende-se o conceito de cristianismo plural. Como explica Faria (2016), o cristianismo primitivo era bastante diverso. Havia escolhas quanto ao tipo de cristianismo que se pretendia transmitir, não havendo uma uniformidade em seus discursos nem consenso sobre o que disse ou não Jesus, mas traçando uma fronteira entre a diversidade aceitável e o que, mais tarde, seria considerado heresia.

Durante as conversões, Paulo envia alguém de sua confiança, ou vai a encontro dessas comunidades, e lá busca hospedagem na casa das famílias. São muito presentes no Novo Testamento os relatos de famílias convertidas dessa forma, assim como a evangelização nas refeições compartilhadas, mostrando o caráter íntimo que a oralidade permite nesse tipo de

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88 pregação, ou seja, um contato face a face que estabelece outro tipo de estrutura oral e psicodinâmica. Outro exemplo, dentre os diversos encontrados nas cartas de Paulo, de aconselhamento à evangelização, está presente na Segunda Carta a Timóteo. Paulo encoraja Timóteo a seguir na missão evangelizadora, apesar de sua prisão: “Mas a palavra de Deus não está algemada” (2 Tm, 2:9). Ainda nessa carta, Paulo aconselha que o ensinamento seja claro, de forma que se evite um palavreado inútil e questões sem importância e, mais uma vez reforça que esse não é um papel para todos, a transmissão do que se ouviu deve ser feito por poucos: “O que você ouviu de mim na presença de muitas testemunhas, transmita-o a homens de confiança que, por sua vez, estejam em grau de ensiná-lo a outros” (2 Tm,2:2). Ao fim de sua Segunda Carta a Timóteo, Paulo, em seus últimos dias antes da execução, confessa ter alcançado seus objetivos: anunciar a fé de forma que ela chegasse aos ouvidos de todas as nações. Neste contexto está escrito uma de suas mais célebres frases: “Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a fé” (2Tm 4: 7).

Considerações Finais

A oralidade se fez imprescindível para a disseminação dos ideais cristãos e para a construção de suas memórias. Para que fosse possível a transmissão e a manutenção destes preceitos nas comunidades através do tempo, foram essenciais os métodos narrativos e mnemônicos, sejam eles parábolas, palavras-força, histórias ou salmos recitados, em um ambiente familiar ou público. Há uma complexidade que envolve a tradição oral e, concomitantemente, sua relevância para a inteligibilidade das comunidades cristãs primitivas.

Presente em todo o processo de evangelização, a oralidade agiu auxiliando na formação da fé e da doutrina cristã, sendo essencial para a difusão de seus valores e de suas morais, de suas figuras santas e heróicas e para a construção da sua própria identidade. Como lembra Catroga (2016): “o imaginário da memória une os indivíduos”.

Essas práticas não só estiveram intrínsecas na cultura dessa população, predominantemente analfabeta, como também se mantiveram parte da tradição cristã ao longo dos séculos, atestada em seus sermões.

Quando enfatizamos a preponderância da oralidade diante da escrita para esses povos, lembramos da breve narrativa de Eduardo Galeano, em “Espelhos”:

Uns cinco mil anos antes de Champollion, o deus Thot viajou a Tebas ofereceu a Thamus, rei do Egito, a arte de escrever. Explicou aqueles Hieróglifos, e disse que a escrita era o melhor remédio para curar a memória ruim e a pouca sabedoria. O rei recusou o presente: _ Memória? Sabedoria? Esse invento produzirá o esquecimento. A sabedoria está na verdade, e não em sua aparência. Não se pode recordar

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com memória alheia. Os homens registrarão, mas não recordarão. Repetirão, mas não viverão. Serão informados, mas não saberão (GALEANO, p. 15).

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Referências

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